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R esenha

O t e a t rroo d o c o r p o m a n i f e s t o : t e a t rroo f í s i c o ,
de Lúcia Romano
São Paulo, Perspectiva, 2005.

M atteo Bonfitto

U
ma das questões implícitas no livro de catalisador, corpo que ressoa, corpo que atrai,
Lúcia Romano diz respeito ao corpo. O corpo que re-pulsa. Do corpo-sombra ou “onto-
que acontece quando o corpo passa a ser lógico” do butoh ao “corpo-montagem” do story-
não o objeto, mas o sujeito produtor de telling, podemos falar de um corpo que não é
significação e sentido? Esse deslocamento mais corpo, mas que é “corpos”.
adquire um valor fundamental, na medida em Porém, como não estamos mais impreg-
que o “olhar” nesse caso, seja ele interno, exter- nados pelos valores da Köperkultur, surgida no
no ou dialógico, não poderá mais ser determi- início do século XX, devemos também consi-
nado pelo rolo compressor do logos. Um imen- derar olhares não-idealizadores, ou não tão “po-
so espaço, dessa forma, abre-se. Um espaço sitivos” em relação ao corpo, visto como canal
“problemático” pois não é organizado, sinaliza- expressivo. De fato, o corpo pode ser, ao mes-
do e não revela percursos para sua exploração. mo tempo, extremamente opaco. Basta obser-
Um espaço que concentra em si todos os “ta- var muitos dos transeuntes que supostamente
bus” da tradição logocêntrica: a ambigüidade, a vemos todos os dias. Em meio a corpos que fa-
autonegação, a imprecisão, processos que criam lam e transpiram percepções e associações, mui-
fluxos inesperados e que não oferecem um pa- tos carregam, em diversos níveis, as próprias
drão de repetibilidade. O espaço da in-corpo- fronteiras, que separam as próprias experiências
ração, um espaço que não depende e muitas ve- de suas possibilidades de revelação.
zes precede a análise. O “espaço-do-corpo” não É em meio a esses e outros cruzamentos
encontra reflexos em nenhum espaço físico exis- que o assim chamado “teatro físico” se faz “lin-
tente, nem mesmo naqueles desconstruídos pela guagem/gens”. Nessa forma teatral, o corpo é
pós-modernidade. É o espaço da com-presen- dissecado em toda a sua gama de possibilidades,
ça. Ele ultrapassa dicotomias. É nele onde pro- da sua maior opacidade à sua mais perceptível
cessos fisiológicos, perceptivos, emocionais e in- transparência. Apesar das múltiplas definições,
telectuais interagem numa batalha na qual o que ele poderia ser considerado uma das media do
se vê representa somente um fragmento de uma “teatro pós-dramático”, pois materializa muitos
das facetas de um caleidoscópio que gira, em dos seus pressupostos em suas práticas, tais co-
desequilíbrio constante. Corpo “carne”, corpo mo a não-centralidade do texto dramático, es-

Matteo Bonfitto é ator, pesquisador teatral e doutorando do Royal Holloway College de Londres.

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s ala p reta

truturas narrativas não-lineares etc. Nesse sen- fato, ele vem preencher uma lacuna no que diz
tido, assim como descrito neste estudo de autoria respeito às publicações relacionadas a essa for-
de Lúcia Romano, ao teatro físico estão associa- ma teatral em língua portuguesa. Além disso,
dos muitos dos mais importantes grupos e cria- ele nos mostra, de certa forma, o quanto o tea-
dores teatrais, atuantes no Brasil e no exterior. tro físico pode ser ainda explorado em termos
Após abordar os aspectos históricos e mapear al- práticos e teóricos, na medida em que, além de
gumas questões e diferenças entre diferentes prá- situar questões e mapear referências, indica di-
ticas ligadas a essa forma teatral, a autora reflete reções e horizontes de reflexão sobre o tema. O
sobre conceitos importantes, os quais estão por corpo não é um “instrumento” da mente, assim
sua vez inter-relacionados, tais como corporei- como a mente não é o lugar “exclusivo”, onde o
dade, fisicalidade, textualidade e visualidade. conhecimento é produzido e organizado. No
Apesar da mobilidade de suas manifesta- entanto, apesar de tal não-dicotomia, o corpo
ções, o teatro físico vem adquirindo uma impor- deve ser visto como possível materializador do
tância crescente, a qual ultrapassa as fronteiras que ainda não percebemos claramente, do que
dos teatros e festivais britânicos. Dessa forma, ainda não entendemos, daquilo que pode um
esse estudo adquire uma grande relevância. De dia transformar-se em pensamento, ou não.

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