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Murillo (1617/18–1682).
Museu do Prado, Madri, Espanha.
Entrevista com
Nivaldo Tenório
30 43
mais variadas áreas da Literatura como
e livros de & sobre Julierme Galindo
o romance, o conto, a crítica literária, o
teatro, a poesia e a crônica. Clarice Lis- Luís Jardim
pector, Maria do Carmo Barreto Campello
de Mello, Celina de Holanda, Francisca Izi-
dora Gonçalves da Rocha, Edwiges de Sá
Pereira e Ladjane Bandeira, analisadas
também pela crítica conceituada de Per-
nambuco de, pelo menos, duas gerações.
A vida de Luís Jardim daria talvez Fortuna
o autor. Que a bibliografia cronistas, críticos literários. para um tema de romance, tão trágica
sirva tanto para que conhe- Sempre que possível, aspec-
crítica
é no começo, meio aventurosa no meio, e
ça o que publicou o autor e tos não óbvios, ou mesmo no- tranquila dos anos mais maduros até o
alguns dos que se ocuparam vos, são trazidos à tona. fim. Tinha ele o duplo e raro talento para
de analisar sua obra, mas Temos em Hexágono, um ser admirado por adultos e crianças. Ti-
também como um ponto de convite à viagem com auto- nha ele o duplo e raro talento de escrever
partida para que possa rea- res que têm também outro e desenhar. E também de traduzir.
lizar a própria pesquisa. Que ponto em comum: são nacio- Mas o que mais importa em Luís Jardim
na entrevista aprenda, de nais e internacionais, a par- é a qualidade das histórias, dos artigos, dos Hexágono, revista literária em seis volumes, agradece, nesta edição, aos colaboradores Mário Hélio, pelo ensaio
modo mais coloquial e infor- tir de Pernambuco. Não há desenhos, das pinturas. Aqui abordamos crítico; Nivaldo Tenório, pela entrevista e a Julierme Galindo, pela entrevista e fotos; à Patrícia Cruz Lima, pela
mal, aspectos os mais varia- nisto nem o complexo de can- apenas o escritor. O “pai” de Maria Perigosa, direção de arte, Halina Beltrão pela ilustração da capa, Miguel Falcão pela caricatura de Luís Jardim e Norma
dos em torno desses escrito- tar ou contar a aldeia para o “sobrinho” de Gonzaga, o “irmão” de Pé- Baracho pela revisão. Hexágono é uma publicação da Somnium Editora, e tem incentivo do Funcultura, Fundarpe,
res que elegemos. cantar ou contar o mundo, gaso, o cavalo voador. E tantos outros pa- Secretaria de Cultura e Governo do Estado, com produção-executiva da Nós Pós, de Alexandre Melo. A edição-
Conquanto modesta em mas a natural ressonância rentescos que seria um não acabar. Que as geral, pesquisa e projeto gráfico são de Sidney Rocha, que assina o ensaio crítico nesta edição.. Esta publicação
sua proposição, Héxagono da estética. novas gerações admirem e se encantem não tem ânimo financeiro de nenhuma espécie e é distribuída gratuitamente para estudantes e professores de
não se limita a listar o mais Os críticos convidados a com o seu pequeno-grande mundo, como escolas públicas, além de bibliotecas das redes estadual e municipal. Buscou-se ao máximo se encontrar a autoria de
evidente e reconhecido so- escrever ou conceder depoi- reproduções de fotografias, fotomontagens ou obras de arte, e fazemos chegar nossos agradecimentos aos seus autores
fascinou à de Gilberto Freyre e de Gra-
ou autoras. Se você encontrar este exemplar em lugar impróprio à leitura, ou se é seu e terminou de lê-lo,
bre esses poetas, romancis- mentos à revista são, confor- ciliano Ramos. A prosa limpa e sedutora favor repassá-lo a outro leitor. Impresso pela Cepe Editora, no Recife, no bicentenário da Revolução Pernambucana.
tas, contistas, dramaturgos, me o projeto original, de pelo para os meninos de hoje sempre.
4 O TRAÇO TODO DA VIDA: 5
A PERSPECTIVA
DO HUMANO
EM LUÍS JARDIM
[hexágono]
22 UMA TRAGÉDIA, ENTRETANTO, INCAPAZ O que há de mais original e característico na obra de Luís Jardim? 23
BAUDELAIRE CHAMA DE PÁTRIA zação do espaço onde se passam as histórias, que não é exatamente
Garanhuns e não pode ser outra cidade; os espaços conhecidos por
mim, os quais identifico no nome das ruas ou praças, indicados por
placas, mas que é, no fundo, a cidade que Luís inventou. Refiro-me
[hexágono] ao olhar do menino que foi embora quando tinha 16 anos, depois
Quando leu pela primeira vez Luís Jardim e quais suas impressões de ter sua meninice interrompida por uma tragédia que se abateu
iniciais dessa leitura? sobre a família e mudou radicalmente sua trajetória no mundo,
uma tragédia, entretanto, incapaz de macular aquela infância que
[nivaldo tenório] Baudelaire chama de pátria. É impossível ler aquelas histórias e
Faz tempo, eu ainda era um garoto. Na minha cidade há muitas imaginar que aquele menino foi privado daquele mundo de modo
ruas e praças chamadas Jardim. A cidade que sempre ostentou tão violento. E a segunda é a capacidade de inventar um tipo que
fama de cidade das flores, e por isso os jardins são encontrados não deixo de relacionar com a cidade. Garanhuns é diferente se
– ou eram – em toda parte, também elegeu um prefeito ou outro comparada a outras cidades, aqui o nativo é conhecido pelos foras-
que se orgulhava de certa cultura literária – aliás, a literatura teiros como figura intratável, antissocial e recluso. As pessoas se
sempre foi um paradigma de Garanhuns; atesta isso o número de conhecem e são amigas durante dez anos e nem por isso vão uma
grêmios literários e jornais publicados aqui – Ivo Amaral era um à casa da outra, e a amizade fica restrita ao ambiente de trabalho
desses prefeitos, por isso Luís Jardim – que ainda gozava de certo ou, para os mais chegados, encontros esparsos em restaurantes ou
prestígio, ele que ganhara prêmios literários e arrancara elogios cafés. Os filhos daqui, ou pelo menos os mais antigos, ainda falam
entusiastas de gente como Manuel Bandeira, Drummond e tantos de como a cidade era, no passado, por isso uma expressão odiosa:
outros, foi cedo homenageado em sua terra. Então eu nasci numa Garanhuns, cidade do já teve. Homens como Celso Galvão, Souto
cidade cheia de praças chamadas Jardim e, deste modo, não é difícil Dourado, Ruber van der Linden, sonhavam Garanhuns imensa,
supor, logo cedo me pus em contato com sua literatura, fuçando nas quando a produção de café era escoada pela estrada de ferro,
bibliotecas. As surradas e esgotadas edições do Luís eu as encontrei alguns homens públicos se orgulhavam de conhecer literatura e
principalmente na biblioteca do Sesc, que não por acaso tem o seu se pensava em grandiosidade. Nosso bairro mais importante tra-
nome. Dela, li Maria Perigosa e As confissões do meu tio Gonzaga que duz-se Cidade do Sol. Nossos parques conservam a flora do mundo
gravaram fundo em mim a impressão de descobrir Garanhuns, inteiro, e isso numa época em que ninguém ou quase ninguém
mas não a minha Garanhuns, embora fosse a mesma, melhorada pensava em ecologia. Mas alguma coisa não deu certo, estagnou-
pelo olhar do menino, cercada de mata, rica de fontes minerais e se, restou o saudosismo e um sentimento de impotência. Tudo isso
com as colinas cobertas de neblina, num tempo quando o frio era faz pensar numa aristocracia decadente, e dela surge Gonzaga,
capaz de matar. um sujeito incapaz de resolver os conflitos, passadista, incapaz de
ser feliz. Esse espírito, que atribuo a Garanhuns, foi captado nas
[hexágono] confissões, ou inventado por Luís Jardim.
Considera que Luís Jardim é um escritor regionalista?
[hexágono]
[nivaldo tenório] Qual a importância que tem a cidade de Garanhuns, onde nasceu
Sim, apesar da preocupação psicológica na construção das per- o escritor, para a composição de sua obra literária?
sonagens de As confissões do meu tio Gonzaga (algo que pra mim
o parentava com Machado de Assis) ou o mágico que de vez em [nivaldo tenório]
quando, no livro de contos, se insinua, embora nunca passe de Toda. Luís Jardim é um desses escritores que não podemos dissociar de
insinuação porque se confirma sempre sua preocupação com o seu chão, talvez algo que o vincule ainda mais ao romance de trinta,
imanente, o racionalismo, tudo isso e mais a exploração do mito os regionalistas, mas há em tudo isso uma precipitação na hora das
e a invenção da memória, não conseguiu disfarçar certo cacoete classificações etc. De fato ele está preso ao solo como estão presos ao
regionalista, expresso, sobretudo, no modo como se comunicam as solo outros escritores do romance de 30, mas diferentemente deles e
personagens quando precisam fazer uso da fala. sua denúncia do descaso público ou o fenômeno da seca e êxodo rural,
penso, por exemplo, em Graciliano Ramos e seus sobreviventes sem
24 remissão num inferno sem saída, como é Vidas Secas, e não consigo
deixar de me surpreender com a Garanhuns, de Luís, tão longe da
ALGUÉM É LEVADO A LER UM LIVRO 25
seca, Garanhuns e suas pradarias, o verde e o colorido das flores, as
serras mil metros acima do nível do mar, cobertas de garoa.
NÃO PORQUE ESTEJA INTERESSADO NO
[hexágono]
Dos livros que publicou Luís Jardim, qual o seu favorito? Por que
QUE HÁ DE CORRESPONDENTE ALI COM
esse lhe agrada mais do que os outros?
A REALIDADE QUE O CERCA
[nivaldo tenório]
As confissões do meu tio Gonzaga. Dizem que a gente gosta de um [hexágono]
livro onde nos vemos representados. Talvez o leitor seja mesmo Se fosse entrevistar Luís Jardim agora, quais as perguntas que
uma espécie de Narciso à procura de seu reflexo, eu leio aquele faria a ele?
livro e parece que ele fala de mim. Gonzaga tem todos os meus
vícios e eu me sinto muito próximo a ele, e acho que só os grandes [nivaldo tenório]
livros são capazes desse feito. Eu faria uma pergunta: Por que só dois livros de ficção adulta?
[hexágono] [hexágono]
E dos contos de Maria Perigosa, qual ou quais destacaria como o Num tempo de videogames e tão urbanizado, o mundo rural das
melhor ou melhores? histórias infantis de Luís Jardim ainda pode despertar interesse
da criança?
[nivaldo tenório]
Gosto de todos. Aprecio as imagens noturnas e o sentido de impre- [nivaldo tenório]
cisão que as histórias apresentam. E lamento a preocupação dele Talvez por isso mesmo, possa despertar interesse, desde que haja
em reproduzir a fala das personagens como preocupação com o alguém interessado em apontar esse caminho. Mas acho que al-
registro, isso meio que datam os contos, mas há tantos elementos guém é levado a ler um livro não porque esteja interessado no que
universais neles como a presença do sonho e certo apreço pelo há de correspondente ali com a realidade que o cerca, decerto isso
inconsciente. Por exemplo, as loucas que conheci nos filmes de ajuda, mas o verdadeiro leitor está interessado numa boa história
Felinni sempre me pareceram familiares, pois já as conhecia de e não importa se ela se passa num espaço urbano ou rural, se as
Luís Jardim. Nele não cabem caricaturas, o louco é aquilo que o personagens andam de trens-bala ou puxados por animais de tra-
menino vê, nem sempre condizente com o que o folclore alardeia ção, desde que em todos se busque a comunicação com o humano
ou a psicanálise diagnostica. Loucos podem ser mitológicos, podem e, nesse ponto, Luís Jardim não nos decepciona.
ser fadas ou bruxas, podem habitar o sonho. Meus favoritos são
Maria Perigosa, Paisagem perdida e O homem que galopava. [hexágono]
Gilberto Freyre considerava que o elemento mais característico
[hexágono] de Luís Jardim é o memorialismo, o caráter autobiográfico. Você
Por que um autor tão premiado e com uma linguagem tão clara, concorda?
de agrado de todos os leitores, está com a obra esgotada e não
costuma ser reeditado com frequência? [nivaldo tenório]
Não. Aquilo de ambientar suas histórias em Garanhuns e falar dos
[nivaldo tenório] tios não o faz memorialista uma vez que é tudo memória inventada.
Acho que se ele teve muitos padrinhos no passado, não tem mais Quem nos garante isso – da memória inventada – é sua preocupa-
nenhum hoje. Talvez ele sofra preconceito, talvez daqueles que só ção que não parece se esgotar com o anímico e com a exploração
o conheçam superficialmente e logo tratem de taxá-lo de regio- do mito mesmo quando tudo não ultrapassa o terreno anímico.
nalista tardio e por isso afeito à campa. Não sei. Talvez tudo isso e
o fato de a literatura ser, em nossos tempos, algo desprestigiado. [hexágono]
Talvez a pequenez dos editores que não são mais como no passado, Se fosse estabelecer o ranking dos escritores brasileiros, em que
apaixonados e entendidos de literatura, mas gente apenas de olho posição colocaria Luís Jardim?
no mercado. Realmente não sei.
[nivaldo tenório]
26 Ele foi um bom escritor, acho que o colocaria ali entre os primeiros 27
depois dos gênios.
[hexágono]
Que tipo de humor é o mais característico do autor de Maria Pe-
rigosa?
[nivaldo tenório]
Um pouco como o humor judeu, que ri de si mesmo. Onde o cômico
não exclui o trágico, mas se confirma como matéria do mesmo
metal.
[hexágono]
No que se distinguem As confissões do meu tio Gonzaga e O ajudante
de mentiroso?
Luís Jardim datam desse ano. 1937 - Ganha o primeiro e se- foi a vencedora de prêmio da bro, organizada pelo museólogo
dim’. Mas soube depois pelo meu gundo prêmios no Concurso Academia Brasileira de Letras. Fernando Ponce de León, da Fun-
1912 - Interrompe os estudos irmão Ulisses que esse Jardim é de Literatura Infantil do Mi- dação Joaquim Nabuco, (Fundaj).
por problemas de doença. Con- também artista e lê o seu inglês. nistério da Educação, com O 1968 - Publicação do seu livro
cluiu apenas o primeiro grau. Desenha. Uma rara inteligência. Boi Aruá e O tatu e o macaco. Proezas do menino Jesus. Prê- 1985 - Publicação de Imagem e
Homem de bem. Filão de boa Traduz a peça A morte do cai- mio da Academia Brasileira texto: homenagem ao pintor e
1917 - No dia 14 de janeiro, é família de Garanhuns, onde seu de Letras. escritor Luís Jardim, org. Edson
assassinado no Café Chile, no xeiro viajante, de Arthur Miller,
pai e seu tio foram trucidados que será representada pela Nery da Fonseca, Editora Mas-
Recife, o deputado Júlio Bra- numa luta entre os Jardins e os 1971 - A José Olympio publica sangana/Fundaj.
sileiro. Em retaliação os seus Companhia Jaime Costa. Aventuras do menino Chico de
Brasileiros”.
amigos promovem a dizimação 1938 - É o vencedor do Prêmio Assis, com ilustrações do autor. 1987 - Falece Luís Jardim no dia
dos seus adversários políticos. 1928 - Passa a colaborar com Humberto de Campos com o li- 1º de janeiro, e é enterrado no
Entre os mortos estava o pai de artigos no jornal A Província, 1974 - Com organização de Eugê- cemitério de São João Batista,
vro de contos Maria Perigosa. A nio Gomes, é publicada sua Se-
Luís Jardim. dirigido por Gilberto Freyre. primeira edição reúne sete nar- no Rio de Janeiro.
O ajudante de Confraria dos Bibliófilos do Brasil
30 mentiroso (Brasília, DF). As ilustrações são de
“Hoje, acordado, juro que recor
reria a outro expediente se os
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Eduardo Araújo. Numa carta escrita bolsos gemessem mais do que ge-
Ainda que variada, não
a João Condé, e datada do Rio, 29 de mem; tudo, menos um livro à cata
foi composta de muitos
setembro de 1944, Luís Jardim conta de dinheiro.
livros a obra literária
a história desse livro, e com uma
de Luís Jardim. O talento de escritor “Você me perguntará, sem dúvida,
autocrítica entre irônica e severa:
revelou-se ao público na maturida- se eu repugno ou gosto do livro por
de, tanto os destinados ao público “Meu caro Condé. inteiro. Confesso: ainda gosto de dois
infantil (dois, premiados em 1937 e ou três trechos do “Paisagem per-
“Você me pede que eu conte a
publicados em 1940), e adultos (um, dida”. O resto, perdi de paisagem...
história deste livro. Ora, contar
premiado em 1938 e publicado em
a história de um livro é contar a “Como crítico, declaro: o livro é
1939). Foram mais de quarenta
história de uma vaidade. E pode medíocre. Eu poderia fazer outro
anos de produção, terminada com
ser também a de uma miséria. melhor, se tivesse outra necessi-
o romance – ou novela, como pre-
ferem alguns. “Maria Perigosa é fruto – Deus me dade. Em suma, um livro é uma
perdoe – da necessidade. Não an- aventura, e há aventuras bri-
Maria Perigosa lhantes e apagadas. A minha da
dassem, por volta de 38, os bolsos
Editora José Olympio, do autor mais ocos do que andam os última categoria, mas cá estou,
1938, Prêmio Humberto miolos, e o magro livro de contos ja- vivendo a aventura da vida, bem
de Campos. mais teria esta história. A verdade, melhor do que a da prosa. É só.
opulento amigo, é que era preciso Contos para contas”.
Reúne os contos “Maria
ganhar, pagar, resgatar. Dívidas! Um dos contos de Maria Perigosa,
Perigosa”, “Os cegos”, “Conceição”,
Eis o que se propunha resgatar a “Os cegos”, foi adaptado para a TV,
“Coragem”, “O ladrão de cavalo”, “João
coletânea de contos premiados. Mis- na série Contos Brasileiros, da ex
Piolho”, “Paisagem perdida”, “O casti-
turaram-se, como você sabe, e lá tinta TV-Tupi. Os adaptadores eram
go”, “A moça do trapézio”, “A doideira”,
veio o prêmio. Foi a conta das contas. Túlio de Lemos, Dionísio Azevedo,
“O poeta”, “O homem que galopava”
e “Coisas da noite”. Todos de sabor e “Depois, confesso, como confessarão Vida Alves, Péricles Leal, Ribeiro
linguagem regionalista. Além das todos os autores, depois veio a vai- Filho e Geni Flora.
edições da José Olympio, houve uma, dade. Nos primeiros trinta dias de
em forma de antologia, e de tiragem vida em livro cada página era um
restrita, em 2003, de iniciativa da monumento. Sonhei, delirei.
BIBLIOGRAFIA
A atriz Duvennie Pessoa,
na adaptação “Aruá, o Boi
Encantado”, pela Troupe Azimute.
III Festival de Teatro Na Lona,
Hortelândia, SP.
A foto é de Gabriel Oliveira. COMENTADA
O Boi Aruá Forçoso é confessar que de volta Jardim fez aquilo que eu não conse- O contexto da tradução desse e No dia 22 embarco para Boston – raríssimo, talento, não despertou
32 para casa duas ideias se mistura- gui em toda a minha vida. Li e reli de outros livros brasileiros nos depois de ter visitado Williansburg, em mim o mesmo entusiasmo que 33
Ganhou o 1º. Prêmio no
vam, torturando-me: a de que eu o Boi Aruá com o mesmo encanto e Estados Unidos naquela época está sábado próximo – quando começo nos mestres admiráveis da crítica
Concurso de Literatura
devia, e a de que eu escrevia. emoção com que vejo Walt Disney”. explicado por Darlene J. Sadler no a correr por este mundão. Procure literária entre nós que são a Sra.
Infantil do Ministério da
livro American All: Good Neighbor ver o que eu escrevo, em mãos Lúcia Miguel Pereira e os Srs.
Educação e Cultura, foi “Não era pois absurdo que eu sou- O Tatu e o macaco
Cultural Diplomacy in World War de Tarquínio, a quem pedi para Álvaro Lins e Otávio Tarquínio de
publicado inicialmente besse escrever, mesmo sem ser
A primeira edição, do II, University of Texas Press Aus- entregar o dinheiro a você, pois Sousa. Não me parece o romance
em 1940. As edições seguintes – escritor. Aparecendo o concurso
Ministério da Educação tin, 2012. você se avista mais com Alice. Se agora aparecido a melhor criação
até 1991 eram 19 – foram da José de Literatura Infantil do Ministério
e Cultura, é de 1940. Por houver ou se você achar qualquer do escritor. Penso que O Boi Aruá e
Olympio Editora, do Rio de Janeiro. da Educação, o poeta me estimula, Luís Jardim, que fez uma viagem
ser de interesse biblio- inconveniência no que escrevo Maria Perigosa são, nos seus traços
Em 1972, comemorando o Ano espetando o dedo no ar: ‘Inscreva- aos Estados Unidos um pouco antes
gráfico, transcreve-se colabore à vontade. Acha você essenciais, superiores a Confissões
Internacional do Livro, a Unesco se, escreva e ganhe o prêmio’. A da publicação do seu livro lá, conta
a nota do suplemento literário do que vale a pena procurar artistas do meu tio Gonzaga.
escolheu, em 57 países, os melhores primeira tentativa foi precisamen- um pouco de sua estadia numa
Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, de cinema, em Hollywood, para
livros para crianças. Cada país te o ‘Boi Aruá’. História inventada, carta ao seu amigo Osório Borba: Na própria superioridade deste
publicada em 27 de abril de 1940, entrevistá-los? Eu quero sobretudo
indicou dez livros considerados como exigia o edital do concurso, sobre os outros livros do Sr. Luís
logo após o lançamento do livro: “Washington, 17-7-1941 me avistar com Disney. Carmen
“de excepcional valor e capazes de escrita com a memória voltada Jardim me parece estar a sua
“Acaba de sair o livro O tatu e o ma- Miranda também vale a pena. Te-
contribuir para uma melhor com- para a minha meninice. “Caríssimo Osório: fraqueza: no fato de ser muito bem
caco, de autoria tanto o texto como nho cartas de apresentação para
preensão entre os povos”. Entre os escrito, muito bem composto, muito
“Fui um menino só, um menino iso- “Um bruto abraço. uma porção de escritores daquelas
do Brasil, dois selecionados foram os desenhos do Sr. Luís Jardim, e que bem feito do ponto de vista da arte
lado, um menino para quem a vida bandas. Bem, estou na hora de um
de Luís Jardim: O Boi Aruá e As obteve um dos prêmios (5 contos “De New York mandei um cartão ou da técnica da composição literá-
exterior não se comparava com a compromisso: jantar com o Dr. Lino
proezas do Menino Jesus. de reis) conferidos pela Comissão para você. Só agora tenho tempo ria. Prejudica-o o polimento.
grandeza e beleza do ‘faz de conta’, de Sá Pereira e o Embaixador.
de Literatura Infantil do Ministério para uma carta. Ando, seu Borba,
O Boi Aruá traz três histórias fa- reino encantado de qualquer crian- Acontece com os livros – a meu ver
da Educação, no recente concurso num coelho-sai danado: visitas a “Um bruto abraço do seu
bulosas: a do boi que dá título ao ça fantasista. Tenho para mim que – o mesmo que com os alimentos:
de livros para crianças. É um lin- Museus, bibliotecas, galerias, ins-
livro e a de pássaros chamados os que vivem de olho para dentro “Luís Jardim.” quando a arte ou a técnica se re-
do volume de estampas, dos mais tituições culturais, o diabo. Creio
maracanãs e bacuraus. É o autor de si próprios agem como abelhas quinta na composição ou no fabrico
interessantes trabalhos no gênero que tenho aproveitado bastante, Confissões do meu tio
quem conta a história deste livro que procuravam mel. de alimentos, refinando-os e polin-
já editados entre nós. Ilustrando apesar do tempo curto para este Gonzaga
(e de novo atendendo a uma solici- do-os excessivamente, eles acabam
“Em menino era como se dissesse: uma historieta graciosa e pitoresca, Mundo. Já escrevi a Tarquínio
tação de João Condé): (Editora José Olympio, perdendo o melhor vigor nativo, a
Deem-me um mundo para eu ver, os desenhos são de uma grande enviando o primeiro artigo e, ago-
Rio de Janeiro, 1949). A força ou o viço da espontaneidade
“A história deste boi aruá é uma que eu o converterei em outro ain- riqueza de inventiva, e nele à be- ra mesmo, remeti uma crônica
estreia de Luís Jardim ou da naturalidade. Donde a su-
história de água-furtada, como da melhor. Porque, menino, nunca leza do colorido e à originalidade sobre um jantar requintadíssimo
como romancista. Ao perioridade da rapadura sobre o
diria Gilberto Freyre. Naquele me sujeitei ao império material do dos motivos associa-se um delicioso que me ofereceram e ao qual
ser lançado o livro, que é dos mais açúcar refinado da usina. Do arroz
tempo, secos os meus bolsos como que é real e certo. Massa tornava- senso humorístico. Livro destinado compareceu o Vice-presidente dos
elogiados do autor, Gilberto Freyre bruto sobre o polido. Das páginas
leite esturricado em peito de vaca se líquido, só porque eu queria. E fiz a um sucesso considerável, inclusi- Estados Unidos, Sr. Wallace. No dia
publicou este comentário na sua do Boi Aruá sobre as das Confissões.
nas secas do sertão, impunha-se- rodas quadradas, de imaginação. ve porque é graficamente um tra- 21 devo avistar-me com Nehru e
coluna na revista O Cruzeiro, em 31
me a tarefa pavorosa de ganhar Dentro dessa ordem e relação balho primoroso. Toda a impressão tenho quase certa uma entrevista Não acontece, aliás, o mesmo com
de dezembro de 1949:
dinheiro. A dona da pensão que me absurdas das coisas, senti-me bem, é litográfica, sendo o trabalho de com Thomas Mann e Maurois. O o agreste Euclides da Cunha? Não
hospedava, chegava, por excesso adulto já; escrevendo fantasias para gravura mais uma obra admirável meu itinerário, marcado hoje, é “O escritor Luís Jardim está de li- é ele superior em viço literário a
de gentileza, a dar-me 3 bons-dias crianças. Foi a coisa melhor que já do conhecido profissional Genaro. vasto. Como você vê, viagem até vro novo. Escritor de livro novo é outro ensaísta também chamado
numa manhã só. Coincidentemente, escrevi para mim mesmo. E é bom O livro foi editado na série A da às costas do Pacífico. O povo aqui, um tanto como mulher de menino Cunha – Tristão da Cunha – su-
eu devia 3 meses de pensão de dizer assim: entrou por uma canela Biblioteca da Criança Brasileira e seu Borba, além de simples é bonís- novo. O mesmo alvoroço. Quase as perior ao autor de Os Sertões em
uma vez só. Os meus desenhos de pinto, saiu por uma de pato”. está à venda a 7$000. simo. Recebem admiravelmente, mesmas formas de regozijo. O al- correção de frase, em graça e
pouco valiam, e a minha pena era prontificam-se a tudo. Nenhuma coolzinho comemorativo. As notícias refinamento da palavra?
Muito mais enfático e contundente “O tatu e o macaco constitui um
uma pena pesada. Certa tarde, dificuldade tenho encontrado. Creio nos jornais. As visitas dos amigos
no seu depoimento foi o próprio novo triunfo para o escritor de O fato é, porém, que Confissões
no “amarelinho”, o poeta Murilo que o meu livro infantil O Tatu vai que trazem parabéns. Os vizinhos
João Condé a quem Luís Jardim deu Maria Perigosa, colaborador des- representa o novo e admirável
Mendes risca o ar com o seu dedo sair em edição nova, a duas cores. que fazem comentários maliciosos.
esse depoimento, ao registrar o te suplemento e que é também, triunfo literário do Sr. Luís Jardim.
superlativo e autoritário: ‘Jardim: Se pegar, como disse o editor, tirar- Os entusiastas que acham o menino
que lhe dissera certa vez Monteiro como se sabe, um dos nossos mais É livro que deve ser lido por todo
você é escritor. Conheço pelo que se-ão grandes edições. O Boi Aruá ou o livro novo o melhor produto
Lobato: “Vejam vocês, está aí um brilhantes ilustradores”. brasileiro inteligente de gosto. O
você fala!’ E foi inútil procurar propõem dividi-lo: cada conto, um da mulher ou do escritor aliviado.
autor que talvez nem saiba o que Sr. Luís Jardim é um dos nossos
convencer-me que eu não era re- No ano de 1942, esse livro infantil livro, profusamente ilustrado. É
fez. O Boi Aruá é um livro que se “Confesso que o livro novo do es- escritores mais cheios de recursos
almente um escritor, pois Murilo foi publicado em inglês, sob o título melhor, rende mais. Porém não
comporta em qualquer literatura critor Luís Jardim marcando, como plásticos e de possibilidades ar-
insistia, categórico: ‘Sei. Conheço’. de The Armadillo and the Monkey. está nada ainda de pedra e cal,
universal no gênero. De um jato marca, nova vitória do seu raro, tísticas.
pois sem contrato aqui nada se faz.
Isabel do Sertão “É uma criatura estranha em tudo, também está ausente a marca do livros, o que o torna um escritor pri- espiritual, que apenas deixa, aqui tatu e o macaco (1937), As proezas do
34 que tem o ‘diabo fervendo nos mio- homem em permanente comu- vilegiado. Seus livros ganhariam, no ou ali, transparecer. Menino Jesus (1968), e as Aventuras 35
Essa peça de teatro foi
los’. Blasfema contra Deus que pren- nhão com os valores telúricos a entanto, se suas ilustrações obede- do menino Chico de Assis (1973).
publicada em 1959 (Edi- “O mesmo sucede com Chico de
de a chuva no céu, ao mesmo tempo que se prende. Aventuras do me- cessem a um traço mais moderno.
tora José Olympio), mas, Assis, que brincava com os mole- “É ainda a esse menino que fica-
que, de rosário na mão, pede a Deus nino Chico de Assis, história para a
no ano anterior, havia “Com as palavras – tijolos de seu quinhos seus amigos, ‘aos pinotes, mos a dever um novo livro: O meu
misericórdia para o seu povo. infância inspirada na vida de São
recebido um prêmio. acervo verbal – pedreiro que como umas doidas crianças de pequeno mundo, agora publicado,
Francisco de Assis, conservando
Transcreve-se aqui um trecho do “Numa alma tão cheia de espinhos constrói com dedos hábeis de Deus’... E desejava ‘bater asas e e que é, no seu gênero, um dos
essa linha de composição, une o
parecer de Viriato Correa, que foi parece não haver lugar para ourives – ele parece armar, can- voar... e ser mato e bicho, e pedra, e mais belos da língua portuguesa.
espiritual cristão a um cenário de
assinado por toda a comissão julga- florações poéticas. Há. Há quando tarolando, o arcabouço de seus ser areia... e ver a alma das coisas Li-o com a emoção de quem se
que participam reminiscências
dora e aprovado por unanimidade ela exalta o seu cantinho natal na enredos, para depois nele instalar, que Deus fez!...’ reencontra no volver das folhas.
nativas do escritor para adultos.
pela Academia Brasileira de Le- época em que a chuva esverdece cuidadosamente, os personagens Na verdade, cada um traz consigo
A história do grande santo, aliás, “O leitor adulto, ao reler, sim, por-
tras, a qual concedeu o prêmio de os campos e torna a terra feliz. [...] que viverão o conjunto. o seu pequeno mundo de infância
só é contada durante a infância e que quem lê – relê as obras de
teatro de 1958 a Luís Jardim: e juventude. Dele nos vem o que
“O autor de Isabel do Sertão é a vida do menino Chico de Assis, “O Boi Aruá, contendo três histo Luís Jardim, acaba por dar razão
somos na idade adulta, e é nele que
“A comissão julgadora do prêmio evidentemente uma esplêndida além disso, não participa de ne- rinhas e agora em 5a. edição, com aos que afirmam que o verdadeiro
nos refugiamos nas horas em que
Claudio de Sousa é de parecer que vocação teatral. Não se diga que a nhuma geografia específica, nem 87 páginas, considerado por Mon- escritor é um instintivo. De outra
a realidade circundante nos desa-
a láurea seja conferida a Isabel peça seja um modelo de perfeição. de um tempo cronologicamente teiro Lobato – ‘o mais belo livro, no forma, como ele poderia, com
ponta ou nos fere. [....] Daí, na leitura
do Sertão – de Luís Jardim. Isabel Tem defeitos. Um deles é a briga determinado. A verdade histórica, gênero, publicado no Brasil’, foi sua tão pouco tempo de aprendizado
deste livro de reminiscências, ter
do Sertão é o velho e rude tema em que Neco abate Laurindo. A portanto, embora sem prejuízo da revelação como escritor de livros normal, ter um estilo tão cheio
eu reencontrado o companheiro
das secas do Nordeste sempre luta teria maior efeito dramático verdade cristã, é às vezes posta de para crianças. Como bom pernam- de doçura, uma linguagem tão
da Livraria José Olympio – com
novo de emoção e sempre rico de se tivesse sido feita aos olhos do lado para que se possa acomodar bucano que é, soube usar a lingua- adequada e tão sutil? Ninguém
o seu gosto do desenho, o pendor
dramaticidade. A peça é um dra- público e não nos bastidores. É pos- aos objetivos que o autor pretende gem típica dos vaqueiros do Norte, poderia ensiná-lo a escrever
das letras e o talento teatral para
ma bárbaro, brutal, que punge e sível que ao escritor repugnasse alcançar, e assim o menino Chico o que deu ao texto um sabor todo como escreve, ninguém poderia
arremedar os companheiros. A
arrepia. O autor traçou as figuras apresentar um defunto em cena, de Assis, a caminho da santidade especial. Depois vieram dois outros fornecer-lhe a receita prodigiosa
sensibilidade do homem feito está
com uma segurança que merece o que é razoável, mas a luta devia futura, chega ao leitor dentro que apresentam, graficamente, as que só os escritores instintivos
na sensibilidade do menino, nos
destaque. São quatro as figuras ter sido travada diante da plateia. de uma perspectiva biográfica mesmas características do primei- conseguem encontrar.
contatos com a natureza, na adivi-
predominantes no drama: Isabel, Laurindo, no momento em que se inteiramente original, capaz de ro: capa e algumas das ilustrações
“Os livros de Luís Jardim fazem nhação da vida, nas surpresas de
a Avó, Neco e Laurindo. sentisse ferido, sairia de cena para ser entendida mesmo nesta época a cores, bom papel, tipo de bom
bem a gente. E as crianças se de- cada dia. E é o narrador que nos
cair morto nos bastidores. de computadores e de conquistas tamanho para a presumível idade
“Isabel é o que se pode classificar leitarão com eles”. adverte, a propósito de seu livro de
espaciais. E isto talvez se deva, dos leitores (oito a nove anos em
de verdadeiro achado numa “Esse defeito, porém, se torna insig- lembranças: ‘Quem revê retifica,
justamente, ao efeito dos contras- diante), impressão nítida, revisão O meu pequeno mundo
peça rude. É áspera, ríspida, im- nificante ao lado das virtudes in- por mais que se empenhe em ser
tes, a intensa poesia com que foi cuidadosa. Um, com 126 páginas, (Editora José Olympio,
pávida e agressiva. E tudo isso contestáveis da peça. Em Isabel do fiel ao já vivido. Toda impressão
narrada essa história tão pura intitula-se Proezas do Menino Jesus. Rio de Janeiro, 1977).
sendo bela e sendo fascinadora. Sertão há passagens reveladoras se exprime por palavras, se dela
e tão humana, poesia que Carlos O outro, Aventuras do menino Chico
E é revoltada em constante in- de equilíbrio cênico, de concisão e quisermos dar notícia. A impres-
Drummond de Andrade já havia de Assis, tem 86 páginas e se baseia Ao sair publicado esse
candescência de sua revolta. de justa medida teatral.” são teve a criança, mas lhe faltou
apontado em obra anterior de Luís na vida de S. Francisco de Assis. livro, o escritor Josué
Obrigada pelos pais a abandonar o meio de exprimi-la. No correr do
Jardim como fator decisivo do seu Em ambos, sente-se um toque de Montello publicou no Jornal do Brasil,
o cantinho natal, em procura tempo, adquirido o meio, o próprio
êxito e de sua compreensão junto angelical espiritualidade. A inspi- em 26 de abril de 1977, o artigo “O
de terras não flageladas, a toda Proezas do menino tempo se encarrega de alterá-la,
ao público leitor infantil. ração para escrevê-los foi buscá-la pequeno mundo de Luís Jardim”, de
hora maldiz o abandono. Ela ama Jesus partindo-a em duas, a cada uma
o Autor, certamente, no céu. que são citados estes trechos:
o torrão em que nasceu, o sertão Também sobre as Aventuras do conferindo a proporção que o mo-
(Editora José Olympio,
mesmo amargo, mesmo infernal, menino Chico de Assis escreveu “O menino Jesus, é de supor, terá “Em todo autêntico adulto há uma mento ditar: o momento do passado
1968) e Aventuras do
sem água para matar a sede, Ofélia Fontes uma resenha, publi- sido uma criança semelhante às criança bem-sucedida. Luís Jardim, vivido, e o do presente evocador.
menino Chico de Assis
sem alimento para matar a fome. cada no Jornal do Brasil, em 26 de outras. Mas, embora há milênios ao longo de toda a vida, tem-se Importa o que resta na medida em
(Editora José Olympio,
julho de 1971: se tente escrever a sua história, mantido fiel ao menino que foi. É que, adultos, tenhamos a grandeza
“A aspereza nela tem uma força 1971). Na coluna Resenha Bibliográ-
só Luís Jardim conseguiu realizar esse menino que lhe inspira as de nos ameninarmos, respeitando
que nos arranha a sensibilidade. fica, do Estado de S. Paulo, publicada “Um bom tema confere ao escri-
o milagre de sua ambientação. melhores páginas, quando senta à a vida pueril que um dia tivemos.”
A avó doente e caduca é um dos em 18 de julho de 1971, tem-se uma tor possibilidades de escrever
Coloca o divino personagem entre mesa para escrever, e os melho-
motivos daquela caminhada pelo boa perspectiva da história: um bom livro. Mas precisa ser Luís Jardim, se quiser, pode inter-
companheirinhos de sua idade, res desenhos, quando se debruça
sertão calcinado, em procura de desenvolvido com arte, e isso nem romper neste livro as suas Memó-
Proezas do Menino Jesus e este transfere-lhe suas próprias vi- sobre a prancheta. Foi ele que o
terras amenas – ela detesta a avó sempre acontece. rias. Porque ele nos dá, com estas
Aventuras do menino Chico de vências, fá-lo participar das tra- levou a escrever para crianças,
e lastima ‘que uma cascavel não páginas, o desenho e a explicação
Assis transmitem a marca de um “Luís Jardim tem boas ideias, sabe vessuras dos outros garotos sem contando aos outros meninos as
acerte as canelas da velha’. completa de si mesmo.”
espiritualismo de onde, entretanto, trabalhá-las e ilustra seus próprios lhes impor sua superioridade estórias do Boi Aruá (1937) e de O
LIVROS
análise – o que seria um erro – Os palimpsestos da me-
36 nela se amparam para enriquecer mória em Infância, de 37
seus argumentos diante dos textos Graciliano Ramos e Meu
LUÍS JARDIM
mim mesmo, de Luís
único paradigma, a um modelo: a
Jardim, de Maria Lúcia de Borba.
crítica estética, biográfica, socioló-
Interessante trabalho comparati-
A fortuna crítica de Luís gica, a nova crítica estão também
vo realizado como dissertação de
Jardim ainda é pequena. presentes, formando o leque in-
mestrado em Teoria Literária, no
terdisciplinar tão necessário às
Há por fazer a recolha Centro Universitário Campos de
abordagens que têm por objetivo
dos artigos dispersos sobre sua conhecer melhor a obra de um
Andrade – Uniandrade, em Curi-
obra publicados ao longo tiba, 2011. Como informa a resumo:
determinado autor”.
dos mais de quarenta anos O presente estudo se reporta, ini-
de sua vida literária. Luís Jardim – as múl- cialmente, à evolução do romance
tiplas faces do talento, como narrativa de vida, a partir
Façanhas do cavalo máximo faço jus a cavalgar num livros publicados – alguns traduzi- de Marcílio Reinaux do século XVIII na Inglaterra, a fim
voador e Outras burrico filosófico e humilde – das dos no exterior –, Luís Jardim não (Prefeitura Municipal de situar o corpus da pesquisa na
façanhas do cavalo Itabiras... Obrigado por tudo, meu comete nunca a ingenuidade de de Garanhuns, 1991). O tí- gênese da ficção autobiográfica,
voador caro e grande Jardim: pela minha desrespeitar a picardia. A história tulo do livro se refere ao cujo sujeito é o homem comum. Na
inclusão em seus saborosíssimos se passa numa pequena cidade do talento múltiplo de Luís Jardim que, sequência, examinam-se as nuan-
(Editora José Olympio,
relatos; pela oferta dos dois volu- interior, às voltas com um perso- sendo desenhista e pintor, também ces da memória nos relatos de in-
1978) Dois livros, dois mes, só agora recebidos (soube que nagem misterioso, desconcertante foi escritor, e escreveu livros de fância de Graciliano Ramos e Luís
grandes personagens e muitos se extraviou a primeira remessa); Luís Jardim: ficção e vida,
e sobretudo divertido, que é o sr. diversos gêneros: conto, romance, Jardim em seus livros Infância
voos da imaginação em viagem: pela amizade com que me honra, de Maria da Paz Ribeiro
Pantaleão, capaz de façanhas (loro- ensaio, teatro e ensaio. Premiado e Meu pequeno mundo: algumas
o famoso Pégaso e um muito mais alegra e conforta. Seu, com um Dantas. O livro, de 135
tas?) incríveis”. pela Prefeitura de Garanhuns, foi lembranças de mim mesmo, sob
simples, mas não menos aventuro- abraço antigo e novo, a) Drummond.” páginas, recebeu o prê- prefaciado pelo Mons. Adelmar a perspectiva do escritor adulto
so e esperto cavalinho brasileiro. A crítica literária Maria da Paz mio de monografia da
O ajudante de mentiroso da Mota Valença, que comenta: que resgata, das lembranças
A Grécia mais fantasiosa e o Brasil Ribeiro Dantas assim avaliou Fundação do Patrimônio Histórico Marcílio Reinaux, participou do de menino, a construção de seu
mais cotidiano e verdadeiro num (Editora José Olympio, esse que foi o último livro de Luís e Artístico de Pernambuco – Fun- concurso que instituiu o “Prêmio universo emocional e social. [...]
livro para crianças. 1980) Quando saiu o li- Jardim: darpe, em 1988, e foi publicado no Literário Luís Jardim”, escondeu Assim, a natureza da narrativa é
Quando da publicação desses vro, o Jornal do Brasil “Em 1977, é editado o livro de me- ano seguinte, por essa mesma ins- o seu nome sob o pseudônimo de dualística alternando fato e ficção,
livros, Carlos Drummond de An- registrou na coluna de mórias Meu pequeno mundo. No tituição. Na apresentação da obra, João de Xandu, nome de um primo confissão e resistência. Tais aspec-
drade escreveu ao autor: “Querido lançamentos, no dia 17 ano seguinte, Façanhas do cavalo disse o poeta, crítico literário e postiço e companheiro de infância tos traumáticos e confessionais
Jardim: Por Jove! Quando Diana vai de junho de 1980: “Luís Jardim está voador e Outras façanhas do cava- professor universitário César Leal: de Luís Jardim. Agora a prefeitura das narrativas de meninice tanto
ao costureiro para fazer fofoca: de volta às livrarias, desta vez com lo voador. Finalmente, já em 1980, publica o livro para alegria de to- de Graciliano Ramos como de Luís
uma novela picaresca. O ajudante “Luís Jardim: ficção e vida, de Maria
Apolo encomenda farinha, e Júpiter Luís Jardim encerra sua obra de da Paz Ribeiro Dantas, foi escrito dos nós. As serras, verdes ou não, Jardim são abordados sob o viés
‘fica por conta’, então a mitologia de mentiroso (Editora José Olympio, ficção com a ‘novela picaresca’ O quando vistas de longe, são sempre
dentro dos princípios e critérios memorialista, com suas impreci-
se naturalizou brasileira, e nossos Rio, 161 páginas). Ambientado no ajudante de mentiroso, texto que azuis... Assim é o passado da gente:
que orientam os estudos literários sões e lacunas na recuperação do
adolescentes podem desfrutar com interior do Nordeste, O ajudante embora revelando uma expe- modernos, servindo-se a autora quanto mais distante, mais azul. E passado. Para isso, examinam-se
a maior facilidade os encantos, as de mentiroso narra as proezas riência das coisas e da gente do de um equipamento teórico in- eu vejo, no azul do meu passado já as diversas funções da memória,
graças, os mistérios e os símbolos do ‘gordo, estranho e destemido agreste pernambucano e do ser- dispensável à análise das obras tão distante, a figura de Marcílio nesses relatos de vida, com base
senhor Pantaleão Siqueira de tão nordestino, de um modo geral,
do Olimpo, até agora privilégio de centradas na ficção narrativa. É Reinaux, menino de cinco anos, nos conceitos de Philippe Lejeune
Araújo’, que como todo bom herói
letrados – tudo isso com a assesso- não possui a vivacidade de Maria um estudo bem elaborado; apoia-se um “toquinho de gente”, aluno do sobre gêneros autobiográficos e
do gênero ‘é defensor de pobres
ria do bom Voador e do estimável Perigosa. A narrativa é monótona numa bibliografia moderna, e, sem Curso Infantil do nosso Ginásio! Ele de Maurice Halbwachs sobre me-
e oprimidos, inimigo ferrenho de
Tiúba. Milagre literário praticado e cheia de considerações morali- deixar de ser um estudo interdis- e seus coleguinhas, vestidos com mória individual e coletiva. Dá-se
prepotentes orgulhosos e sober-
por você, que já se patenteara no zantes por entre situações típicas ciplinar, conta com uma aplicação suas fardazinhas, passavam res- especial atenção ao problema da
bos, desdenhoso da empáfia e tolo
ramo com a incorporação do Meni- através das quais se define bem bastante eficaz dos estudos da psi- peitosos. E, passando, me enchiam veracidade e da verossimilhança
orgulho dos ricos’.
no Jesus à poesia da nossa infância o tipo de Pantaleão, espécie de D. cocrítica, especialmente de autores de inveja, pois, infalivelmente, me nos relatos. No resgate de lem-
rural. Você não avalia a surpresa A Folha de S.Paulo registrou: Quixote a que falta o senso de hu- como Freud, Jung e muitos outros faziam recordar as palavras do branças, focaliza-se o modo como
que me causou, ao me julgar digno “Estamos diante de uma obra pica- mor para temperar a excessiva que se não fazem da crítica psica- Divino Mestre: “Deixai vir a mim o narrador articula os discursos
de montar no Pégaso, eu que no resca. Com 79 anos de idade, onze seriedade do bom senso”. nalítica um processo exclusivo de as criancinhas!” na tessitura narrativa.
38 Julierme Galindo comanda a Troupe Azimute. Seus ato- 39
res têm formação no “Vem Ver Teatro”, curso de inicia-
ção teatral fundado pelo diretor JG. Atores vão em busca
de melhores condições pelo Brasil e Galindo continua seu
trabalho na Garanhuns de LJ. Entre 2010 e 2014, o gru-
po adaptou e encenou três contos de LJ. Assim, “Aruá, o
boi encantado” foi visto em festivais, mostras, escolas em
Pernambuco, Sergipe, Paraná e São Paulo. Nesta entre-
vista para Hexágono, Galindo comenta a recepção da
obra de Luís Jardim.
A PERSPECTIVA
DA NATUREZA
EM LUÍS JARDIM
[hexágono] [hexágono]
40 Quando surgiu o interesse pela obra de Luís Jardim? Num tempo de videogames e tão urbanizado, o mundo rural das
41
histórias infantis de Luís Jardim ainda pode despertar interesse
[julierme]
da criança?
Quando da ocasião em que o grupo foi convidado para a reinaugu-
ração do espaço cultural que recebe o seu nome, no ano de 2002. [julierme galindo]
Foi nesse momento que nasceu a primeira adaptação para teatro Acredito que sim, tanto é que “Aruá, o boi encantado” ainda fascina
do conto infantíl “O Boi Aruá”. e encanta nossos espectadores por onde passamos. Mesmo nos
apresentando em grandes centros urbanos, como São Paulo.
[hexágono]
O grupo se interessou pela obra infantil ou também por sua obra, [hexágono]
digamos, adulta? Foi uma decisão de interesse coletivo? Afora o fato de ser da mesma Garanhuns, que elementos estéticos
[julierme galindo] o aproximaram da obra de LJ?
Na verdade o interesse de levar a literatura de LJ para a cena foi [julierme galindo]
muito mais minha que coletiva, que me encantei e me apaixonei O fato de sua escrita ser popular, mas conter um certo eruditismo
logo de imediato, quando do primeiro contato com sua escrita. que não espanta os mais hostis à leitura.
Então, depois da experiência bem-sucedida com “Aruá”, resolvi
adaptar um conto adulto. Foi aí que, lendo Maria Perigosa, vi no [hexágono]
conto “Paisagem perdida”, uma história romanceada, pronta para ser Qual a parte mais difícil de se adaptar para o teatro, tendo-se o
encenada. Fiz a adaptação e o resultado foi tão bem-sucedido quanto caso da obra de LJ?
com o infantíl. Prova de que havia uma identificação imediata da
escrita de Jardim com o nosso público. Cumpríamos, assim, não só [julierme galindo]
nossa proposta estética, mas revelamos sobretudo a grandeza e Manter a unidade e a essência da obra. Sua coerência e coesão.
excelência literária de um dos nossos mais célebres escritores.
[hexágono]
Como é ou foi a recepção dessas adaptações pelo Brasil?
PODIA VER OS PÁSSAROS, [julierme galindo]
AS ÁRVORES E TODO UM CENÁRIO Em todos os lugares, fomos muito aplaudidos e percebemos que o
texto de Jardim provoca uma empatia muito forte no espectador.
CRÍTICA
Já os adultos, com “Vicência”, choram e se envolvem com a história
de amor proibida traziada por LJ.
[hexágono]
AS CONFISSÕES DO MEU TIO eu retinha na boa o tempo que quisesse”.
Creio que Luís Jardim, que criou em forma
Qual a importância que tem a cidade de Garanhuns, onde nasceu GONZAGA, DE LUÍS JARDIM de imitação da vida diversos tipos fugazes,
o escritor, para a composição de sua obra literária? como contista, não chega a criar uma per-
José Geraldo Vieira sonagem neste Tio Gonzaga tão antropófago
[julierme galindo]
Este livro, publicado pela Livraria José que devora seus êmulos e comparsas, fican-
Acredito seja aqui sua maior fonte de inspiração. É aqui onde LJ vem do apenas como um locutor oculto em todo
Olympio Editora, tem a sua problemática
revisitar seu passado e trazer para as suas páginas as memórias o livro, qual lobo frontal que privado da pa-
originada talvez ainda em Les Nourritures
de sua curta passagem por estas terras. lavra em vida, por qualquer afasia, depois,
Terrestres, mas em evolução muito extrema,
quase proustiana, em certos pertuitos. Mas na mesa da morgue do romance, desprende
[hexágono]
não é esse caráter exemplificado a todo ins- “memórias” e “confissões” como um incenso
Por que um autor tão premiado e com uma linguagem tão clara, tante através de símbolos que queremos muito nosso, sim, muito a Machado e a Ciro
de agrado de todos os leitores, está com a obra esgotada e não examinar, e sim a sua possível classificação dos Anjos quanto ao carvão e às volutas, um
costuma ser visto no teatro e nas livrarias com frequência? na novelística. pouco como o velho Anatole quanto à caçoila,
[julierme galindo] Não se diga que Machado de Assis e Ciro mas muito a Proust, quanto ao ‘bouquet’ da
dos Anjos sejam padrinhos, um de batismo e emanação sensorial e ontológica.
Isso é o que nós também nos perguntamos. Encontramos muitos
outro de crisma, desse admirável e sagaz tio A qualidade deste grande romance de 1949
exemplares em sebos e algumas livrarias virtuais. Acredito que
Gonzaga. Parece-me que quem estranhar a não está, assim pois, em apenas continuar uma
falte reconhecer e dar a Jardim seu verdadeiro status na literatura
afinidade que descobri com o livro de Gide tradição da melhor categoria do romance
universal. E iniciativas com desta Hexágono, como a nossa, possam
acabará concordando comigo se prestar brasileiro; dentro da hora presente não re-
fazer a diferença para Luís Jardim ser mais lido e/ou assistido.
atenção em certos trechos. Por exemplo: presenta uma volta a processo nem uma satu-
“Nunca vi ninguém preso a uma filosofia, ração que procurou uma hipóstase qualquer.
regra e conduta de vida a seguir, direi an- Parece-me que se estas ‘confissões’ fossem
tes que o que Dulce supunha ser sua moral uma ‘aura verbal’ de agora, heidiggeriana,
era simplesmente sua natureza”. E quem es- da frustração conseguindo salvar-se pelo
Julierme Galindo é ator e diretor de teatro, fundador do “Vem Ver
tranhar a minha afirmação quanto a dicoto- cinismo ou pela ruminação de conceitos a
Teatro”, curso de iniciação teatral que coordena em Garanhuns (PE).
mizações tipo Proust, que leia, por exemplo, Tchecov, Averchenko ou Shaw, este livro não
Galindo adaptou e encenou vários textos de Luís Jardim para o palco.,
em espetáculos que circulam pelo Brasil. este outro trecho: “Tais fatos não acontece- seria sincero, e sim ‘ersatz’. Mas é Universal
ram materialmente, é claro, mas ocorreram porque além duma característica básica bem
nossa, representa os juros compostos das re- Se Carlyle gostava tanto dessa obra, se O novo contista tem sido feliz nos concur- do por um único pensamento: os cegos. “Era o
44 servas e dos depósitos deixados por Arcesilau. Coleridge a relia sempre, e se o nosso Machado sos. Em um ano, três vitórias. No concurso de ato perfeito de um animal, engolindo de dia e
45
O tio Gonzaga entrando contemporanea- a tinha na sua mesa de cabeceira, vou fazer o Literatura Infantil do Ministério da Educação ruminando de noite, quase por instinto, o ali-
mente na atmosfera objetiva dum Eugenio mesmo com As confissões do meu tio Gonzaga, ganhou o primeiro prêmio, com o seu Boi Aruá. mento torturante da cabeça teimosa: porque
Heitai, nos solilóquios cênicos dum Pirandello, esse descendente em linha varonil dos Acar- Num outro de livros de estampas, do mes- diabo teria nascido cego, o seu filho. Ele, o pai,
na expressão caricatural dum Gogol, passa de nanios criados pelo velho Aristófanes. (Publi- mo Ministério, alcançou a segunda colocação, não tinha os olhos bons, vendo tudo? Teria pe-
relance nas adegas de Rabelais e nos traz re- cado no Jornal de Notícias, de São Paulo, em 22 de com O tatu e o macaco. gado com o cego, grande? Mas Umbelino tam-
cados dum Boccacio e dum Maquiavel. janeiro de 1950, segundo caderno, p. 1). Disputando, com quase uma centena de bém era cego de nascença, dizia a tia. Talvez
E isso conseguido em dois planos de arte- candidatos, Luís Jardim conseguiu a tercei- má sorte, gente pobre era sempre sujeita a
sanato: um plano verbo-motor neomacha- MARIA PERIGOSA ra láurea: Maria Perigosa mereceu o prêmio tudo. Talvez outra coisa. Outra coisa!”
diano, digamos assim, e um plano introspec- Humberto de Campos, instituído pelo editor E o pensamento obsessionante, machucan-
Rio, 27 (Da nossa sucursal, via Vasp) – O
tivo pós-proustiano. José Olympio, para incentivar os contistas do o cérebro primitivo de Joaquim, cresce de
Sr. Luís Jardim não nos era um nome estra-
Neste gênero de confissões, tio Gonzaga brasileiros que, segundo a opinião dos enten- intensidade e contra o próprio filho, compe-
nho, antes de conquistar o prêmio Humber-
não recorda e nem pede absolvição. Confis- didos, inexplicavelmente, não possuem o mes- lindo-o a procurar eliminá-los, no que é impe-
to de Campos, instituído pela Livraria José
sões aí não significam descargos de consci- mo público dos modernos romancistas. dido pelo tio Borges.
Olympio Editora, apesar de vivermos mais
ência, e sim, muitas vezes, delírio da reali- A desmoralização dos concursos literários Vicência, Manuel Quirino e João Toté, de
ou menos afastados da coisa literária. Já nos
dade transcendente, ‘imaginada’, a outra no Brasil chegou a tal ponto que somos levados, “Paisagem perdida”, o melhor conto do livro,
acostumáramos a admirar as suas qualida-
realidade de que a existência é mero dia- sempre, a olhar com desconfiança todo livro mostram a capacidade de Luís Jardim para
des de ilustrador e pintor. Igrejas coloniais,
grama estratégico para a mentira aparente premiado. Fonte de escândalo, os valores reais criar tipos. Todos se movimentam com gran-
ruas estreitas, tortas e cheias de poesia do
da verdade contida. deles se alheiam, dando lugar a que mediocrida- de naturalidade e como que se integram na
passado do velho Recife ganharam na sua
Tio Gonzaga não é pois um tipo, no roman- des, literatos da pior espécie, saiam vencedores. paisagem agreste do sertão.
pena admirável de artista do branco e preto
ce, nem ficará sendo, depois da leitura. É um Generalizou-se a prevenção dos leitores e con- O Norte, que já nos deu um grupo de roman-
encanto enorme, envolvente. Para o Guia de
locutor discreto, que conta lados de rotina correntes. Livro que tenha na capa prêmio da cistas tão poderosos, nos presenteia agora com
Ouro Preto, que o Serviço do Patrimônio His-
ou de exceção da vida, passando-se pelo cri- Academia Brasileira afasta todos os leitores de um contista de valor – Luís Jardim. (Trecho da
tórico e Artístico Nacional encomendou, es-
vo de símbolos. E essa rotina e essa exceção bom gosto. Raras vezes injustamente. resenha “Maria Perigosa”, de Geraldo Mendes
pecialmente, ao poeta Manuel Bandeira, Luís
não são relatadas como aspectos recônditos A probidade e capacidade da comissão jul- Barros, uma das primeiras críticas sobre Luís
Jardim fez quarenta e dois desenhos, fixando
de busca de situação-limite, nem tampouco gadora do prêmio Humberto de Campos nos Jardim escritor, saiu publicada no Correio Pau-
os sítios pitorescos da velha cidade mineira.
como lastro atirado ao mar para a hipótese levou à leitura da Maria Perigosa. E não nos listano, em 28 de maio de 1939, p. 4).
Obra de caráter estritamente informa-
da superação. Não há amargura nem des- arrependemos.
tivo, revela, no entanto, trabalho amoroso
valimento, e sim estado crítico panteístico,
de dois artistas de fino gosto e sensibilidade.
A literatura brasileira possui mais um PENDOR AUTOBIOGRÁFICO
de disponibilidade e gratuidade. Tio Gonzaga contista de real valor. Luís Jardim sabe fixar
O poeta nos deu um livro sedutor pelo con O que talvez mais caracterize a figura ex-
registra e exterioriza em broadcasting e em com firmeza de traços o retrato psicológico
teúdo, agradabilíssimo pela leveza e graça cepcional de Luís Jardim como ficcionista seja
onda curta o seu mundo encarado, assisti- das almas primitivas dos homens do sertão.
do estilo. E Luís Jardim completou o encanto o seu pendor autobiográfico, tão claro nas
do e testemunhado, e então se revela não o Narrador fluente se expressa naquela lin-
do Guia, com um punhado de desenhos admi- suas páginas de memorialista específico de
homem-contingente de agora, mas a pre- guagem gostosamente brasileira, em que são
ráveis, onde a sua arte poetiza o passado da uma nova maneira: as suas mais expressivas
sença-registro que fala do passado com um mestres os atuais escritores nordestinos.
Cidade dos Inconfidentes. Esses quarenta e afirmações de escritor literário. As que cons-
mistério tão novo como se o leitor estivesse Neste particular, o conto “O ladrão de cava-
dois desenhos asseguram-lhe posição incon- tituem O meu pequeno mundo. As que o crítico
presenciando a um arúspice falar do futuro. lo” merece uma referência especial. O autor
fundível entre o nosso pequeno grupo de ar- literário, tanto quanto, ele próprio, magnífico
Isso porque a realidade contada não evola soube construi-lo com pulso de mestre. As ma-
tistas do preto e branco. ficcionista, Josué Montello, não hesita em con-
como fato nem crítica, nem como confissão e nhas do ladrão de animais, as peripécias das
Ultimamente, o pintor e ilustrador surgiu siderar das melhores páginas escritas em
remorso, e sim como epifenômeno dessa rea- diligências e, no final, a entrega espontânea
assinando contos em O Jornal e no Diário de No- língua portuguesa. Isto mesmo: não só no Bra-
lidade central, o Tempo, da qual, agora e aqui, de Manuel Três Braças com medo de morrer
tícias. Diz uma informação que, escrevendo sil, mas no total da língua portuguesa.
Luís Jardim é o continuador. Mas não o conti- de bexiga, faz-nos lembrar Afonso Arinos.
o primeiro trabalho deste gênero para Lan- Entretanto, disperso no ficcionista, está,
nuador dum Santo Agostinho, dum Rousseau Os tipos do Sr. Luís Jardim são rudes e vi-
terna Verde, conquistou os aplausos do meio quase sempre, um memorialista dissimulado,
ou dum cardeal de Retz, e muito menos dum vem a vida dos instintos, onde não falta dra-
literário que descobriu em Luís Jardim um songamonga, presente no próprio autor de
Saint-Simon, mas sim dum Sterne. Em muito, maticidade. “Os cegos”, por exemplo, é muito
escritor de largos recursos. Não conheço o livros para crianças. Também nesses seus li-
este livro lembra o clima de Tristram Shandy, bem lançado. Joaquim e o velho Borges vi-
conto que determinou a fixação no gênero. vros, e nos de base folclórica, como O Boi Aruá,
principalmente naquele tio Toby. vem realmente. Sobretudo Joaquim, tortura-
Luís Jardim chega, a meu ver, a uma expres- como no do específico memorialismo e na sua acompanho desde suas primeiras aventuras, antigos, e a eles se ligam pela homogeneidade
46 sividade superior à das suas páginas da mais literatura dramática – em Isabel do Sertão e quer de escritor literário, quer de artista da inspiração, alimentada em recordações de 47
pura ou da mais convencional ou da mais es- Em Meu pequeno mundo – que Luís Jardim é plástico. (Trecho do artigo “Luís Jardim: puro infância. Independentes entre si, integram-
pecífica expressão ficcionista como as de Con- superior, em expressividade, tanto a Meus autodidata?”, publicado no opúsculo Imagem e se em três ciclos, diversos em atmosfera e
fissões do Meu Tio Gonzaga. Verdes Anos como às memórias de Gracilia- texto: homenagem ao pintor e escritor Luís Jardim, tom, mas enquadrados na mesma paisagem
Note-se que, neste – uma das suas ostensi- no Ramos. E também como companheiro do organizado por Edson Nery da Fonseca e pu- evocada com plástica sobriedade.
vas novelas, a despeito do título – Confissões do que o memorialismo, em língua portuguesa, blicado pela Fundação Joaquim Nabuco/Edito- Um dos ciclos retrata adolescentes no
Meu Tio Gonzaga – Luís Jardim, seguindo suges- apresenta de mais criativamente brasileiro: ra Massangana, Recife, 1985). instante em que se deparam com as crises
tão ou modelo inglês, dá ao leitor a impressão as páginas de Gilberto Amado, nas telúricas transcendentes da vida: o amor, o sobrenatu-
de ir defrontar-se com um memorialista. O li- evocações de sua infância em Sergipe e eco- O RETORNO DE ral, a arte, a doença. O frêmito transmitido a
vro, porém, é novela, sem, na sua expressão lógicas de primeira mocidade no Recife – só um garoto pelos afagos da criada Conceição, o
literária, apresentar Luís Jardim no melhor nessas, nas outras, não; as de Pedro Nava, nos MARIA PERIGOSA terror pânico infundido noutro pela quebra
de sua criatividade de lastro autobiográfico ao seus mais admiráveis trechos, isto é, os mais de um santinho, a convivência de um rapazi-
mesmo tempo que ecológico. Esse lastro ecoló- livres de excessivas especificações cronológi- Paulo Rónai nho com o possesso vaqueiro Luís Pinto, que
gico que, segundo Mário de Andrade, constitui cas; as de Rachel Jardim: primorosa mestra Numa nota modesta que antepôs à reedi- vê mais que os outros, o seu encontro pertur-
em Luís Jardim, um muito íntimo relaciona- no gênero: talvez a mais primorosa mestra ção de Maria Perigosa, afirma Luís Jardim que bador com a louca Maria Perigosa, as aluci-
mento nordestino entre Casa-grande & senzala. ou mestre de memorialismo no Brasil. esse livro “já estava arquivado. Quis o editor, nações de um menino convalescente recapi-
Luís Jardim, porém, supunha que talvez fos- Em Luís Jardim, o memorialismo específi- reavivando passada aventura, dar-lhe nova tulam vivências universais, a que o cenário
se Confissões do Meu Tio Gonzaga, sua revelação co é, ao mesmo tempo que telúrico, ecológico, aparência”. brasileiro confere, porém, matiz inconfundí-
como quase um novo Machado de Assis sob os- sem nunca deixar de ser lírico no que evoca, Assim sendo, José Olympio tornou-se dupla- vel. O autor soube resguardar suas reações
tensiva e, até pura, forma novelística. Sou dos surpreende, fixa, de sua própria experiência. mente credor da nossa gratidão: não somente de menino – pois é ele que se revela ou se dis-
que pensam que não foi. Como sou de opinião Autobiograficamente, portanto, de forma mui- reeditou um bom livro de contos, mas concor- farça em todos esses jovens – e não falseá-las
que ele não precisava e até não devia procu- to sua: artística e não apenas – verbal. Arte reu para o nascimento de uma obra-prima com perspectivas de adulto. A intensidade
rar ser novo Machado de Assis ou competir literária animada de visão de pintor. Mas um da ficção brasileira moderna. Com efeito, se o com que tais figuras sentem a vida lembra
com seu contemporâneo Guimarães Rosa ou visual parente daquele de que, certa vez, em livro quase duplicou de volume, cresceu ain- as hipersensíveis personagens de Enfantines,
com seu parente literário, sob vários aspectos almoço no próprio campus da Universidade de da mais em significação. de Larbaud; apenas, as suas reações são pau-
quase irmão, José Lins do Rego, para afirmar-se, Sussex, um dia após termos sido os dois douto- Por um fenômeno curioso ainda por anali- tadas pelos ritos e pelas superstições de um
por si mesmo, um dos mais criativos escritores rados pelo então Reitor Asa Briggs, falou-me o sar, o extraordinário surto da ficção nordestina ambiente rústico, primitivo e fechado.
literários brasileiros de qualquer época. grande escultor Henry Moore. Isto é, um visual limitou-se quase exclusivamente ao setor do Outra contribuição preciosa de Luís Jardim
Daí repetir eu, que não é sob a pura for- que vê, como que apalpando com os olhos gen- romance. Individualidades tão diferentes como para a prosa brasileira é um humour peculiar,
ma novelística – a convencionalmente pura – tes e coisas, e não apenas vendo-as. É ao que Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de indireto e aparentemente casual, que se des-
que está firmada, na literatura brasileira, do se assemelham pessoas, coisas e animais evo- Queiroz, Jorge Amado, assemelham-se na pre- prende dos pormenores da narrativa sem que
nosso ou de qualquer tempo, uma presença cados pelo memorialista Luís Jardim: a sujeitos ferência por esse gênero que permite desenro- o autor dê por isso, em circunstâncias as mais
de Luís Jardim digna das melhores atenções, ou objetos apalpados e não apenas vistos pela lar a poderosa visão de um mundo rudimentar imprevistas. É esse humorismo pince-sans-ri-
quer de críticos de várias tendências, quer – pura visão do artista que os recorda. Apalpa- ou dissecar à vontade almas torturadas. Só por re que ilumina “Coragem” e “Ladrão de cava-
como vem acontecendo – de públicos sucessi- dos imaginativamente por dentro e não apenas exceção, eles se aventuraram nos domínios da lo”, mas sobretudo “Coisas da noite” – em que
vos. Esses consagradores públicos – mais que por fora. Nos seus íntimos possíveis, prováveis, short story, sem lá deixar, aliás, vestígios profun- um cavaleiro noturno, para espantar o medo,
os críticos – sucessivos. mais reais que os reais, e não somente nas suas dos. Pois, em Maria Perigosa, Luís Jardim busca mantém singularíssima palestra com o cavalo
É, perante esses públicos – já no seu caso, aparências ou nos seus exteriores. e encontra na farta substância poética do Nor- – narrativa de que a aguda sensibilidade ar-
de escritor agora de oitenta anos e desde Daí não haver exagero em considerar-se deste, autênticos motivos de conto e explora-os tística de José Lins do Rêgo tão acertadamente
jovem escritor literário, representantes de Meu pequeno mundo livro mais que livro em com arte consumada. apreciou a graça grotesca. Não se contam, por
pelo menos duas expressivas gerações – que que literariamente, artisticamente, criativa- Às sete narrativas da primeira edição, vêm- outro lado, os divertidos achados verbais em
Luís Jardim, em livros para crianças, supera mente, mais afirmou-se Luís Jardim. O livro se juntar, mais de vinte anos depois, outras “João Piolho”, retrato de um alfaiate amigo das
seu notável contemporâneo José Lins do Rego, que o situa em lugar de relevo na literatura seis, acréscimo que de modo algum quebrou artes, de fala bonita e loucura mansa, a quem
da Velha Totônia, embora no puro setor da em língua portuguesa: sugestão, já lembrada, a harmonia do volume; tal qual o temos agora a morte de um companheiro querido acaba
ficção especificamente novelística, não se do crítico, além de ficcionista, Josué Montello, em mão, ele parece uno e perfeito, como se logo por desorientar de vez.
verifique essa superação. Verifica-se, entre- com a qual coincide o que vem sendo minha tivesse nascido assim. De fato, mesmo os contos Nas histórias cômicas como nos episódios
tanto, não só no setor do livro para crianças interpretação de um escritor cuja ascensão “novos” são, quase todos, contemporâneos dos trágicos, o autor obriga-nos a escutá-lo com a
respiração contida, a participarmos sem re- narrador. Impossível deixar de senti-la nes-
48 servas das aventuras de suas personagens. ta página de “Paisagem perdida” em que os
Não se interpõe entre a história e o leitor, amantes, inesperadamente, vêm a saber que
mesmo que a narrativa seja feita em primei- o seu amor é condenado:
ra pessoa: as nossas emoções nunca são pro- “O velho Manuel Quirino, por sua vez, to-
vocadas por comentários, resultam dos fatos mou o tição, soprou a asa mortiça. Vicência
narrados. Desse contato imediato com a ma- esperava de lado, cabisbaixa. A fumaça ardia
téria, nasce, em parte, a grandeza dramática nos olhos do velho, ele recuava o rosto, e o ci-
desse ciclo – e em “Os cegos” a impassibilidade garro de palha passava de um canto a outro
do relato acentua a atmosfera quase insupor- da boca, meio mastigado. O velho deu a pri-
tável de pesadelo. “Paisagem perdida”, tam- meira baforada, depois de algum tempo deu
bém já incluída na primeira edição, confirma, outra, mas não entregou o tição à filha. Aper-
na releitura, suas qualidades admiráveis: não tou os olhinhos miúdos, como se ainda ardes-
há uma palavra a mais, um gesto supérfluo sem, e fitou por algum tempo João Toté. O viú-
nesta singela história de dois pobres aman- vo mexeu-se no banco e tossiu sem vontade.
tes do sertão. Dentro de um horizonte estrei- O velho então fez uma cara de riso, aquele
to – onde escasseiam os acontecimentos e as risozinho mangador com que precedia e fin-
ações, e até as palavras – as paixões abafadas dava toda a conversa:
atingem um paroxismo trágico. Na mesma al- – Cá na minha opinião, água salgada com
tura, raramente atingida pelos melhores con- água doce não presta. Vira água salobra. Eu
tistas, se mantém o estranho “O homem que só bebo água dum pote só. E bem assim é raça
galopava”, onde se sente algo da fatalidade que muito se mistura. Com essa ideia é que eu
inelutável das grandes histórias de Kipling. guardei Vicência para casar com o Batista, o
É a narração, dir-se-ia indiferente, de uma filho mais velho aqui do compadre e mano Ja-
arbitrariedade policial; é também, implicita- cinto. Havendo barulho, fica nas paredes da
mente, a condenação de toda uma ordem de mesma casa.
coisas; e é ainda, num plano quase mítico, um Vicência não deu uma palavra, não teve
exemplo do ódio do homem primitivo a todo um gesto. O rosto não revelou o menor con-
mistério e a toda superioridade. tentamento ou menor tristeza. Era como se
Não é raro os nossos escritores, mesmo os nada tivesse ouvido. Todos a olhavam, curio-
bons, confundirem-na com brutalidade. Nos sos. João Toté empalideceu e baixou a cabeça,
contos de Luís Jardim, de excepcional vigor, raspando com a unha a tábua do tamborete.”
não há acúmulo de pormenores escabrosos Mesmo quando parece aceitar um desafio,
nem de expressões cruas. As personagens Luís Jardim dá impressão de completa natu-
falam com propriedade e sabor, sem exces- ralidade. Verdadeira façanha, nesse sentido,
sos de regionalismo; a sua fala representa a reprodução das conversas do vaqueiro Luís
um compromisso particularmente feliz que Pinto, grande poeta analfabeto, com um garoti-
parece abolir as divergências da linguagem nho sobre assuntos de poesia: rima, ritmo, mote,
regional e da língua comum. Outro segredo forma e conteúdo, sem que por um instante se-
que o escritor possui no mais alto grau é o da quer sintamos algo pedante ou inverossímil.
poesia. Muitas vezes, se elogia esse dom para Como se tudo isso não bastasse, o nosso au-
desculpar as insuficiências de prosador: inca- tor – homem de cem instrumentos – ilustrou
pacidade de arquitetar enredo, de plasmar profusamente o livro com belas gravuras, as
personagens, de reproduzir diálogos. Não é quais impressionam pelo frescor, fielmente
este o caso de Luís Jardim. Em seus contos o transmitido, das fortes emoções. (Prefácio da
poético provém da essência das coisas obser- 3ª edição de Maria Perigosa, Editora José Olym-
vadas, da firmeza da frase, da gravidade do pio e Instituto Nacional do Livro/MEC, 1971).