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26/01/2019 Brasil vive uma 'politização de ressentidos', diz antropóloga Débora Diniz - Política

Brasil vive uma 'politização de ressentidos', diz


antropóloga Débora Diniz
Antropóloga, que saiu do país por causa de ameaças de morte, fala sobre
eleições, militarismo, direitos civis e conservadorismo. Para ela, uma das
surpresas do governo Jair Bolsonaro pode ser Sérgio Moro, futuro ministro da
Justiça

PO Paloma Oliveto

postado em 26/11/2018 06:10 / atualizado em 26/11/2018 11:45

(foto: Carlos Moura/SCO/STF)

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26/01/2019 Brasil vive uma 'politização de ressentidos', diz antropóloga Débora Diniz - Política

Reconhecida pela revista norte-americana Foreign Policy como um dos 100


maiores pensadores globais, a pesquisadora, escritora e documentarista
Débora Diniz já era nome consolidado no meio acadêmico quando, há 14
anos, tornou-se, também, popular fora da cátedra. Foi ela que, em 2004,
trouxe à luz uma questão de direitos reprodutivos praticamente
desconhecida por quem jamais viveu o drama de gestar um feto sem cérebro:
o aborto de anencéfalos.

A Anis, instituto de bioética fundado por ela em Brasília, comprou a briga que
chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e culminou em um dos mais
polêmicos julgamentos da Corte. A luta da antropóloga resultou no direito de
retirada do feto sem chance de sobrevivência fora do útero. De lá para cá,
Débora tem amplificado a voz de minorias e denunciado situações como o
abandono de famílias pobres cujos filhos nasceram com síndrome da
infecção congênita pelo vírus zika. Autora do primeiro livro sobre a
descoberta da doença no Brasil, ela venceu a categoria ciências da saúde do
Prêmio Jabuti com Zika: do sertão nordestino à ameaça global.

Em julho, a carreira da pesquisadora como professora do curso de Direito na


Universidade de Brasília (UnB) foi pausada à força por grupos
fundamentalistas que a ameaçaram de morte devido à militância dela nas
questões de gênero. O caso foi tão grave que ela se licenciou da instituição, foi
incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do
governo federal e, atualmente, vive em outro país — por motivos de
segurança, ela não revela onde está. “Mas eles nunca vão me calar”, avisa.

Por telefone, Débora Diniz, 48 anos, conversou com o Correio sobre eleições,
militarismo, direitos civis e o ressurgimento do conservadorismo na
sociedade brasileira. “Não há politização nos quartéis; há uma politização de
ressentidos da história que, como Jair Bolsonaro, entraram na academia
militar numa expectativa de que comporiam o poder político e viram a
redemocratização”, acredita. Para ela, nos próximos anos, o Supremo terá de
se dedicar mais às pautas dos direitos fundamentais, uma função que ficou

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ofuscada por julgamentos criminais, como os da Lava-Jato. O protagonista da


operação e futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, também poderá
surpreender, acredita. “Ele pode ser alguém perturbador para a política
bolsonarista no campo dos direitos fundamentais.”

É possível identificar o início dessa onda conservadora ou o brasileiro, na


verdade, sempre foi conservador?
São as duas coisas juntas. Toda a nossa história política é de dificuldade de
incorporação de alguns princípios fundamentais, como a igualdade. O que
nós tivemos foi um período em que os nossos ranços dos privilégios, sejam da
casa grande, sejam dos produtores de café, ficaram presos à sala de jantar, no
almoço de domingo. A gente teve um momento em que a igualdade como
valor passou a ser uma exigência da vida pública, fosse nas universidades
com as cotas, fosse na existência de uma nova paisagem política com
mulheres, com negros; fosse por mudarmos o vocabulário sobre como se
referir aos grupos que são discriminados socialmente. A gente passou a falar
em raça, em gênero. Então, o que nós tivemos foi a incorporação de um novo
vocabulário político com algumas conquistas. Mas as gerações que viveram
os privilégios ainda coexistem no tempo histórico. Esse período de trégua
provocou uma perda de privilégio. Por que ele volta com tanta força? Porque
nunca deixou de existir, nunca deixou de existir como ressentimento
daqueles que perderam suas posições, e ele volta como uma onda mundial de
países muito importantes economicamente, como os Estados Unidos. Volta
em um bloco de países conservadores do Leste Europeu, mas volta também
dentro de 30 anos de uma abertura democrática em que nós não
conseguimos solucionar de uma maneira histórica o que foi o nosso período
ditatorial.

O escritor israelense Amós Os diz que o nazismo na Alemanha ressurge


quando o tempo passa, fazendo as pessoas esquecerem e perderem a
vergonha do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. No caso brasileiro,
30 anos é suficiente para o esquecimento?
Acho que há duas coisas aqui. A primeira é que a geração imediatamente
seguinte ao que foi a ditadura teve, inclusive entre os militares, esse

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silenciamento imposto pela vergonha de quando há uma transição. Seja uma


autocensura, de que esse assunto a pessoa não vai contestar, seja uma
vergonha para as pessoas de bem. Se nós formos olhar qual é a geração dos
generais que está voltando ao poder, que é a geração do (presidente eleito
Jair) Bolsonaro, é uma geração que, na época da ditadura, estava entrando na
academia militar. É uma geração de jovens homens que estava entrando na
expectativa de participar de um governo militar. E eles tiveram de viver 30
anos o ressentimento de não fazer parte dos privilégios do poder militar. Não
é à toa que são generais aposentados. Se for para a geração hoje de 40, 50
anos, isso está muito bem resolvido, de que os militares não tinham de estar
na política. Se olhar a entrevista do (general e comandante do Exército)
Villas-Boas, que diz que não há politização nos quartéis, ele não está dizendo
uma mentira. Há uma politização desses ressentidos da história que, como
Bolsonaro, entraram na academia numa expectativa de que comporiam o
poder político e viram a redemocratização. Esse é o lado pelo qual eu tentaria
compreender quem são esses militares, agora ávidos pela tomada do poder, o
poder democrático.

E quanto aos civis?


A minha explicação é que seria não só um esquecimento do que foi a
ditadura. Eu listaria três explicações. A primeira é que temos uma
banalização da cultura política; nós fazemos graça, dizemos que todos os
políticos são tontos, achamos que tanto faz porque são todos iguais, então,
escolho esse aqui que ao menos não é do PT, mesmo que seja um
personagem burlesco. O segundo é que, dentro daquilo que falávamos, de
valores que nunca desapareceram da sociedade brasileira, a expectativa da
masculinidade “macha”, do patriarcado, na figura do homem-forte como
líder. E o Bolsonaro representa isso. Então, ele não é simplesmente um
militar, para os militares, ele é burlesco, um personagem bufão. Mas ele
incorpora o macho. Um indício disso é a entrevista da atriz Regina Duarte, em
que ela diz: “Ele é como meu avô, meu pai”. Ele é o macho a quem é
autorizado dizer qualquer coisa. Ele é o macho da “Casa Grande”.

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Muitas mulheres se posicionaram contra o presidente eleito, mas, no fim da


campanha, o número de eleitoras de Bolsonaro aumentou. Como explicar
que mulheres também estejam ávidas pela figura de um “macho”?
Ele representa a teocracia evangélica. Não é o militarismo que volta ao poder;
é o populismo teocrático que retorna vestido de farda. A gente não sabe
muito bem se são os militares de volta no sentido dos quartéis — segundo o
Villas-Boas, não é. Com as transformações sociais, está sendo demandada das
mulheres uma fatura gigante da história. Principalmente as mulheres
trabalhadoras, que não fazem parte de uma elite que vai chamar o trabalho
de escolha, de carreira. São mulheres chefes de família, que pegam um
transporte público que é um horror, que não têm creche para os filhos. Estão
ávidas por reencontrar uma narrativa idílica de que, no passado, a vida foi
mais fácil para elas. O tempo histórico fantasia o passado; as pessoas dizem
“Nós tivemos uma perda de valores”, “A família não é mais a mesma”. De que
família estamos falando no passado? A de quando as mulheres eram
violentadas, os homens tinham múltiplas famílias? Mas como nós temos não
só a carência de uma compreensão histórica clara sobre isso, mas narrativas
que, com o envelhecimento, circulam de forma idílica, você cria uma fantasia
para essas mulheres de quem sabe essa concepção de família e de masculino
vai deixar minha vida melhor, dado o Estado frágil? Porque a vida é dura para
essas mulheres.

E as jovens bem-nascidas, que nunca passaram dificuldade, as que estão


sendo representadas pela boneca Barbie nos memes?
Todo fenômeno amplo tem múltiplas explicações. Quando a gente faz um
recorte no grupo de mulheres trabalhadoras, eu diria que um caminho é esse
que acabei de dizer. Mas quando a gente vai para a “Barbie”, a gente tem
outra possibilidade de explicação. Quem são elas? É sempre bom a gente
pensar por alegoria. Você lembra quando começa uma popularização das
viagens de avião e as Barbies dizendo que “viajar de avião agora virou
Itapemirim”? Aqui, a gente está falando de uma classe social que tem
ressentimento da entrada dos pobres na sociedade de consumo. As bem-
nascidas, aquelas que viajam ao exterior, elas têm o ressentimento da entrada
da classe trabalhadora na sociedade de consumo. Aquelas que elas chamam

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de “sua” manicure, “sua” empregada doméstica vão ter bens de consumo que
elas imaginariam ser exclusivos dela. E que a “sua” empregada doméstica,
para ter a “sua” babá para cuidar da “sua” filha vai custar muito dinheiro.

Principalmente durante a campanha eleitoral, houve o temor de que a onda


de conservadorismo levasse a um aumento da violência. Esse medo é
infundado?
Para minha vida privada e pessoal, não era um medo infundado. Eu não diria
o medo, porque eles nunca vão me calar. Mas a ameaça nunca foi infundada.
Ela foi concreta, permanente e insistente. Recentemente, eu ia participar de
um evento mundial sediado no Rio de Janeiro e decidi, em conjunto com o
Programa de Proteção a Defensores de Direitor Humanos Ameaçados, não
participar. Poderia ser muito arriscado. Mas, assumir que isso vai se
transformar em um fenômeno populacional, não podemos dizer que sim
nem que não. Eu espero que não, porque não quero a desgraça para depois
dizer “eu avisei”. A democracia ainda não foi posta à prova sob as ameaças
que ele fez verbalmente, de que não vai ter movimento social, de quem não
está feliz que saia do país. Nossas bandeiras de alerta vão sendo levantadas à
medida  que suas palavras forem avançando para algo concreto. Se não
forem, nós vamos continuar fazendo resistência pacífica, o que é parte da
democracia.

A composição do novo Congresso Nacional está mais conservadora. Como a


senhora acredita que será o papel do Judiciário para a manutenção dos
direitos civis?
O Judiciário vinha tendo cada vez mais uma participação devida no balanço
dos Três Poderes na última década para garantir direitos individuais, civis,
fundamentais. A teocratização da política brasileira não está começando com
Bolsonaro; a evangelização da política brasileira começou há pelo menos
uma década. O que nós temos agora é um populismo teocrático com um
aceno militar. O que vai haver é uma demanda mais intensa dos tribunais
superiores sobre seu papel na garantia da estabilidade democrática. Nos
últimos anos, com a operação Lava-Jato, o Supremo (Tribunal Federal) vem
se convertendo em uma corte criminal. E o grande papel dele agora é se

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converter na corte constitucional. É assumir o seu lugar, se manter em


investigações de revisão criminal que venham a acontecer, mas ele tem de
assumir sua voz de revisão constitucional. Além disso, vamos ter fronts de
luta muito fortes. Um deles serão as universidades e escolas. Professores de
universidades e escolas não são um front fácil de se colonizar com notícia de
WhatsApp.

Mesmo se o Escola sem Partido for aprovado?


Mesmo com o Escola sem Partido tentando ser aprovado, até porque vai ser
questionada a constitucionalidade no Supremo. O Congresso Nacional pode
fazer o que quiser no campo de ameaça de direitos fundamentais, como
Estatuto do Nascituro, revisar o casamento gay, Escola sem Partido. Tudo vai
continuar no Supremo para revisão de constitucionalidade. Um outro espaço
que vamos ter de acompanhar para descobrir: quem é esse personagem, o
(Sérgio) Moro no Ministério da Justiça? Uma coisa é ele investigando a Lava-
Jato. Outra é ele atuando em direitos fundamentais. Nem nós nem Bolsonaro
sabemos quem é ele. Não acho que vai ser um personagem fácil como se
imagina que ele foi em política criminal. Ele pode pensar diferente de uma
criminalização de movimentos sociais, por exemplo. Uma coisa é o Judiciário
no campo da política criminal, nisso nós sabemos exatamente quem foi o
Moro. Outra coisa é quem é esse novo ministro da Justiça no campo dos
direitos fundamentais, e isso nem os bolsonaristas sabem. Moro é quase um
ministro impossível de ser demitido. Lembra daquele ditado de que você não
pode botar na política quem não pode demitir? Aí, o Bolsonaro terá uma
grande dificuldade de demitir uma figura como o Moro, sem causar uma
comoção naqueles que votaram anti-PT, acreditando na “Liga da Justiça”. Ele
pode ser alguém perturbador para a política bolsonarista no campo dos
direitos fundamentais.

(https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/01/07/interna_cidadesdf,729477/sa
como-receber-as-noticias-do-correio-no-whatsapp.shtml)
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