Você está na página 1de 11

ANAIS

IX Congresso Internacional de História


“História da América em debate: fronteiras, ensino e
ecologia”

Universidade Estadual de Maringá


UEM

Maringá – 2019
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
Congresso Internacional de História (9. : 2019 out.
07-09 : Maringá, PR)
C749a Anais do 9º Congresso Internacional de História : “História
da América em debate: fronteiras, ensino e ecologia”/
organizador Luiz Felipe Viel Moreira. –- Maringá, PR: UEM/DHI,
2019.

Disponível em: <https://npd.uem.br/eventos/ev/IXCIH>


ISSN 2575-6910 (impresso)
ISSN 2175-6627 (CD-ROM)
ISSN 2175-4446 (on-line)

1. História - Congresso. 2. Historiografia – Congresso. 3.


Fronteiras – Congresso. 4. América – Congresso. 5. Idade Média –
Congresso. I. Moreira, Luiz Felipe Viel, org. II. Universidade
Estadual de Maringá. Departamento de História. III. Título: 9º
Congresso Internacional de História : 7-9 de outubro de 2019.
IV. Título: História da América em debate: fronteiras, ensino e
ecologia.

CDD 23.ed. 900


Márcia Regina Paiva de Brito – CRB-9/1267
O FUNERAL DE GLÁUCIAS E A CONDUTA FUNERÁRIA ROMANA NA SILUAE
2.1 DE ESTÁCIO

Murilo Tavares Modesto


(UEM/PIBIC)

Resumo: No poema Siluae 2.1, para consolar o patrono Atédio Mélior, Públio Papínio
Estácio (45-96 EC) escreve sobre a procissão funerária que acompanhou o corpo do
jovem Gláucias até a pira de cremação. Com os estudos sobre as concepções de
morte, levamos em consideração a dimensão social deste acontecimento, uma vez
que a expectativa de vida e as modalidades de práticas fúnebres costumam ser
diferentes de acordo com a camada social. Assim, a estratificação das condutas
funerárias era marcante na antiguidade romana, podendo diferir de acordo com a
riqueza, o status, o gênero e a idade do falecido. Nesse sentido, analisamos como o
funeral de Gláucias, possivelmente um libertus, honrado com um rito luxuoso, comum
à aristocracia, é retratado por Estácio. Também avaliamos como o poeta apresenta
os participantes do funeral, Mélior, os pais do jovem e ele próprio. Na obra analisada
buscamos entender a diversidade diante dos modelos ritualísticos do período.

Palavras-chave: Estácio, Siluae 2.1, Ritos funerários.

INTRODUÇÃO
A Siluae 2.11, o primeiro poema do segundo volume das Siluae, é uma
consolação escrita pelo poeta napolitano Públio Papínio Estácio (45-96 EC) para seu
patrono Atédio Mélior, enlutado pelo falecimento de Gláucias, um jovem
possivelmente libertus (liberto) e querido2 por este dominus (senhor). A narrativa
poética retrata o funeral organizado para o rapaz como uma procissão luxuosa que
levou o caixão até a pira funerária.
Na Roma antiga, entretanto, eventos funerários pomposos eram mais comuns
a membros da alta camada social romana, indivíduos com recursos abundantes que
os possibilitavam organizar grandes comemorações fúnebres, envolvendo músicas e

1 Utilizamos a tradução de Leandro Dorval Cardoso (2017) para a coletânea de poesias latinas do livro
“Por que Calar Nossos Amores? Poesia Homoerótica Latina”, publicado pela editora Autêntica. Essa
edição foi selecionada por seguir a versificação do poema de Estácio, por reproduzir o texto latino e
por apresentar um rigor na tradução dos termos clássicos.
2 A respeito da representação de Estácio sobre o caráter afetivo entre Mélior e Gláucias, é possível

reconhecer uma carga erótica na descrição dos intensos sentimentos do aristocrata pelo rapaz (ASSO,
2010). Como delicia, termo dado a jovens meninos escravizados, de aparência atrativa e afeminada,
que serviam aos seus dominus com favores sexuais e deviam entreter os convidados da casa com
suas conversas (ibid), Gláucias é caracterizado como “descanso do senhor, abrigo / da velhice, delícia
sua” (vv. 70-71) e Estácio comenta Mélior sentiria falta dos carinhos do rapaz (vv. 56-66). Assim, é
plausível considerar uma afetividade romanceada e sexual entre o dominus e seu (antigo) escravo,
mas não é possível afirmar sobre uma relação amorosa no modelo romano.

855
apresentações para tornar a cerimônia memorável e, com frequência, promover
mensagens políticas3 (HOPE, 2007). Gláucias, por vez, era um jovem que nasceu
escravo na casa de seu dominus e possivelmente foi feito libertus junto de seus pais:
“foram caros e livres os pais – teu deleite! – / para que não protestasses a raça” (vv.
77-78) (ASSO, 2010). Assim, a organização de um funeral luxuoso dedicado a um
libertus e a participação de um poeta para compor e cantar sobre o falecido e o
enlutado indicam uma pluralidade na execução de práticas funerárias romanas.
Para analisarmos as representações das práticas no funeral de Gláucias e das
atitudes dos participantes durante a procissão fúnebre, destacamos o conceito de
estratificação das condutas funerárias postulado por José Luiz Maranhão (1985).
Considerando que o fenômeno da morte está relacionado a aspectos contextuais e
dimensões sociais, morrer se tornar um acontecimento estratificado, pois a
expectativa de vida e as modalidades de práticas fúnebres podem diferenciar com a
camada social que se trabalha (MARANHÃO, 1985). Isso ocorre porque a disparidade
da expectativa de vida entre a população menos privilegiada e a mais favorecida está
de acordo com a distribuição de renda e o acesso à infraestrutura de serviços
(MARANHÃO, 1985), além do risco de mortalidade também diferenciar conforme
idade e gênero (HOPE, 2007). A estratificação das condutas funerárias, muito
marcante principalmente em sociedades do passado, assim, é a diferenciação de
organização fúnebre de acordo com a riqueza, o status, o gênero e a idade do falecido
(MARANHÃO, 1985; HOPE, 2007).
Aspectos da cultura mortuária, então, revelam informações sobre questões
sociais e culturais, pois os ritos mortuários refletem valores da comunidade em análise
(METCALF; HUNTINGTON, 1991) e por ser uma das forças que influencia práticas,
costumes e expectativas na sociedade (MORIN, 1970). Assim, as palavras e eventos
fúnebres devem ser compreendidos em conjunto, pois foram pensados para
comemorar os mortos e comunicar algo aos vivos (METCALF; HUNTINGTON, 1991).
Pensando nestes aspectos do estudo sobre a morte, podemos avaliar como o funeral
de Gláucias foi organizado a partir da representação poética composta por Estácio.
Refletimos, então, com o conceito de representação da História Cultural de
Chartier (1990), a respeito de modelos de discursos e de práticas criadas pelos grupos

3 As famílias aristocráticas contratavam atores para vestir máscaras (imagines) e performarem os


antepassados do falecido durante a procissão, promovendo a herança familiar durante a cerimônia
funerária (HOPE, 2007).

856
para pensar suas posições e interesses em sociedade, definindo identidades próprias.
Em representações narrativas textuais podemos observar discurso os modelos que
refletem práticas definidas e estruturadas e, também, interesses relacionados com a
perspectiva de um grupo específico, o qual deve ser contextualizado: “Daí, para cada
caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem
os utiliza” (CHARTIER, 1990, p. 17). Assim, contextualizando Estácio como um poeta
flaviano, conseguimos pensar sobre os interesses na forma que o poema representa
o funeral de Gláucias e os participantes citados no evento.

OBJETIVOS
Analisando as representações de Estácio sobre o funeral de Gláucias na Siluae
2.1, este artigo visa refletir sobre a estratificação das condutas funerárias romanas
identificáveis no discurso poético. Para isso, apresentamos a narrativa do funeral de
Gláucias e a descrição dos comportamentos de participantes da procissão fúnebre.
Por fim, explicamos o contexto literário do patronato de Estácio para conjecturamos
sobre os interesses de suas representações.

RESULTADOS
1. O FUNERAL DE GLÁUCIAS
A Siluae 2.1 foi escrita durante a cremação de Gláucias, “ante as piras em brasa
queimando” (v.3). Estácio, então, acompanhou, comentou e representou alguns
elementos do funeral: a preparação do corpo, a procissão fúnebre e os ritos na pira
funerária.
O poeta indica que o corpo de Gláucias, antes do funeral, teve seus cabelos
lavados com perfumes “das flores da Cilícia, das ervas da Índia / e das águas da
Arábia, Palestina e Faros [Egito]” (vv. 160-161). Essa prática segue os costumes
funerários romanos em preparar o corpo do falecido para sua cerimônia fúnebre,
lavando-o em água morna para, então, o ungir, vestir e adornar, tarefas feitas pelas
mulheres da casa ou pelos pollinctores masculinos, profissionais funerários que
passavam pó na face dos falecidos para disfarçar a descolorização do corpo (HOPE,
2007). Os indivíduos envolvidos na preparação do corpo, entretanto, não foram
evidenciados.
Sobre a pompa fúnebre, a procissão acompanhada por familiares e amigos que
transportava o falecido de sua casa para o local de cremação ou de enterro (HOPE,

857
2007), Estácio descreve que um “negro cortejo” levou o “pequeno caixão” do rapaz
até sua pira funerária (vv. 19-20). A caracterização do visual preto dos participantes
da pompa segue a convenção de trajes escuros para os enlutados romanos, como
forma de demonstração de tristeza e de se apresentar a sociedade como uma pessoa
em luto (HOPE, 2007).
Como já explicado, as pompas esplendorosas comumente eram organizadas
por famílias aristocracias para honrar membros de alto status social (HOPE, 2007).
Na Siluae 2.1, apesar do funeral homenagear um indivíduo de baixo status social por
ser um simples libertus, o evento funerário foi marcado pelo luxo porque foi promovido
pelo aristocrata Mélior: “Dos prodígios às chamas dados, das exéquias, / o que direi?
Do fogo ardendo em luxo fúnebre, / da pira se elevando a ti em terra púrpura,” (vv.
157-159). Assim, a poética de Estácio exalta seu patrono como um indivíduo com
riquezas, disponível para custear um rito fúnebre luxuoso.
A pira funerária para a cremação de Gláucias, por vez, foi erguida adiante da
ponte Mílvia, que atravessa o rio Tibre ao norte de Roma (v. 176). Assim, Gláucias
fora cremado além das muralhas da cidade em acordo com a segunda lei da décima
tábua das Leis das Doze Tábuas, sobre enterrar os mortos além dos limites urbanos
(ERASMO, 2008). A pira é retratada tendo um “monte selvagem de incenso” (v. 21),
o que era comum para colaborar com as chamas e aliviar o odor (HOPE, 2007).
Foi durante a cremação que Estácio compôs e recitou sua consolação para
Mélior, pois era ao longo da pira que os discursos fúnebres costumavam ser recitados
(ibid). A poesia em funerais tinha um aspecto teatral no qual as performances eram
planejadas para envolver os espectadores no processo do ritual, utilizando de
associações culturais para invocar e interpretar performaticamente e definindo
diversos papéis para os indivíduos assumirem em relação ao falecido ao longo do
funeral: sobreviventes, enlutados, espectadores e celebradores (ERASMO, 2008). A
poesia de Estácio, portanto, acompanhou a pompa como parte dos espetáculos
fúnebres em honra a Gláucias, sendo um serviço de patronato para Mélior.
2. OS PARTICIPANTES DA PROCISSÃO FÚNEBRE
A pompa fúnebre de Gláucias é representada como um “negro cortejo” pelas
vestes escuras dos participantes enlutados, como já explicado. Entre os indivíduos
que tiveram seus comportamentos descritos na Siluae 2.1 durante a procissão e a
cremação, são mencionados: Mélior como desolado por um luto intenso, os pais de
Gláucias estando aflitos e o próprio poeta sendo uma figura consoladora.

858
O comportamento enlutado de Mélior durante o funeral de Gláucias é destaque
no poema de Estácio por frequentemente mencionar as atitudes intensas do patrono.
O choro de Mélior era tão alto que, inicialmente, o impedia de ouvir a cantoria
consolatória do poeta: “Enquanto, atroz, palavras de alívio e cantares / eu congrego,
flagelo e lamentos preferes, / e a lida odeias e a repeles sem ouvir” (vv. 5-7). Estácio
indica que nem melodias mitológicas poderiam acalmar o enlutado: “Nem se o tríplice
canto da Sícula virgem [sirenas da Sicília] / afluir, nem a lira [de Orfeu] de selvas e
feras / sabida aplaca o duro pranto” (vv. 10-12). Sugere, então, que seu patrono estaria
tomado pela dor e pelo mal (vv. 14-15) e se encontrava muito próximo a pira fúnebre,
como se fosse jogar junto ao rapaz: “cingindo o fogo e pronto para tragar as chamas”
(v. 24). A imagem da tristeza de Mélior, em resumo, pode ser indicada em: “Um luto
intenso / atinge a alma e o peito lada ao ser tocado” (vv. 12-13).
Na introdução do poema, Estácio sugere que o lamento de Mélior superava o
de qualquer parente: “A ti [Mélior], vencendo os pais no pranto, as mães nos braços”
(v. 23). Superava também as relações de luto por parentesco entre animais, pois
“Antes tigresa apartada / das crias ou leoa enlutada me ouvissem” (vv. 8-9) visto que
Mélior, chorando, não conseguia ouvir o cantar do poeta (vv. 5-7). E quando o rito
funerário acabou, o patrono, “antes tão plácido Mélior”, com o corpo debilitado pela
tristeza do luto, começa a tremer, cai no chão, rasga a roupa, chora e fica com os
lábios gelados (vv. 166-173). Estácio estranha esse estado de seu patrono,
comentando “És tu o ser amável que eu conheço?” (v. 168).
Os pais de Gláucias, não nomeados no poema, são mencionados brevemente
em apenas três passagens. A primeira é a indicação de que foram libertos (v. 73),
como já comentado. Na segunda menção, são retratados como “aflitos” ao fim do
funeral e “atônitos” ao verem o estado debilidade de Mélior pela tristeza do luto (v.
174). No último estrofe, os pais de Gláucias são referenciados como pessoas a serem
confortados pela convocação da sombra de Gláucias (vv. 227-234). Por essas rápidas
menções, então, é perceptível que o enlutamento por Gláucias é focado nas atitudes
de Mélior, não de outras figuras que participaram do funeral, mesmo os pais do
falecido.
O último participante do ritual representando no poema é o próprio Estácio.
Convocado pelo patrono para cantar e tocar durante a cerimônia fúnebre, o poeta se
apresenta como uma figura consoladora para os enlutados no evento e,

859
principalmente, para seu patrono Mélior (NAUTA, 2008). Estácio faz um uso elaborado
de recursos narrativos para se apresentar como um poeta consolador (ibid).
A introdução do poema começa justamente com Estácio perguntando a Mélior
como o consolar com sua cantoria frente a pira funerária do jovem (vv. 1-3). O patrono,
como já indicado, é retratado com um luto tão expressivo que sua lamentação impede
que ele ouça o consolo (vv. 5-7). Estácio, então, parece querer firmar sua posição no
funeral como poeta. A falta de atenção nele por parte de Mélior não seria porque a
poética era insatisfatória, mas por ser o pranto do aristocrata tão barulhento que
superaria até o canto de figuras mitológicas conhecidas por encantar os indivíduos
que as ouviam: as sirenas da Sicília4 (“tríplice canto da Sícula virgem”, v. 10) e o som
da lira de Orfeu5 (“lira de selvas e feras / sabida”, vv. 11-12). Assim, o poeta se
compara a célebres músicos míticos para enaltecer sua própria capacidade poética.
Para fortalecer sua imagem de poeta consolador, Estácio diz retirar sua coroa
de louros e virar sua lira para baixo, se tornando um poeta infeliz (vv. 26-28). Assim,
o poeta simboliza que está renunciando sua relação poética com Apolo, deus da
música e da poesia, para se tornar um “vate infausto”, associado a Plutão, deus dos
mortos, por estar compondo e cantando sobre algo desolador (vv. 26-28) como foi a
morte de Gláucias, o que o poeta considera como ser um crime (vv. 20, 137-145) e
uma situação injusta (v. 175).
No papel de poeta consolador, é exigido que Estácio invoque seu próprio luto
na composição do poema (NAUTA, 2008). Por isso o poeta escreve que, enquanto

4 As sirenes eram criaturas fantásticas, metade mulheres e metade pássaros, que viviam em alguma
ilha do Mediterrâneo, tradicionalmente frente à costa da Itália meridional e próximo a Sicília (GRIMAL,
2005). Elas eram músicas notáveis, cuja cantoria e melodia era capaz de enfeitiçar os marinheiros que
passavam por perto de sua ilha, que acabavam por naufragar e serem devorados pelas criaturas. A
quantidade de sirenes variava de acordo com o poeta, mas Estácio parece seguir a tradição de
considerar três desses seres, visto o “tríplice canto” (v. 10): Pisínoe, Agláope e Telxípe ou Parténope,
Leucósia e Lígia.
5 Orfeu era uma figura mitológica que era poeta, músico e cantor por excelência (GRIMAL, 2005): era

filho de Eagro, rei da Trácia, e de Calíope, musa da poesia épica e da eloquência, ou de Menipe, filha
do músico trácio Tâmiris, e teria inventado ou aperfeiçoada a cítara. A melodia que este poeta cantava
e tocava era tão suave que encantava os animais, as árvores e plantas se inclinavam para o seguir e
acalmava as pessoas bravas, insensíveis ou com medo (ibid). Durante a Argonáutica, o principal papel
de Orfeu na expedição foi cantar e tocar sua lira para sua voz se elevar-se aos cantos enfeitiçadores
das sirenas, sendo efetivo em sua função. Sua história mítica mais célebre é a descida ao mundo dos
mortos para recuperar a sombra de Eurídice, sua esposa. Nesse mito, “Os poetas rivalizam em
imaginação para descrever os efeitos da sua música divina: a roda de Ixíon deixa de girar, a pedra de
Sísifo equilibra-se por si própria imobilizando-se, Tântalo esquece a fome e a sede, as Danaides já não
tentam encher de água o tonel perfurado” (ibid, p. 341) e teria admirado os deuses dos mortos, Hades
e Perséfone, a ponto de permitirem que voltasse ao mundo dos vivos com sua amada, desde que não
olhasse para trás enquanto não chegasse a superfície terrestre, o que Orfeu fez, fracassando com o
retorno de Eurídice.

860
compõem, “meus versos em lágrimas / nadam, e borrões tristes mancham as
palavras” (vv. 17-18), para demonstrar a tristeza do seu luto pelo rapaz. Para Estácio,
a consolação era dever entre amici (amigos em relação de patronato) (NAUTA, 2008),
desse modo, para se mostrar próximo de seu patrono, ele apresenta que compartilha
do luto de Mélior: “da dor vigorosa eu fui sócio / e me vi companheiro em teu luto” (vv.
28-29). No final da introdução poética, reafirma essa aproximação entre eles para
explicar: “Não retenho o teu luto; / mas a dor compartilha e, conjuntos, choremos”
(vv.34-35).
Por ser um poeta de patronato, indica que teria cantado consolações para pais,
mães e para si próprio, quando perdeu o pai, quando estiveram na mesma situação,
“Em catástrofe igual” (vv. 30-34). Afirmando seu papel de poeta consolador e amicus
(amigo) em uma relação de patronato, Estácio pede que Mélior colabore para poder
cantar sua poesia, que será uma “prece amiga” (v. 16): “Se da dor vigorosa eu fui
sócio / e me vi companheiro em teu luto, então peço / que suportes gentil [a recitação
poética]” (vv. 28-30). Neste repertório poético relacionado ao patronato, então, Estácio
cumpre suas obrigações sociais com Mélior (NAUTA, 2008). Por isso a generosidade
impulsiva e empática que o poeta mostra em sua poética possivelmente é mais
aparente do que um sentimento real (ibid).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estácio foi um poeta na Roma flaviana (69-96 EC) de prosperidade econômica
e mudanças sociopolítica, no qual as famílias equestres, aristocracias provinciais, os
burocratas, os libertos e os novos ricos se fortaleciam frente à tradicional aristocracia
romana (NEWLANDS, 2002; LEITE, 2012). O patronato artístico dessa nova camada
social promoveu uma visão de identidade cultural do patriciado pelo enaltecimento de
valores econômicos, morais e artísticos relativos a essas novas figuras de altos status,
deixando de lado o valor do nascimento aristocrático prezado na literatura augustana
(NEWLANDS, 2002).
Newlands (2002) postula que foi desenvolvida neste período uma “poética de
Império”, no qual as produções poéticas associavam extravagância linguística e
artística para expressar e exaltar a grandeza política do Imperador e a riqueza privada
dos patronos. Houve um contexto de incentivo na mudança de atitudes em relação a
luxúria, promovendo uma compreensão de riqueza que deve ser livre para ser
utilizada tanto para propósitos privados, quanto para bens cívicos (ibid).

861
Estácio se envolveu com esse patronato da poética do Império, assumindo em
sua poética as mudanças sociais a respeito dos valores tradicionais: “Assim, a virtude,
e não a origem de uma família tradicional, é o motivo de proteção dos deuses, ou de
uma posição de prestígio; a riqueza, quando bem utilizada, é marca de bom gosto e
merecimento” (LEITE, 2012, p. 148). Dessa forma, os poemas das Siluae
“corajosamente contestam e reformulam a tradição poética grega e romana e seus
sistemas de valores para expressar a nova grandeza e complexidade da sociedade
imperial [flaviana]” (NEWLANDS, 2002, p. 7; tradução nossa6). A Siluae 2.1, portanto,
demonstra as novas perspectivas da literatura flaviana por destacar as riquezas do
funeral e outras figuras sociais não-aristocráticas como os libertus.
Por ser promovido por um aristocrata, o evento fúnebre deveria ter seu caráter
pomposo, mesmo que fosse para honrar um libertus de baixo status social. A poética
de Estácio, por empregar embelezamento em suas representações (NEWLANDS,
2002), intende demonstrar que a riqueza de seu patrono é capaz de organizar um
funeral suntuoso. O funeral e o poema, então, são formas do patrono se promover
como um indivíduo bem-afortunado.
O indivíduo com maior destaque na narrativa sobre o funeral é Mélior, ainda
que a cerimônia seja para Gláucias. Desta forma, a estratificação das condutas
funerárias também é perceptível na representação poética de Estácio. As descrições
são relativas as atitudes de enlutado do patrono durante o funeral e o esforço
consolatório de Estácio visa melhores relações com o patrono. Também podemos
conjecturar que a representação de demonstração exacerbada do luto visa
demonstrar que Mélior tinha interesse em honrar o falecido com tamanha pompa
fúnebre, apesar do status social baixo do rapaz.
Refletir sobre a morte também é uma reflexão sobre a vida, ponderando como
os vivos e suas culturas pensam e se relacionam com a morte (MARANHÃO, 1985).
Avaliando as práticas fúnebres representadas por Estácio na Siluae 2.1,
compreendemos que a organização de um funeral para um libertus indica que os
eventos mortuários luxuosos poderiam não serem exclusivas para membros da
aristocracia romana. Ainda assim, por fim, as estratificações sociais na cerimônia
funerária de Gláucias refletem a tradicional valorização da aristocracia masculina
romana, em novas perspectivas do período flaviano, pois, ainda que estivesse

6 No original em inglês: “The Silvae boldly contest and reshape Greek and Roman poetic tradition and
their related systems of values in order to express the new grandeur and complexity of imperial society”.

862
retratando a comemoração para um jovem libertus, os elementos que envolveram a
cerimônia exaltavam Mélior como um indivíduo de riquezas.

REFERÊNCIAS
1. FONTE

ESTÁCIO, Públio Papínio. Silvas, 2.1. In: CARVALHO, Raimundo et al. Por que Calar
Nossos Amores? Poesia Homoerótica Latina. Tradução, apresentação e notas:
Leandro Cardoso. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

2. BIBLIOGRAFIA

ASSO, Paolo. Queer Consolation: Melior's Dead Boy in Statius' Silvae 2.1. American
Journal of Philology, v. 131, n. 4, p. 663-697, 2010.

BERNSTEIN, Neil W. Mourning the puer delicatus: status inconsistency and the ethical
value of fostering in Statius, Silvae 2.1. American journal of philology, p. 257-280,
2005.

ERASMO, Mario. Reading death in ancient Rome. Columbus: Ohio State University
Press, 2008.

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertand


Brasil, 2005.

HOPE, Valerie. Death in ancient Rome: a sourcebook. Abingdon: Routledge, 2007.

LEITE, Leni Ribeiro. Celebração e retórica em Estácio. In: LEITE, L.; VENTURA DA
SILVA, G.; CARVALHO, R. Gênero, religião e poder na antiguidade: contribuições
interdisciplinares. VITÓRIA: GM Editora, 2012. p. 140-151.

MARANHÃO, José Luiz. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1985.

METCALF, Peter; HUNTINGTON, Richard. Celebrations of death: the anthropology


of mortuary ritual. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. Lisboa: Europa-América, 1970.

NAUTA, Ruurd. Statius in the Silvae. In: SMOLENAARS, Johannes; VAN DAM, Harm-
Jan; NAUTA, Ruurd (Ed.). The poetry of Statius. Leiden: Brill, 2008.

NEWLANDS, Carole. Statius' Silvae and the poetics of Empire. Cambridge:


Cambridge University Press, 2002.

863

Você também pode gostar