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Ventilação Mecânica e Obstinação Terapêutica ou

Artigo de Opinião
Distanásia, a Dialéctica da Alta Tecnologia em Medicina Intensiva
Filipe Monteiro
Opinion Article

Filipe Monteiro* Ventilação mecânica e obstinação terapêutica ou


distanásia, a dialéctica da alta tecnologia em medicina
intensiva

Mechanical ventilation and medical futility or


dysthanasia, the dialectic of high technology in intensive
medicine

Recebido para publicação/received for publication: 06.03.08


Aceite para publicação/accepted for publication: 06.03.30

Resumo Abstract
Distanásia ou qualquer um dos seus sinónimos é Dysthanasia or any of its synonyms is a conse-
uma consequência do excesso terapêutico em quence of excessive technical science, without any
relação ao prognóstico esperado. A obstinação reasonable chance of achieving a therapeutic be-
terapêutica é um dos dilemas éticos mais nefit for the patient.
angustiantes no quotidiano de medicina intensiva, Medical futility is a distressing ethical dilemma of
apesar de a sua apreciação encontrar um suporte intensive care medicine. Its recognition has led to
normativo em várias instituições e organizações. a precept support in various institutions and or-
A manutenção ou não suspensão da ventilação ganizations.
mecânica numa determinada circunstância de fim Not withdrawing or withholding mechanical ven-
de vida pode ser considerado como um exemplo tilation in certain circumstances can be considered
paradigmático de obstinação terapêutica. as a paradigmatic model of medical futility.
A compreensão desta postura passa pela análise e The understanding of this posture implies a philo-

* Assistente Hospitalar Graduado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Santa Maria, Lisboa. Mestre em Bioética.

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reflexão do acto médico à luz de alguns conceitos sophical approach and reflexion of medical prac-
ético-filosóficos. tice.

Rev Port Pneumol 2006; XII (3): 281-291 Rev Port Pneumol 2006; XII (3): 281-291

Palavras-chave: Ética, obstinação terapêutica, Key-words: Ethics, medical futility, dysthanasia,


distanásia, medicina intensiva. intensive medicine.

A ética, ramo da filosofia que estuda os comunidades. No que diz respeito à


factores que determinam a conduta medicina, a inquietude tem estado
humana em geral, tem como objectivo, centrada nas questões da eutanásia, da
no que respeita à medicina, a prossecução clonagem, das células estaminais e dos
de um conjunto de regras de conduta embriões excedentários, entre outras. Sem
moral, deontológica e científica dos pôr minimamente em causa a reflexão que
profissionais de saúde em relação aos estes temas merecem, parece-nos, con-
doentes. É sabido que, neste relaciona- tudo, que existem outras questões resul-
mento entre o médico e o doente, a tantes da aplicação da alta tecnologia no
tecnologia tem vindo a ocupar um espaço quotidiano da prática médica que deviam
imprescindível e a ganhar, rápida e pro- obter igual ponderação, mas que têm
gressivamente, uma relevância cada vez passado à margem da contenda. Referimo-
maior. -nos à questão da obstinação terapêutica
O avanço no campo da tecnociência tem (OT), um dilema ético que não tem gran-
despertado, em alguns sectores das jeado, em nosso entender, a reflexão e o
sociedades dos países mais desenvolvidos, debate que seriam de esperar, tendo em
preocupações éticas relacionadas com as consideração que é um problema vivido
consequências que uma utilização indiscri- no dia-a-dia das unidades de cuidados
minada das suas realizações possa vir a ter intensivos de todas as instituições hospita-
na vida dos indivíduos e das respectivas lares e não uma questão em abstracto ou

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de um futuro mais ou menos próximo. assim sendo, não respeita os princípios


Entenda-se por OT uma atitude tera- éticos — beneficência, não maleficência,
pêutica excessiva (meios desproporcio- autonomia e justiça — que devem reger o
nados) em relação a uma determinada mesmo. Nesta reflexão, tivemos em
situação e ao respectivo prognóstico. Por consideração apenas os princípios de
outras palavras, trata-se de uma situação beneficência e de não maleficência,
em que há uma manutenção ou uma não nomeadamente no que diz respeito ao
suspensão da escalada terapêutica numa dever de não infligir o sofrimento e ao de
circunstância de fim de vida. A escalada suprimir o mal ou o sofrimento.
terapêutica implica determinados trata- Em segundo lugar, convirá tentar encon-
mentos, nomeadamente a ventilação trar uma explicação para a OT.
mecânica (o seu início ou o seu prolonga- Escolhemos, como paradigma de OT, a
mento), a hemodiálise, as manobras de ventilação mecânica prolongada numa
reanimação, a alimentação artificial, as situação de insuficiência respiratória aguda
aminas simpaticomiméticas, etc. ou crónica agudizada, nos estádios ter-
A OT é referida pelos autores francófonos minais de determinadas patologias. Esta
como «encarniçamento terapêutico», temática tem sido, aliás, sede de inúmeros
enquanto os anglo-saxónicos preferem a artigos em revistas da especialidade.1
expressão «futilidade terapêutica». Esta Neste estudo, englobamos, a título exem-
situação é também, por vezes, descrita plificativo, quatro patologias: a pneumo-
como distanásia (de origem grega, dys, nia a Pneumocystis carinii nos doentes com a
«mal» ou «algo mal feito», e thánatos, síndroma da imunodeficiência adquirida
«morte»). Este termo não é um sinónimo (SIDA), a neoplasia, a fibrose pulmonar
na verdadeira acepção da palavra, dado idiopática e a doença pulmonar obstrutiva
que, enquanto as expressões anteriores têm crónica (DPOC).
como fundamento a insistência num No que diz respeito à primeira destas
tratamento desenquadrado em relação ao patologias, a pneumonia a Pneumocystis
prognóstico esperado, a distanásia implica carinii, o prognóstico passou por três
atrasar o processo da morte através da- períodos distintos2: antes de 1985, entre
quela atitude terapêutica. Contudo, na 1986 e 1993, e a seguir a 1993. No primeiro
prática, é uma palavra utilizada com o período, o prognóstico era francamente
mesmo significado. mau, sendo a mortalidade altíssima. O
Numa perspectiva ética, a OT pode ser segundo período correspondeu à intro-
analisada sob vários prismas. Decidimos dução de agentes anti-retrovirais no trata-
considerar dois aspectos, que apresentamos mento da SIDA e à corticoterapia
em seguida. associada ao antibiótico recomendado na
Em primeiro lugar, importará demonstrar pneumonia a Pneumocystis carinii, o que se
que a OT não vai, em nosso entender, ao
encontro dos objectivos do acto médico,
onde o tratamento a instituir deve estar 1
Simonds, A. K. Simonds. Ethics and decision making in
de acordo com o prognóstico esperado; end stage lung disease.Thorax 2003; 58: 272-277.

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repercutiu numa melhoria significativa no Nos doentes com fibrose pulmonar


prognóstico. No terceiro período, apesar idiopática em estádio avançado e que
da diminuição no número de doentes com necessitem de ventilação mecânica por
pneumonia, assistiu-se novamente a um qualquer intercorrência, o prognóstico é
agravamento no prognóstico;3 provavel- também deveras desanimador, chegando
mente porque os doentes que adquirem a alguns estudos, nestes casos, a propor a
pneumonia já o fazem em plena terapêutica terapêutica paliativa como alternativa à
com anti-retrovirais e, ainda, porque aquela ventilação mecânica. 7 Esta seria reco-
evolui para uma insuficiência respiratória mendada somente para aquelas situações
com necessidade de ventilação mecânica, que estivessem indicadas para o trans-
não obstante a terapêutica com antibiótico plante pulmonar.88
e corticóides. Por último, no que se refere aos doentes
No que diz respeito à duração da ventilação com a doença pulmonar obstrutiva cró-
mecânica, há um estudo que demonstra que nica em fase avançada e insuficiência
não há sobreviventes quando o período de respiratória crónica agudizada com
ventilação ultrapassa os 15 dias.4 Contudo, necessidade de ventilação mecânica
o número de doentes envolvido neste prolongada — superior a 21 dias —, apesar
estudo era pequeno e houve outros estudos de o prognóstico em relação ao desmame
que foram discordantes. ventilatório ser favorável na maioria dos
Em relação aos doentes com neoplasia, casos, numa pequena percentagem (cerca
independentemente da sua localização, de 20%) a evolução é pouco favorável;
quando estes são internados em cuidados mesmo naqueles que são sujeitos a
intensivos por necessidade de ventilação traqueostomia.9
mecânica decorrente de falência respira- A experiência da Unidade de Cuidados
tória, o prognóstico é também muito Intensivos Respiratórios (UCIR) do
sombrio.5 Serviço de Pneumologia (director: Prof.
Foi inclusivamente estudada uma situação Doutor Bugalho de Almeida) do Hospi-
em que qualquer atitude terapêutica pode tal de Santa Maria, local onde exercemos
ser considerada como um exemplo de a nossa actividade clínica, é exemplificada
futilidade.6 Na investigação em causa, os pelo quadro e pela figura em anexo.
doentes sujeitos a transplante da medula, Assim, o Quadro I mostra a mortalidade
com necessidade de ventilação mecânica nas patologias acima referidas, enquanto
por lesão pulmonar aguda e de aminas a Fig. 1 apresenta, em termos globais, a
simpaticomiméticas por mais de 4 horas, mortalidade na ventilação mecânica
associada a falência hepática ou renal, prolongada (período ≥ 28 dias).
acabaram por não sobreviver (mortalidade
de 100%). Este estudo serviu de base para
protocolos em várias instituições hospi- S Tern, tern JB, et al. Mal H, Groussard O, Brugière O,
talares e, assim, os doentes naquelas Marceau A, Jebrak G, Michel F. Prognosis of patients with
advanced idiopathic pulmonary fibrosis requiring mechani-
condições passaram a ser desligados do cal ventilation for acute respiratory failure. Chest 2001;
ventilador. 120:213-219.

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Do exposto se infere que, nas fases < 28 dias > = 28 dias


39,9%
avançadas de algumas patologias pul- 40,2%

monares complicadas com insuficiência


respiratória, a instituição da ventilação
mecânica e o seu eventual prolongamento 59,8% 60,1%

no tempo devem merecer uma reflexão Vivos Falecidos Vivos Falecidos

cuidada. De facto, a instituição ou a Fig. 1 — Unidade de Cuidados Intensivos Respiratórios (UCIR). Duração de
insistência nesta atitude podem desvirtuar internamentos e mortalidade.
a essência do acto médico, originando uma
situação de manifesta obstinação tera-
pêutica. se pode inferir das palavras de Platão,
A obstinação terapêutica por parte dos quando afirmava que “Num corpo
médicos não se verifica apenas numa gravemente doente não se deve prolongar
determinada especialidade médica ou num uma existência miserável através da dieta,
determinado país. Num estudo realizado infusões ou sangria.” 11. Embora num
em 16 países da Europa Ocidental, contexto diferente, também Sócrates
verificou-se que cerca de 73% dos manifestava ao discípulo Críton o seu
intensivistas admitiam, na sua unidade, desacordo em prolongar a ingestão de
doentes sem qualquer perspectiva de um cicuta, ao afirmar: “Tornar-me-ia ridículo
prognóstico favorável, apesar de estarem aos meus próprios olhos com esse apego a
plenamente conscientes da escassez de uma vida que já deu o que tinha a dar.”12
recursos (camas) e da grande procura dos Mais recentemente, entre nós, também
mesmos.10 O mais grave é que cerca de 40% Barahona Fernandes era bem claro, quando
insistiam no tratamento tendo a plena escrevia, a propósito da obstinação
consciência da irreversibilidade da terapêutica: “Ao cuidar do sofrimento do
situação. homem, temos que consciencializar que
A inquietação com este procedimento vem nem tudo o que é possível deve ser feito.”13
desde os tempos da Grécia Antiga, como Do mesmo modo, Jorge Biscaia, numa
expressão que diríamos quase paradig-
mática, personifica assim a situação:
Quadro I – Unidade de Cuidados Intensivos Respiratórios “Porque a ciência tudo consegue, cai-se na
(UCIR). Relação entre doentes ventilados e mortalidade –
1990-2004 medicalização excessiva. Os exames suce-
dem-se, as análises são exaustivas. Os
Patologia Ventilados Falecidos (%) médicos são ouvidos em permanente rota-
Pneumonia a Pneumocystis 18 12 (66,66) ção. Nos profissionais da saúde a técnica
carinii substitui a palavra. A multiplicidade de
Neoplasias 87 61 (70,11)
apoios técnicos é um pretexto para escon-
jurar a dificuldade de enfrentar a aparente
DPOC 648 209 (32,25) derrota que é a doença não curável.”14
Constatamos, também, que a OT está,
Fibrose pulmonar idiopática 46 36 (78,26)
quer em termos éticos quer deontológicos,

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em total desacordo com algumas deter- Mesmo que a morte seja considerada
minações e articulados. Assim, a Dec- iminente, os cuidados habitualmente
laração de Veneza da XXXV Assembleia devidos a uma pessoa doente não podem
Médica Mundial (1983) admite a abstenção ser legitimamente interrompidos. O uso
de tratamentos em determinadas circuns- dos analgésicos para aliviar os sofrimentos
tâncias e recomenda que não se pratique a do moribundo, mesmo correndo-se o risco
obstinação terapêutica. Por outro lado, a de abreviar os seus dias, pode ser moral-
Declaração Universal dos Direitos do mente conforme com a dignidade humana,
Homem (10/12/1948), ratificada pelo se a morte não estiver nas intenções, nem
Estado português na década de 70, diz, no como fim nem como meio, mas somente
seu artigo 5.º, que ninguém será subme- prevista e tolerada como inevitável. Os
tido a tortura nem a penas ou tratamentos cuidados paliativos constituem uma forma
cruéis, desumanos ou degradantes. excepcional da caridade desinteressada; a
Por sua vez, o próprio Código Deon- esse título, devem ser encorajados.”15.
tológico da Ordem dos Médicos, no artigo A encíclica Evangelium Vitæ 16, de SS João
49, é bem claro quando afirma que “em Paulo II, faz menção à obstinação tera-
caso de doença comportando prognóstico pêutica, ao veicular a ideia de que, perante
seguramente infausto a muito curto prazo, a iminência e inevitabilidade da morte, se
deve o médico evitar obstinação tera- pode, em consciência, renunciar a trata-
pêutica, podendo limitar a sua intervenção mentos que dariam somente “um prolon-
à assistência moral ao doente e à prescrição gamento precário e penoso da vida.”
de tratamento capaz de o poupar a Refere ainda que a obrigação moral do
sofrimento inútil, no respeito do seu tratamento deve ser medida segundo
direito a uma morte digna e conforme à situações concretas: “Impõe-se avaliar se
sua condição de ser humano.”. os meios terapêuticos à disposição são
Também a posição da Igreja católica tem objectivamente proporcionados às pers-
servido de referência a esta temática. pectivas de melhoramento.” É peremp-
Assim, no Catecismo da Igreja católica, tória ao indicar que “a renúncia a meios
encontramos a seguinte alusão: “A ces- extraordinários ou desproporcionados não
sação de tratamentos médicos onerosos, equivale ao suicídio ou à eutanásia; ex-
perigosos, extraordinários ou despropor- prime, antes, a aceitação da condição
cionados aos resultados esperados, pode humana perante a morte”.
ser legítima. É a rejeição do excesso Perante evidências e recomendações de
terapêutico. Não que assim se pretenda dar tantas origens, como explicar então a
a morte; simplesmente se aceita o facto de obstinação terapêutica?
não a poder impedir. As decisões devem Há um velho aforisma que diz: “O
ser tomadas pelo doente, se para isso tiver conhecimento é função da ciência, ao passo
competência e capacidade; de contrário, que compreensão é função da filosofia.”
por quem para tal tenha direitos legais, Assim sendo, tentaremos, através de alguns
respeitando sempre a vontade razoável e fundamentos básicos da filosofia, encontrar
os interesses legítimos do doente. algumas justificações para este agir.

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A melhor maneira de entender a OT é cabe naturalmente ao médico. Como


analisar o acto médico em toda a sua explicar esta conduta?
extensão. Assim, no nosso entendimento, Na nossa apreciação, este comportamento
e em primeiro lugar, o acto médico não é pode ter como justificação os cinco
apenas uma relação de prestação de argumentos que se analisam em seguida.
serviços entre o médico e o doente (ou o
utente, como é comum dizer-se). A Medicina defensiva
introdução de um terceiro elemento, um •A razão de ser da OT tem sido atribuída,
parâmetro variável, é fundamental para por muitos, à medicina defensiva: uma
uma visão mais abrangente. Este elemento prática que, infelizmente, tem vindo a
pode ser, entre outros, a família ou o alastrar-se cada vez mais. Por medicina
próprio local (isto é, a instituição hos- defensiva entende-se uma decisão ou acção
pitalar onde o doente se encontra in- clínica do médico, motivada, no seu todo
ternado). ou parcialmente, pela intenção de se
Num contexto em que estão presentes proteger de uma acusação de má prática
várias partes, qual é então a responsa- médica. A medicina defensiva pode ser:
bilidade de cada uma delas? • positiva — quando o médico leva a cabo
No que diz respeito ao doente, não é procedimentos desnecessários para de-
comum, no nosso meio, que este manifeste fender-se de riscos de incorrer em má
a sua vontade, através de alguma directriz, prática médica;
no sentido de serem utilizados todos os • negativa — sempre que o objectivo do
recursos, independentemente do prog- clínico é evitar doentes ou procedimentos
nóstico da sua doença. Pelo contrário, de alto risco para não ser confrontado com
dada a sua condição, por vezes, não se a acusação de má prática médica.
encontra apto a poder exprimir o seu No caso da OT, é a medicina defensiva
desejo; e, noutros casos, numa atitude positiva que está em causa. É nossa
totalmente “paternalista”, a sua vontade convicção que, no nosso meio, apesar do
não é, de modo algum, tida em conta. número crescente de supostos casos de
Em relação aos familiares, é enorme a negligência médica, esta não é a causa major
pressão que estes exercem nos médicos da desta atitude. Esta terá que ver, porventura,
unidade, no sentido de que se continue a com a atitude cultural intrínseca ao
insistir em todas as atitudes terapêuticas. português, quando está em causa o arbítrio,
Esta quase coacção é consequência, entre e que, na opinião de José Gil, se traduz por
outras: do desconhecimento da situação “medo interiorizado, mais inconsciente do
médica real; da avaliação arbitrária da que consciente, de agir, de tomar decisões
qualidade de vida do doente; e do diferentes da norma vigente… A prudência
complexo de culpa que alguns sentem em é a lei do bom senso português.”17.
relação ao doente, o qual foi, por vezes,
quase ignorado nalgum lar de terceira Fenomenologia do conhecimento
idade, nos últimos anos da sua vida. Em nosso entender, o leitmotiv na origem
A maior parte da responsabilidade na OT da obstinação terapêutica centra-se na

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contingência do erro diagnóstico, inerente Assim sendo, o cepticismo radical, que


ao acto médico. Esta pode ser explicada fundamenta a sua tese na impossibilidade
pela análise fenomenológica do conheci- de todo e qualquer conhecimento, deve
mento. Contextualizando o acto médico ser rejeitado. Um dos argumentos que
à luz desta apreciação, temos o médico pode ser utilizado para tal alicerça-se numa
como o “sujeito” (aquele que conhece), afirmação do próprio Pirro, mentor desta
enquanto o doente é o “objecto” (aquele ideologia: “Não devemos confiar nos
que se pretende conhecer) e a doença é a sentidos nem na razão, mas permanecer
“representação” através da qual o médico sem opinião, sem nos inclinarmos para
conhece o doente. uma parte ou para outra, impassíveis.”18
Para haver conhecimento é necessário que A fazer fé neste juízo, seria impossível o
o sujeito (médico) apreenda o objecto exercício da própria medicina.
(doente). Será possível que tal aconteça? Em alternativa a este cepticismo radical
A afirmação pela positiva — isto é, acre- está o cepticismo moderado, que pode ser
ditar que o sujeito, através dos sentidos e considerado uma forma mitigada de dog-
da razão, consiga compreender na totali- matismo, visto que admite que o sujeito é
dade o objecto — constitui o dogmatismo. capaz de aprender o objecto e respectiva
No acto médico, uma atitude dogmática representação, mas de modo limitado.
implica da parte médica, em relação ao Reflectindo sobre as duas vertentes de
doente e à doença, assumir uma posição cepticismo moderado — o probabilismo
de confiança absoluta nos sentidos e na e o relativismo —, verifica-se que o pro-
razão humana. É acreditar que, pelo babilismo se ajusta de uma maneira mais
conhecimento científico, o diagnóstico, a harmoniosa ao exercício da medicina,
terapêutica e o prognóstico são infalíveis. visto que a sua proposição sustenta que
Na prática, o resultado final do acto não é possível um conhecimento rigoroso
médico está sujeito às leis da estatística, — não há certezas entre a formulação do
com todas as variáveis que determinam o juízo e a realidade. Assim, não existe a
resultado. Por isso, a incerteza, por certeza rigorosa, mas somente a proba-
mínima que seja, pode sempre existir. bilidade. Esta incerteza, inerente ao acto
Numa situação em que o sujeito não médico em si mesmo, pode explicar, como
conhece o objecto, não é possível o referimos, a obstinação terapêutica.
conhecimento. Nesse caso, está-se perante No que diz respeito ao relativismo — o
o cepticismo, doutrina que nega a defensor da verdade relativa —, este pode
possibilidade de se atingir a verdade. assumir duas formas: o subjectivismo —
Contudo, esta impossibilidade de se que limita a validade da verdade ao sujeito
alcançar a verdade absoluta não se aplica, que conhece e julga —, e o relativismo —
na sua essência, ao acto médico, porque a segundo o qual toda a verdade é relativa.
impossibilidade do conhecimento abso- Enquanto o primeiro faz depender o
luto não implica, necessariamente, um conhecimento de variáveis que residem no
desconhecimento total em relação ao sujeito cognoscente, o relativismo subli-
conhecimento. nha a dependência de factores externos.

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Assim, a obstinação terapêutica pode 5.º, assegura que ninguém será submetido
também encontrar uma explicação quer a tratamentos cruéis, desumanos ou
no subjectivismo — pela incerteza indi- degradantes.20
vidual do médico em causa — quer no Ainda outro exemplo vem do Código
relativismo — ao fazer depender o conhe- Deontológico Médico, que, preconizando
cimento de factores externos (os quais, no o princípio de benefício do doente21 em
caso do acto médico, podem estar vários dos seus articulados, tem como
relacionados com os meios comple- norma a obrigação de evitar ou atrasar a
mentares de diagnóstico disponíveis). morte. Por outro lado, a Carta dos
A grande herança de conhecimentos que Direitos dos Doentes, elaborada pelos
o século XX nos deixa é, nas palavras do Associação dos Hospitais Americanos em
sociólogo Edgar Morin: “O conhecimento 1973 e apresentada ao Parlamento Euro-
dos limites do conhecimento. A certeza peu em 1984, consagra o direito a morrer
de ineliminabilidade de incertezas.”19 com dignidade.22
Entre nós, o Estatuto Hospitalar e a Lei
Dialéctica da tecnociência de Bases da Saúde (Lei 48/90, de 24 de
É sabido que a dialéctica está inerente à Agosto) garantem ao doente, através da
própria tecnociência. A explicação para a Carta dos Direitos e Deveres dos Doen-
obstinação terapêutica pode encontrar um tes, “o direito a ser tratado no respeito pela
sustentáculo na superespecialização, pecu- dignidade humana”.23
liar à alta tecnologia, que leva à parce- Como se depreende daquilo que se acabou
lização do saber; esta acarreta a frag- de expor, estes articulados confrontam-se
mentação das competências e culmina na entre si, particularmente nos casos onde
desresponsabilização nas decisões. aparentemente se está perante uma situa-
Nos estádios avançados de determinadas ção de obstinação terapêutica. Encon-
patologias, quando a falência multiorgâ- tramo-nos, portanto, perante uma situação
nica não augura um prognóstico favorável, de conflito de valores e direitos, e, assim
a desresponsabilização dos vários espe- sendo, na presença de um problema ético,
cialistas relativamente ao inevitável pois estão em causa imperativos contra-
desenlace pode explicar a manutenção do ditórios.
tratamento.
Existencialismo e metafísica
Conflito de valores O impacto da tecnologia no próprio
A origem da obstinação terapêutica pode conceito da morte mudou quase radical-
residir no conflito de valores em relação à mente nos países desenvolvidos a maneira
própria vida, como se constata na própria de se encarar o fim da vida. O momento
Declaração Universal dos Direitos do da morte, um acontecimento que é indi-
Homem — enunciada em 10 de Dezembro vidual e indizível — porque ninguém pode
de 1948 e ratificada pelo Estado português morrer a morte de outrem nem narrar a
em Janeiro de 1978 —, a qual, no artigo sua própria morte — passou, pela inter-
3.º, garante o direito à vida e, no artigo venção da tecnociência, a ser precedido

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pelo processo de morrer. Estas situações mosias e de erros. Porém, a ciência é uma
— o momento da morte e o processo de das raras actividades humanas, talvez a
morrer — geram estados de alma dife- única, na qual os erros são sistemati-
rentes. Assim, em relação ao primeiro, na camente assinalados e, com o tempo,
opinião de Kierkegaard: “A consciência na constantemente corrigidos.”
sua individualidade e condição deu ao
homem a percepção da sua morte. A queda Considerações finais
na autoconsciência, a saída da confortável Desde os primórdios da Humanidade, a
ignorância da natureza foi altamente procura da imortalidade tem sido
penalizadora para o homem: deu-lhe o demandada de diversas maneiras, quiçá
pavor da morte, a angústia característica, através da própria prática médica.
a mais intensa angústia do homem.”24 Contudo, o exercício da medicina não
Por outro lado, o poder da tecnologia em passa pelo prolongamento da vida bio-
determinar o processo de morrer pode lógica a todo e qualquer custo. A morte
explicar a opinião de Ernest Bloch; não deve ser considerada como uma
segundo este, dá-se “a negação da angústia derrota; tal seria, em nossa opinião, um
e a recusa em deixar a última palavra ao sinal de imaturidade profissional de
fracasso, jamais perdendo de vista que alguém que não interiorizou os limites da
ainda há uma saída, a esperança” 25 . ciência e da técnica.
Verifica-se, assim, que a tecnociência pode Sendo a medicina uma ciência de proba-
servir como fuga para a angústia gerada bilidades e não uma ciência exacta, a sua
pelo momento da morte, bem como prática tem inerente a incerteza.
explicar o tempo de esperança na Se, e quando, o médico ou a equipa
transcendência durante o processo de responsável forem confrontados com
morrer. alguma dúvida em relação ao prognóstico,
O existencialismo e a metafísica também deverão continuar o tratamento até ao
podem, como tal, explicar a obstinação esclarecimento da situação, sendo que a
terapêutica. decisão deve ser consensual, sempre que
Concluindo: será que podemos resumir a possível.
razão de ser deste dilema ético utilizando A actualização constante deve ser um
a conhecida máxima de Ortega y Gasset: imperativo ético dos médicos, e a
“O homem é ele mais a sua circunstância”, investigação em cuidados intensivos deve
e, assim sendo, admitir que a obstinação ter como um dos seus objectivos a
terapêutica é uma realidade incontornável determinação dos marcadores predizentes
na medicina intensiva? da futilidade terapêutica.
Temos da vida uma visão optimista e não A prática médica passa pelo curar e pelo
perfilhamos esta dúvida. Pelo contrário, cuidar. O médico tem o dever de criar
temos imensa fé na ciência; ou, como diria empatia com o sofrimento do doente,
Karl Popper: “A história das ciências, tratando e curando quando possível, mas
como a de todas as ideias humanas, é uma sempre aliviando e reconfortando.
história de sonhos irresponsáveis, de tei-

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Vol XII N.º 3 Maio/Junho 2006
Ventilação Mecânica e Obstinação Terapêutica ou
Distanásia, a Dialéctica da Alta Tecnologia em Medicina Intensiva
Filipe Monteiro

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