Prof.: Pe. Luís Henrique Eloy e Silva. Aluno: Victor de Carvalho Matos.
Como se pode descrever a eclesiologia joanina a partir da obra de Brown: A Comunidade
do Discípulo Amado?
A eclesiologia joanina, apresentada por Brown em sua obra “A Comunidade do
Discípulo Amado”, possui um itinerário evolutivo formado por quatro momentos distintos de desenvolvimento da comunidade em questão. Inicialmente é necessário observar alguns pontos antes de um aprofundamento no tema: a palavra Ekklésia nunca é utilizada no Evangelho e muito menos nas duas primeiras cartas atribuídas ao apóstolo João. Somente na terceira carta, o termo é empregado em tom de crítica a Diótrefos, líder eclesiástico de conduta reprovável naquele contexto; o conceito Povo de Deus, tão caro aos sinóticos, parece estar ausente nestes escritos; o mesmo pode-se dizer do termo apóstolo em seu sentido próprio. Assim sendo, de que forma essa eclesiologia pode ser compreendida por aqueles que estudam o Corpus Joanino? Para responder a esta indagação se faz necessário adentar na obra anteriormente citada, perpassando os conceitos que estruturam a tese de Brown acerca das fases pelas quais a comunidade passou até sua inteira assimilação pela Grande Igreja, no século II. Segundo Brown, a comunidade joanina tem sua origem entre judeus que seguiram Jesus e com pequena dificuldade o aceitaram como Messias, algo comum as Igrejas de origem apostólica. Por estar fortemente influenciada pelo judaísmo, esta comunidade, em sua fase primordial, encontrava seu fundamento em uma cristologia baixa, isto é, reconhecia Jesus em sua messianidade, sem especular sobre sua origem e condição divina. Dentre aqueles que fundaram tal comunidade, Brown afirma a significativa importância de um personagem que fora testemunha ocular dos fatos ocorridos na vida terrena de Jesus, denominado nos escritos joaninos como o “Discípulo Amado”. O evangelho denota a ideia de que esta comunidade é herdeira das tradições oriundas deste discípulo que é apresentado no texto joanino a partir do “livro da hora”, fator indicativo de uma evolução eclesiológica ocorrida na comunidade a medida em que a consciência acerca da identidade de Jesus se aprofundava. A esta comunidade primitiva se associou um grupo de judeus contrários ao Templo e sua estrutura de influência. Traziam consigo a experiência do convívio com samaritanos, sendo responsáveis pela conversão de muitos deles. Este grupo possuía uma cristologia de caráter mais elevado, onde a messianidade davídica de Jesus sedia lugar a ideia de uma preexistência divina do mesmo, fator catalisador de rupturas que aconteceriam posteriormente. Até então, a estrutura eclesiológica da comunidade estava diretamente ligada ao culto sinagogal. Muitos cristãos ainda frequentavam a sinagoga e a tinham em grande apreço. A partir do ingresso deste segundo grupo na comunidade, e de sua cristologia alta, os debates com os judeus se intensificaram. Os membros da sinagoga começaram a reagir negativamente as afirmações cristológicas que defendiam a origem divina de Jesus, o que para eles correspondia a proclamação da existência de uma segunda divindade, algo impensável ao monoteísmo mosaico. Tais controvérsias resultaram na expulsão dos cristãos das sinagogas e consequentemente na aproximação da comunidade com os gentios. Nascia, então, deste processo, uma autonomia substancial em relação aos preceitos mosaicos, concluindo a primeira fase da comunidade joanina, a quem Brown denominou fase pré-evangélica (meados dos anos 50 a final dos anos 80 d.C.). A segunda fase, a fase evangélica (90 d.C.), coloca em evidência duas situações de relevante importância para a eclesiologia joanina: a aproximação com os gentios, que também foram causa de decepção por não aceitarem a proposta joanina de maneira integral, e o distanciamento dos judeus, agora considerados filhos do Diabo, por não crerem em Jesus como Filho de Deus. Assim posto, o núcleo relacional-eclesiológico da comunidade se restringia aos próprios membros que desenvolveram um forte sentimento de koinonia, isto é, comunhão, senso de caráter familiar. A rejeição ao “mundo” (termo para designar aqueles que não aceitaram a luz, isto é, não fazem parte da comunidade) e aos judeus, tornou-se algo fundamental também para entender o caráter sectário que a comunidade adquiriu após a expulsão das sinagogas. O amor mútuo entre seus membros era o bastante para suprir a comunidade em uma comunhão íntima que deveria ser desenvolvida com Deus e entre os irmãos. A terceira fase desta comunidade (100 d.C.), conhecida como fase das epístolas, é caraterizada principalmente pelo cisma intrajoanino que dividiu a comunidade em duas porções: os fiéis e os separatistas. O autor das cartas começa a utilizar o termo presbítero como meio de se apresentar aos seu público-alvo, embora, segundo Brown, não há nada que comprove que as comunidades sob influência joanina adotassem este tipo de organização hierárquica, a exemplo de outras comunidades cristãs da época. A segunda e terceira carta são escritas a diferentes Igrejas, distantes do autor. Nesta época, a comunidade joanina não se encontrava concentrada em uma aérea geográfica determinada, mas estava em diferentes cidades e povoados, através das Domus Ecclesiae, podendo ter a presença de vários destes núcleos eclesiais na mesma cidade. Brown afirma que em uma mesma região poder-se-ia encontrar vários tipos de Igrejas. A primeira epístola, segundo ele, é voltada para um centro metropolitano, enquanto que as demais eram voltadas para cidades provincianas, alvo preferencial das ações dos separatistas, sobretudo no que diz respeito à cristologia. Divergências também são encontradas nos planos éticos, escatológicos e, sobretudo, na pneumatologia. Os separatistas se ab-rogavam as funções de profetas e doutores, e por isso, enfatizavam que suas falas eram em nome do Espírito. Corrigiam com severidade e autoridade a quem discordasse de suas proposições teológicas, algo totalmente rechaçado pelo autor das cartas. Para o escritor joanino, o sucesso destes separatistas com o “mundo” era o sinal cabal de sua distância da verdade. A eclesiologia joanina nesta fase, abalada pela cisma, encontrava na figura do Paráclito a solidez doutrinal que desejava. Ele era considerado o mestre, a garantia da fidelidade aos ensinamentos de Jesus. A alta cristologia era a confirmação de sua ação em seu meio. Além disso, esta comunidade se comportava com superioridade e exclusivismo em relação as demais Igrejas Apostólicas, pois se considerava herdeira do Discípulo a quem Jesus expressou amor, e nada poderia ser maior que isso. Apesar disso, eram capazes de reconhecer nestas comunidades apostólicas um verdadeiro seguimento de Jesus, as considerando como “ovelhas que não faziam parte do mesmo aprisco” (Jo 10,16) e deveriam aceitar a alta cristologia joanina para que pudesse haver um só rebanho. Outro aspecto eclesiológico importante está presente na recusa a institucionalização da comunidade. Enquanto nos escritos sinóticos percebe-se uma gradual hierarquização das comunidades cristãs, reflexo de um movimento de estruturação eclesial ocorrido a partir do século I, no evangelho joanino, Jesus não traz nenhuma palavra instituindo estruturas de hierarquia ou sacramentos. Estes últimos são vistos como continuação natural do ministério de Jesus. A autoridade da comunidade estava edificada no Paráclito, de onde vinha a segurança e a fidelidade aos ensinamentos de Jesus. Prova disso é como a palavra discípulo foi apresentada nos escritos joaninos. Para João, discípulo é a primeira categoria cristã; o termo apóstolo é ignorado em seu sentido primordial-hierárquico. Por fim, para a comunidade joanina, o essencial é manter viva a presença do Senhor através do Paráclito. Nenhuma estrutura ou instituição pode substituir tal situação. A quarta e última fase marca a dissolução joanina e ocorre no século II. Nesta fase, após as epístolas, não há mais vestígios de uma comunidade joanina distinta e separada. Os separatistas foram absorvidos pelo Gnosticismo; os que se mantiveram fiéis ao ensinamento joanino e sua correta hermenêutica, foram incorporados pela Grande Igreja. Neste aspecto, a identidade da comunidade joanina como um todo havia se dissolvido em meio aos cristãos de origem apostólica, integrando-se na macroestrutura eclesiástica que se formava. A alta cristologia foi levada ao seio da Grande Igreja, que aos poucos a assimilou e a protegeu das investidas docetas e monofisistas. A convicção na eclesiologia do Paráclito perdeu força após os embates com os separatistas, e aos poucos os cristãos joaninos foram encontrando segurança e aceitando a estrutura hierárquica formada por bispos e mestres que, progressivamente, começaram a serem considerados baluartes contra aqueles que apresentavam uma doutrina contrária aos ensinamentos joaninos. A estrutura eclesiástica joanina que não possuía chefes, bispos ou presbíteros que pudessem controlar a doutrina pela própria natureza de ofício, cedeu lugar a hierarquia da Grande Igreja, entendida como estrutura eclesial de suma importância e divinamente instituída. Assim, estava dissolvida a comunidade do Discípulo Amado, que incorporada a Grande Igreja, formava finalmente com ela, segundo Inácio de Antioquia, um só rebanho no Senhor. Pode-se perceber claramente o itinerário evolutivo que a eclesiologia joanina percorreu, segundo a tese de Brown acerca das quatro fases históricas da comunidade eclesial em questão. Em um primeiro momento, os cristãos joaninos eram frequentadores da sinagoga e traziam consigo muitos elementos do judaísmo, ainda muito presente em seu meio. Ao se associarem com um grupo de cristãos contrários ao Templo, de alta cristologia e com afinidade pelos samaritanos, são expulsos da sinagoga e obrigados a se reinventarem enquanto forma de culto e encontro. Em um segundo momento, a fase em que o evangelho foi escrito, a comunidade se une em torno de si mesma, após as controvérsias com os judeus e as decepções com os gentios, formando uma unidade de caráter sectário. O diálogo com os cristãos de origem apostólica já existia, no entanto, diferenças doutrinais, sobretudo, cristológicas impediam uma plena união. Na terceira fase, a comunidade coesa ruiu diante de um movimento separatista que a dividiu. O culto e os encontros comunitários aconteciam nas Domus Ecclesiae, que estavam presentes nos mais diversos estratos sociais da época. A confiança na autoridade do Paráclito como autoridade legítima no discernimento, interpretação e ensino, fazia com que a comunidade não aderisse a estruturas hierárquicas de organização interna. O autor das Cartas reforçou em seus escritos a importância de permanecer em comunhão com a comunidade e de não aderir as novas interpretações que os ensinamentos joaninos estavam tomando, a partir dos separatistas. Mesmo assim, a comunidade foi incapaz de combater os separatistas apenas com a fidelidade a tradição joanina recebida. Desse modo, na quarta fase, foram aceitando progressivamente a necessidade de mestres oficiais com autoridade (bispos e presbíteros), ao mesmo tempo em que a Grande Igreja foi assimilando aos poucos a alta cristologia joanina, apesar de todas as ressalvas possíveis a esta inovação teológica trazida por a comunidade em questão. Assim Brown, desenhou de maneira pedagógica a evolução eclesiológica da Comunidade do Discípulo Amado, que partindo do judaísmo chega a Grande Igreja, dando a ela elementos teológicos fundamentais para o Cristianismo e recebendo dela a segurança doutrinária e eclesial necessárias ao amadurecimento da fé cristã, como um todo.