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exatamente a imortalidade, mas a O mesmo Castro Alves que

perenidade de quase clássicos. abençoou quem semeia livros


Todos esses seis cavalheiros e “manda o povo pensar”.
EDITORIAL têm em comum mais do que a Pernambuco tem contado
indiscutível qualidade de suas ao longo do tempo com muitas
Sem abrir mão obras: o fato de que foi em Per-
nambuco que nasceram, ou de-
publicações periódicas e es-
porádicas de literatura, mas
da vida finiram sua vocação para a lite- muito poucas monográ­ficas.
ratura, e aqui escreveram seus Hexágono preenche não
Luís Jardim pôs todos os livros, todos ou uma parte deles. uma lacuna, mas uma ne-
seus talentos e memória a Desses, dois foram “pernambuca- cessidade dos novos e velhos
serviço de sua gente nizados” e “recifencizados”, para leitores: o saber mais profun-
usar uma expressão tão cara a damente quem foram e o que
Gilberto Freyre. Ariano Suassuna, fizeram esses autores.
paraibano; César Leal, cearense, Quando escrevemos “pro­
ambos viram e sentiram o que o fundamente” não queremos
baiano Castro Alves viu, sentiu e dizer aquele tipo de aborda-
cantou no século anterior ao deles: gem que tem como alvo um
“Pernambuco! Um dia eu vi-te público muito restrito, de
Dormindo imenso ao luar, iniciados. “Profundamente”
Com os olhos quase cerrados, aqui quer dizer algo mais
Com os lábios – quase a falar... simples e menos pretensio-
Do braço o clarim suspenso, so: o contrário do superfi-
– O punho no sabre extenso cial. O sério. O concentrado.
De pedra – recife imenso, O dedicado. Mas com uma
Que rasga o peito do mar... “ linguagem a mais clara, di-
dática e atual.
Não tem Hexágono a am-
Um país se faz com ho- bição de esgotar nenhum as-
mens e livros: esta frase sunto. O ensaio é longo, sim,
reverberou em várias ge- mas não em demasia; mais
rações. Seria um excelente ou menos do tamanho do
mote para campanha de in- que costumam ser os artigos
centivo à leitura. Mas talvez, acadêmicos. Mas, de propó­
para quem não a ignore, te- sito, escrito numa linguagem
nha de ser completada: um não acadêmica.
país se faz com homens, mu- É bom que um leitor que
lheres, e todos os demais gê- nunca leu César Leal, nem
neros existentes e por existir, Ariano Suassuna, nem Os-
e com livros, revistas, blogs, man Lins, nem Hermilo Bor-
websites, redes sociais etc. ba Filho, nem João Cabral,
Sim, o mundo, o Brasil e nem Luís Jardim, encontre no
Pernambuco são mais com- ensaio um guia seguro para
plexos do que nos tempos de uma iniciação. Que acom-
Luís Jardim, João Cabral de panhe na cronologia o que
Melo Neto, César Leal, Hermilo Luís Jardim: escritor houve de principal na vida e
regional? universal? escritor
Borba Filho, Ariano Suassuna na obra do autor, no aspecto
para crianças? para adultos?
e Osman Lins. Mas o fato de intelectual, obviamente. Que
suas obras continuarem vi- Mulher e crianças, de encontre na fortuna crítica
vas para as novas gerações e Portinari, 1940. (Detalhe) uma espécie de “sumo”, ou
o novo século é uma das pro- Acervo digital. Projeto de “síntese” dos muitos exer-
vas de que alcançaram não Portinari. cícios de interpretação sobre
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“O menino é o pai do homem”,
2 demonstra o ensaio
do editor e romancista Sidney
Rocha, nesta edição, em relação O traço todo da vida:
aos “parentescos” literários, não Luís Jardim:
por uma releitura de
menos reais, de Luís Jardim. uma cronologia
Luís Jardim
Detalhe do óleo sobre tela
A Sagrada Família Ensaio de Sidney Rocha
com o Passarinho, 1650,
de Bartolomé Esteban Perez A perspectiva do humano
em Luís Jardim

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Murillo (1617/18–1682).
Museu do Prado, Madri, Espanha.
Entrevista com
Nivaldo Tenório

menos duas gerações. Com isto, ampliamos A perspectiva


o horizonte do olhar, de modo a termos da natureza
pelo menos um esboço de mapa da litera-
tura que se fez e se faz em Pernambuco.
em Luís Jardim
Uma literatura que se faz com todos os
gêneros, como dissemos. Por isso, adian­
tamos o boa notícia: a segunda série de Bibliografia comentada:
Hexágono cuidará de seis autoras, das ensaios, artigos Entrevista com

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mais variadas áreas da Litera­tura como
e livros de & sobre Julierme Galindo
o romance, o conto, a crítica literária, o
teatro, a poesia e a crônica. Clarice Lis- Luís Jardim
pector, Maria do Carmo Barreto Campello
de Mello, Celina de Holanda, Francisca Izi-
dora Gonçalves da Rocha, Edwiges de Sá
Pereira e Ladjane Bandeira, analisadas
também pela crítica conceituada de Per-
nambuco de, pelo menos, duas gerações.
A vida de Luís Jardim daria talvez Fortuna
o autor. Que a bibliografia cronistas, críticos literários. para um tema de romance, tão trágica
sirva tanto para que conhe- Sempre que possível, aspec-
crítica
é no começo, meio aventurosa no meio, e
ça o que publicou o autor e tos não óbvios, ou mesmo no- tranquila dos anos mais maduros até o
alguns dos que se ocuparam vos, são trazidos à tona. fim. Tinha ele o duplo e raro talento para
de analisar sua obra, mas Temos em Hexágono, um ser admirado por adultos e crianças. Ti-
também como um ponto de convite à viagem com auto- nha ele o duplo e raro talento de escrever
partida para que possa rea- res que têm também outro e desenhar. E também de traduzir.
lizar a própria pesquisa. Que ponto em comum: são nacio- Mas o que mais importa em Luís Jardim
na entrevista aprenda, de nais e internacionais, a par- é a qualidade das histórias, dos ar­tigos, dos Hexágono, revista literária em seis volumes, agradece, nesta edição, aos colaboradores Mário Hélio, pelo ensaio
modo mais coloquial e infor- tir de Pernambuco. Não há desenhos, das pinturas. Aqui abordamos crítico; Nivaldo Tenório, pela entrevista e a Julierme Galindo, pela entrevista e fotos; à Patrícia Cruz Lima, pela
mal, aspectos os mais varia- nisto nem o complexo de can- apenas o escritor. O “pai” de Maria Perigosa, direção de arte, Halina Beltrão pela ilustração da capa, Miguel Falcão pela caricatura de Luís Jardim e Norma
dos em torno desses escrito- tar ou contar a aldeia para o “sobrinho” de Gonzaga, o “irmão” de Pé- Baracho pela revisão. Hexágono é uma publicação da Somnium Editora, e tem incentivo do Funcultura, Fundarpe,
res que elegemos. cantar ou contar o mundo, gaso, o cavalo voador. E tantos outros pa- Secretaria de Cultura e Governo do Estado, com produção-executiva da Nós Pós, de Alexandre Melo. A edição-
Conquanto modesta em mas a natural ressonância rentescos que seria um não acabar. Que as geral, pesquisa e projeto gráfico são de Sidney Rocha, que assina o ensaio crítico nesta edição.. Esta publicação
sua proposição, Héxagono da estética. novas gerações admirem e se encantem não tem ânimo financeiro de nenhuma espécie e é distribuída gratuitamente para estudantes e professores de
não se limita a listar o mais Os críticos convidados a com o seu pequeno-grande mundo, como escolas públicas, além de bibliotecas das redes estadual e municipal. Buscou-se ao máximo se encontrar a autoria de
evidente e reconhecido so- escrever ou conceder depoi- reproduções de fotografias, fotomontagens ou obras de arte, e fazemos chegar nossos agradecimentos aos seus autores
fascinou à de Gilberto Freyre e de Gra-
ou autoras. Se você encontrar este exemplar em lugar impróprio à leitura, ou se é seu e terminou de lê-lo,
bre esses poetas, romancis- mentos à revista são, confor- ciliano Ramos. A prosa limpa e sedutora favor repassá-lo a outro leitor. Impresso pela Cepe Editora, no Recife, no bicentenário da Revolução Pernambucana.
tas, contistas, dramaturgos, me o projeto original, de pelo para os meninos de hoje sempre.
4 O TRAÇO TODO DA VIDA: 5

POR UMA RELEITURA DE


LUÍS JARDIM
Ele concluiu apenas Garanhuns, tal a bruta-
o primeiro grau, e tor- lidade. O estopim foi o
nou-se um dos escrito- assassinato do deputado
res mais premiados do Júlio Brasileiro, no Café
Brasil. Escreveu contos, Chile, praça da Indepen-
peças de teatro, roman- dência, no Recife. O que
ces, para adultos mas aconteceu depois foi que
também para o público a família atingida não se
infantojuvenil. Realizou contentou com a punição
traduções e foi um dos de simples prisão, inva-
mais importantes ilus- diu a cadeia onde esta-
GARANHUNS
tradores da sua época, vam presos os acusados
ilustrando obras suas e
de outros autores.
Mas esses fatos não
1901/ do crime e promoveu
uma chacina por vin-
gança. Toda essa história
carregam nem de lon- está bem contada por
RIO DE JANEIRO
ge os tons comiserati- José Cláudio Gonçalves
vos próprios ao “reino
das superações”, e tão
comuns hoje. Ao contrá-
1987 de Lima, em Os sitiados: a
hecatombe de Garanhuns,
e por Mário Márcio de
rio: Luís Jardim enten- Almeida Santos, em Ana-
deu logo cedo o quanto finidas. Até a adolescên- grandes negócios que tomia de uma tragédia: a
a autocomiseração, o cia viveu na sua cidade não dão certo a modesto hecatombe de Garanhuns.
papel de coitadinho ou natal, Garanhuns, no pintor e desenhista da Na época da hecatom-
apenado por um destino agreste de Pernambuco. formação quase comple- be, Luís Jardim contava
terrível e inescapável Mas, em 1917, viu a tra- tamente de autodidata, 17 anos incompletos (em-
não lhe vestiam bem. gédia abater-se sobre e crítico de arte: isso re- bora em mais de um
“Deus me livre “Espírito-livre”, “homem sua família por ques- presenta uma síntese do registro biográfico e
de deixar minha do seu tempo”, “self-ma- tões políticas. Depois do principal da sua vivên- cronológico seus mencio-
criancice interior.” de man” – não se pode assassinato de diversos cia no Recife (1918-1936). na-se que tinha 14 anos).
encontrar um conceito dos seus parentes, mu- Na longa etapa de 1936 Sem muitos estudos –
“Primeiro: os para ele senão de for- dou-se com a mãe para até 1987, viverá no Rio por causa de doenças, na
criadores terão sido ma arremedada e in- o Recife e, a partir de de Janeiro, funcionário infância – terminou por
fatalmente grandes completa. Luís Jardim foi 1918, passou a trabalhar do Instituto do Açúcar e começar a vida profis-
observadores; e é um dos casos mais como caixeiro no comér- do Álcool, ilustrador na sional como um modesto
quem não conviver impressionantes da lite- cio. Conviveu no meio in- Livraria José Olympio
intimamente, ratura brasileira no sé- telectual do Recife e ca- Editora, e escritor. POR SIDNEY ROCHA.
apaixonadamente Editor. Romancista: Sofia
culo 20. Ponto. Isso deve sou-se com a filha de um O evento em que (2014) e Fernanflor (2015);
com o meio onde viveu servir como definição, comerciante português. morreram vários pa-
a sua infância, contista: Matriuska (2009), O
para início de conversa. Do emprego modes- rentes do futuro escritor destino das metáforas (2011) e
paraíso ou inferno, Sua vida é marcada to da juventude a ‘alto e desenhista ficou famo- Guerra de ninguém (2016), to-
jamais fará por três etapas bem de- funcionário do Loyd’, dos so como a Hecatombe de dos da Editora Iluminuras.
alguma coisa.”
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O poeta Manuel Bandeira, Também não são muitos os Ilustração de Luís


em bico de pena Jardim para seu
desenhos dele publicados em A
de Luís Jardim (Rio, 1936). próprio conto
Província, mas igualmente mar-
“Os cegos” do livro
cantes. Tanto que um desses tra- Maria Perigosa.
balhos de Luís Jardim – o que saiu
na edição de 19 de agosto de 1928
– motivou José Lins do Rego a es-
crever todo um artigo a respeito.
Não foi ele o primeiro a pôr em
evidência a qualidade de Luís Jar-
do instrumento: “É como se
dim como artista – elogiado por
aquilo tudo fosse um cavalo-
Manoel Lubambo, no artigo “Luís,
-marinho enorme. O mesmo
Joaquim, Manuel”, divulgado em 8
misticismo do metade-gente,
caixeiro no comércio. A despeito tas vezes a Luís Jardim nas suas de outubro de 1927, no jornal Frei
metade cousa – as duas me-
disso, decidiu aprender inglês, e crônicas e também em mais de Caneca. Mas certamente fez JLR
tades unificadas pela músi-
numa das aulas particulares que uma anotação no seu livro Tempo uma das mais agudas análises
ca, pelo ritmo, pela cor”.
teve com um negro das Antilhas, morto e outros tempos. das características do trabalho
Duas “profecias” do
conheceu a moça Alice, com quem As primeiras críticas de arte artístico de Luís Jardim.
artigo, no entanto, não
se casou, em 26 de julho de 1930, e cultura de Luís Jardim foram O futuro autor de Menino de
se cumpriram da forma
conforme noticiou A Província (o divulgadas por Gilberto Freyre. engenho destacou sua originali-
como foram postas: não
jornal onde colaborava a convite A colaboração em A Província dade marcada pelo colorido e a
se tornou Luís Jardim um
de Gilberto Freyre, desde 1928): da fase dirigida por Freyre (1928- vibração, e acentuou também o
pintor famoso por fixar
“Realiza-se hoje, nesta capi- 1930) se dá em poucos textos, mas seu poder de observação e regis-
o mais profundo e místi-
tal, o casamento do nosso distinto marcantes. Dois exemplos: No ar- tro dinâmico: “Dos novos pintores
co da vida cotidiana dos
colaborador sr. Luís Jardim, alto tigo “O que é o artista no Brasil” pernambucanos é dos que podem
brasileiros. Notabilizou-
funcionário do ‘Lloyd Brasileiro’ (6-9-29), apresenta uma opinião apresentar uma série de dese-
se mais como ilustrador
no Recife, com a gentil senhorita sincera e bastante crítica, ar- nhos, onde a volúpia do flagrante,
de livros. Mas tanto na-
Alice Ferreira Alves, filha do fale- riscando-se a dizer que “nunca da cena de rua, em movimento,
quele desenho de 1928
cido sr. José de Paiva Ferreira, que houve nem tão cedo haverá um da vida vibrante em horas de
quanto nos que fez ao
foi comerciante nesta capital e de pintor verdadeiramente brasilei- trabalho ou em ritmos de festa
longo da vida, a maior
sua esposa, senhora Josephina Al- ro”. Na mesma linha de crítica ne- alcança vitórias impressionantes”.
qualidade notada por
ves de Paiva Ferreira. Os atos civil gativa é a sua abordagem sobre Depois das considerações ge-
gadores e piano, gente e marfim e madeira para José Lins do Rego em Luís
e religioso terão lugar às 17 1/2 e os costumes, em “Um caso raro de rais sobre as suas qualidades esti-
cousa, numa só vibração”. começar a se confundir Jardim se manteve sem-
18 1/2 horas, na maior intimidade, bondade” (13-6-29): “A bondade dos lísticas, José Lins do Rego se detém
Para deixar ainda estranha e misticamente pre evidente: a capacida-
por motivo de luto recente”. homens é coisa tão desinteressan- em destacar as virtudes da ilus-
mais claro o seu ponto com a própria carne dos de para a intepretação.
Pode-se dizer que Luís Jardim te para o brasileiro como a ami- tração de um artigo do poeta Jor-
de vista, o artigo comen- homens pretos que o carre- A segunda “profecia”
é um dos melhores representan- zade: não há admiração por uma ge de Lima sobre carregadores
ta a simbiose entre o si- gam cantando”. dizia respeito ao dese-
tes do Regionalismo como propos- nem preocupação pela outra”. de piano: “Esse desenho é simples-
lêncio do piano e o canto O hibridismo da com- nho de cenários de balé:
to por Gilberto Freyre. Mesmo Foi também Luís Jardim o crí- mente uma delícia. [...] É uma vitória
dos que o transportam: posição exerceu tal fas- “Quando aparecer alguém
antes da Semana Regionalista tico severo dos artistas pernam- de expressão como raramente terá
“Os nervos dos homens e os cínio sobre José Lins do entre nós capaz de triar
e do Manifesto Regionalista de bucanos, algo que se comprova alcançado no Brasil qualquer pintor,
do piano formam um só sis- Rego que ele vê os carre- certos aspectos da nossa
1926, as “afinidades eletivas” en- no artigo “O que se vê no primei- velho ou moço. É um quase milagre
tema vibrátil. Não se sabe gadores como o prolon- vida, cheios de sugestões
tre ambos já estavam evidentes. ro Salão de Belas Artes de Per- de unidade de propósito ou de moti-
onde o piano deixa de ser gamento inclusive físico de beleza viva e movimen-
Gilberto Freyre se refere mui- nambuco” (24-5-29). vo: o artista conseguiu unir carre-
tada, o grande ‘ballet’ bra-
sileiro que há de vir – esse alguém encontrará em Luís tada de 8 de dezembro po depois ficou bem co- “De mulher, das que
8 Jardim um colaborador valioso”. de 1936 (por coincidência, nhecido como João Gui- não eram lá de casa ou não eram 9
Ainda está por ser cuidadosamente levantada a do aniversário de Luís marães Rosa. íntimas, só me importava
a história dos cenários realizados ou apenas esbo­ Jardim), pede ao amigo A história desse prê- com Maria Perigosa.”
çados para balés no Brasil, mas o pintor que esteve ajuda na divulgação: “O mio é uma das mais
mais perto de atender aos requisitos sugeridos por Luís Jardim, pernambucano saborosas da crônica li-
José Lins do Rego foi Cícero Dias. Com nomes assim, dos bons, vai fazer uma ex- terária do país porque
a que também podem ser somados os de Vicente posição aí. Venho, pois, apre- envolve os pesos-pesa-
do Rego Monteiro, Manoel Bandeira e Lula Cardoso sentá-lo a você para que o dos da época, e o voto de
Ayres, tem-se uma rica geração da melhor expres- ajude nesse meio de jornalis- desempate coube a nin-
são plástica em Pernambuco. Regionalistas, univer- tas”. A carta está publicada guém menos que Graci- Deve ter sido a simplicidade e a clareza da
salistas... o rótulo importa menos do que o talento. na p. 1410, do vol. 2, da Poe- liano Ramos. Tinha dian- narrativa e do estilo desses contos que agrada-
E esses talentosos artistas estiveram sempre muito sia e Prosa (1958). te de si os sete contos de ram a um autor como Graciliano Ramos. Além do
próximos de Gilberto Freyre, que foi ao longo das Com o sucesso da ex- Luís Jardim e um livro equilíbrio e a regularidade de todo o conjunto do
décadas de 1920 e 1930 uma espécie de ‘guru’ da posição, e por sua mu- de quase quinhentas pá- livro. Não há rebuscamento na linguagem de Luís
vida cultural na província. lher, Alice, ter parentes ginas de Viator (o futuro Jardim. Nem exageros de coloquialismos. O que
Um fato pitoresco nem sempre lembrado: Luís na cidade, o pintor e de- livro Sagarana, de João ele conta é verossímil e próximo, provoca certos
Jardim datilografou os originais de Casa-grande & senhista decidiu morar Guimarães Rosa). O au- efeitos de atavismo e até de dejá vù. No conto “Os
senzala, porque o autor queria alguém de confiança no Rio de Janeiro. Por tor de Vidas Secas conta cegos”, com evidente jogo com o título, constrói
Olympio, foram por ele mesmo ilustrados. São his- uma história cheia de boas referências visuais –
para a tarefa, que guardasse segredo sobre o con- esse tempo, também os detalhes disso na crô-
tórias cheias de empatia do narrador com os per- facilitadas por sua habilidade de desenhista e pin-
teúdo do livro. A colaboração prosseguiu nas ilus- chegou a haver um con- nica “Um Livro Inédito”,
sonagens, e isto se reflete na emoção que projeta no tor. Um exemplo disto:
trações que ele fez para o guia turístico que Freyre vite de Monteiro Lobato publicada na sua obra
leitor. A começar do conto que dá título ao volume: “O velho afastou-se da janela e reapareceu ao
lançou pioneiramente em 1934 e, em seguida, no para que ele se radicas- Linhas tortas:
“De mulher, das que não eram lá de casa ou cabo de um instante com uma cuia na mão. Lavou
prefácio do livro Artigos de jornal. Consciente des- se em São Paulo. “Votei contra esse li-
não eram íntimas, só me importava com Maria o rosto, bochechou água, tirando o mingau das al-
sa proximidade entre os dois, Freyre sempre fez No Rio será funcioná- vro de Viator. Votei por-
Perigosa. Não sei ao certo porque tinha tanta sim- mas. Apanhou detrás da porta um molambo, es-
questão de enfatizar sua influência sobre o pintor rio do Instituto do Açú- que dois dos seus contos
patia por ela. Talvez porque diziam que ela era fregou-o na cara e o sangue veio forte à superfí-
e escritor de Garanhuns. Mas na resposta a uma car e do Álcool, mas seu me pareceram bastan-
‘bestalhona’, amalucada”. cie da pele avermelhada”.
pergunta da historiadora Joselice Jucá sobre a “im- trabalho mais notável e te ordinários: a história
Há um tocante humanismo na história, que O termo verossímil aqui utilizado – e na narra-
portância” de Freyre para a sua obra, Luís Jardim notado, antes da estreia dum médico morto na tiva de Luís Jardim – reflete aquela definição bem
é direto: “Gilberto animava, só”. Freyre tratou de como escritor, foi o que roça, reduzido a condi- mantém o interesse e a ternura do começo ao fim,
seja nas situações que o narrador descreve e situa posta por Tzvetan Todorov, na Poética da Prosa (p. 97):
contrariar essa simplificação, no artigo publicado realizou como ilustra- ção de trabalhador de “O termo ‘verossímil’ é utilizado aqui no sentido
no mesmo opúsculo onde se lê essa entrevista do dor da Livraria José eito, e o namoro mais ou a personagem, seja nos diálogos:
“– Quem já viu um homem correr de mulher! mais ingênuo de ‘conforme a realidade’. Conside-
autor de Maria Perigosa (Imagem e texto: homena- Olympio Editora. menos idiota dum enge- ram-se inverossímeis certas ações ou atitudes que
gem ao pintor e escritor Luís Jardim, org. Edson Nery Parece que ao che- nheiro com uma profes- Homem não corre de nada, seu Lula! Um homem é
um homem e um gato é um bicho! Mas que have- parecem não poder produzir-se na realidade”.
da Fonseca): “Não posso ser juiz no assunto, pois sou evi- gar ao Rio de Janeiro, sora de grupo escolar.” Luís Jardim trabalha conforme essa ‘lei’, sem
dentemente, parte: suspeito, portanto. Mas suponho que o escritor que vinha Maria Perigosa não ria eu de responder? Nada. Eu era assim. Eu nasci
cair na armadilha do realismo. Certas atmosferas
sim: que influí, junto com outras sugestões do Recife, sobre o se moldando desde a teve ao longo desses qua- assim. Eu acreditava em fadas, boas e más.”
noturnas e alguma propensão ao onírico pode-
pernambucano de Garanhuns”. colaboração em jor- se oitenta anos muitas Com habilidade ele acentua ainda mais certo
riam levar um leitor menos atento a aproximá-lo
A recusa da influência ou a reação a ela é um nais recifenses já está edições: 1938, 1959, 1971. pacto de proximidade, quando ao colocar o nome
do gênero fantástico. Entretanto, apoiando-se em
tema muito bem estudado por Harold Bloom no livro o bastante sólido para Bem diferente a sorte de “Lula” – apelido carinhoso para Luís, o seu nome –
Todorov (As estruturas narrativas), Maria da Paz
Anatomia da Influência. Quando uma obra equiva­ ganhar concursos com um outro livro do mes- deixa que o leitor especule ou deduza que se trata
Ribeiro Dantas descarta com razão esse tipo de in-
lente a essa for feita no âmbito mais ibero-americano, sua prosa adulta e a mo autor, destinado às de algo autobiográfico.
serção, ao menos no que diz respeito ao relato “O
tanto a influência de Gilberto Freyre sobre diversos destinada ao público crianças, e que Montei- Uma boa interpretação desse conto “Maria Pe-
ladrão de cavalo”.
autores como a de diversos autores sobre ele será um infantojuvenil. De suas ro Lobato considerava “o rigosa” é oferecida pela ensaísta Maria da Paz Ri-
Há uma qualidade no autor que está presente
dos tópicos dos mais interessantes. premiações, a que cha- mais belo livro no gêne- beiro Dantas, no livro Luís Jardim – ficção e vida. Em
em todas as histórias do livro: a capacidade de ur-
A influência de Gilberto Freyre a favor de Luís mou mais a atenção foi a ro escrito no Brasil”. O Boi especial quando esmiúça os diversos sentidos do dir a psicologia, e de construir personagens que
Jardim não foi somente a que ele aponta no seu arti- de 1938. Tanto pelo qua- Aruá, em 1991, estava já nome e do fetiche do dente de ouro: parecem de carne e osso. Um exemplo feliz disso
go, ocupado das questões culturais. Por seus contatos se impasse da comissão na 19ª. edição. “Mas quem é mesmo Maria Perigosa? É um produ- é o conto “Conceição”, onde o jogo do desejo e da
com amigos no Rio de Janeiro, Freyre conseguiu que julgadora, quanto por Os contos de Maria to da imaginação? Dela própria, de Lula, dos homens fantasia tem o seu desenlace no desencanto, algo
ele realizasse uma exposição de pintura e desenho ter triunfado, no voto de Perigosa, como os outros que a possuem, das mães de família, de todos, enfim? aliás tão frequente em alguns mestres desse gê-
na então capital da República. Uma carta do poeta minerva, sobre um tal livros que Luís Jardim Quem sabe Maria Perigosa é a própria ficção do seu nero narrativo, como Guy de Maupassant. Ainda
Manuel Bandeira a Paulo Ribeiro de Magalhães, da- Viator, que algum tem- publicou, todos pela José dente de ouro? Ficção? Para nós sim, para ela não”. que Jardim alcance isso com inegável suavidade:
“A pureza e mesmo o egoísmo do meu amor a Conceição não artigo “O contista do regionalismo
10 tinham o menor contacto com a realidade. Tocados brutalmente
lugares em que a religiosa pon-
tualidade do nascer do sol ou as nordestino” (p. 117 do seu Novos es- 11
por eles, ruíram os meus grandes sonhos, desfez-se o meu ideal, e luzes e trevas da noite estimulam tudos da literatura brasileira) aponta:
eu fiquei na terra fora das suas próprias leis naturais; nem louco a imaginação, e também atiçam os “Se existe escritor que está
nem consciente; fiquei parado em mim mesmo esperando com- mais secretos receios. sendo de certo modo relegado, é
preender aquele fato: as compras de Conceição eram para um tal Como tão fortemente ocorre na ele Luís Jardim. E, no entanto, num
Simplício, o homem com quem ela vivia na meiágua”. música, e de outra maneira, tam- Estado como Pernambuco, onde
Os elementos regionalistas e a data com que estreou como bém na pintura, há certos autores o aparecimento de um romance
contista poderiam fazer com que facilmente seja situado entre os que realizaram obras cheias de realmente criador e universal é
regionalistas. Mas não é necessário refletir muito para se chegar virtuosismo, foram reconhecidas e recente [...] se afigura das mais im-
à conclusão de que a imprecisão de uma classificação assim deixa louvadas no seu tempo, e gerações portantes, iniciada em 1938 com o
explícito que a cronologia e a paisagem não bastam para colocá-lo depois esquecidos. Luís Jardim não livro de contos Maria Perigosa.”
junto de autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos ou Raquel é, nem de longe, o único exemplo, Ainda que Maria Perigosa não
de Queiroz. Regionalista o é, inegavelmente, mas meio deslocado. no Brasil, mas pode ser considera- conste na atualidade no catálogo
Em diversos aspectos ele estaria mais próximo de autores do um dos mais expressivos. de nenhuma editora, basta uma
mais antigos, e uma classificação deste tipo agradaria em cheio Não parece difícil a um soció- leitura atenta aos seus contos para
ao menino de Garanhuns. Mas há muitos regionalismos, e, não logo da literatura explicar as ra- constatar-se a riqueza estética e
apenas pela rima, que não exclui o universalismo, tanto porque Maria Perigosa não teve zões daquilo bem apontado por ética dos seus relatos. Ao exami-
o homem humano o é em toda parte, quanto porque as influên- ao longo desses quase Sônia Maria van Dijck Lima: o de nar a escolha e o tratamento dos
cias assimiladas pela leitura valem muito. Formam um outro país, oitenta anos muitas um livro consagrado como Maria seus temas um leitor sensível se
com muitas línguas, culturas, e raramente uniformes. edições: 1938, 1959, 1971. Perigosa ter saído do cânone. Ela reportará aos melhores recursos
Há toda uma tradição não estudada com a atenção e a minúcia Bem diferente a sorte dos mitos, das lendas. E também
explica, passo a passo, como isso
devidas de autores brasileiros para quem a experiência pessoal de um outro livro do ao calculado trabalho de construir
aconteceu, num artigo publicado
é destilada em boa literatura. Memórias, biografias, autobiogra- mesmo autor, destinado às sentidos e suspenses, de elaborar
crianças, e que Monteiro na Revista da ANPOLL (São Paulo,
fias. O Joaquim Nabuco de Minha Formação tem uma frase famosa Humanitas, FFLCH – Universidade efeitos verbais, dos recursos de
Lobato considerava
que pode resumir quase todo o Luís Jardim de Maria Perigosa e de São Paulo, Associação Nacional artifícios que são típicos de uma
“o mais belo livro no
de outros textos: “O traço todo da vida é para muitos um desenho gênero escrito no Brasil”. de Pós-Graduação e Pesquisa em cultura letrada.
da criança esquecida pelo homem e ao qual este terá sempre de O Boi Aruá, em 1991, estava Letras e Linguística, n. 13, jul.-dez. É interessante observar a
se cingir sem o saber”. já na 19ª. edição. 2002, p. 195-216): há também uma escolha da primeira ou da terceira
A frase se aplica ao pintor-desenhista e escritor de Garanhuns, Na foto de Gabriel Oliveira, versão adaptada desse texto na pessoa para “condução” do leitor
mas é necessário fazer-se uma correção, suprimindo-se ou subs- o ator e diretorJulierme página da autora na Internet. para o efeito desejado pela
tituindo-se a frase “sem o saber”, pois o tempo todo soube e esteve Galindo. no espetáculo O texto não se limita a Jardim, história. “O ladrão de cavalo”, por
consciente o escritor e desenhista Luís do seu Jardim da infância. De “Aruá, o Boi Encantado”, exemplo, é visto a partir de uma
ocupa-se também de enfocar al-
que embora sofrida a infância e brutalmente afetada a juventude, Troupe Azimute, III autoglorificação do personagem
gumas questões mais recorren-
no mais remoto tempo é que ele foi buscar o sumo do que mais e me- Festival de Teatro Na Lona, central, o Três Braças, mas do seu
Hortelândia, SP. tes da vida literária e suas refre-
lhor o nutriu e fez possível escrever uma história como “Coragem”. gas, e, claro, o contraste do destino antagonista, que já na primeira
Se Maria Perigosa podia ser sintetizada no dente de ouro, João Leite de Sagarana, que tendo perdido o frase proclama:
não era o mesmo sem o chapelão do chile. prêmio Humberto de Campos de “Eu era delegado em Buíque.
Uma pequena lição de psicologia numa história singela. Da fá- 1938, ganhou, no entanto, os louros Servi em muitos municípios, sem-
cil e universal confusão do real com o imaginado. Da superstição da glória literária, pois o seu autor, pre adulado pelos chefes políticos,
que pode tão facilmente conduzir ao delírio ou ao engano. Que faz João Guimarães Rosa, converteu-se porque criei fama como prende-
os homens mais corajosos e de aparência inabalável retornarem num dos máximos autores do país. dor de ladrão de cavalo. Conhecia
ao território mais primitivo e frágil da infância, quando domina- Enquanto Luís Jardim, tão galar- as manhas, os truques, a lingua-
dos pelo medo. doado no seu tempo, não é, na atua- gem, toda a maçonaria dessa cas-
O modo como o narrador conduz a história consegue envolver lidade, sequer muito lembrado nos ta de gente. Prendi mais de cem.”
o leitor. O jogo que estabelece dos claros e escuros sob a perspec- meios acadêmicos que terminam Seria fácil traçar um paralelis-
tiva dos personagens é bastante convincente. A leveza e a empa- por ser o último reduto dos interes- mo desse relato com outro já citado:
tia – já antes referida – não se quebram, antes se acentuam na ses de leitura de um autor. “Coragem”. Como em todas as nar-
conclusão, que provoca um sorriso de complacência mais do que O “limbo” literário em que ter- rativas que tratam de destemor, é
de ironia em cada um que foi acompanhando a “Coragem”, meto- minou ficando o autor foi notado a partir da irrupção do medo e de
nímia do personagem, que é, por sua vez, metonímia de seu cha- já no fim da década de 1980 pelo suas motivações que ganham mais
péu. É a força ou a energia do mítico que não se desfez de todo nos crítico Haroldo Bruno, quando no interesse ou sabor. A ensaísta Ma-
ria da Paz Ribeiro Dantas, no seu livro Luís Jardim - própria palavra apelido tem algo a dizer, pois é o ter- nesses, são elementos tão recorrentes que não se- Tais “sobressalto” e “apaixonada escuta” não de-
12 ficção e vida (p. 66) traça uma boa comparação entre mo em Portugal (e na Espanha) equivalente ao que no ria exagerado dizer que uma certa visão do mun- vem ter faltado a Luís Jardim ao escrever o seu 13
“O ladrão de cavalo” e “O homem que galopava”. En- Brasil se designa como sobrenome. Em Portugal se diz do em que “o menino é pai do homem” está mais do Maria Perigosa. Perpassa nas suas páginas como
quanto este se nutre do mistério, o outro da exibição alcunha o que no Brasil é apelido. Já no título do livro – que visível nesse livro de contos de Luís Jardim. uma busca da poesia ou ao menos de uma de suas
da fama, mas para realizar também um trabalho Maria Perigosa – se vê o gosto do autor pelos apelidos. Extrapolaria os limites deste ensaio uma abor- características mais populares: o lirismo. Ou tal-
de ocultação: Mas isso está presença em diversos outros contos. dagem mais sistemática da questão da infância e a vez de um modo algo mais apropriado: de encanto,
“Manuel Três Braças ‘esconde’ os roubos que faz, Um dos mais curiosos a esse respeito é “João modernidade. No entanto, deve-se deixar claro que frescor ou inocência que vibra intensamente em “A
mediante atos cuja finalidade é confundir a lógica Piolho”. O nome um tanto quanto prosaico oculta o há uma quantidade bastante expressiva de autores moça do trapézio”.
do rastejador, levando-o a tirar conclusões diversas talento musical e poético que motiva todo um en- modernos e regionalistas de Pernambuco e da Pa- O narrador faz um inventário das principais
das que lhe sugere a pista deixada rastos dos ani- cantamento num adolescente de quinze anos. O per- raíba – para citar apenas dois estados do Nordeste – atrações do circo, para dizer ao leitor qual a que
mais roubados”. sonagem tem um quê de Orfeu, na sua inspiração que foram buscar na infância ou na evocação os mo- ele considera a mais importante. Tem só um nome
Ela também chama a atenção para as artima- musical e na sua melancolia. Por sinal, juntamente tivos principais de sua obra. Luís Jardim é um deles. indígena – Jupira – e a função de atuar no trapézio.
nhas de que faz uso Três Braças, como calçar botas com o bom humor, que não é senão a outra face do Sem muito esforço, o leitor rapidamente perce- Se há um tipo de espetáculo inventado pelos
nas patas do boi roubado e baralhar os rastos. Cabe que há de mais trágico no gênero humano, um quê berá que diversas das histórias reunidas em Maria humanos um que seja ao mesmo tempo uma mes-
acrescentar que esses ardis aproximam esse rela- de gravidade percorre quase todos os textos desse Perigosa têm crianças como personagens centrais, cla de todas as suas máscaras trágicas e cômicas
to de uma das mais conhecidas histórias da mitolo- livro de contos premiado de Luís Jardim. e que predomina nelas o uso da primeira pessoa. esse é o circo. Sua razão de ser em sobressaltos e
gia grega: a de Hermes. Tanto em Homero quanto Oscar Mendes considera que “João Piolho” é um Isso não é gratuito, tampouco surpreendente, tendo- desconcertos. Se há um número dentro dos espetá-
em Hesíodo uma das representações do deus é a de dos melhores contos de Maria Perigosa: “O autor dese- se em conta que antes de estrear como contista o culos circenses que por si só anuncie algum frisson
ladrão. Não de cavalo, mas de gado. Sua qualidade nha com muita veracidade e compreensão o tipo dum canta- autor já enveredara na literatura infantil. De que mortal de atração pelo abismo esse é o trapézio.
associada a esses atos está bem caracterizada no dor de modinhas tristes, o oficial de alfaiate João Piolho, alma o seu Pequeno mundo, que é a cidade onde nasceu, Entre os textos brasileiros que poderiam inte-
epíteto de O Enganador. de poeta rústico e de criatura extremamente sensível”. ou mais do que a cidade, o universo de sua infân- grar uma antologia sobre o circo um deles seria o
Note-se que a palavra grega usada para quali- Um dos mais extensos e mais melancólicos é “Pai- cia e começo de juventude, são a fonte principal de conto “João Urso”, de Brenno Accioly, e o poema “O
ficá-lo é ‘kléptein’, a cujo sentido está ligada, obvia- sagem perdida”. Há paisagens cuja beleza esconde praticamente tudo o que escreveu. Universo rural, Circo”, de João Cabral de Melo Neto. O primeiro é
mente, a origem de cleptomania e cleptomaníaco. alguma tristeza ou sonho desgarrado e esquecido, mas refinado, e com toques de magia. Como certas uma das mais comovedoras e terríveis interpreta-
Mas, no primordial, e de jeito mais neutro, a pala- fatalidades sem nome. Do começo ao fim da história pinturas de Cícero Dias ou alguns poemas de Ma- ções da loucura humana, o segundo um dos mais
vra remete tanto a enganar quanto ao segredo de de Vicência. Não falta sequer a névoa, dentro e fora nuel Bandeira. Mas as motivações e os sentidos das bem-acabados retratos antilíricos da sociedade
uma ação, e em especial o remover em segredo. dos seus olhos. infâncias não são, obviamente, da mesma
Parece mais um elogio da sutileza e da engenhosi- Afirma o crítico Oscar Mendes (p. 66 de Tempo de natureza. Bandeira consegue com agude-
dade do que da desonestidade. Pernambuco): za explicar algo dessa gênese, nas primei-
Hermes é um deus cheio de ambiguidades. Tem “’Paisagem Perdida’, principalmente, é um conto que ras páginas do seu Itinerário de Pasárgada
muitos atributos. Embora seja muito mais linear a pode ser posto na lista dos que melhor descreveram a vida (p. 11 do II volume de Poesia e prosa, 1958):
personagem de Luís Jardim, não se deve descartar roceira e os caracteres frustros de sua gente. [...] Parece que “Verifiquei ainda que o conteúdo emocional
a hipótese de que a leitura dos mitos antigos, além o autor pôs neste conto o melhor de seu talento narrativo”. daquelas reminiscências da primeira menini-
da influência da cultura popular oral e rural onde Há em diversas das narrativas desse livro uma ce era o mesmo de certos raros momentos em
viveu o autor, tenha contribuído para a elaboração presença recorrente de certos temores que ora minha vida de adulto: num e noutro caso algu-
de Três Braças. Basta que alguém atente para al- têm por motivação o mundo da superstição pura e ma coisa que resiste à análise da inteligência
guns dos primeiros livros infantis de Jardim para simples, ora de alguma religiosidade entranhada. e da memória consciente, e que me enche de
que essa hipótese se reforce ainda mais. Um exemplo dos mais relevantes é “Castigo”. Ain- sobressalto ou me força a uma atitude de apai-
Há um tópico que é recorrente em muitas das da que não seja dos melhores contos de Maria Pe- xonada escuta”.
histórias do seu livro de contos: a importância das al- rigosa, mantém o interesse do leitor pela simpatia
cunhas. Que desde há muito é um costume estendido emanada do personagem central. Tanto mais fácil
em todo o Brasil, a tal ponto de quase todas as pessoas de encantar o leitor, por ser uma criança e ter o
terem além do nome um apelido ou uma alcunha, nas mesmo nome do autor. A real ou encenada origem
zonas rurais isso se mostra ainda mais relevante. autobiográfica do relato é um recurso válido e que
Como afirma Francisco Martins em O nome pró- acentua a “humanidade” e a verossimilhança.
prio (p. 153): Não há em Maria Perigosa uma grande varie- Os escritores
“Nos grupos humanos onde o cogito cartesiano dade de temas. Ainda que a comparação seja meio Luís Jardim,
não se implantou, o nome próprio é um elemento gasta e de precisão precária, algumas “fugas” e Gilberto Freyre
e o crítico
essencial ligado ao corpo do indivíduo: mais do que variações são observáveis. O delírio, por exemplo,
literário Olívio
representar o sujeito, ele é o próprio sujeito”. em variadas formas e níveis está em “Maria Peri-
Montenegro.
Os apelidos em Luís (Lula) Jardim têm ainda mais gosa”, mas também em “A Doideira”. O irracional, o
poder do que o nome próprio. Até por substituição. A misterioso, o espantoso, o lírico, que estão presentes Década de 1930.
Antiga estação de trem de Um outro aspecto a conside- as histórias de Maria Perigosa, um jovem que apenas vê, ou seja,
14 Garanhuns, por volta de 1940, rar é um grau inegável de feti- como se fosse um livro de me- aquele que é a consequência da 15
e à época de Luís Jardim. chismo e animismo que anima e mórias não do autor, mas de hipertrofia de um sentido – o da
Atualmente, o prédio é um associa homens, coisas, animais e toda uma região. Algo além da visão. Que a partir dela são todas
centro cultural, junto paisagens nas histórias que con- preservação de um tempo, uma as sinestesias e estesias:
à praça mestre
ta Luís Jardim. O pendor para o certa forma de ressurreição, que “Poderá alguém ser dominado
Dominguinhos, homenagem a
sublime. Como já se disse antes, suplanta aquela “raiva de não exclusivamente pelos olhos? Pode um
outro filho da cidade,
o músico José Domingos
o fascínio que há aí e que con- ter trazido o passado roubado na sentido só guiar, orientar os outros, ou
de Morais. (1941-2013). segue transmitir ao leitor vem algibeira”, a que se refere Fer- apenas todos se completam, ajudam-
de um mundo que para todos é nando Pessoa. Um tal pretérito se mutuamente? Luís Pinto não tinha
inevitavelmente perdido, o da in- mais que perfeito resultará mais sentido, tinha os olhos. Nunca disse:
fância. É o olhar do menino que do que somente nostálgico, pois é ouço uma música, vejo uma música.
comanda tudo, mais do que o superação, telurismo, atavismo. Ele afinal via os cheiros, via as músi-
olhar, todos os sentidos. Como se Há certo tipo de escritor cuja cas, via os gostos, via os contatos e via
fossem, e de um modo eloquente criação é de tal maneira ligada à sobretudo o que via”.
são de fato contos de formação, terra onde nasceu que se poderia Esse, como outros relatos do
de aprendizagem, de educação dizer que sofre de uma síntese de livro, apresentam o persona-
sentimental e sensorial. É um Anteu, o mítico personagem que gem menino no seu percurso,
menino que conta? O narrador, Hércules só conseguiu vencer peregrinação e, principalmente,
pernambucana. Mas a transcende, até filosofica- Outros afirmavam, negando os primeiros: “Não sim. Mas são reminiscências,
mente, com seu olhar sobre as vidas, e em especial morre, pois o amor não mata”. quando o ergueu, afastando-o da nos seus anos de aprendizagem.
memórias mais inventadas que terra. Luís Jardim, como outros “O poeta”, ainda que incluído no
de uma moça: Frases assim ditas pelo narrador de Luís Jardim projetadas. Trata-se de mais um
se somam a outras onde há ainda maior lirismo: autores pernambucanos (João Ca- volume de contos para adultos,
“A moça que esgotara todas caso, e dos mais evidentes, da- bral e Cícero Dias são exemplos pode, sem dúvida, ser entendi-
formas de fuga que tecia, “As perguntas visuais eram tão sôfregas e claras que as quele tipo de escritor projetado
bocas respondiam sem querer”; “Não houve propriamente sempre fáceis), deve tudo o que do e assimilado por aquele tipo
de viajar, de não ser a espera, na infância. “Deus me livre de
um silêncio, porque houve uma ausência”. A história de escreveu ao aprendizado de sua de leitor do gênero híbrido cada
nas sestas vãs da camarinha”. deixar minha criancice interior”,
Jupira e do circo é contada sem pressa e cheia de li- terra. Mas o que ele cria não se vez mais frequente na atualida-
disse Luís Jardim numa entre­
Em Luís Jardim é também uma figura feminina rismo, e a fusão destes e outros elementos ao invés limita à memória, está fecunda- de: o “jovem adulto”, jovem adulto
vista a Joselice Jucá, e disse mais:
a que domina toda a história, e que acena a todos de reduzir, aumenta a sofreguidão do leitor. O autor do pela imaginação. Exemplos como o poeta Luís Teixeira Pinto,
“Um detalhe curioso: como eu não
os olhos como a morte, enquanto pulsa de vida, des- consegue transformar o seu leitor em espectador de virtuosismo são os contos de e ‘homenzinhos’ como o narrador.
tinha irmãos, e só duas irmãs, meu
fiando e desafiando o tempo e o espaço com seus ativo do circo particular de sua história. Maria Perigosa. Um dos mais no- São de timbres distintos os
pai sempre me surpreendeu falando,
movimentos. O apetite humano pela tragédia do outro en- táveis, pelo menos no que diz res- dois últimos contos de Maria
ele até disse assim: ‘parece (um amigo
O narrador apresenta Jupira de modo proposi- contra uma leitura das mais simples e precisas no peito àquele tipo de texto com o Perigosa. Cheio de suspense e
dele tinha sido prefeito fulano de tal,
tadamente lento para acentuar como que um cará- desfecho desse conto (que foi originalmente publi- qual um escritor se identifica de mistério é “O homem que ga-
que fala à toa’.) Mas eu achava, por
ter abissal da poesia. Ao mesmo tempo, a habilidade cado em 1947, num jornal, ou seja, quase uma dé- imediato, é “O poeta”. lopava”. Como para represen-
exemplo, um pé de imbuzeiro e dava
para a vida e o flerte calculado com a morte. A me- Sem que pareça nem de lon- tar a desconfiança, a suspeita,
cada depois da edição original do livro): nome”. (p. 44 do opúsculo Imagem
lancolia, antes destacada como uma das principais ge uma paródia, a caracteriza- o preconceito que resultam em
“No décimo dia, o circo era um deserto. Menos de uma e texto: homenagem ao pintor e
características de Maria Perigosa, apresenta em “A ção do personagem Luís Teixeira violência, vão, metodicamente,
centena de pessoas, agora interessadas nas proezas da escritor Luís Jardim, organizado
moça do trapézio” uma face direta, está explicitada, Pinto lembra o Alberto Caeiro, prenunciando a morte. Quanto a
macaca, atentas à inteligência do cachorro. Jupira subiu por Edson Nery da Fonseca).
com todas as letras: de Fernando Pessoa, para quem “Coisas da noite”, apesar do título,
ao trapézio toda vestida de azul. Repetiu o que fazia sem- A uma pergunta da entrevis-
“Um dia, soube-se, Jupira caiu doente de melancolia. Di- “pensar é estar doente dos olhos”. é um dos mais bem-humorados
pre, perfeita e segura, mas quase se perturba com as tadora sobre o processo criativo
ziam que a melancolia nasceu lá nela no peito e transtor- Outra vez é o testemunho de e luminosos do livro. Muito di-
nou-lhe a alma. Por causa dessa paixão, proibida a moças graças impróprias do palhaço: de suas histórias, “recheadas de
– Cai, menina bonita, que é isso que o povo quer! substância poética nordestina”, uma criança que coloca o leitor ferente, portanto, de um famoso
de trapézio, Jupira definhava”. diante do inusitado, o excêntrico, conto de Guy Maupassant, todo
Não será fácil nos estados de maior morbidez E a risada coletiva estalou – gostosas, imensas gar- ele responde:
galhadas.” “Primeiro: os criadores terão sido o maravilhoso. Que o poeta se apoiado na capacidade do autor
saber quem detém o maior poder de corrosão: se o chame também Luís como o au- para criar atmosferas. Chama-
tempo ou se o amor. Em João Cabral e sua leitura im- Mistério, loucura, poesia. São os núcleos prin- fatalmente grandes observadores;
cipais de Maria Perigosa. Não raro aparecem en- quem não conviver intimamente, tor da história talvez tenha me- se simplesmente “Noite”. O de Luís
placável do mundo espiritual e físico dos engenhos,
trelaçados. Mas talvez o que defina o sentido mais apaixonadamente com o meio onde nos importância na percepção de Jardim é tão cheio de poesia que
a resposta pode ser dupla. No conto de Luís Jardim o
profundo do seu livro seja a inocência perdida, ou a viveu a sua infância, paraíso ou in­ significados mais recônditos do brinca com o monólogo do per-
amor ataca a artista do trapézio com aquela vora-
inocência em confronto com experiências de tran- ferno, jamais fará alguma coisa. É que o fato de que o menino tenha sonagem que é, como o perso-
cidade às avessas que poucas vezes é notada, ain-
sição, de choque, de busca. Como se certos aconteci- uma integração ao meio”. p. 46). 12 anos e o poeta 21, como palín- nagem de “O poeta”, um tipo de
da maior do que a que vai devorando o “artista da
mentos acendessem certos pavios, e tudo estivesse É justamente essa “integração dromo de números. Quase como poeta sem ter escrito um verso
fome”, do conhecido conto de Franz Kafka:
por um triz, ou em limiar. ao meio” o que se nota em todas mis en abyme: um menino que vê sequer. Poeta por espirituoso e
“Ela morre. E o mal é amor.”
cheio de expressões criativas ou inusitadas, como é mento por alguns dos Gonzaga – elogiado por Cena de
16 frequente em muitos dos mais “inspirados” homens mestres da literatura mestres como José Amé- O caixeiro viajante 17
do sertão. Um leitor cuidadoso não teria trabalho nacional. Entre eles es- rico de Almeida, Graci- (Death of a salesman).
de “desentranhar” poesia dessa prosa, empregando tava Mario de Andrade, liano Ramos e José Lins Peça de Arthur
um método que o poeta Manuel Bandeira inaugu- Miller traduzida
que publicou em O em- do Rego. Três dos maio-
por Luís Jardim
rou no Brasil, e a partir do qual compôs vários poe- palhador de passarinhos res regionalistas dos
em 1937 e montada
mas “desentranhados” da prosa dos seus amigos: uma das melhores in- anos 1930, como também no Brasil pela
“O fato é que a gente fala mais sozinho do que com os terpretações a respeito o foi, mas quase tardio, o Companhia
outros. E é até com mastigar palavra: tange azucrinação”. do trabalho de Luís Jar- autor de Maria Perigo- Jaime Costa.
“Tenho para mim que estrela só devia botar o focinho dim. Começa associando sa. Regionalista é tanto
de fora quando estivesse acesa. Se elas são de serventia, o desenhista e o escritor: pela temática quanto Na fotografia, de
sirvam. Morrinhentas, desabrasadas, então que fiquem lá “O desenho é na reali- pela linguagem. Ainda 1949, os atores
pelas furnas do céu”. dade mais uma caligrafia, que o seu único roman- Lee J. Cobb, Arthur
“Botei-te um nome bonito – Pirilampo – porque tu és mais um processo hieroglí- ce haja sido publicado já Kennedy e a atriz
mais certeiro no escuro do que morcego, e ao cabo tu me fico de expressar ideias e no fim dos anos 1940. A Mildred Dunnock.
desfeiteias: paras. Juntas entrevadas, ferrugem. Mas tudo A foto é de
imagens, se ligando por isso ensaísta Maria da Paz
para, Pirilampo, consola-te”. Eileen Darby, do
muito estreitamente as artes Ribeiro Dantas situa-o
Há momentos nessa história, na forma como ex- acervo da Shields
da palavra, poesia e prosa. com exatidão, quando Collection
prime sua observação sobre o mundo exterior e (...) Aliás é no branco e preto, explica que Confissões ex-Culver Service.
agreste, com um reflexo profundo, íntimo no inte- a meu ver, que Luís Jardim do meu tio Gonzaga (op.
rior do personagem central. O jogo dos sentidos: tem colhido os seus melho- cit.: p. 13):
“Mato também devia cantar, penso eu. De coisa viva da res louros de artista plásti- “É manifestação tardia
terra a única que não diz nada é mato. Também se mato co. Pois ao ler estes contos de um regionalismo basea-
falasse, aboio bonito danado deveria ser o do pau-ferro. E de Maria Perigosa, fui me do na análise psicológica de
a braúna? Canto forte, não há dúvida, o dela. Agora era de dando ao prazer de buscar conflitos de problemas inti-
entupir ouvido a gritaria toda da garrancheira, se mato se o pintor no literato novo, e mistas de personagens que tocadas por fantasias e situações fan- cente-se, no entanto, o elemento didá-
manifestasse por canto ou fala”.
posso lhes garantir que não não obstante vivendo esse tasmais, delírios, loucuras, e, como não tico. No O Boi Aruá, por exemplo:
Além da habilidade para a criação de “tipos psi-
encontrei. Julgo mesmo im- tipo de realidade existencial poderia deixar de faltar, o onírico. A “Juca perguntou logo:
cológicos”, conforme notou Mário de Andrade numa
possível, a quem ignore a não deixam de estar situados realidade de limiares e precarieda- – Que é boi aruá?
das primeiras resenhas sobre Maria Perigosa, Luís
carreira que vem realizan- em ambiente rústico, geo­ des conformam uma escrita, aquela Sá Dondom deu um muxoxo, como se a
Jardim consegue corporificar mais do que esse
do este artista, descobrir no gra­fi­ca­mente rural”. escrita que Freud considerou caracte- pergunta fosse tola. Mas ele insistiu e ela
mundo exterior dos personagens, o que está diante
contista de agora um antigo A ensaísta destaca es- rística do trabalho do sonho, mais do teve que explicar: no sertão se chamava
de si, e serve-se disso para refletir, e a reflexão é de
manejador de pincéis”. ses aspectos e outros do que o discurso. Escrita complexa como de boi aruá a um boi rajado, escuro.”
todo coerente com a “filosofia” de vida de suas figu-
O tópico ut pictura Regionalismo, para su- um ideograma ou hieróglifo, mais do A fabulação é dividida em três partes:
ras inventadas. Um exemplo é o mini-inventário dos
resíduos humanos, que surge espontâneo e autênti- poiesis é quase tão antigo blinhar que o autor con- que um alfabeto. “O Boi Aruá”, que dá título ao livro, “Histó-
co, no solilóquio que é, na verdade, um diálogo com quanto as primeiras re- segue transcendê-los. E Não surpreende que um autor ria das maracanãs” e “História do bacurau”.
o animal, a natureza, consigo e com o leitor: flexões críticas e o gos- como o faz? Principal- com tal propensão a criar persona- Fácil assimilar a moral de cada uma das
“Como a gente guarda porcaria, Pirilampo! Conta só to por encontrar numa mente pela ênfase que gens e situações que não são cativos histórias. Luís Jardim constrói o seu próprio
nos dedos, ou nos cascos: mijo, esterco, samburá de ouvido, arte elementos que são coloca não no mundo do da realidade tenha sido ainda mais repertório de histórias de “proveito e exem-
goma de venta, pomada de olho, grude de suor, almíscar os característicos de ou- interior geográfico, mas bem-sucedido ao escrever para o plo”, e usa livremente os mitos clássicos e
de pé. E ainda há quem seja soberbo! O Dr. Melinho, aquele tra. Como artista, Luís no mundo interior dos público infantojuvenil. A fantasia, o bíblicos. Quando da publicação de Proezas
que cisca o cabelo a cada instante, de tão emproado parece Jardim alcançou o ápi- personagens. O psicoló- sonho e a brincadeira são mais con- do Menino Jesus, o poeta Carlos Drum-
que não tem juntas. Durinho que só defunto. E também com ce no desenho, na ilus- gico, o existencial. Talvez vincentes do que todas as utopias. mond de Andrade publicou uma resenha
tudo isso dentro dele”. tração. Como escritor tal aspecto seja mesmo Sem que a invenção desses mundos no Correio da Manhã, em que elogiava
O conto se conclui com a menção a uma garga- alcançou virtuosismo parte mais do que do es- em que as plantas e os bichos falam a originalidade do autor. Ele diz que Luís
lhada estrepitosa em meio à natureza, aos misté- tanto nas histórias para tilo, do temperamento do e chegam a se comportar por vezes Jardim é o quinto evangelista, e que sua
rios das coisas noturnas. Esse gesto em si já mere- crianças quanto para autor, pois marcam Ma- como se fossem humanos signifique primeira originalidade consiste em narrar
ceria uma análise e uma reflexão sobre os sentidos adultos, e o seu gênero ria Perigosa e outras de um exercício nefelibato. Ao contrário. apenas a infância de Jesus, não os aconteci-
do riso e de sua sonoridade. O riso que Baudelaire por excelência é o conto, suas narrativas. Não é o A prosa com que o autor se dirige ao mentos da etapa adulta de sua vida:
dizia ser por definição diabólico. ainda que tenha publi- realismo puro e simples público jovem tem a mesma limpidez, “A segunda, e, a meu ver, a maior origi-
Maria Perigosa teve uma boa, ainda que redu- cado um romance como o que se encontra no que coloquialismo e naturalidade de suas nalidade está em que a infância de Jesus, na
zida, fortuna crítica, o que prova o seu reconheci- As confissões do meu tio ele conta, mas pessoas obras destinadas aos adultos. Acres- lição de Luís, se passa em qualquer lugar hu-
18 19

Pégaso, Tendo sua própria vida sido uma es-


por Jan pécie de fábula com alguns componentes
Boeckhorst sombrios – não raro presentes também
milde, em qualquer tempo – e a gente, (1675-1680), nos antigos contos infantis – Luís Jardim
lendo a narrativa, começa a ver Jesus Museu foi louvado por Manuel Bandeira nesta
vivendo num arraial de Pernambuco, Nacional
“mini-biografia” em verso:
de Minas de sei lá onde.” de Belas
Mais entusiasmado ainda foi o Artes, Rio de Louvo o Padre, louvo o Filho,
comentário de Tristão de Athayde Janeiro. Louvo o alto Espírito Santo.
no prefácio desse livro que teve Após quê, Pégaso encilho
um trecho selecionado para a pro- E, para mundial espanto,
paganda do livro. A editora publi- Remonto à paragem calma
cou um anúncio nos jornais suge- Onde, em práticas sem fim,
rindo que os leitores comprassem Deambulam as Musas: na alma
As proezas do Menino Jesus para De Lula – Lula Jardim.
presente de Natal de 1968: “Quem no mundo cantará assim,
“Não conheço ninguém, nem obra qualquer que seja o vivente? De bico Um jardim de muitas flores
alguma da literatura universal que não se sabe qual, e sem bico não há E sem espinhos nenhuns.
fizesse o que você fez. E a fez com tan- nenhum. Uirapuru junto dele se cala, O nome simples e curto Luís Jardim da Ilha dos Amores
ta naturalidade, com tanta simplicida- do canário belga nem se fala; o rou- Jardim ocultava o Luís Ignácio Replantado em Garanhuns.
de, com tanta cristalinidade, que nem xinol, ou pintarroxo, que aos pássaros foram em muito maior volume, de Miranda Jardim, que tam- Louvo o desenhista exato:
parece saída da pena de uma criatu- ensinam a cantar, se ouvirem o Cla- mas em sua imensa maioria são bém atuou como secretário da Maneje lápis, carvão
ra humana. E o que mais pode intri- rim cantando tratam logo de calar. E ilustrações de livros. União Democrática Nacional, e Ou pena, trace retrato
gar àqueles que julgam o vinho pelo quando Clarim gorjeia, como estava Há também o teatro de Luís que em primeiro de fevereiro Ou paisagem, é sua mão
rótulo e as mercadorias pelo letreiro, cantando para o menino Jesus, assim Jardim, de peça única. Premia- de 1955 se tornou funcionário
é que você se confessa um batizado, nem canta a Sereia, nem mesmo gen- da, como ocorreu com os textos do Instituto do Açúcar e do Ál- Segura, certeira, leve:
que esqueceu totalmente o efeito das te assim sabe cantar”. literários seus. E como a maio- cool por nomeação de Carlos de Nunca vi tão leve assim.
águas que o batizaram! Para mim, A singularidade da trajetó- ria do que ele fez, esquecida Lima Cavalcanti. Sua lotação era E é assim também quando escreve
essa confissão, confrontada com a pu- ria literária e artística de Luís das gerações seguintes, após o no Serviço de Documentação da Romance ou conto o Jardim.
ríssima essência cristã de sua obra Jardim não se dá apenas por entusiasmo inicial dos críticos. Divisão Administrativa, e che- Faz igualmente bom teatro,
genial, é mais uma prova de que o causa do autodidatismo – discu- Um dos mais empolgados com a fiou a Seção de Documentação Ótima crítica. Tem
Espírito sopra onde quer”. tível na visão de Gilberto Freyre, peça Isabel do Sertão foi Gilberto de 5 de dezembro de 1963 a 24 Arte e engenho como quatro...
Ainda está por ser feito um devido às aulas particulares que Freyre. Embora não a visse ade- de março de 1965. Deus conserve-o tal, amém!
inventário das diversas “res- teve o autor de Garanhuns. É sin- quar-se ao teatro de sugestões e Quando da sua aposentado-
surreições” de Jesus pelos mais gular também, paradoxalmente, assimilações populares que fez ria, a direção do jornal do IAA Um dia a menina Alice
variados autores da literatura. por ser plural na expressão es- a fama de um autor como Aria- publicou um editorial em sua No País das Maravilhas
O Menino Jesus de Fernando crita em diversos gêneros. Mas no Suassuna, ele a considerava homenagem, em que traça um Passeava, Lula lhe disse:
Pessoa vivia na aldeia do Mes- tal pluralidade se apresenta na superior em termos, em “virtu- panorama de sua trajetória “Vamos ter filhos e filhas?
tre Alberto Caeiro. O Jesus de diversidade de gêneros em que des especificamente literárias”, como escritor e funcionário: Casemo-nos!” E casaram-se.
Augusto dos Anjos ressuscitou e se expressou, não tanto na mul- ao Auto da Compadecida: “Luís Jardim, Redator Nível 21-B, Mas os filhos não vieram.
vivia na mesma serra da Bor- tiplicação de obras. Ao longo dos “E tal é minha euforia em expri- desta Autarquia, ofereceu o melhor Lula e Alice conformaram-se.
borema onde nascera o poeta. O seus mais de oitenta anos de mir essa admiração, agora também da sua dedicação e capacidade de Foi o melhor que fizeram.
de Luís Jardim é pernambucano vida, pode-se dizer que é magra plena a ponto de parecer talvez der- trabalho, qualidades essas aliadas
e gosta de frutas maduras, gos- a produção de Luís Jardim. Só os ramada, que não acredito seja ultra- à sua lúcida e brilhante inteligência. Pois louvo Lula de novo
ta de passarinhos, e tem espe- livros infantis renderam uma passada pela do autor, decerto cons- É um registro que fazemos, espon- E louvo Alice também.
cial predileção por um canário série, e mesmo assim em peque- ciente, a esta altura, da obra-prima tânea e prazeirosamente, louvando- Louvo o Padre, o Filho louvo
chamado Clarim: no número. Os desenhos, claro, que conseguiu realizar.” lhe os indiscutíveis méritos.” E o Espírito Santo. Amém!”
20 Nivaldo Tenório é um tipo de escritor cada vez mais Detalhe de “El vuelo de las brujas”
(1797), de Goya (1746-1828). 21
raro: o escritor-leitor. Nasceu e vive em Garanhuns.
Acostumou-se ao sobrenome ‘Jardim’ nas avenidas e
nas praças, nos endereços. A curiosidade de leitor o re-
meteu à obra do autor de Maria Perigosa. A partir da
leitura da geografia e da cidade, descobriu sua origina-
lidade, seu interesse pela terra e pelo homem. O contis-
ta Nivaldo Tenório vive nessa cidade-memória-e-sonho
de Luís Jardim. Foi dessa cidade-invenção que o contista
concedeu entrevista exclusiva para Hexágono. [SR]

A PERSPECTIVA
DO HUMANO
EM LUÍS JARDIM
[hexágono]
22 UMA TRAGÉDIA, ENTRETANTO, INCAPAZ O que há de mais original e característico na obra de Luís Jardim? 23

DE MACULAR AQUELA INFÂNCIA QUE [nivaldo tenório]


Duas coisas, na minha opinião, são as mais originais: a materiali­

BAUDELAIRE CHAMA DE PÁTRIA zação do espaço onde se passam as histórias, que não é exatamente
Garanhuns e não pode ser outra cidade; os espaços conhecidos por
mim, os quais identifico no nome das ruas ou praças, indicados por
placas, mas que é, no fundo, a cidade que Luís inventou. Refiro-me
[hexágono] ao olhar do menino que foi embora quando tinha 16 anos, depois
Quando leu pela primeira vez Luís Jardim e quais suas impressões de ter sua meninice interrompida por uma tragédia que se abateu
iniciais dessa leitura? sobre a família e mudou radicalmente sua trajetória no mundo,
uma tragédia, entretanto, incapaz de macular aquela infância que
[nivaldo tenório] Baudelaire chama de pátria. É impossível ler aquelas histórias e
Faz tempo, eu ainda era um garoto. Na minha cidade há muitas imaginar que aquele menino foi privado daquele mundo de modo
ruas e praças chamadas Jardim. A cidade que sempre ostentou tão violento. E a segunda é a capacidade de inventar um tipo que
fama de cidade das flores, e por isso os jardins são encontrados não deixo de relacionar com a cidade. Garanhuns é diferente se
– ou eram – em toda parte, também elegeu um prefeito ou outro comparada a outras cidades, aqui o nativo é conhecido pelos foras-
que se orgulhava de certa cultura literária – aliás, a literatura teiros como figura intratável, antissocial e recluso. As pessoas se
sempre foi um paradigma de Garanhuns; atesta isso o número de conhecem e são amigas durante dez anos e nem por isso vão uma
grêmios literários e jornais publicados aqui – Ivo Amaral era um à casa da outra, e a amizade fica restrita ao ambiente de trabalho
desses prefeitos, por isso Luís Jardim – que ainda gozava de certo ou, para os mais chegados, encontros esparsos em restaurantes ou
prestígio, ele que ganhara prêmios literários e arrancara elogios cafés. Os filhos daqui, ou pelo menos os mais antigos, ainda falam
entusiastas de gente como Manuel Bandeira, Drummond e tantos de como a cidade era, no passado, por isso uma expressão odiosa:
outros, foi cedo homenageado em sua terra. Então eu nasci numa Garanhuns, cidade do já teve. Homens como Celso Galvão, Souto
cidade cheia de praças chamadas Jardim e, deste modo, não é difícil Dourado, Ruber van der Linden, sonhavam Garanhuns imensa,
supor, logo cedo me pus em contato com sua literatura, fuçando nas quando a produção de café era escoada pela estrada de ferro,
bibliotecas. As surradas e esgotadas edições do Luís eu as encontrei alguns homens públicos se orgulhavam de conhecer literatura e
principal­mente na biblioteca do Sesc, que não por acaso tem o seu se pensava em grandiosidade. Nosso bairro mais importante tra-
nome. Dela, li Maria Perigosa e As confissões do meu tio Gonzaga que duz-se Cidade do Sol. Nossos parques conservam a flora do mundo
gravaram fundo em mim a impressão de descobrir Garanhuns, inteiro, e isso numa época em que ninguém ou quase ninguém
mas não a minha Garanhuns, embora fosse a mesma, melhorada pensava em ecologia. Mas alguma coisa não deu certo, estagnou-
pelo olhar do menino, cercada de mata, rica de fontes minerais e se, restou o saudosismo e um sentimento de impotência. Tudo isso
com as colinas cobertas de neblina, num tempo quando o frio era faz pensar numa aristocracia decadente, e dela surge Gonzaga,
capaz de matar. um sujeito incapaz de resolver os conflitos, passadista, incapaz de
ser feliz. Esse espírito, que atribuo a Garanhuns, foi captado nas
[hexágono] confissões, ou inventado por Luís Jardim.
Considera que Luís Jardim é um escritor regionalista?
[hexágono]
[nivaldo tenório] Qual a importância que tem a cidade de Garanhuns, onde nasceu
Sim, apesar da preocupação psicológica na construção das per- o escritor, para a composição de sua obra literária?
sonagens de As confissões do meu tio Gonzaga (algo que pra mim
o parentava com Machado de Assis) ou o mágico que de vez em [nivaldo tenório]
quando, no livro de contos, se insinua, embora nunca passe de Toda. Luís Jardim é um desses escritores que não podemos dissociar de
insinuação porque se confirma sempre sua preocupação com o seu chão, talvez algo que o vincule ainda mais ao romance de trinta,
imanente, o racionalismo, tudo isso e mais a exploração do mito os regionalistas, mas há em tudo isso uma precipitação na hora das
e a invenção da memória, não conseguiu disfarçar certo cacoete classificações etc. De fato ele está preso ao solo como estão presos ao
regionalista, expresso, sobretudo, no modo como se comunicam as solo outros escritores do romance de 30, mas diferentemente deles e
personagens quando precisam fazer uso da fala. sua denúncia do descaso público ou o fenômeno da seca e êxodo rural,
penso, por exemplo, em Graciliano Ramos e seus sobreviventes sem
24 remissão num inferno sem saída, como é Vidas Secas, e não consigo
deixar de me surpreender com a Garanhuns, de Luís, tão longe da
ALGUÉM É LEVADO A LER UM LIVRO 25
seca, Garanhuns e suas pradarias, o verde e o colorido das flores, as
serras mil metros acima do nível do mar, cobertas de garoa.
NÃO PORQUE ESTEJA INTERESSADO NO
[hexágono]
Dos livros que publicou Luís Jardim, qual o seu favorito? Por que
QUE HÁ DE CORRESPONDENTE ALI COM
esse lhe agrada mais do que os outros?
A REALIDADE QUE O CERCA
[nivaldo tenório]
As confissões do meu tio Gonzaga. Dizem que a gente gosta de um [hexágono]
livro onde nos vemos representados. Talvez o leitor seja mesmo Se fosse entrevistar Luís Jardim agora, quais as perguntas que
uma espécie de Narciso à procura de seu reflexo, eu leio aquele faria a ele?
livro e parece que ele fala de mim. Gonzaga tem todos os meus
vícios e eu me sinto muito próximo a ele, e acho que só os grandes [nivaldo tenório]
livros são capazes desse feito. Eu faria uma pergunta: Por que só dois livros de ficção adulta?
[hexágono] [hexágono]
E dos contos de Maria Perigosa, qual ou quais destacaria como o Num tempo de videogames e tão urbanizado, o mundo rural das
melhor ou melhores? histórias infantis de Luís Jardim ainda pode despertar interesse
da criança?
[nivaldo tenório]
Gosto de todos. Aprecio as imagens noturnas e o sentido de impre- [nivaldo tenório]
cisão que as histórias apresentam. E lamento a preocupação dele Talvez por isso mesmo, possa despertar interesse, desde que haja
em reproduzir a fala das personagens como preocupação com o alguém interessado em apontar esse caminho. Mas acho que al-
registro, isso meio que datam os contos, mas há tantos elementos guém é levado a ler um livro não porque esteja interessado no que
universais neles como a presença do sonho e certo apreço pelo há de correspondente ali com a realidade que o cerca, decerto isso
inconsciente. Por exemplo, as loucas que conheci nos filmes de ajuda, mas o verdadeiro leitor está interessado numa boa história
Felinni sempre me pareceram familiares, pois já as conhecia de e não importa se ela se passa num espaço urbano ou rural, se as
Luís Jardim. Nele não cabem caricaturas, o louco é aquilo que o personagens andam de trens-bala ou puxados por animais de tra-
menino vê, nem sempre condizente com o que o folclore alardeia ção, desde que em todos se busque a comunicação com o humano
ou a psicanálise diagnostica. Loucos podem ser mitológicos, podem e, nesse ponto, Luís Jardim não nos decepciona.
ser fadas ou bruxas, podem habitar o sonho. Meus favoritos são
Maria Perigosa, Paisagem perdida e O homem que galopava. [hexágono]
Gilberto Freyre considerava que o elemento mais característico
[hexágono] de Luís Jardim é o memorialismo, o caráter autobiográfico. Você
Por que um autor tão premiado e com uma linguagem tão clara, concorda?
de agrado de todos os leitores, está com a obra esgotada e não
costuma ser reeditado com frequência? [nivaldo tenório]
Não. Aquilo de ambientar suas histórias em Garanhuns e falar dos
[nivaldo tenório] tios não o faz memorialista uma vez que é tudo memória inventada.
Acho que se ele teve muitos padrinhos no passado, não tem mais Quem nos garante isso – da memória inventada – é sua preocupa-
nenhum hoje. Talvez ele sofra preconceito, talvez daqueles que só ção que não parece se esgotar com o anímico e com a exploração
o conheçam superficialmente e logo tratem de taxá-lo de regio- do mito mesmo quando tudo não ultrapassa o terreno anímico.
nalista tardio e por isso afeito à campa. Não sei. Talvez tudo isso e
o fato de a literatura ser, em nossos tempos, algo desprestigiado. [hexágono]
Talvez a pequenez dos editores que não são mais como no passado, Se fosse estabelecer o ranking dos escritores brasileiros, em que
apaixonados e entendidos de literatura, mas gente apenas de olho posição colocaria Luís Jardim?
no mercado. Realmente não sei.
[nivaldo tenório]
26 Ele foi um bom escritor, acho que o colocaria ali entre os primeiros 27
depois dos gênios.
[hexágono]
Que tipo de humor é o mais característico do autor de Maria Pe-
rigosa?
[nivaldo tenório]
Um pouco como o humor judeu, que ri de si mesmo. Onde o cômico
não exclui o trágico, mas se confirma como matéria do mesmo
metal.
[hexágono]
No que se distinguem As confissões do meu tio Gonzaga e O ajudante
de mentiroso?

...ALGO QUE PARA MIM


O PARENTAVA COM MACHADO DE ASSIS
[nivaldo tenório]
Nunca li O ajudante de mentiroso.
[hexágono]
Acha que Luís Jardim é um precursor da ‘autoficção’ que se tornou
uma moda literária no início do século XXI?
[nivaldo tenório]
Não. Não vejo autoficção na prosa dele. Luís falou de sua gente, seu
universo interior, algo muito comum nos escritores de um modo
geral.

Nivaldo Tenório é escritor, professor e um dos entusiastas leitores


de Luís Jardim. Tenório é o contista dos livros Dias de febre na cabeça
(primeira edição [2012], pela U-Carboreto, e segunda edição [2015], pela
Confraria do Vento) e Ninguém detém a noite [Confraria do Vento, 2017].
28 1901 - No dia 8 de dezembro,
nasce Luís Ignácio de Mi­randa
1918 - Mudança para o Recife
com a mãe. Ele emprega-se no
1930 - Casa-se no dia 26 de julho
com Alice Ferreira Alves, filha
rativas. Na que se publicou vinte
anos depois, o autor acrescentou
leta, pela José Olympio Editora.
Uma seleção de contos de Maria
29
Jardim, em Garanhuns, Per- comércio. do falecido sr. José de Paiva Fer- mais seis. Nesse mesmo ano de Perigosa, uma cena da peça de
nambuco, filho de Manuel An- reira, comerciante no Recife, e 1938 é publicado o Guia de Ouro Isabel do Sertão e trechos dos
tônio de Azevedo Jardim e D. 1918 - Luís Jardim, caixeiro, con- de sua esposa, senhora Jose­ Preto, de Manuel Bandeira, com seus livros infantis e outros.
Angélica Aurora de Miranda vive com intelectuais do Recife, phina Alves de Paiva Ferreira. ilustrações de Luís Jardim.
Jardim. Nas suas memórias, o nos seus primeiros anos na ca- 1976 - Lança o livro de memó-
escritor registra o que repre- pital. Torna-se amigo de Osório 1934 - Ilustra o Guia Prático, His- 1942 - É traduzido para o inglês rias O meu pequeno mundo
sentou a infância: “No meu quin- Borba e Joaquim Cardozo que o tórico e Sentimental da Cidade do seu livro O Tatu e o Macaco, (The – algumas lembranças de mim
tal, eu tinha amigos confidentes, influenciam. Recife, de Gilberto Freyre. Numa Armadillo and Monkey, publi- mesmo.
certos, com quem falava em edição limitada de 105 exem­ cado por Coward-McCann, NY).
1924 - Anotação de Gilberto plares, das Officinas Gráficas da 1978 - Novos livros para o pú-
voz alta e por eles eu mesmo Freyre, no seu diário de ju- 1944 - Traduz Nalá e Damayanti blico jovem: Façanhas do cavalo
respondia. [...] A fazendinha The Propagandist, Recife. Inclui
ventude, publicado sob o título também dois mapas desdobrá- (poema hindu), na coleção Ru- voador e Outras façanhas do
Mulungu era o meu paraíso de Tempo morto e outros tempos: bayat, da José Olympio. Trata-se cavalo voador.
sem limites”. veis, gravuras, fotos e vinhetas.
“Estava um desses dias com J. L. de fragmento do poema Maha-
do R. num café quando passou 1935 - Prefácio de Luís Jardim barata, em que os mortais se 1980 - O ajudante de mentiroso,
1910 - Ano do Halley. Luís Jar- sua única novela picaresca,
dim comenta: “Viu-se primeiro, pela Rua do Imperador um no livro Artigos de Jornal, de comunicam com os deuses. 
rapaz muito rosado e de pele Gilberto Freyre. Edições Mo- publicada pela José Olympio.
no horizonte, o reflexo de luz 1949 - Publicação do romance
clara do extraordinário come- muito lisa – quase de galã de zart, Recife. 1981 - Exposição comemorativa
tea­tro – que eu já avistara an- As confissões do meu tio Gonzaga.
ta. Veio subindo lentamente. Na 1936 - Realiza exposição de dos oitenta anos de Luís Jardim
proporção que subia, mais au- tes. Perguntei a J. L. do R. quem 1959 - Sua peça de teatro Isabel do é realizada no Centro Cultural
era. J. L. me informou então ser aquarelas a convite da Socie-
mentava o claro reflexo circu- dade Felipe d’Oliveira, no Rio. Sertão é publicada pela Livraria Alfredo Leite Cavalcanti, de
lar”. Os primeiros desenhos de ‘um caixeiro chamado Luís Jar- José Olympio Editora. A peça Garanhuns, de 13 a 20 de dezem-
Passa a residir nessa cidade.

Luís Jardim datam desse ano. 1937 - Ganha o primeiro e se- foi a vencedora de prêmio da bro, organizada pelo museólogo
dim’. Mas soube depois pelo meu gundo prêmios no Concurso Academia Brasileira de Letras. Fernando Ponce de León, da Fun-
1912 - Interrompe os estudos irmão Ulisses que esse Jardim é de Literatura Infantil do Mi- dação Joaquim Nabuco, (Fundaj).
por problemas de doença. Con- também artista e lê o seu inglês. nistério da Educação, com O 1968 - Publicação do seu livro
cluiu apenas o primeiro grau. Desenha. Uma rara inteligência. Boi Aruá e O tatu e o macaco. Proezas do menino Jesus. Prê- 1985 - Publicação de Imagem e
Homem de bem. Filão de boa Traduz a peça A morte do cai- mio da Academia Brasileira texto: homenagem ao pintor e
1917 - No dia 14 de janeiro, é família de Garanhuns, onde seu de Letras. escritor Luís Jardim, org. Edson
assassinado no Café Chile, no xeiro viajante, de Arthur Miller,
pai e seu tio foram trucidados que será representada pela Nery da Fonseca, Editora Mas-
Recife, o deputado Júlio Bra- numa luta entre os Jardins e os 1971 - A José Olympio publica sangana/Fundaj.
sileiro. Em retaliação os seus Companhia Jaime Costa. Aventuras do menino Chico de
Brasileiros”.
amigos promovem a dizimação 1938 - É o vencedor do Prêmio Assis, com ilustrações do autor. 1987 - Falece Luís Jardim no dia
dos seus adversários políticos. 1928 - Passa a colaborar com Humberto de Campos com o li- 1º de janeiro, e é enterrado no
Entre os mortos estava o pai de artigos no jornal A Província, 1974 - Com organização de Eugê- cemitério de São João Batista,
vro de contos Maria Perigosa. A nio Gomes, é publicada sua Se-
Luís Jardim. dirigido por Gilberto Freyre. primeira edição reúne sete nar- no Rio de Janeiro.
O ajudante de Confraria dos Bibliófilos do Brasil
30 mentiroso (Brasília, DF). As ilustrações são de
“Hoje, acordado, juro que recor­
reria a outro expediente se os
31
Eduardo Araújo. Numa carta escrita bolsos gemessem mais do que ge-
Ainda que variada, não
a João Condé, e datada do Rio, 29 de mem; tudo, menos um livro à cata
foi composta de muitos
setembro de 1944, Luís Jardim conta de dinheiro.
livros a obra literária
a história desse livro, e com uma
de Luís Jardim. O talento de escritor “Você me perguntará, sem dúvida,
autocrítica entre irônica e severa:
revelou-se ao público na maturida- se eu repugno ou gosto do livro por
de, tanto os destinados ao público “Meu caro Condé. inteiro. Confesso: ainda gosto de dois
infantil (dois, premiados em 1937 e ou três trechos do “Paisagem per-
“Você me pede que eu conte a
publicados em 1940), e adultos (um, dida”. O resto, perdi de paisagem...
história deste livro. Ora, contar
premiado em 1938 e publicado em
a história de um livro é contar a “Como crítico, declaro: o livro é
1939). Foram mais de quarenta
história de uma vaidade. E pode medíocre. Eu poderia fazer outro
anos de produção, terminada com
ser também a de uma miséria. melhor, se tivesse outra necessi-
o romance – ou novela, como pre-
ferem alguns. “Maria Perigosa é fruto – Deus me dade. Em suma, um livro é uma
perdoe – da necessidade. Não an- aventura, e há aventuras bri-
Maria Perigosa lhantes e apagadas. A minha da
dassem, por volta de 38, os bolsos
Editora José Olympio, do autor mais ocos do que andam os última categoria, mas cá estou,
1938, Prêmio Humberto miolos, e o magro livro de contos ja- vivendo a aventura da vida, bem
de Campos. mais teria esta história. A verdade, melhor do que a da prosa. É só.
opulento amigo, é que era preciso Contos para contas”.
Reúne os contos “Maria
ganhar, pagar, resgatar. Dívidas! Um dos contos de Maria Perigosa,
Perigosa”, “Os cegos”, “Conceição”,
Eis o que se propunha resgatar a “Os cegos”, foi adaptado para a TV,
“Coragem”, “O ladrão de cavalo”, “João
coletânea de contos premiados. Mis- na série Contos Brasileiros, da ex­
Piolho”, “Paisagem perdida”, “O casti-
turaram-se, como você sabe, e lá tinta TV-Tupi. Os adaptadores eram
go”, “A moça do trapézio”, “A doideira”,
veio o prêmio. Foi a conta das contas. Túlio de Lemos, Dionísio Azevedo,
“O poeta”, “O homem que galopava”
e “Coisas da noite”. Todos de sabor e “Depois, confesso, como confessarão Vida Alves, Péricles Leal, Ribeiro
linguagem regionalista. Além das todos os autores, depois veio a vai- Filho e Geni Flora.
edições da José Olympio, houve uma, dade. Nos primeiros trinta dias de
em forma de antologia, e de tiragem vida em livro cada página era um
restrita, em 2003, de iniciativa da monumento. Sonhei, delirei.

BIBLIOGRAFIA
A atriz Duvennie Pessoa,
na adaptação “Aruá, o Boi
Encantado”, pela Troupe Azimute.
III Festival de Teatro Na Lona,
Hortelândia, SP.
A foto é de Gabriel Oliveira. COMENTADA
O Boi Aruá Forçoso é confessar que de volta Jardim fez aquilo que eu não conse- O contexto da tradução desse e No dia 22 embarco para Boston – raríssimo, talento, não despertou
32 para casa duas ideias se mistura- gui em toda a minha vida. Li e reli de outros livros brasileiros nos depois de ter visitado Williansburg, em mim o mesmo entusiasmo que 33
Ganhou o 1º. Prêmio no
vam, torturando-me: a de que eu o Boi Aruá com o mesmo encanto e Estados Unidos naquela época está sábado próximo – quando começo nos mestres admiráveis da crítica
Concurso de Literatura
devia, e a de que eu escrevia. emoção com que vejo Walt Disney”. explicado por Darlene J. Sadler no a correr por este mundão. Procure literária entre nós que são a Sra.
Infantil do Ministério da
livro American All: Good Neighbor ver o que eu escrevo, em mãos Lúcia Miguel Pereira e os Srs.
Educação e Cultura, foi “Não era pois absurdo que eu sou- O Tatu e o macaco
Cultural Diplomacy in World War de Tarquínio, a quem pedi para Álvaro Lins e Otávio Tarquínio de
publicado inicialmente besse escrever, mesmo sem ser
A primeira edição, do II, University of Texas Press Aus- entregar o dinheiro a você, pois Sousa. Não me parece o romance
em 1940. As edições seguintes – escritor. Aparecendo o concurso
Ministério da Educação tin, 2012. você se avista mais com Alice. Se agora aparecido a melhor criação
até 1991 eram 19 – foram da José de Literatura Infantil do Ministério
e Cultura, é de 1940. Por houver ou se você achar qualquer do escritor. Penso que O Boi Aruá e
Olympio Editora, do Rio de Janeiro. da Educação, o poeta me estimula, Luís Jardim, que fez uma viagem
ser de interesse biblio- inconveniência no que escrevo Maria Perigosa são, nos seus traços
Em 1972, comemorando o Ano espetando o dedo no ar: ‘Inscreva- aos Estados Unidos um pouco antes
gráfico, transcreve-se colabore à vontade. Acha você essenciais, superiores a Confissões
Internacional do Livro, a Unesco se, escreva e ganhe o prêmio’. A da publicação do seu livro lá, conta
a nota do suplemento literário do que vale a pena procurar artistas do meu tio Gonzaga.
escolheu, em 57 países, os melhores primeira tentativa foi precisamen- um pouco de sua estadia numa
Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, de cinema, em Hollywood, para
livros para crianças. Cada país te o ‘Boi Aruá’. História inventada, carta ao seu amigo Osório Borba: Na própria superioridade deste
publicada em 27 de abril de 1940, entrevistá-los? Eu quero sobretudo
indicou dez livros considerados como exigia o edital do concurso, sobre os outros livros do Sr. Luís
logo após o lançamento do livro: “Washington, 17-7-1941 me avistar com Disney. Carmen
“de excepcional valor e capazes de escrita com a memória voltada Jardim me parece estar a sua
“Acaba de sair o livro O tatu e o ma- Miranda também vale a pena. Te-
contribuir para uma melhor com- para a minha meninice. “Caríssimo Osório: fraqueza: no fato de ser muito bem
caco, de autoria tanto o texto como nho cartas de apresentação para
preensão entre os povos”. Entre os escrito, muito bem composto, muito
“Fui um menino só, um menino iso- “Um bruto abraço. uma porção de escritores daquelas
do Brasil, dois selecionados foram os desenhos do Sr. Luís Jardim, e que bem feito do ponto de vista da arte
lado, um menino para quem a vida bandas. Bem, estou na hora de um
de Luís Jardim: O Boi Aruá e As obteve um dos prêmios (5 contos “De New York mandei um cartão ou da técnica da composição literá-
exterior não se comparava com a compromisso: jantar com o Dr. Lino
proezas do Menino Jesus. de reis) conferidos pela Comissão para você. Só agora tenho tempo ria. Prejudica-o o polimento.
grandeza e beleza do ‘faz de conta’, de Sá Pereira e o Embaixador.
de Literatura Infantil do Ministério para uma carta. Ando, seu Borba,
O Boi Aruá traz três histórias fa- reino encantado de qualquer crian- Acontece com os livros – a meu ver
da Educação, no recente concurso num coelho-sai danado: visitas a “Um bruto abraço do seu
bulosas: a do boi que dá título ao ça fantasista. Tenho para mim que – o mesmo que com os alimentos:
de livros para crianças. É um lin- Museus, bibliotecas, galerias, ins-
livro e a de pássaros chamados os que vivem de olho para dentro “Luís Jardim.” quando a arte ou a técnica se re-
do volume de estampas, dos mais tituições culturais, o diabo. Creio
maracanãs e bacuraus. É o autor de si próprios agem como abelhas quinta na composição ou no fabrico
interessantes trabalhos no gênero que tenho aproveitado bastante, Confissões do meu tio
quem conta a história deste livro que procuravam mel. de alimentos, refinando-os e polin-
já editados entre nós. Ilustrando apesar do tempo curto para este Gonzaga
(e de novo atendendo a uma solici- do-os excessivamente, eles acabam
“Em menino era como se dissesse: uma historieta graciosa e pitoresca, Mundo. Já escrevi a Tarquínio
tação de João Condé): (Editora José Olympio, perdendo o melhor vigor nativo, a
Deem-me um mundo para eu ver, os desenhos são de uma grande enviando o primeiro artigo e, ago-
Rio de Janeiro, 1949). A força ou o viço da espontaneidade
“A história deste boi aruá é uma que eu o converterei em outro ain- riqueza de inventiva, e nele à be- ra mesmo, remeti uma crônica
estreia de Luís Jardim ou da naturalidade. Donde a su-
história de água-furtada, como da melhor. Porque, menino, nunca leza do colorido e à originalidade sobre um jantar requintadíssimo
como romancista. Ao perioridade da rapadura sobre o
diria Gilberto Freyre. Naquele me sujeitei ao império material do dos motivos associa-se um delicioso que me ofereceram e ao qual
ser lançado o livro, que é dos mais açúcar refinado da usina. Do arroz
tempo, secos os meus bolsos como que é real e certo. Massa tornava- senso humorístico. Livro destinado compareceu o Vice-presidente dos
elogiados do autor, Gilberto Freyre bruto sobre o polido. Das páginas
leite esturricado em peito de vaca se líquido, só porque eu queria. E fiz a um sucesso considerável, inclusi- Estados Unidos, Sr. Wallace. No dia
publicou este comentário na sua do Boi Aruá sobre as das Confissões.
nas secas do sertão, impunha-se- rodas quadradas, de imaginação. ve porque é graficamente um tra- 21 devo avistar-me com Nehru e
coluna na revista O Cruzeiro, em 31
me a tarefa pavorosa de ganhar Dentro dessa ordem e relação balho primoroso. Toda a impressão tenho quase certa uma entrevista Não acontece, aliás, o mesmo com
de dezembro de 1949:
dinheiro. A dona da pensão que me absurdas das coisas, senti-me bem, é litográfica, sendo o trabalho de com Thomas Mann e Maurois. O o agreste Euclides da Cunha? Não
hospedava, chegava, por excesso adulto já; escrevendo fantasias para gravura mais uma obra admirável meu itinerário, marcado hoje, é “O escritor Luís Jardim está de li- é ele superior em viço literário a
de gentileza, a dar-me 3 bons-dias crianças. Foi a coisa melhor que já do conhecido profissional Genaro. vasto. Como você vê, viagem até vro novo. Escritor de livro novo é outro ensaísta também chamado
numa manhã só. Coincidentemente, escrevi para mim mesmo. E é bom O livro foi editado na série A da às costas do Pacífico. O povo aqui, um tanto como mulher de menino Cunha – Tristão da Cunha – su-
eu devia 3 meses de pensão de dizer assim: entrou por uma canela Biblioteca da Criança Brasileira e seu Borba, além de simples é bonís- novo. O mesmo alvoroço. Quase as perior ao autor de Os Sertões em
uma vez só. Os meus desenhos de pinto, saiu por uma de pato”. está à venda a 7$000. simo. Recebem admiravelmente, mesmas formas de regozijo. O al- correção de frase, em graça e
pouco valiam, e a minha pena era prontificam-se a tudo. Nenhuma coolzinho comemorativo. As notícias refinamento da palavra?
Muito mais enfático e contundente “O tatu e o macaco constitui um
uma pena pesada. Certa tarde, dificuldade tenho encontrado. Creio nos jornais. As visitas dos amigos
no seu depoimento foi o próprio novo triunfo para o escritor de O fato é, porém, que Confissões
no “amarelinho”, o poeta Murilo que o meu livro infantil O Tatu vai que trazem parabéns. Os vizinhos
João Condé a quem Luís Jardim deu Maria Perigosa, colaborador des- representa o novo e admirável
Mendes risca o ar com o seu dedo sair em edição nova, a duas cores. que fazem comentários maliciosos.
esse depoimento, ao registrar o te suplemento e que é também, triunfo literário do Sr. Luís Jardim.
superlativo e autoritário: ‘Jardim: Se pegar, como disse o editor, tirar- Os entusiastas que acham o menino
que lhe dissera certa vez Monteiro como se sabe, um dos nossos mais É livro que deve ser lido por todo
você é escritor. Conheço pelo que se-ão grandes edições. O Boi Aruá ou o livro novo o melhor produto
Lobato: “Vejam vocês, está aí um brilhantes ilustradores”. brasileiro inteligente de gosto. O
você fala!’ E foi inútil procurar propõem dividi-lo: cada conto, um da mulher ou do escritor aliviado.
autor que talvez nem saiba o que Sr. Luís Jardim é um dos nossos
convencer-me que eu não era re- No ano de 1942, esse livro infantil livro, profusamente ilustrado. É
fez. O Boi Aruá é um livro que se “Confesso que o livro novo do es- escritores mais cheios de re­cursos
almente um escritor, pois Murilo foi publicado em inglês, sob o título melhor, rende mais. Porém não
comporta em qualquer literatura critor Luís Jardim marcando, como plásticos e de possibilidades ar-
insistia, categórico: ‘Sei. Conheço’. de The Armadillo and the Monkey. está nada ainda de pedra e cal,
universal no gênero. De um jato marca, nova vitória do seu raro, tísticas.
pois sem contrato aqui nada se faz.
Isabel do Sertão “É uma criatura estranha em tudo, também está ausente a marca do livros, o que o torna um escritor pri- espiritual, que apenas deixa, aqui tatu e o macaco (1937), As proezas do
34 que tem o ‘diabo fervendo nos mio- homem em permanente comu- vilegiado. Seus livros ganhariam, no ou ali, transparecer. Menino Jesus (1968), e as Aventuras 35
Essa peça de teatro foi
los’. Blasfema contra Deus que pren- nhão com os valores telúricos a entanto, se suas ilustrações obede- do menino Chico de Assis (1973).
publicada em 1959 (Edi- “O mesmo sucede com Chico de
de a chuva no céu, ao mesmo tempo que se prende. Aventuras do me- cessem a um traço mais moderno.
tora José Olympio), mas, Assis, que brincava com os mole- “É ainda a esse menino que fica-
que, de rosário na mão, pede a Deus nino Chico de Assis, história para a
no ano anterior, havia “Com as palavras – tijolos de seu quinhos seus amigos, ‘aos pinotes, mos a dever um novo livro: O meu
misericórdia para o seu povo. infância inspirada na vida de São
recebido um prêmio. acervo verbal – pedreiro que como umas doidas crianças de pequeno mundo, agora publicado,
Francisco de Assis, conservando
Transcreve-se aqui um trecho do “Numa alma tão cheia de espinhos constrói com dedos hábeis de Deus’... E desejava ‘bater asas e e que é, no seu gênero, um dos
essa linha de composição, une o
parecer de Viriato Correa, que foi parece não haver lugar para ourives – ele parece armar, can- voar... e ser mato e bicho, e pedra, e mais belos da língua portuguesa.
espiritual cristão a um cenário de
assinado por toda a comissão julga- florações poéticas. Há. Há quando tarolando, o arcabouço de seus ser areia... e ver a alma das coisas Li-o com a emoção de quem se
que participam reminiscências
dora e aprovado por unanimidade ela exalta o seu cantinho natal na enredos, para depois nele instalar, que Deus fez!...’ reencontra no volver das folhas.
nativas do escritor para adultos.
pela Academia Brasileira de Le- época em que a chuva esverdece cuidadosamente, os personagens Na verdade, cada um traz consigo
A história do grande santo, aliás, “O leitor adulto, ao reler, sim, por-
tras, a qual concedeu o prêmio de os campos e torna a terra feliz. [...] que viverão o conjunto. o seu pequeno mundo de infância
só é contada durante a infância e que quem lê – relê as obras de
teatro de 1958 a Luís Jardim: e juventude. Dele nos vem o que
“O autor de Isabel do Sertão é a vida do menino Chico de Assis, “O Boi Aruá, contendo três histo­ Luís Jardim, acaba por dar razão
somos na idade adulta, e é nele que
“A comissão julgadora do prêmio evidentemente uma esplêndida além disso, não participa de ne- rinhas e agora em 5a. edição, com aos que afirmam que o verdadeiro
nos refugiamos nas horas em que
Claudio de Sousa é de parecer que vocação teatral. Não se diga que a nhuma geografia específica, nem 87 páginas, considerado por Mon- escritor é um instintivo. De outra
a realidade circundante nos desa-
a láurea seja conferida a Isabel peça seja um modelo de perfeição. de um tempo cronologicamente teiro Lobato – ‘o mais belo livro, no forma, como ele poderia, com
ponta ou nos fere. [....] Daí, na leitura
do Sertão – de Luís Jardim. Isabel Tem defeitos. Um deles é a briga determinado. A verdade histórica, gênero, publicado no Brasil’, foi sua tão pouco tempo de aprendizado
deste livro de reminiscências, ter
do Sertão é o velho e rude tema em que Neco abate Laurindo. A portanto, embora sem prejuízo da revelação como escritor de livros normal, ter um estilo tão cheio
eu reencontrado o companheiro
das secas do Nordeste sempre luta teria maior efeito dramático verdade cristã, é às vezes posta de para crianças. Como bom pernam- de doçura, uma linguagem tão
da Livraria José Olympio – com
novo de emoção e sempre rico de se tivesse sido feita aos olhos do lado para que se possa acomodar bucano que é, soube usar a lingua- adequada e tão sutil? Ninguém
o seu gosto do desenho, o pendor
dramaticidade. A peça é um dra- público e não nos bastidores. É pos- aos objetivos que o autor pretende gem típica dos vaqueiros do Norte, poderia ensiná-lo a escrever
das letras e o talento teatral para
ma bárbaro, brutal, que punge e sível que ao escritor repugnasse alcançar, e assim o menino Chico o que deu ao texto um sabor todo como escreve, ninguém poderia
arremedar os companheiros. A
arrepia. O autor traçou as figuras apresentar um defunto em cena, de Assis, a caminho da santidade especial. Depois vieram dois outros fornecer-lhe a receita prodigiosa
sensibilidade do homem feito está
com uma segurança que merece o que é razoável, mas a luta devia futura, chega ao leitor dentro que apresentam, graficamente, as que só os escritores instintivos
na sensibilidade do menino, nos
destaque. São quatro as figuras ter sido travada diante da plateia. de uma perspectiva biográfica mesmas características do primei- conseguem encontrar.
contatos com a natureza, na adivi-
predominantes no drama: Isabel, Laurindo, no momento em que se inteiramente original, capaz de ro: capa e algumas das ilustrações
“Os livros de Luís Jardim fazem nhação da vida, nas surpresas de
a Avó, Neco e Laurindo. sentisse ferido, sairia de cena para ser entendida mesmo nesta época a cores, bom papel, tipo de bom
bem a gente. E as crianças se de- cada dia. E é o narrador que nos
cair morto nos bastidores. de computadores e de conquistas tamanho para a presumível idade
“Isabel é o que se pode classificar leitarão com eles”. adverte, a propósito de seu livro de
espaciais. E isto talvez se deva, dos leitores (oito a nove anos em
de verdadeiro achado numa “Esse defeito, porém, se torna insig- lembranças: ‘Quem revê retifica,
justamente, ao efeito dos contras- diante), impressão nítida, revisão O meu pequeno mundo
peça rude. É áspera, ríspida, im- nificante ao lado das virtudes in- por mais que se empenhe em ser
tes, a intensa poesia com que foi cuidadosa. Um, com 126 páginas, (Editora José Olympio,
pávida e agressiva. E tudo isso contestáveis da peça. Em Isabel do fiel ao já vivido. Toda impressão
narrada essa história tão pura intitula-se Proezas do Menino Jesus. Rio de Janeiro, 1977).
sendo bela e sendo fascinadora. Sertão há passagens reveladoras se exprime por palavras, se dela
e tão humana, poesia que Carlos O outro, Aventuras do menino Chico
E é revoltada em constante in- de equilíbrio cênico, de concisão e quisermos dar notícia. A impres-
Drummond de Andrade já havia de Assis, tem 86 páginas e se baseia Ao sair publicado esse
candescência de sua revolta. de justa medida teatral.” são teve a criança, mas lhe faltou
apontado em obra anterior de Luís na vida de S. Francisco de Assis. livro, o escritor Josué
Obrigada pelos pais a abandonar o meio de exprimi-la. No correr do
Jardim como fator decisivo do seu Em ambos, sente-se um toque de Montello publicou no Jornal do Brasil,
o cantinho natal, em procura tempo, adquirido o meio, o próprio
êxito e de sua compreensão junto angelical espiritualidade. A inspi- em 26 de abril de 1977, o artigo “O
de terras não flageladas, a toda Proezas do menino tempo se encarrega de alterá-la,
ao público leitor infantil. ração para escrevê-los foi buscá-la pequeno mundo de Luís Jardim”, de
hora maldiz o abandono. Ela ama Jesus partindo-a em duas, a cada uma
o Autor, certamente, no céu. que são citados estes trechos:
o torrão em que nasceu, o sertão Também sobre as Aventuras do conferindo a proporção que o mo-
(Editora José Olympio,
mesmo amargo, mesmo infernal, menino Chico de Assis escreveu “O menino Jesus, é de supor, terá “Em todo autêntico adulto há uma mento ditar: o momento do passado
1968) e Aventuras do
sem água para matar a sede, Ofélia Fontes uma resenha, publi- sido uma criança semelhante às criança bem-sucedida. Luís Jardim, vivido, e o do presente evocador.
menino Chico de Assis
sem alimento para matar a fome. cada no Jornal do Brasil, em 26 de outras. Mas, embora há milênios ao longo de toda a vida, tem-se Importa o que resta na medida em
(Editora José Olympio,
julho de 1971: se tente escrever a sua história, mantido fiel ao menino que foi. É que, adultos, tenhamos a grandeza
“A aspereza nela tem uma força 1971). Na coluna Resenha Bibliográ-
só Luís Jardim conseguiu realizar esse menino que lhe inspira as de nos ameninarmos, respeitando
que nos arranha a sensibilidade. fica, do Estado de S. Paulo, publicada “Um bom tema confere ao escri-
o milagre de sua ambientação. melhores páginas, quando senta à a vida pueril que um dia tivemos.”
A avó doente e caduca é um dos em 18 de julho de 1971, tem-se uma tor possibilidades de escrever
Coloca o divino personagem entre mesa para escrever, e os melho-
motivos daquela caminhada pelo boa perspectiva da história: um bom livro. Mas precisa ser Luís Jardim, se quiser, pode inter-
companheirinhos de sua idade, res desenhos, quando se debruça
sertão calcinado, em procura de desenvolvido com arte, e isso nem romper neste livro as suas Memó-
Proezas do Menino Jesus e este transfere-lhe suas próprias vi- sobre a prancheta. Foi ele que o
terras amenas – ela detesta a avó sempre acontece. rias. Porque ele nos dá, com estas
Aventuras do menino Chico de vências, fá-lo participar das tra- levou a escrever para crianças,
e lastima ‘que uma cascavel não páginas, o desenho e a explicação
Assis transmitem a marca de um “Luís Jardim tem boas ideias, sabe vessuras dos outros garotos sem contando aos outros meninos as
acerte as canelas da velha’. completa de si mesmo.”
espiritualismo de onde, entretanto, trabalhá-las e ilustra seus próprios lhes impor sua superioridade estórias do Boi Aruá (1937) e de O
LIVROS
análise – o que seria um erro – Os palimpsestos da me-
36 nela se amparam para enriquecer mória em Infância, de 37
seus argumentos diante dos textos Graciliano Ramos e Meu

SOBRE submetidos à sua apreciação.


“A autora não se prende a um
pequeno mundo: algu-
mas lembranças de

LUÍS JARDIM
mim mesmo, de Luís
único paradigma, a um modelo: a
Jardim, de Maria Lúcia de Borba.
crítica estética, biográfica, socioló-
Interessante trabalho comparati-
A fortuna crítica de Luís gica, a nova crítica estão também
vo realizado como dissertação de
Jardim ainda é pequena. presentes, formando o leque in-
mestrado em Teoria Literária, no
terdisciplinar tão necessário às
Há por fazer a recolha Centro Universitário Campos de
abordagens que têm por objetivo
dos artigos dispersos sobre sua conhecer melhor a obra de um
Andrade – Uniandrade, em Curi-
obra publicados ao longo tiba, 2011. Como informa a resumo:
determinado autor”.
dos mais de quarenta anos O presente estudo se reporta, ini-
de sua vida literária. Luís Jardim – as múl- cialmente, à evolução do romance
tiplas faces do talento, como narrativa de vida, a partir
Façanhas do cavalo máximo faço jus a cavalgar num livros publicados – alguns traduzi- de Marcílio Reinaux do século XVIII na Inglaterra, a fim
voador e Outras burrico filosófico e humilde – das dos no exterior –, Luís Jardim não (Prefeitura Municipal de situar o corpus da pesquisa na
façanhas do cavalo Itabiras... Obrigado por tudo, meu comete nunca a ingenuidade de de Garanhuns, 1991). O tí- gênese da ficção autobiográfica,
voador caro e grande Jardim: pela minha desrespeitar a picardia. A história tulo do livro se refere ao cujo sujeito é o homem comum. Na
inclusão em seus saborosíssimos se passa numa pequena cidade do talento múltiplo de Luís Jardim que, sequência, examinam-se as nuan-
(Editora José Olympio,
relatos; pela oferta dos dois volu- interior, às voltas com um perso- sendo desenhista e pintor, também ces da memória nos relatos de in-
1978) Dois livros, dois mes, só agora recebidos (soube que nagem misterioso, desconcertante foi escritor, e escreveu livros de fância de Graciliano Ramos e Luís
grandes personagens e muitos se extraviou a primeira remessa); Luís Jardim: ficção e vida,
e sobretudo divertido, que é o sr. diversos gêneros: conto, romance, Jardim em seus livros Infância
voos da imaginação em viagem: pela amizade com que me honra, de Maria da Paz Ribeiro
Pantaleão, capaz de façanhas (loro- ensaio, teatro e ensaio. Premiado e Meu pequeno mundo: algumas
o famoso Pégaso e um muito mais alegra e conforta. Seu, com um Dantas. O livro, de 135
tas?) incríveis”. pela Prefeitura de Garanhuns, foi lembranças de mim mesmo, sob
simples, mas não menos aventuro- abraço antigo e novo, a) Drummond.” páginas, recebeu o prê- prefaciado pelo Mons. Adelmar a perspectiva do escritor adulto
so e esperto cavalinho brasileiro. A crítica literária Maria da Paz mio de monografia da
O ajudante de mentiroso da Mota Valença, que comenta: que resgata, das lembranças
A Grécia mais fantasiosa e o Brasil Ribeiro Dantas assim avaliou Fundação do Patrimônio Histórico Marcílio Reinaux, participou do de menino, a construção de seu
mais cotidiano e verdadeiro num (Editora José Olympio, esse que foi o último livro de Luís e Artístico de Pernambuco – Fun- concurso que instituiu o “Prêmio universo emocional e social. [...]
livro para crianças. 1980) Quando saiu o li- Jardim: darpe, em 1988, e foi publicado no Literário Luís Jardim”, escondeu Assim, a natureza da narrativa é
Quando da publicação desses vro, o Jornal do Brasil “Em 1977, é editado o livro de me- ano seguinte, por essa mesma ins- o seu nome sob o pseudônimo de dualística alternando fato e ficção,
livros, Carlos Drummond de An- registrou na coluna de mórias Meu pequeno mundo. No tituição. Na apresentação da obra, João de Xandu, nome de um primo confissão e resistência. Tais aspec-
drade escreveu ao autor: “Querido lançamentos, no dia 17 ano seguinte, Façanhas do cavalo disse o poeta, crítico literário e postiço e companheiro de infância tos traumáticos e confessionais
Jardim: Por Jove! Quando Diana vai de junho de 1980: “Luís Jardim está voador e Outras façanhas do cava- professor universitário César Leal: de Luís Jardim. Agora a prefeitura das narrativas de meninice tanto
ao costureiro para fazer fofoca: de volta às livrarias, desta vez com lo voador. Finalmente, já em 1980, publica o livro para alegria de to- de Graciliano Ramos como de Luís
uma novela picaresca. O ajudante “Luís Jardim: ficção e vida, de Maria
Apolo encomenda farinha, e Júpiter Luís Jardim encerra sua obra de da Paz Ribeiro Dantas, foi escrito dos nós. As serras, verdes ou não, Jardim são abordados sob o viés
‘fica por conta’, então a mitologia de mentiroso (Editora José Olympio, ficção com a ‘novela picaresca’ O quando vistas de longe, são sempre
dentro dos princípios e critérios memorialista, com suas impreci-
se naturalizou brasileira, e nossos Rio, 161 páginas). Ambientado no ajudante de mentiroso, texto que azuis... Assim é o passado da gente:
que orientam os estudos literários sões e lacunas na recuperação do
adolescentes podem desfrutar com interior do Nordeste, O ajudante embora revelando uma expe- modernos, servindo-se a autora quanto mais distante, mais azul. E passado. Para isso, examinam-se
a maior facilidade os encantos, as de mentiroso narra as proezas riência das coisas e da gente do de um equipamento teórico in- eu vejo, no azul do meu passado já as diversas funções da memória,
graças, os mistérios e os símbolos do ‘gordo, estranho e destemido agreste pernambucano e do ser- dispensável à análise das obras tão distante, a figura de Marcílio nesses relatos de vida, com base
senhor Pantaleão Siqueira de tão nordestino, de um modo geral,
do Olimpo, até agora privilégio de centradas na ficção narrativa. É Reinaux, menino de cinco anos, nos conceitos de Philippe Lejeune
Araújo’, que como todo bom herói
letrados – tudo isso com a assesso- não possui a vivacidade de Maria um estudo bem elaborado; apoia-se um “toquinho de gente”, aluno do sobre gêneros autobiográficos e
do gênero ‘é defensor de pobres
ria do bom Voador e do estimável Perigosa. A narrativa é monótona numa bibliografia moderna, e, sem Curso Infantil do nosso Ginásio! Ele de Maurice Halbwachs sobre me-
e oprimidos, inimigo ferrenho de
Tiúba. Milagre literário praticado e cheia de considerações morali- deixar de ser um estudo interdis- e seus coleguinhas, vestidos com mória individual e coletiva. Dá-se
prepotentes orgulhosos e sober-
por você, que já se patenteara no zantes por entre situações típicas ciplinar, conta com uma aplicação suas fardazinhas, passavam res- especial atenção ao problema da
bos, desdenhoso da empáfia e tolo
ramo com a incorporação do Meni- através das quais se define bem bastante eficaz dos estudos da psi- peitosos. E, passando, me enchiam veracidade e da verossimilhança
orgulho dos ricos’.
no Jesus à poesia da nossa infância o tipo de Pantaleão, espécie de D. cocrítica, especialmente de autores de inveja, pois, infalivelmente, me nos relatos. No resgate de lem-
rural. Você não avalia a surpresa A Folha de S.Paulo registrou: Quixote a que falta o senso de hu- como Freud, Jung e muitos outros faziam recordar as palavras do branças, focaliza-se o modo como
que me causou, ao me julgar digno “Estamos diante de uma obra pica- mor para temperar a excessiva que se não fazem da crítica psica- Divino Mestre: “Deixai vir a mim o narrador articula os discursos
de montar no Pégaso, eu que no resca. Com 79 anos de idade, onze seriedade do bom senso”. nalítica um processo exclusivo de as criancinhas!” na tessitura narrativa.
38 Julierme Galindo comanda a Troupe Azimute. Seus ato- 39
res têm formação no “Vem Ver Teatro”, curso de inicia-
ção teatral fundado pelo diretor JG. Atores vão em busca
de melhores condições pelo Brasil e Ga­lindo continua seu
trabalho na Garanhuns de LJ. Entre 2010 e 2014, o gru-
po adaptou e encenou três contos de LJ. Assim, “Aruá, o
boi encantado” foi visto em festivais, mostras, escolas em
Pernambuco, Sergipe, Paraná e São Paulo. Nesta entre-
vista para Hexágono, Ga­lindo comenta a recepção da
obra de Luís Jardim.

A PERSPECTIVA
DA NATUREZA
EM LUÍS JARDIM
[hexágono] [hexágono]
40 Quando surgiu o interesse pela obra de Luís Jardim? Num tempo de videogames e tão urbanizado, o mundo rural das
41
histórias infantis de Luís Jardim ainda pode despertar interesse
[julierme]
da criança?
Quando da ocasião em que o grupo foi convidado para a reinaugu-
ração do espaço cultural que recebe o seu nome, no ano de 2002. [julierme galindo]
Foi nesse momento que nasceu a primeira adaptação para teatro Acredito que sim, tanto é que “Aruá, o boi encantado” ainda fascina
do conto infantíl “O Boi Aruá”. e encanta nossos espectadores por onde passamos. Mesmo nos
apresentando em grandes centros urbanos, como São Paulo.
[hexágono]
O grupo se interessou pela obra infantil ou também por sua obra, [hexágono]
digamos, adulta? Foi uma decisão de interesse coletivo? Afora o fato de ser da mesma Garanhuns, que elementos estéticos
[julierme galindo] o aproximaram da obra de LJ?
Na verdade o interesse de levar a literatura de LJ para a cena foi [julierme galindo]
muito mais minha que coletiva, que me encantei e me apaixonei O fato de sua escrita ser popular, mas conter um certo eruditismo
logo de imediato, quando do primeiro contato com sua escrita. que não espanta os mais hostis à leitura.
Então, depois da experiência bem-sucedida com “Aruá”, resolvi
adaptar um conto adulto. Foi aí que, lendo Maria Perigosa, vi no [hexágono]
conto “Paisagem perdida”, uma história romanceada, pronta para ser Qual a parte mais difícil de se adaptar para o teatro, tendo-se o
encenada. Fiz a adaptação e o resultado foi tão bem-sucedido quanto caso da obra de LJ?
com o infantíl. Prova de que havia uma identificação imediata da
escrita de Jardim com o nosso público. Cumpríamos, assim, não só [julierme galindo]
nossa proposta estética, mas revelamos sobretudo a grandeza e Manter a unidade e a essência da obra. Sua coerência e coesão.
excelência literária de um dos nossos mais célebres escritores.
[hexágono]
Como é ou foi a recepção dessas adaptações pelo Brasil?
PODIA VER OS PÁSSAROS, [julierme galindo]

AS ÁRVORES E TODO UM CENÁRIO Em todos os lugares, fomos muito aplaudidos e percebemos que o
texto de Jardim provoca uma empatia muito forte no espectador.

QUE EU CONHECIA BEM [hexágono]


Vocês adaptaram LJ um pouco mais de vinte anos após sua morte.
Que “adaptações” dentro da própria adaptação você como diretor
[hexágono] se viu forçado a fazer?
Quando leu pela primeira vez Luís Jardim e quais foram as suas [julierme galindo]
impressões iniciais dessa leitura?
A oralidade... o texto foi respeitado e sempre dizemos as falas dos
[julierme galindo] contos da forma como foram originalmente escritas. Houve um
Conheci a escrita de Jardim um pouco tarde, na minha visão. Já amadurecimento estético da montagem que foi se aprimorando.
era do meio teatral, mas só o conhecia de nome. Eu trabalhava
muito com a dramaturgia em si, e aos poucos fui me interessando [hexágono]
por adaptações de contos e romances para teatro. Foi numa dessas Quantos espectadores viram o espetáculo?
buscas que me debrucei sobre os livros de LJ. Vi em suas narra-
[julierme galindo]
tivas nomes de lugares comuns à região onde moro. Podia ver os
pássaros, as árvores e todo um cenário que eu conhecia bem. E foi Com “Aruá, o boi encantado”, foram quase quatro anos de temporada.
incrível perceber que ele nos conduzia a percorrer esses cenários, Aproximadamente doze mil pessoas chegaram a ver o espetáculo.
como nenhum outro escritor já tenha feito. E “Vicência”, que foi a adaptação de “Paisagem perdida” , umas sete
a oito mil pessoas.
FORTUNA
[hexágono]
42 Que diferença de emoções ou características da recepção você
43
notou pelo Brasil adentro e afora?
[julierme galindo]
As crianças por exemplo ficam deslumbradas com as imagens de
pássaros, animais, árvores que compõem a cenografia de “Aruá”.

CRÍTICA
Já os adultos, com “Vicência”, choram e se envolvem com a história
de amor proibida traziada por LJ.

E FOI INCRÍVEL PERCEBER QUE ELE


NOS CONDUZIA A PERCORRER ESSES
CENÁRIOS, COMO NENHUM OUTRO JUROS COMPOSTOS em mim, sem a impureza das coisas que se

ESCRITOR JÁ TENHA FEITO (A PROPÓSITO DO LIVRO


realizam, sem sujeição ao espaço nem obedi-
ência ao tempo”. Ou, então: “Nem sei o que se-
ria melhor: se o beijo real ou o evocado que

[hexágono]
AS CONFISSÕES DO MEU TIO eu retinha na boa o tempo que quisesse”.
Creio que Luís Jardim, que criou em forma
Qual a importância que tem a cidade de Garanhuns, onde nasceu GONZAGA, DE LUÍS JARDIM de imitação da vida diversos tipos fugazes,
o escritor, para a composição de sua obra literária? como contista, não chega a criar uma per-
José Geraldo Vieira sonagem neste Tio Gonzaga tão antropófago
[julierme galindo]
Este livro, publicado pela Livraria José que devora seus êmulos e comparsas, fican-
Acredito seja aqui sua maior fonte de inspiração. É aqui onde LJ vem do apenas como um locutor oculto em todo
Olympio Editora, tem a sua problemática
revisitar seu passado e trazer para as suas páginas as memórias o livro, qual lobo frontal que privado da pa-
originada talvez ainda em Les Nourritures
de sua curta passagem por estas terras. lavra em vida, por qualquer afasia, depois,
Terrestres, mas em evolução muito extrema,
quase proustiana, em certos pertuitos. Mas na mesa da morgue do romance, desprende
[hexágono]
não é esse caráter exemplificado a todo ins- “memórias” e “confissões” como um incenso
Por que um autor tão premiado e com uma linguagem tão clara, tante através de símbolos que queremos muito nosso, sim, muito a Machado e a Ciro
de agrado de todos os leitores, está com a obra esgotada e não examinar, e sim a sua possível classificação dos Anjos quanto ao carvão e às volutas, um
costuma ser visto no teatro e nas livrarias com frequência? na novelística. pouco como o velho Anatole quanto à caçoila,
[julierme galindo] Não se diga que Machado de Assis e Ciro mas muito a Proust, quanto ao ‘bouquet’ da
dos Anjos sejam padrinhos, um de batismo e emanação sensorial e ontológica.
Isso é o que nós também nos perguntamos. Encontramos muitos
outro de crisma, desse admirável e sagaz tio A qualidade deste grande romance de 1949
exemplares em sebos e algumas livrarias virtuais. Acredito que
Gonzaga. Parece-me que quem estranhar a não está, assim pois, em apenas continuar uma
falte reconhecer e dar a Jardim seu verdadeiro status na literatura
afinidade que descobri com o livro de Gide tradição da melhor categoria do ro­mance
universal. E iniciativas com desta Hexágono, como a nossa, possam
acabará concordando comigo se prestar brasileiro; dentro da hora presente não re-
fazer a diferença para Luís Jardim ser mais lido e/ou assistido.
atenção em certos trechos. Por exemplo: presenta uma volta a processo nem uma satu-
“Nunca vi ninguém preso a uma filosofia, ração que procurou uma hipóstase qualquer.
regra e conduta de vida a seguir, direi an- Parece-me que se estas ‘confissões’ fossem
tes que o que Dulce supunha ser sua moral uma ‘aura verbal’ de agora, heidiggeriana,
era simplesmente sua natureza”. E quem es- da frustração conseguindo salvar-se pelo
Julierme Galindo é ator e diretor de teatro, fundador do “Vem Ver
tranhar a minha afirmação quanto a dicoto- cinismo ou pela ruminação de conceitos a
Teatro”, curso de iniciação teatral que coordena em Garanhuns (PE).
mizações tipo Proust, que leia, por exemplo, Tchecov, Averchenko ou Shaw, este livro não
Galindo adaptou e encenou vários textos de Luís Jardim para o palco.,
em espetáculos que circulam pelo Brasil. este outro trecho: “Tais fatos não acontece- seria sincero, e sim ‘ersatz’. Mas é Universal
ram materialmente, é claro, mas ocorreram porque além duma característica básica bem
nossa, representa os juros compostos das re- Se Carlyle gostava tanto dessa obra, se O novo contista tem sido feliz nos concur- do por um único pensamento: os cegos. “Era o
44 servas e dos depósitos deixados por Arcesilau. ­Co­leridge a relia sempre, e se o nosso Machado sos. Em um ano, três vitórias. No concurso de ato perfeito de um animal, engolindo de dia e
45
O tio Gonzaga entrando contemporanea- a tinha na sua mesa de cabeceira, vou fazer o Literatura Infantil do Ministério da Educação ruminando de noite, quase por instinto, o ali-
mente na atmosfera objetiva dum Eugenio mesmo com As confissões do meu tio Gonzaga, ganhou o primeiro prêmio, com o seu Boi Aruá. mento torturante da cabeça teimosa: porque
Heitai, nos solilóquios cênicos dum Pirandello, esse descendente em linha varonil dos Acar- Num outro de livros de estampas, do mes- diabo teria nascido cego, o seu filho. Ele, o pai,
na expressão caricatural dum Gogol, passa de nanios criados pelo velho Aristófanes. (Publi- mo Ministério, alcançou a segunda colocação, não tinha os olhos bons, vendo tudo? Teria pe-
relance nas adegas de Rabelais e nos traz re- cado no Jornal de Notícias, de São Paulo, em 22 de com O tatu e o macaco. gado com o cego, grande? Mas Umbelino tam-
cados dum Boccacio e dum Maquiavel. janeiro de 1950, segundo caderno, p. 1). Disputando, com quase uma centena de bém era cego de nascença, dizia a tia. Talvez
E isso conseguido em dois planos de arte- candidatos, Luís Jardim conseguiu a tercei- má sorte, gente pobre era sempre sujeita a
sanato: um plano verbo-motor neomacha- MARIA PERIGOSA ra láurea: Maria Perigosa mereceu o prêmio tudo. Talvez outra coisa. Outra coisa!”
diano, digamos assim, e um plano introspec- Humberto de Campos, instituído pelo editor E o pensamento obsessionante, machucan-
Rio, 27 (Da nossa sucursal, via Vasp) – O
tivo pós-proustiano. José Olympio, para incentivar os contistas do o cérebro primitivo de Joaquim, cresce de
Sr. Luís Jardim não nos era um nome estra-
Neste gênero de confissões, tio Gonzaga brasileiros que, segundo a opinião dos enten- intensidade e contra o próprio filho, compe-
nho, antes de conquistar o prêmio Humber-
não recorda e nem pede absolvição. Confis- didos, inexplicavelmente, não possuem o mes- lindo-o a procurar eliminá-los, no que é impe-
to de Campos, instituído pela Livraria José
sões aí não significam descargos de consci- mo público dos modernos romancistas. dido pelo tio Borges.
Olympio Editora, apesar de vivermos mais
ência, e sim, muitas vezes, delírio da reali- A desmoralização dos concursos literários Vicência, Manuel Quirino e João Toté, de
ou menos afastados da coisa literária. Já nos
dade transcendente, ‘imaginada’, a outra no Brasil chegou a tal ponto que somos levados, “Paisagem perdida”, o melhor conto do livro,
acostumáramos a admirar as suas qualida-
realidade de que a existência é mero dia- sempre, a olhar com desconfiança todo livro mostram a capacidade de Luís Jardim para
des de ilustrador e pintor. Igrejas coloniais,
grama estratégico para a mentira aparente premiado. Fonte de escândalo, os valores reais criar tipos. Todos se movimentam com gran-
ruas estreitas, tortas e cheias de poesia do
da verdade contida. deles se alheiam, dando lugar a que mediocrida- de naturalidade e como que se integram na
passado do velho Recife ganharam na sua
Tio Gonzaga não é pois um tipo, no roman- des, literatos da pior espécie, saiam vencedores. paisagem agreste do sertão.
pena admirável de artista do branco e preto
ce, nem ficará sendo, depois da leitura. É um Generalizou-se a prevenção dos leitores e con- O Norte, que já nos deu um grupo de roman-
encanto enorme, envolvente. Para o Guia de
locutor discreto, que conta lados de rotina correntes. Livro que tenha na capa prêmio da cistas tão poderosos, nos presenteia agora com
Ouro Preto, que o Serviço do Patrimônio His-
ou de exceção da vida, passando-se pelo cri- Academia Brasileira afasta todos os leitores de um contista de valor – Luís Jardim. (Trecho da
tórico e Artístico Nacional encomendou, es-
vo de símbolos. E essa rotina e essa exceção bom gosto. Raras vezes injustamente. resenha “Maria Perigosa”, de Geraldo Mendes
pecialmente, ao poeta Manuel Bandeira, Luís
não são relatadas como aspectos recônditos A probidade e capacidade da comissão jul- Barros, uma das primeiras críticas sobre Luís
Jardim fez quarenta e dois desenhos, fixando
de busca de situação-limite, nem tampouco gadora do prêmio Humberto de Campos nos Jardim escritor, saiu publicada no Correio Pau-
os sítios pitorescos da velha cidade mineira.
como lastro atirado ao mar para a hipótese levou à leitura da Maria Perigosa. E não nos listano, em 28 de maio de 1939, p. 4).
Obra de caráter estritamente informa-
da superação. Não há amargura nem des- arrependemos.
tivo, revela, no entanto, trabalho amoroso
valimento, e sim estado crítico panteístico,
de dois artistas de fino gosto e sensibilidade.
A literatura brasileira possui mais um PENDOR AUTOBIOGRÁFICO
de disponibilidade e gratuidade. Tio Gonzaga contista de real valor. Luís Jardim sabe fixar
O poeta nos deu um livro sedutor pelo con­ O que talvez mais caracterize a figura ex-
registra e exterioriza em broadcasting e em com firmeza de traços o retrato psicológico
teúdo, agradabilíssimo pela leveza e graça cepcional de Luís Jardim como ficcionista seja
onda curta o seu mundo encarado, assisti- das almas primitivas dos homens do sertão.
do estilo. E Luís Jardim completou o encanto o seu pendor autobiográfico, tão claro nas
do e testemunhado, e então se revela não o Narrador fluente se expressa naquela lin-
do Guia, com um punhado de desenhos admi- suas páginas de memorialista específico de
homem-contingente de agora, mas a pre- guagem gostosamente brasileira, em que são
ráveis, onde a sua arte poetiza o passado da uma nova maneira: as suas mais expressivas
sença-registro que fala do passado com um mestres os atuais escritores nordestinos.
Cidade dos Inconfidentes. Esses quarenta e afirmações de escritor literário. As que cons-
mistério tão novo como se o leitor estivesse Neste particular, o conto “O ladrão de cava-
dois desenhos asseguram-lhe posição incon- tituem O meu pequeno mundo. As que o crítico
presenciando a um arúspice falar do futuro. lo” merece uma referência especial. O autor
fundível entre o nosso pequeno grupo de ar- literário, tanto quanto, ele próprio, magnífico
Isso porque a realidade contada não evola soube construi-lo com pulso de mestre. As ma-
tistas do preto e branco. ficcionista, Josué Montello, não hesita em con-
como fato nem crítica, nem como confissão e nhas do ladrão de animais, as peripécias das
Ultimamente, o pintor e ilustrador surgiu siderar das melhores páginas escritas em
remorso, e sim como epifenômeno dessa rea- diligências e, no final, a entrega espontânea
assinando contos em O Jornal e no Diário de No- língua portuguesa. Isto mesmo: não só no Bra-
lidade central, o Tempo, da qual, agora e aqui, de Manuel Três Braças com medo de morrer
tícias. Diz uma informação que, escrevendo sil, mas no total da língua portuguesa.
Luís Jardim é o continuador. Mas não o conti- de bexiga, faz-nos lembrar Afonso Arinos.
o primeiro trabalho deste gênero para Lan- Entretanto, disperso no ficcionista, está,
nuador dum Santo Agostinho, dum Rousseau Os tipos do Sr. Luís Jardim são rudes e vi-
terna Verde, conquistou os aplausos do meio quase sempre, um memorialista dissimulado,
ou dum cardeal de Retz, e muito menos dum vem a vida dos instintos, onde não falta dra-
literário que descobriu em Luís Jardim um songamonga, presente no próprio autor de
Saint-Simon, mas sim dum Sterne. Em muito, maticidade. “Os cegos”, por exemplo, é muito
escritor de largos recursos. Não conheço o livros para crianças. Também nesses seus li-
este livro lembra o clima de Tristram Shandy, bem lançado. Joaquim e o velho Borges vi-
conto que determinou a fixação no gênero. vros, e nos de base folclórica, como O Boi Aruá,
principalmente naquele tio Toby. vem realmente. Sobretudo Joaquim, tortura-
Luís Jardim chega, a meu ver, a uma expres- como no do específico memorialismo e na sua acompanho desde suas primeiras aventuras, antigos, e a eles se ligam pela homogeneidade
46 sividade superior à das suas páginas da mais literatura dramática – em Isabel do Sertão e quer de escritor literário, quer de artista da inspiração, alimentada em recordações de 47
pura ou da mais convencional ou da mais es- Em Meu pequeno mundo – que Luís Jardim é plástico. (Trecho do artigo “Luís Jardim: puro infância. Independentes entre si, integram-
pecífica expressão ficcionista como as de Con- superior, em expressividade, tanto a Meus autodidata?”, publicado no opúsculo Imagem e se em três ciclos, diversos em atmosfera e
fissões do Meu Tio Gonzaga. Verdes Anos como às memórias de Gracilia- texto: homenagem ao pintor e escritor Luís Jardim, tom, mas enquadrados na mesma paisagem
Note-se que, neste – uma das suas ostensi- no Ramos. E também como companheiro do organizado por Edson Nery da Fonseca e pu- evocada com plástica sobriedade.
vas novelas, a despeito do título – Confissões do que o memorialismo, em língua portuguesa, blicado pela Fundação Joaquim Nabuco/Edito- Um dos ciclos retrata adolescentes no
Meu Tio Gonzaga – Luís Jardim, seguindo suges- apresenta de mais criativamente brasileiro: ra Massangana, Recife, 1985). instante em que se deparam com as crises
tão ou modelo inglês, dá ao leitor a impressão as páginas de Gilberto Amado, nas telúricas transcendentes da vida: o amor, o sobrenatu-
de ir defrontar-se com um memorialista. O li- evocações de sua infância em Sergipe e eco- O RETORNO DE ral, a arte, a doença. O frêmito transmitido a
vro, porém, é novela, sem, na sua expressão lógicas de primeira mocidade no Recife – só um garoto pelos afagos da criada Conceição, o
literária, apresentar Luís Jardim no melhor nessas, nas outras, não; as de Pedro Nava, nos MARIA PERIGOSA terror pânico infundido noutro pela quebra
de sua criatividade de lastro autobiográfico ao seus mais admiráveis trechos, isto é, os mais de um santinho, a convivência de um rapazi-
mesmo tempo que ecológico. Esse lastro ecoló- livres de excessivas especificações cronológi- Paulo Rónai nho com o possesso vaqueiro Luís Pinto, que
gico que, segundo Mário de Andrade, constitui cas; as de Rachel Jardim: primorosa mestra Numa nota modesta que antepôs à reedi- vê mais que os outros, o seu encontro pertur-
em Luís Jardim, um muito íntimo relaciona- no gênero: talvez a mais primorosa mestra ção de Maria Perigosa, afirma Luís Jardim que bador com a louca Maria Perigosa, as aluci-
mento nordestino entre Casa-grande & senzala. ou mestre de memorialismo no Brasil. esse livro “já estava arquivado. Quis o editor, nações de um menino convalescente recapi-
Luís Jardim, porém, supunha que talvez fos- Em Luís Jardim, o memorialismo específi- reavivando passada aventura, dar-lhe nova tulam vivências universais, a que o cenário
se Confissões do Meu Tio Gonzaga, sua revelação co é, ao mesmo tempo que telúrico, ecológico, aparência”. brasileiro confere, porém, matiz inconfundí-
como quase um novo Machado de Assis sob os- sem nunca deixar de ser lírico no que evoca, Assim sendo, José Olympio tornou-se dupla- vel. O autor soube resguardar suas reações
tensiva e, até pura, forma novelística. Sou dos surpreende, fixa, de sua própria experiência. mente credor da nossa gratidão: não somente de menino – pois é ele que se revela ou se dis-
que pensam que não foi. Como sou de opinião Autobiograficamente, portanto, de forma mui- reeditou um bom livro de contos, mas concor- farça em todos esses jovens – e não falseá-las
que ele não precisava e até não devia procu- to sua: artística e não apenas – verbal. Arte reu para o nascimento de uma obra-prima com perspectivas de adulto. A intensidade
rar ser novo Machado de Assis ou competir literária animada de visão de pintor. Mas um da ficção brasileira moderna. Com efeito, se o com que tais figuras sentem a vida lembra
com seu contemporâneo Guimarães Rosa ou visual parente daquele de que, certa vez, em livro quase duplicou de volume, cresceu ain- as hipersensíveis personagens de Enfantines,
com seu parente literário, sob vários aspectos almoço no próprio campus da Universidade de da mais em significação. de Larbaud; apenas, as suas reações são pau-
quase irmão, José Lins do Rego, para afirmar-se, Sussex, um dia após termos sido os dois douto- Por um fenômeno curioso ainda por anali- tadas pelos ritos e pelas superstições de um
por si mesmo, um dos mais criativos escritores rados pelo então Reitor Asa Briggs, falou-me o sar, o extraordinário surto da ficção nordestina ambiente rústico, primitivo e fechado.
literários brasileiros de qualquer época. grande escultor Henry Moore. Isto é, um visual limitou-se quase exclusivamente ao setor do Outra contribuição preciosa de Luís Jardim
Daí repetir eu, que não é sob a pura for- que vê, como que apalpando com os olhos gen- romance. Individualidades tão diferentes como para a prosa brasileira é um humour peculiar,
ma novelística – a convencionalmente pura – tes e coisas, e não apenas vendo-as. É ao que Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de indireto e aparentemente casual, que se des-
que está firmada, na literatura brasileira, do se assemelham pessoas, coisas e animais evo- Queiroz, Jorge Amado, assemelham-se na pre- prende dos pormenores da narrativa sem que
nosso ou de qualquer tempo, uma presença cados pelo memorialista Luís Jardim: a sujeitos ferência por esse gênero que permite desenro- o autor dê por isso, em circunstâncias as mais
de Luís Jardim digna das melhores atenções, ou objetos apalpados e não apenas vistos pela lar a poderosa visão de um mundo rudimentar imprevistas. É esse humorismo pince-sans-ri-
quer de críticos de várias tendências, quer – pura visão do artista que os recorda. Apalpa- ou dissecar à vontade almas torturadas. Só por re que ilumina “Coragem” e “Ladrão de cava-
como vem acontecendo – de públicos sucessi- dos imaginativamente por dentro e não apenas exceção, eles se aventuraram nos domínios da lo”, mas sobretudo “Coisas da noite” – em que
vos. Esses consagradores públicos – mais que por fora. Nos seus íntimos possíveis, prováveis, short story, sem lá deixar, ali­­ás, vestígios profun- um cavaleiro noturno, para espantar o medo,
os críticos – sucessivos. mais reais que os reais, e não somente nas suas dos. Pois, em Maria Perigosa, Luís Jardim busca mantém singularíssima palestra com o cavalo
É, perante esses públicos – já no seu caso, aparências ou nos seus exteriores. e encontra na farta substância poética do Nor- – narrativa de que a aguda sensibilidade ar-
de escritor agora de oitenta anos e desde Daí não haver exagero em considerar-se deste, autênticos motivos de conto e explora-os tística de José Lins do Rêgo tão acertadamente
jovem escritor literário, representantes de Meu pequeno mundo livro mais que livro em com arte consumada. apreciou a graça grotesca. Não se contam, por
pelo menos duas expressivas gerações – que que literariamente, artisticamente, criativa- Às sete narrativas da primeira edição, vêm- outro lado, os divertidos achados verbais em
Luís Jardim, em livros para crianças, supera mente, mais afirmou-se Luís Jardim. O livro se juntar, mais de vinte anos depois, outras “João Piolho”, retrato de um alfaiate amigo das
seu notável contemporâneo José Lins do Rego, que o situa em lugar de relevo na literatura seis, acréscimo que de modo algum quebrou artes, de fala bonita e loucura mansa, a quem
da Velha Totônia, embora no puro setor da em língua portuguesa: sugestão, já lembrada, a harmonia do volume; tal qual o temos agora a morte de um companheiro querido acaba
ficção especificamente novelística, não se do crítico, além de ficcionista, Josué Montello, em mão, ele parece uno e perfeito, como se logo por desorientar de vez.
verifique essa superação. Verifica-se, entre- com a qual coincide o que vem sendo minha tivesse nascido assim. De fato, mesmo os contos Nas histórias cômicas como nos episódios
tanto, não só no setor do livro para crianças interpretação de um escritor cuja ascensão “novos” são, quase todos, contemporâneos dos trágicos, o autor obriga-nos a escutá-lo com a
respiração contida, a participarmos sem re- narrador. Impossível deixar de senti-la nes-
48 servas das aventuras de suas personagens. ta página de “Paisagem perdida” em que os
Não se interpõe entre a história e o leitor, amantes, inesperadamente, vêm a saber que
mesmo que a narrativa seja feita em primei- o seu amor é condenado:
ra pessoa: as nossas emoções nunca são pro- “O velho Manuel Quirino, por sua vez, to-
vocadas por comentários, resultam dos fatos mou o tição, soprou a asa mortiça. Vicência
narrados. Desse contato imediato com a ma- esperava de lado, cabisbaixa. A fumaça ardia
téria, nasce, em parte, a grandeza dramática nos olhos do velho, ele recuava o rosto, e o ci-
desse ciclo – e em “Os cegos” a impassibilidade garro de palha passava de um canto a outro
do relato acentua a atmosfera quase insupor- da boca, meio mastigado. O velho deu a pri-
tável de pesadelo. “Paisagem perdida”, tam- meira baforada, depois de algum tempo deu
bém já incluída na primeira edição, confirma, outra, mas não entregou o tição à filha. Aper-
na releitura, suas qualidades admiráveis: não tou os olhinhos miúdos, como se ainda ardes-
há uma palavra a mais, um gesto supérfluo sem, e fitou por algum tempo João Toté. O viú-
nesta singela história de dois pobres aman- vo mexeu-se no banco e tossiu sem vontade.
tes do sertão. Dentro de um horizonte estrei- O velho então fez uma cara de riso, aquele
to – onde escasseiam os acontecimentos e as risozinho mangador com que precedia e fin-
ações, e até as palavras – as paixões abafadas dava toda a conversa:
atingem um paroxismo trágico. Na mesma al- – Cá na minha opinião, água salgada com
tura, raramente atingida pelos melhores con- água doce não presta. Vira água salobra. Eu
tistas, se mantém o estranho “O homem que só bebo água dum pote só. E bem assim é raça
galopava”, onde se sente algo da fatalidade que muito se mistura. Com essa ideia é que eu
inelutável das grandes histórias de Kipling. guardei Vicência para casar com o Batista, o
É a narração, dir-se-ia indiferente, de uma filho mais velho aqui do compadre e mano Ja-
arbitrariedade policial; é também, implicita- cinto. Havendo barulho, fica nas paredes da
mente, a condenação de toda uma ordem de mesma casa.
coisas; e é ainda, num plano quase mítico, um Vicência não deu uma palavra, não teve
exemplo do ódio do homem primitivo a todo um gesto. O rosto não revelou o menor con-
mistério e a toda superioridade. tentamento ou menor tristeza. Era como se
Não é raro os nossos escritores, mesmo os nada tivesse ouvido. Todos a olhavam, curio-
bons, confundirem-na com brutalidade. Nos sos. João Toté empalideceu e baixou a cabeça,
contos de Luís Jardim, de excepcional vigor, raspando com a unha a tábua do tamborete.”
não há acúmulo de pormenores escabrosos Mesmo quando parece aceitar um desafio,
nem de expressões cruas. As personagens Luís Jardim dá impressão de completa natu-
falam com propriedade e sabor, sem exces- ralidade. Verdadeira façanha, nesse sentido,
sos de regionalismo; a sua fala representa a reprodução das conversas do vaqueiro Luís
um compromisso particularmente feliz que Pinto, grande poeta analfabeto, com um garoti-
parece abolir as divergências da linguagem nho sobre assuntos de poesia: rima, ritmo, mote,
regional e da língua comum. Outro segredo forma e conteúdo, sem que por um instante se-
que o escritor possui no mais alto grau é o da quer sintamos algo pedante ou inverossímil.
poesia. Muitas vezes, se elogia esse dom para Como se tudo isso não bastasse, o nosso au-
desculpar as insuficiências de prosador: inca- tor – homem de cem instrumentos – ilustrou
pacidade de arquitetar enredo, de plasmar profusamente o livro com belas gravuras, as
personagens, de reproduzir diálogos. Não é quais impressionam pelo frescor, fielmente
este o caso de Luís Jardim. Em seus contos o transmitido, das fortes emoções. (Prefácio da
poético provém da essência das coisas obser- 3ª edição de Maria Perigosa, Editora José Olym-
vadas, da firmeza da frase, da gravidade do pio e Instituto Nacional do Livro/MEC, 1971).

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