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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

Bacharelado em Filosofia

Escola de Humanidades

César Collin Lavalle


Erasmo J P Andrade
Rodrigo Pedro Mella Parmeggiani
Samuel Matalon

TRABALHO DISCENTE EFETIVO


3º Período

Curitiba – Paraná
2020
1ª Entrega
Desde os pré-socráticos conceitos como o ser, a essência, a substância
e a verdade foram questões de debate na Filosofia, e por trás de todas estas
questões está a influência de nossa experiência com a mudança. O pensar na
mudança foi assunto de todos os pré-socráticos, e que talvez tenha encontrado
em Heráclito o seu maior expoente. Percebemos a existência da mudança
porque, além de a sentirmos, vivemos suas consequências, somos atropelados
por ela.
A teoria platônica1, base do pensamento ocidental, concebe a verdade
como algo imutável, sendo que para ela o pensamento baseado na mudança é
considerado apenas uma opinião, sem valor epistemológico. A hipótese de
Heráclito, de que a única verdade é a mudança constante foi deixada de lado, e
o entendimento platônico sobre o devir foi aceito por Aristóteles, que o
exagerou ainda mais. Certa ou errada a visão de Platão ficou para a
posteridade e forjamos nossa cultura em bases platônica, ou seja, negando a
mudança, apesar de vivermos com ela.
A sociedade atual tem como principal característica a utilização intensa
de diferentes tecnologias, desde ferramentas mecânicas, como um martelo, até
sistemas operacionais que funcionam em máquinas extremamente complexas.
Lyotard descreve o período pós moderno como consequência direta do uso
intenso de máquinas e a robotização do mundo, afirmando que a utilização de
novas tecnologias “afeta e afetará a circulação dos conhecimentos, do mesmo
modo que o desenvolvimento dos meios de circulação dos homens
(transportes), dos sons e, em seguida, das imagens (mídia) o fez”. 2
Os instrumentos acompanham o ser humano através da sua história,
pois um dos papéis que o ser humano assume em sua existência, como nos
mostra Hannah Arendt em A Condição Humana, é o de homo faber. Essa
condição se constitui na capacidade humana de poder construir instrumentos, a
partir da técnica, que resultarão no mundo em que os seres humanos viverão.
Esses instrumentos serão deixados no mundo para que as próximas gerações

1
KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Tradução de
Carlos Alberto Louro Fonseca. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, ano não citado, p.
192.
2
LYOTARD, F. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 18. Ed. –
Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.
os melhorem, os aperfeiçoem, pois a vida humana é finita, mas os instrumentos
possuem uma durabilidade que vai além dessa finitude 3.
A vida humana como qualquer outra forma de vida, é caracterizada
então pela sua finitude, sendo que esta é inclusive sua condição necessária de
existência. Heidegger afirma inclusive que “o “fim” do ser-no-mundo é a morte.
Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a
totalidade cada vez possível do Dasein" 4. É na construção de instrumento e no
desenvolvimento da tecnologia que a história humana se desenvolve, sempre
em movimento.
O desenvolvimento da técnica na humanidade passou por um momento
de transição muito intenso, que consiste em duas principais mudanças: o
desenvolvimento da computação, que ocorreu em meados da Segunda Guerra
Mundial e culminou na era digital em que vivemos atualmente; e o
desenvolvimento das pesquisas da biogenética, que permitem hoje o chamado
“melhoramento humano”.
O conceito de “melhoramento humano” (Human Enhancement), engloba
uma série de abordagens que podem ser usadas para melhorar, aumentar ou
potencializar, aspectos do funcionamento humano, em diversas áreas, como
por exemplo: prolongamento da vida, melhoramento da constituição física,
melhoramento do humor e personalidade, melhoramento cognitivo e
intervenções pré- e perinatal. 5 Tendo por objetivo utilizar-se da tecnologia em
progresso, tais como, as células-tronco, clonagem reprodutiva, hibridação
homem/máquina, engenharia genética e manipulações germinais, para que
assim se possa modificar nossa espécie de modo irreversível, no intuito de
melhorar a condição humana.
Para Alexandre Laurent o projeto transumanista para fusão de
tecnologia e vida se dará em três etapa, sendo a inicial correspondente a
entrada da tecnologia na vida humana através das próteses médicas e
bioengenharia. A etapa seguinte começou em 2010 quando Craig Venter

3
ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer.
10. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 11.
4
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes,
1989a. vol. II, p.12
5
BOSTROM, N; REOCHE, R. Ethical Issues in Human Enhancement. New Waves in Applied
Ethics, eds. Jesper Ryberg, Thomas Petersen & Clark Wolf (Pelgrave Macmillan, 2008): pp.
120-152.
apresentou seu trabalho com células artificiais, a tecnologia começou a criar
vida, culminando na etapa final, a superação ou até mesmo substituição da
vida pela tecnologia.
Os transumanistas segundo a World Transhumanist Association
defendem uma “democracia radical, que se apoia não apenas na liberdade,
mas na igualdade e na solidariedade (para um acesso universal ao progresso)”.
Para o transumanismo indivíduo é um ser independente com todo o direito de
decidir por si mesmo as modificações que deseje fazer em seu sistema
encefálico, código genético ou aspecto corporal. Seguindo o pensamento da
convergência NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, tecnologia da informática,
ciências) o Homo sapiens se livrará das amarras do darwinismo, sendo capaz
de se esquivar da fortuna do nascimento natural. Os tecno-otimistas acreditam
que o século XXI será dividido em duas etapas, a primeira metade que
estamos vivenciando encontram-se os transumanistas, ou simplesmente
humanos aperfeiçoados sendo seguido pelo pós-humanismo, um humano com
suas capacidades aumentadas pela tecnologia, um ser híbrido tanto orgânico
quanto autômato.
Frente a todos esses fatos que já se mostram possíveis na realidade
humana, muitas questões e problemas éticos surgem do exame apurado do
melhoramento humano, em especial a questão filosófica da mudança da
natureza humana (seus aspectos biológicos, cognitivos-epistemológicos, etc.) e
as implicações éticas decorrentes dessas mudanças. A questão mudou do
“Isso é ficção científica?” para o “Nós devemos fazer isso?” 6.
O presente trabalho busca investigar quais os possíveis impactos éticos
do melhoramento humano, pois a história da humanidade é a realização da
mudança constante, mas nunca houve uma possibilidade de mudar a própria
genética, o que traz embates novos sobre a natureza humana.

2ª Entrega -
6
BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University Press, 2011. p. 18.
Existem possíveis impactos éticos que o melhoramento humano pode
causar, como por exemplo os que detém mais poder aquisitivo poderão utilizar
das tecnologias para aumentar suas capacidades cognitivas e as classes mais
pobres ficarão a margem do aperfeiçoamento genético, podendo causar um
cenário econômico completamente desigual.
Neste ponto é necessário analisar filosoficamente o problema da
natureza humana, isto é, entender se ela pode ou não ser modificada. As duas
perspectivas que se pode adotar para conceituar a natureza humana é o
essencialismo de um lado, e o existencialismo de outro.
O essencialismo é a teoria que entende o ser humano como possuidor
de uma essência estanque, sua origem remonta a filosofia grega, em especial
a obra de Platão, que defende uma perspectiva inatista em obras como o livro
X da obra A República, a partir da qual a alma (natureza humana) é imortal, e
transita pelo mundo das ideias até que um dia cai no mundo sensível,
esquecendo nesse processo tudo o que sabia, sendo que a vida humana é
então um processo constante de relembrar a verdade usando a razão.
O ser humano, na perspectiva platônica, é então apenas o reflexo de
uma alma que já possui uma essência boa ou má, já vem determinada para o
mundo. É difícil afirmar que o ser humano pode ser livre sob esta ótica, pois
sua autonomia está restringida a essências prévias que existem antes no
Mundo das Ideias, para então existir como um reflexo no mundo sensível.
Essa visão essencialista adquiriu um cunho religioso, tendo em vista que
Platão foi uma das bases teóricas que fundamentou o cristianismo, isso fica
demonstrado especialmente na obra de Santo Agostinho, como Foulquié 7
afirma “As normas do bem, assim como as do belo e do verdadeiro, nos são
fornecidas por esta luz que ilumina nossos espíritos: é no Verbo que divisamos
o ideal das virtudes”.
A ciência contemporânea propõe mudanças genéticas a fim de melhorar
a espécie humana, consistindo em aprimoramento do corpo ou um aumento
cognitivo, o que é amplamente criticado pelo segmento “essencialista”, que não
é necessariamente religioso, mas que assume um ponto de vista classificado
como “bioconservador” por filósofos como Bostrom e Savulescu 8. Os
7
FOULQUIÉ, P. O existencialismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo – Editora Difel. 3ª
ed. p. 18.
8
BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University Press, 2011. p. 1.
bioconservadores acusam os cientistas de brincar de Deus, como mostra o
filósofo Coady9, pois a ciência estaria apropriando-se do poder de criação para
decidir como será um ser humano.
Do outro lado temos a corrente existencialista, cujo grande expoente é o
filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980). Ele defende que “o destino do homem
está nele mesmo”10, ou seja, não se concebe o ser humano mais como uma
criatura que é consequência de uma essência prévia, mas que se redefine em
um projeto constante de sua própria existência, o ser humano se projeta
escolhendo o que fazer consigo mesmo. Nessa perspectiva, a existência vem
em primeiro lugar, e depois a essência, ou seja, se agirmos de tal forma, isso
irá determinar o que somos, o que caracteriza a liberdade de agir.
Essa visão que enxerga a essência humana como algo a posteriori
permite então que o melhoramento humano não seja uma ofensa moral, mas é
plenamente permitido a mudança genética, pois não existe nada a priori que
impeça o ser humano de modificar sua essência, esse segmento é considerado
por Bostrom e Savulescu11 como os transhumanistas, em oposição aos
bioconservadores.
Frente a essas perspectivas filosóficas acerca da mudança e
consequente aprimoramento da condição humana, faz-se necessário
especificar em que se constitui o melhoramento, num alcance geral.
Ryuichi Ida, apresenta a distinção de dois sentidos de “melhoramento”.
O primeiro chamado de “melhoramento natural”, que seria o que se realiza ou
usa “recursos naturalmente fornecidos”, visando “obter melhores resultados
através de exercícios físicos ou intelectuais” 12. Assim, o melhoramento se
constituiria de uma dimensão "intrínseca” e natural, própria do esforço e treino
do próprio indivíduo:

Aqui o corpo e a alma estão integrados na existência da


pessoa humana. O corpo é treinado pela vontade de melhorar
no caso de melhoria física e, no caso de melhoria intelectual, a
vontade em si é o fator mais importante. Não há intervenção
externa. (BOSTROM; SAVULESKU, 2011, página 64).
9
BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University Press, 2011. p.
156.
10
SARTRE, J, P. O existencialismo é um humanismo. Em: Antologia de Textos Filosóficos /
Jairo Marçal, organizador. – Curitiba: SEED – Pr., 2009. p. 630.
11
BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University Press, 2011. p. 1
12
BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University Press, 2011. p.61.
O outro tipo de melhoramento explicitado por Ida é do tipo que visa
ganhos e modificações realizadas artificialmente, sendo, portanto, denominado
como “melhoramento artificial”, em que pretende obter “melhores resultados
usando meios biológicos que afetam diretamente o corpo humano ou algum
aspecto dele.”13 Esse tipo de melhoramento se constituiria de uma dimensão
”extrínseca” e artificial, própria do uso de meios artificiais ou da tecnologia:

Essa melhoria é extrínseca e artificial, [...] um dualismo de


corpo e alma é assumido, com a alma vista como o núcleo do
valor da existência humana, e o corpo como apenas um tipo de
material (BOSTROM; SAVULESKU, 2011, página 64).

Como elencado anteriormente, na primeira parte deste trabalho, o


conceito de melhoramento abrange uma série de modificações e alterações
que visam potencializar, melhorar, as capacidades humanas em vários âmbitos
do ser, sejam eles, físicos-biológicos, epistemológicos-cognitivos, etc. A
modificação da natureza humana, nesse sentido, ou ainda, o melhoramento em
geral, é uma realidade que, se não está manifesta em “ato”, está em “potência”.
A pergunta sobre se devemos ou não realizar as ações tendo em vista o
melhoramento, talvez não seja a mais propícia, mas sim, como ilustra Bostrom
e Savulesku “O resultado disso não será um sim ou não ao aprimoramento em
geral”, segundo os autores a problemática gira entorno do “conjunto de ideias e
recomendações mais contextualizado e particularizado sobre como indivíduos,
organizações e estados devem avançar em uma era de aprimoramento.” 14
É precisamente a respeito da ideia de “como” que as implicações éticas
serão tratadas. Como, de que forma, que proposta será mais viável frente ao
contexto da tecnologia sendo utilizada para mudar a natureza humana em prol
do melhoramento dessa condição humana?

13
BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University Press, 2011. p.61.

14
BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University Press, 2011. p.19.
Referências:

ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de


Celso Lafer. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

BOSTROM, N; REOCHE, R. Ethical Issues in Human Enhancement. New


Waves in Applied Ethics, eds. Jesper Ryberg, Thomas Petersen & Clark Wolf
(Pelgrave Macmillan, 2008): pp. 120-152.

BOSTROM, N; SAVULESKU, J. Human Enhancement. Oxford University


Press, 2011.

FOULQUIÉ, P. O existencialismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo –


Editora Difel. 3ª ed.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti.


Petrópolis: Vozes, 1989a. vol. II.

KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos.


Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, ano não citado.

LYOTARD, F. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa


Barbosa. 18. Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.

LAURENT, A. A morte da morte: como a medicina biotecnológica vai


transformar profundamente a humanidade. Tradução de Maria Idalina Lopes
Ferreira. Barueri: Manole, 2018.

SARTRE, J, P. O existencialismo é um humanismo. Em: Antologia de Textos


Filosóficos / Jairo Marçal, organizador. – Curitiba: SEED – Pr., 2009.

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