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distribuída larga e gratuitamente pria morte.

Em tempos de
nas escolas, para provocar deba­ opinião exacerbada estaria
tes sobre autores e suas produ­ viva ou morta a crítica lite­
EDITORIAL ções, mas também de um conceito rária? Hexágono não pre­
mais abrangente literatura, como tende responder a isto, mas
Mais do que algo cotidiano e acessível, como o
pão de cada dia na vida de muitas
plantar novas discussões em
torno dos nomes e da rica li­
nunca, relembrar pessoas. teratura produzida em Per­
Uma revista literária é uma nambuco.
A literatura silenciada em forma da crítica. A própria lite­ Na primeira série de
Pernambuco tem nome de ratura também. Hexágono bus­ Hexágono estão Ariano Su­
mulher: Francisca Izidora ca oferecer múltiplos enunciados assuna, Osman Lins, César
para esse universo cuja crítica Leal, João Cabral, Luís Jardim
vem ainda se constituindo para e Hermilo Borba Filho.
autores que tiveram sua obra em Para a continuação de
torno de Pernambuco. Buscando Hexágono optamos por
tanto a produção como a recep­ uma valorização radical de
ção de seus trabalhos a partir de um gênero. Não um determi­
novos olhares, complementares nado gênero literário, mas o
(ou não). Agora com a fortuna crí­ feminino, que é, aliás, por
tica de seis autoras de gerações excelência, literário. Ao lon­
diferentes. É uma das caracterís­ go dos séculos, Pernambuco
ticas da modernidade anunciar a vem revelando algumas das
morte de quase tudo: de deus, do mais talentosas autoras do
romance, da poesia, do teatro, da país, mas que quase sempre
literatura, e até a morte da pró­ ficam à sombra ou em pla­
no secundário, se conside­
rarmos o domínio quase
são muito acima das nos­ absoluto dos homens nas
sas previsões mais otimistas antologias, nas revistas, nos
motivaram a continuação do livros, e até nos eventos de
projeto Hexágono. Esta se­ litera­tura. Assim, optamos
gunda série acontece pela por seis Hexágonos dedi­
positiva demanda dos lei­ cados a seis au­ toras, atra­
tores mais exigentes. Eles se vessando parte do século
espelham tanto na justificati­ 19 e todo o século 20. Temos
va em si de uma publicação assim um quadro um tan­
em linguagem de revista, to quanto panorâmico que
leve e acessível, bonita e mo­ vai da primeira mulher a
derna, que coloque em pri­ ser eleita para a Academia
meiro plano grandes nomes Pernambucana de Letras
da literatura pernambu­ – Edwiges de Sá Pereira –
cana, e no preenchimento a uma das suas figuras de
de uma lacuna ou carência maior destaque até o início
de um tipo de publicação as­ deste século 21, que foi Ma­
sim específica, monográfica. ria do Carmo Barreto Cam­
A revista existe não para Quantas Franciscas Izidoras e
pello de Melo. De Francisca
atender aos segmentos es­ suas obras, no Brasil, são e foram
vítimas dessa condenação ao silêncio, Izidora Gonçalves da Rocha,
pecializados e mais hermé­ cujo centenário de morte
sentenciadas ao desaparecimento?
ticos, e sim todo o público, completou-se em 2018, mas
estudantes e professores, Detalhe d’O Pesadelo, de Johann completamente esquecida
de pesquisadores e leigos. É Heinrich Füssli, óleo sobre tela, 1781. em Pernambuco, até Celina
5 24
18
Quando Francisca Izidora
morreu, em 1918, o mundo
encerrava a chamada belle
époque. Francisca esteve Quando o esquecimento
para além do seu tempo Um milagre do amor
é só uma das formas
e celebrou sempre a vida, aliada Hexágono recupera
ao progresso da ciência, de silenciar
das novas tecnologias conto de Francisca Isidora,
e vanguardas. Sempre Ensaio de Tatiana Notaro inédito desde 1904
de olho no futuro.
Entrevista com
Na foto, modelo posa Francisca Izidora

46
em estúdio de moda, em Paris,
por volta de 1899.

como o leitor e leitora não-acadêmicos, so­


bretudo, que poderão descobrir por trás
de cada uma de suas obras uma pessoa e
seu modo particular de ver e interpretar
o mundo. Sem in­tenção alguma de esgotar
qualquer assunto. E quando o assunto é
sempre o mesmo, a memória? Tudo se re­
sume à ação do tempo sobre tudo. Sobre os Francisca Izidora

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nomes. Grandes ou não. E do quanto obra&­ Gonçalves da Rocha:
vida resistem ao teste, porque o tempo é o uma cronologia Francisca Izidora:
maior crítico para a vida&obra de auto­
Fortuna crítica
ras e autores. Mas quando a mentali­dade
de um tempo elege, muitas vezes violen­
tamente, tudo o que deve permanecer e
tudo o que deve desaparecer por essa
seleção nada natural? Esta série de Hexá-
gono não trata con­tudo de ví­timas, mas de
escritoras que, apesar do espírito de sua
de Holanda cujo centenário anos no Recife, a judia ucra­ época, garantiram espaço na litera­ tura
de nascimento tão recente­ niana, a mais universal das pernambucana e nacional. Sobre­ tudo
mente comple­ tado quase autoras brasileiras. uma que, não por acaso, viveu em um ci­
passou em brancas nuvens. Nesta nova série, Hexá- dade chamada Vitória, em Pernambuco.
Há ainda um nome ímpar gono traz elementos dessas Francisca Izidora Gonçalves da Rocha.
não somente das letras, mas obras sempre por escri­ O desconhecimento a que está relegada
das artes e do jornalismo de toras, poetas e estudiosas, é muito maior do que o seu longo nome.
Pernam­ buco, cuja segunda todas tão apaixonadas pelo Mesmo se o simplificamos em Francisca
década de falecimento se há­bito da leitura quanto Izidora (ou Isidora, conforme a grafia mais
completou em 2018: Ladjane críticas, com um olhar mais atual), não estará resolvido magicamente o
Bandeira. Por fim, mas não arejado e atualizado sobre problema, que é, na verdade, duplo. O pri­ Hexágono, revista literária em seis volumes, agradece, nesta edição, a Tatiana Notaro, pelo ensaio crítico; a Andréa
porque menos importante, cada uma dessas autoras, meiro, reconstruir de um modo real­mente Mota, pela entrevista e pelas fotos do acervo da família; a Patrícia Cruz Lima, pela direção de arte, a Halina Beltrão
Clarice Lispector, a mais in­ trazendo pontos de vista completo a trajetória vital e literária da au­ pela ilustração da capa e a Anny Stone pela fotografia às páginas 16-17, e agradecimento especial a Luzilá Gonçalves
Ferreira. Hexágono é uma publicação da Sommium Editora, e tem incentivo do Funcultura, Fundarpe, Secretaria
ternacional das autoras per­ mais recentes sobre como tora. O segundo, o de localizar suas obras.
de Cultura e Governo do Estado, com produção-executiva da Nós Pós, de Alexandre Melo. A edição-geral, pesquisa e
nambucanas. Sim, Pernam­ anda sua recepção no país e Ao pagamento da enorme dívida que o projeto gráfico são de Sidney Rocha. Esta publicação não tem ânimo financeiro de nenhuma espécie e é distribuída
buco reivindica desde há fora dele, numa linguagem Brasil tem com a memória dos seus melho­ gratuitamente para estudantes e professores de escolas públicas do Estado de Pernambuco, além de bibliotecas das
muito a pernambucanidade simples, que pro­mova o in­ res Hexágono paga com ao menos uma rede estadual. Buscou-se ao máximo se encontrar a autoria de reproduções de fotografias, fotomontagens ou obras de
de Clarice, pois viveu seus teresse pela escritora mono­ isidora, Parte do pagamento é esse tocante arte, e fazemos chegar nossos agradecimentos aos seus autores ou autoras. Se você encontrar este exemplar em lugar
mais intensos e inspiradores grafada deste número, bem ensaio de Tatiana Notaro. Leia. impróprio à leitura, ou se é seu e terminou de lê-lo, favor repassá-lo a outro leitor. Impresso pela Cepe Editora, no Recife.
4 QUANDO O ESQUECIMENTO 5

É SÓ UMA DAS FORMAS


DE SILENCIAR
01.VÁRIAS IZIDORAS madeira de cajá e que
Sabe-se pouquíssimo circulava entre seus fa­
acerca de Francisca. miliares. Foi sua estreia.
Seu nome, a profissão Dali em diante, ela se fez
que exercia, por onde em letras, em crônicas e
es­crevia – e tudo isso é em poesias. Sabe-se que
muito pouco diante des­ foi uma mulher letrada,
sa mulher, diante do que mas não é certeza se
ela representa para frequentou escolas lo­
aquele Pernambuco de cais ou recebia lições em
100 anos atrás e para casa, de alguma mestra
o que sua figura seria europeia, como era cos­
para o hoje. Francisca JABOATÃO/PE tume às moças da época.
Izidora Gonçalves da
Rocha – mulher, escri­
tora, poeta, professora,
1855/
VITÓRIA
É bem possível que
se esperasse que Fran­
cisca se tornasse pro­
jornalista, dramaturga, fessora, como foi. Mas o
conferencista – foi frag­ DE STO ANTÃO/PE que se pretendia dela
mentada em pequenos
escritos, nas muitas pá­
ginas dos jornais para
1918 pouco importa, é neces­
sário enaltecer que é
esta uma mulher além
os quais escreveu e na rarapes (PE) pudesse ficar encoberta pelo do tempo em que viveu:
memória que se tentou ser encontrada, mesmo esqueci­mento. “Todas uma leitora de poesias
apagar, mas que per­ que em algumas poucas as mu­lheres que escre­ românticas espa­nholas,
manece em valentes páginas. Mapeou Fran­ veram foram sumindo inglesas e alemãs, dos
vestígios. cisca e a tirou do com­ com o tempo. O meu li­ clássicos portugueses.
A bem da verdade, pleto esquecimento. vro tem esse objetivo, Leu Dante e Ossian, tra­
“Não perguntes se
Francisca Izidora foi res­ No início dos anos de resgate. Francisca Izi­ duziu Manfred de Byron
sofro, ou desatino!/
gatada pelas mãos de 2000, Luzilá orientou a dora é a marca de uma e Ramón de Campoamor.
Nem me olhes
outra mulher, a também dissertação de mes­trado mulher em uma época Foi admitida como sócia
assim!/ Prendes-me
escritora e professora em Teoria da Literatura em que as mu­ lheres correspondente na Aca­
a vida/ Nesses
Luzilá Gonçalves Fer­ intitulada Isabel Gondim x eram abafadas”, diz Lu­ demia Pernambucana
crespos da cor
reira, titular da cadeira Francisca Izi­dora: duas vi­ zilá à Hexágono. Dito
de meu destino!”
38 da Academia Per­ sões do amor no teatro isso, vamos reviver com
nambucana de Letras. do limiar do século 20, Francisca nestas linhas. POR TATIANA NOTARO.
“Parece melancólico,
Quando escreveu Escri- de Jaqueline da Silva Re­ Nascida em 24 de Especialista em Jornalismo
estamos diante de
tores pernambu­ canos do vorêdo, pela UFPE. Pouco janeiro de 1855, Fran­ e Crítica Cultural. Mestranda
uma grande mulher,
século 19 (Cepe, 2010), Lu­ depois, em 2010, pôs-se a cisca Izidora começa a em Comunicação pela UFPE.
resumida a parcas
zilá organizou registros investigar os resquícios escrever ainda criança, Vencedora do Prêmio
memórias, enaltecida
importantes, garantiu de Fran­ cisca – impor­ aos 10 anos de idade, no Cristina Tavares
por poucas vozes.”
que a cronista nascida tante demais, tão atem­ jornalzinho A Von­tade, de Jornalismo Literário
em Jaboatão dos Gua­ poral que não poderia editado em prelo de em 2017.
[TN]
de Letras (APL) em uma época em que às mulheres do “grupo inteligente e esperançoso de poetas e
6 estavam destinadas os serviços domésticos e a uma escritoras contemporâneas”, juntamente com Ma­ 7
figuração social pré-determinada. E ir além era vis­ ria Heráclita, Joana Tiburtina Lins e Anna Alexan­
to com péssimos olhos. drina. O livro traz dois de seus poemas, descreve
Francisca permitiu-se a mais que isso, e enal­ sua atividade de tradutora, registra seu drama
tecer suas atitudes vanguardistas é destacar a lírico, escrito em três atos, A filha dos Tupis, e o ro­
impor­tância dela, do seu exemplo, em um tempo mance O sítio de Lisandro.
em que a mulher tinha um papel de “primeira edu­
cadora dos futuros habitantes do país” e era vista 02. A VIDA QUE TERIA SIDO. E FOI
como ele­mento de equilíbrio, de sobriedade, na so­ Quebrando a regra social, Francisca nunca se
ciedade. Estava aqui, então, apenas para servir. A casou e passou a vida a sonhar com o amor im­
oportuni­dade de aprender a ler e a escrever já era possível pelo poeta positivista Generino dos Santos
um avanço diante de uma maioria de analfabetos. que, ao sair do Recife, deixou-a inconsolável. Seu
Francisca, já de partida, podia e escolheu ser mais. sofrimento ficou registrado no discurso sobre Úr­
Escritora, Francisca Izidora nunca publicou um sula Garcia e no conto “A chibatinha”, quase con­
livro em vida e foi citada em poucos, alguns muito fissões desse amor frustrado. E foi proclamando
tempo após sua morte (ainda assim, em raríssimas o discurso à Úrsula que Izidora quebra mais uma
edições, como a mencionada aqui, de Luzilá). Tudo regra e confessa em público seus sentimentos por
o que produziu ficou registrado em jornais – em Generino: no meio da fala, declama um longo poe­
muitos, do Recife, de Jaboatão dos Guararapes e de ta do amado, totalmente desconexo do contexto.
Vitória de Santo Antão – sob forma de opúsculos. A Oras, embora estejamos falando de um ato ul­
restrição aos periódicos fez dela uma desconhecida trarromântico, da louvação agoniada de um amor
dos estudiosos da Literatura, tanto do Brasil quanto não correspondido (e, pior, em público) é preciso
de Pernambuco. “Há muita coisa inédita, muito poe­ registrar que foi uma demonstração de coragem.
mas que ninguém nunca leu. Ela fazia conferências, Expor-se e declarar-se aos ouvidos alheios e ma­
escreveu o ‘Hino à vitória das Tabocas’, em ocasião chistas é mais um ato revolucionário de Francisca.
à inauguração do Monumento das Tabocas, em 27 Ainda tratando desse amor fugaz, Francisca e
de janeiro de 1905 (leia adiante). Era muito conhecida Generino chegam a trocar poemas, mas as condi­
naquela época”, completa Luzilá. ções que socialmente já eram desiguais se tornam
Uma das influências visíveis nos seus primeiros ainda mais injustas para ela. ENuma das ocasiões,
escritos é o poeta romântico Casimiro de Abreu, o poeta registra a dificuldade de corresponder
Contra todos os já que, assim como ele, utilizava a contemplação e aos sentimentos da escritora; Francisca chega a
preconceios. a idealização da natureza, o desejo de fuga, como viajar para o Rio de Janeiro para encontrá-lo, mas
Angela Yvonne descreve Escritores do Século XIX. Em “Tarde de Estio” volta desiludida, trazendo nas mãos um soneto de
Davis (1944- ). Mulher, (publicado em O Laranjeirense, em outubro de 1888), Generino que deveria ser entregue à APL. Apenas
negra, feminista, escreveu à Casimiro: isso. “Um consolo”, escreve Luzilá.
marxista, intelectual, Vemos, então, a valente Francisca a usar das
ativista.Um símbolo da No arroio quanta harmonia! letras para duelar. De um lado, a jornalista crí­
luta contra o preconceito No prado quanta poesia! tica e observadora; em simbiose, uma mulher que
no mundo.
Quantos requebros na flor! passa os dias a “desfalecer amando ainda”. Como
No início dos anos 70,
Davis foi vítima um Quantos risos à natura! diz a biógrafa, “que encontra no ‘Canto do Cauã’
das mais terríveis No peito meu – que ternura correspondência à sua tristeza: ‘Mas quem sente
perseguições e dos No coração quanto amor. no peito a dor pungente/ – Único elo que nos pren­
mais polêmicos de à vida –/ Não pode ouvir teu canto indiferente”.
julgamentos dos EUA. Como biógrafa que é, Luzilá afirma que “Fran­ Ou que pode aos “cabelos negros, perfumosos”, do
Foi inocentada de todas cisca escrevia muito melhor que muitos homens” e amado, que a prendam à vida, eles que são “da cor
as acusações e libertada. exalta que foi o machismo que execrou a obra “izi­ do (seu) destino”. Francisca morreu quase 20 anos
Para ela, John Lennon doriana” ao esquecimento. Mas, obviamente, “ape­ antes de Generino.
e Yoko Ono escreveram sar de” sua condição de mulher, o talento de Fran­ Ao lado de outras combativas atuantes, tais como
a canção “Angela” e os cisca chamou atenção do seu tempo: em 1879, no Edwiges de Sá Pereira (leia sobre na Hexágono #5,
Rolling Stones gravaram
livro Pernambucanas ilustres, o estudante de Direito desta série), Leonor Porto e Maria Amélia de Quei­
“Sweet Black Angel”
pedindo sua libertação. Henrique Capitolino registrou que ela fazia parte rós, lutou em prol dos direitos das mu­lheres. Inte­
Abaixo os grou a imprensa feminina, cujo corpo redacional e
8 estereótipos. organizacional era composto somente por mu­lheres, 9
Na página ao lado, foto o que dava margem para ser cha­mada de “impren­
para anúncio de pin up, sa perfumada”. Com uma lin­guagem recatada e de­
na década de 1950; licada, tal imprensa pedia permissão para ressaltar
Indo para além do
a relevância da pre­sença feminina na construção
cliché e da objetivação,
a mulher da sociedade brasileira.
contemporânea Mas a crítica é o ponto mais alto dos escritos de
está empenhada Francisca Izidora, porque seu papel de jornalista,
em conquistar pleno seu olhar atento às condições da cidade e do país,
direito à expressão, fomentam textos concisos publicados em diversos
reconhecimento jornais, como A Vitória e Lidador. Ainda mais na­
e liberdade, sem quele Pernambuco do século 19, é de se enaltecer
concessões. uma mulher que torne públicos seus posiciona­
mentos em uma cidade provinciana, embora com
veias progressistas, como ela mesma afirmava so­
bre Vitória. “Em 1859, recebera com festas a visita
do Imperador Pedro II, saudado no prédio colonial,
onde hoje funciona o Instituto Histórico e Geográ­
fico”, registra Luzilá.

02. AS VÁRIAS IZIDORAS


Os vieses desta cronista pernambucana ficam
muito explícitos. Sua biógrafa diz que suas produ­
ções, em poesia e prosa, “apresentam traços funda­
mentalmente diversos, como se proviessem de dife­
rentes pessoas”. O comparativo das duas produções
“izidorianas” mostram bem o duo que a compunha:
são mesmo poemas tenros que expressam visão
amorosa da vida ao redor, enaltecem uma visão
romântica, suave e por vezes sofridas; ao mesmo
tempo que a produção jornalística, publicada na
imprensa local, apresenta um olhar observador e
crítico sobre a vida da cidade e do país.
Quando assume a coluna “Ao correr da pena”,
que manteve por anos no jornal A Vitória, – cujo
proprietário era seu irmão, o deputado Gonçalves
da Rocha – Izidora internaliza o papel cronista e
passa a redigir [e a pensar] de acordo com a nova
“New Woman – co­menda: “espírito fino, observador, e penetrante
Wash Day”. Assim se na apreciação das palavras que interessam, na
lê a legenda a esta escolha de trechos adequados ou salientes, de que
foto satírica em uma faz um apanhado precioso, necessita igualmente de
revista de 1901: um cenário próprio e excitante, que possa desen­
uma mulher usando volver-se a jeito, expandindo-se livremente”.
meias até o joelho, Em tempo, há um equívoco: Francisca pensava
(traje tradicionalmente que seu lado cronista e crítico deveria se so­brepor
masculino) e fumando aos seus sentimentos e impressões, postas em poe­
um cigarro, enquanto
sias, como se suas íntimas literatices só a ela impor­
supervisiona um
homem de vestido tassem. Mas, ao ler Francisca, ao buscá-la no que
e avental, dela ficou, percebe-se um uníssono. Francisca é
que lava a roupa. uma só voz que ecoa em caminhos diversos sem
10 11

A literatura e o perder a identidade perspicaz, pessoal, do olhar Acima, Manifesto da


termo New woman. que se volta ao social e para dentro de si mesma. Força Lésbica, nos EUA.
O termo foi usado pela Nessa dualidade, Francisca escreve sobre a­quela Foto. Pam Isherwood/
primeira vez em 1894 atualidade em que vivia, sobre publicações literá­ Format Photographers
pela escritora Sarah rias, lamenta a falta de editoras no Brasil, “um país Agency Archive.
Grand cujas inteligências, dignas de serem compa­radas às
(1854-1943) para se
melhores do mundo, não podem se ex­pandir senão
referir a mulheres
que buscavam nas colunas efêmeras dos jornais”, sugerindo que
mudanças radicais. os governantes deveriam espalhar casas editoras
A expressão no país (e, perceba, parecendo prever que seus es­
“nova mulher” foi critos não estavam seguros à posteridade nas pá­
popularizada também ginas dos periódicos).
por Henry James “Aqui só os ricos podem publicar porque pagam
(1843-1916) que a suas edições e os ricos são justamente aqueles que
utilizou usou para menos importância legam às manifestações do es­
descrever feministas pírito”, resgata Escritores pernambucanos do século XIX.
na Europa Noutras colunas, mais à frente, designa à imprensa
e nos EUA.
o papel de encabeçar a luta contra a ignorância,
Foto (ao lado): Frances
Benjamin Johnston’s como canal de expansão da literatura como, de fato,
Self-Portrait (as “New era. Escreveu ainda sobre política nacional e inter­
Woman”), 1896. nacional.
Greve geral.
12 Na página anterior, 13
A sindicalista Rose
Zehner (1901-1988)
discursa em uma
greve, na fábrica da
Citroën, na França, em
23 de março de 1938.
As mulheres foram
as primeiras a parar
as atividades.
(Foto de Willy Ronis).

A educadora Bertha
Maria Júlia Lutz.
(1894-1976).
A feminista brasileira
abriu caminho para
muitas batalhas, entre
elas a conquista do
voto feminino.Como
Francisca Izidora
Gonçalves da Rocha
e Edwiges de Sá
Pereira, também
de uma geração de
educadoras, escritoras
e mulheres que
atuavam na imprensa
e noutras atividades.
Aqui, Bertha em
foto de autoria
desconhecida,
restaurada por
Adam Cuerden.
Muito curioso ver que a produção Conta Luzilá à Hexágono que
14 “izidoriana” transita com inteligên­ quando cascavilhava a vida de Fran­ 15
cia entre poesias e romances. Passa cisca, descobriu que ela morreu em
ainda pelo teatro, arrastando esses Vitória de Santo Antão. Então, ima­
sentimentos todos e demonstrando gina, é lá que deve estar enterrada.
seu talento e preparo para as letras, Alguns parentes disseram que sim,
ao mesmo tempo em que seu papel mas no cemitério da cidade, olhando
de jornalista é desempenhado com túmulo por túmulo com Marcus Vilar
louvor, equilibrando voz ativa e ele­ (escritor, também acadêmico da APL),
gância, sem esquecer de uma inteli­ não encontrou nada que nomeasse o
gente ironia. Assinou ainda textos em sepulcro da jornalista. Não se sabe do
jornais do Recife (Diario de Pernam­buco, seu corpo.
em 1901; Correio Pernambucano, em “Quem sabe indo aos livros de re­
1868; e A Província da Cidade do Re­cife) gistro, encontre-se”, palpita.
e ainda em periódicos do interior do Na Biblioteca Pública de Pernam­
estado (O Fanal e O Commercio), além de buco, em frente ao Parque Treze de
ter sido colaboradora de uma revis­ Maio, centro do Recife, é possível en­
ta dedicada às mulheres, O Lírio, que contrar um manuscrito de Fran­cisca
defendia a educação feminina como Izidora Gonçalves da Rocha. Um folhe­
meio fundamental para seu posicio­ to com cerca de 30 páginas que guar­
namento político e social. dam o discurso que ela es­ creveu
Interessante é que o olhar jornalís­ para homenagear Úrsula Garcia
tico de Francisca conseguia ver, já na­ (eram amigas de redação), cuja dedi­
quela época, que havia uma centrali­ catória diz:
zação do Brasil no Sul e a segregação “Para as leitoras da biblioteca”.
das demais regiões, como se menores Parece melancólico, estamos dian­
fossem. E isso, também punha no pa­ te de uma grande mulher, resumida
pel – “mas o Rio é a capital, o Rio está a parcas memórias, enaltecida por
no Sul e no Brasil o Sul tem o privilégio poucas vozes.
de ser protegido pelo governo” – ao Por outro lado, a força de Fran­cisca
criticar que Vitória não tinha sequer está muito bem representadas por
um corpo de bombeiros, indignada aquelas palavras de punho: o tempo
com um incêndio que ocorrera em virou uma mancha, a tinta se sobres­
um estabelecimento comercial. sai e permanece a quem procurá-la.

Prêmio Nobel da Paz.


Wngari Muta Maathai
(1940-2011) foi professora
e ativista política
do meio-ambiente do Quênia.
Foi a primeira mulher
africana a receber o Nobel
da Paz. Maathai fundou
o Green Belt Movement,
uma organização não
governamental
ambiental concentrado
em plantação das árvores,
conservação ambiental, e
direitos das mulheres.
“De dia retraindo-se
16 às vistas curiosas/ 17
Modesta ou
caprichosa conserva-se
em botão…/
A noite abre ao
sereno as pétalas
cheirosas!”
A poesia de
Francisca Izidora
sempre
esteve ligada
a temas como a
natureza.

Na foto,
Natália Amor-im
posa para
Anny Stone.
18 Em 1910, o jornal carioca O País publicou, por meio do seu Alberto
Santos-Dumont 19
(1873-1932)
Almanaque, uma enquete cultural, com per­guntas às es­ inventor, designer,
empreendedor ,

critoras brasileiras mais ilustres. Entre elas, Fran­cisca


grande leitor e
influencer de
sua época,

Izidora. E mais: Júlia Lopes de Almeida, Adelina Lopes por quem Francisca
Izidora nutria
grande admiração.
Vieira, Carmen Dolores, Júlia Cortines e Maria Clara da Foto: Horst
Merkel-Itaú
Cunha Santos. As perguntas e as respostas têm um gran­ Cultural.

de interesse sociológico e antropológico, mais até do que


simplesmente literário. Basta ver que apenas seis das
vinte e quatro perguntas são específicas da literatura,
e mesmo assim, se atêm mais aos aspectos biográficos,
psicológicos e comportamentais das au­toras. As questões
seguem num estilo semelhante às colunas sociais: Qual o
seu lema (ou “divisa”, como se dizia na época)? É interes­
sante acompanhar as respostas de Francisca Izidora e
notar que, ao lado de seu pendor romântico (autores que
admira e o seu estado de espírito para a criação literária),
que a vincula ao passado, está o gosto pela tecnologia da
aviação, por exemplo, que mostra o seu olhar mi­rando
o futuro. Além disso, não toma a bandeira feminista com
radicalismo nem idealizações. Hexágono republica aqui
a enquete, 109 anos depois. Em tempo e a tempo. [Hx]
[o país] [francisca izidora]
20 Quando e como resolveu V. Exa. abraçar a carreira literária? Impelia-me uma lembrança querida, que degenerou em profunda
21
melancolia.
[francisca izidora]
Aos quinze anos, quando o espírito precisava de expandir as [o país]
melodias do coração, ante o sugestivo cenário da natureza per­ Qual o pintor nacional que prefere?
nambucana.
[francisca izidora]
[o país] Décio Villares, o genial pintor, estatuário, que está construindo o
Quais os autores que mais influência tiveram no seu espírito e monumento a Julio de Castilhos.
quais os que ainda admira?
[o país]
[francisca izidora] Qual o dramaturgo mundial?
Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Fagundes
Varela, Castro Alves, Junqueira Freire, Lopes de Mendonça, João de [francisca izidora]
Deus, Alexandre Herculano, George Sand, Edgar Quinet, madame Shakespeare.
de Staël, Lord Byron. Coerente, atraída e constante, sinto que os
mesmos poetas e pensadores me dominam, porém devo a minha [o país]
formação literária a Generino dos Santos. Qual o compositor musical?
[o país] [francisca izidora]
Quais das produções de V. Exa. a que mais completa considera? Carlos Gomes, que nos legou a Protofonia do Guarani, que é verda­
deiramente a nossa canção nacional, o hino póstumo do autóctone
[francisca izidora] brasileiro.
Nenhuma! Em todas deixo um reflexo de minha imaginação, um
fragmento de meu ser, um eco de minha memória e, ao mesmo [o país]
tempo, um desleixo de forma, um defeito de estrutura que não me Qual o ator? Qual a atriz?
deixam discriminar qual seja a mais completa.
[francisca izidora]
[o país]
Só nos grandes centros se podem conhecer os melhores atores, e,
Como trabalha V. Exa.? Qual a hora preferida? longe, não firmei ainda as minhas predileções.
[francisca izidora] [o país]
Sem método, obedecendo às circunstâncias, ou ao influxo da inspi­ Que perfume prefere?
ração. Para o trabalho prefiro as manhãs.
[francisca izidora]
[o país]
White Rose.
Das estesias sensoriais, qual a que mais a predispões para a ela­
boração da produção? [o país]
Que cor?
[francisca izidora]
A tristeza. [francisca izidora]
O amarelo, que me recorda o topázio e toma os cambiantes da
[o país]
nuvem, que precede ao dia.
Recorda-se das condições em que fez o seu primeiro trabalho lite­
rário? Vale a pena de as descrever? [o país]
Que flor?
[francisca izidora] forma a verdadeira liga social-cosmopolita, ou, antes, é a linha de
22 A rosa. união entre o progresso e a solidariedade humana! 23
[o país] [o país]
A sua divisa? Que pensa do homem como representante do sexo forte?

[francisca izidora] [francisca izidora]


O que se pode fazer hoje não se deixa para amanhã. Penso que é um protetor natural, um amigo, um herói, quando
dispõe de caráter, de sensibilidade, de valor, de talento e dedicação,
[o país] sintetizando todas as virtudes cívicas e morais.
A sua opinião sobre moda?
[o país]
[francisca izidora] Qual o prato caseiro que V. Exa. julga o mais saboroso?
Penso que a moda é útil e necessária, quando não deforma o rosto
[francisca izidora]
nem prejudica a estética de um corpo gentil, isto é, em termos co­
medidos, simples e elegantes, porque o exagero é ridículo. O peixe de escabeche.

[o país] [o país]
A sua opinião sobre o amor, o casamento, a maternidade e o di­ Acredita V. Exa. que haja uma cozinha nacional brasileira?
vórcio?
[francisca izidora]
[francisca izidora] Existe realmente a cozinha nacional brasileira, que, sendo conforme
Tratando-se de assuntos tão sérios, tão melindrosos, de tanto cri­ aos nossos costumes, oferece as mais variadas iguarias, de acordo
tério e responsabilidade, eu prefiro calar-me para ouvir somente com a higiene e o paladar.
os pensadores sensatos.
[o país]
[o país] Acredita V. Exa. na necessidade da instituição, no nosso meio, das
Que pensa do feminismo e da incorporação da mulher à política? escolas de ensino doméstico?

[francisca izidora] [francisca izidora]


Simplesmente vaidade. Sim: porque é a base da economia, da ligação familiar, e do trabalho,
desenvolvendo aptidões e fortificando o espírito para os reveses
[o país] da sorte.
Dos inventos modernos, qual o que mais admira?

[francisca izidora]
Os balões de Santos Dumont, porque nos elevam para o éter, lá
onde pairam as águias e os condores, perlustrando a imensidade.,,

[o país]
Entre a creche e o jornal, qual, segundo a opinião de V. Exa., o que
mais interessa ao progresso e à solidariedade humana?

[francisca izidora]
O jornal, porque mais firme e perseverante, mesmo vencendo
afanosas dificuldades se constitui o auxiliar permanente das ideias
e dos sentimentos humanitários, e, congregando escritores nacio­
nais e estrangeiros numa família de irmãos comunicativos e leais,
24 25

I. O fato que serve de tema a este conto Casada, havia poucos


meses, com o banqueiro
deu-se na França, no ano de 1810, Revelle, que a idolatrava
em um dos castelos do banqueiro Revelle, e que possuindo invejável
como consta de uma notícia extraída de fortuna não poupava
somas consideráveis para
um jornal antigo. Conservo bem cercá-la de tudo quanto a
na memória o nome dos personagens, natureza mais caprichosa ou
menos, porém, o do principal protagonista, exigente pudesse cobiçar de
extraordinário sobre a terra,
que não revelaram e a quem chamarei habitava em um dos mais
simplesmente Alexandre. belos e atraentes castelos
da França, no meio de

II. cômoda, onde espalhava


suntuosos jardins e paisagens

Um milagre
encantadoras...
raízes de sândalo e raminhos
Eram oito horas do dia. de resedá, sacudindo a poeira Toda absorvida nessas
Vestida garbosamente à dos livros, revendo as contas agradáveis ocupações,

do amor
negligé com o transparente amassadas na escrivaninha que distraem a ociosidade
peignoir guarnecido de de mogno, colocando flores e que fazem passar o
finíssimas rendas, que traíam- novas e frescas nos artísticos tempo sem causar bocejos,
lhe o segredo das formas jarros de porcelana de torando a vida mais suave
graciosas, soltas as tranças Sèvres, pousando-os aqui e e a natureza humana mais
do seu formosíssimo cabelo, além, como a fade benfazeja enérgica, porque a atividade
Victorina Lafourcade movia- do lar, atarefada com todas
O fantástico, a ironia e o feminismo. se gentilmente no gabinete essas obrigações inerentes a
é um poderoso auxiliar
das forças físicas, Victorina
Hexágono recupera conto de Francisca Isidora, inédito de seu marido, vendo se uma dona de casa cuidadosa entretinha-se quando
estavam em ordem todos os e ativa e sentindo-se ouve tocar a sineta... Já?
desde 1904. O conto abre discussão sobre direitos civis móveis, arrumando a roupa completamente compensada Perguntou ela a si mesma.
e individuais da mulher, como à sexualidade.
sexualidade, engomada nas gavetas da porque era rica e feliz! Não me enganei... Ouvi
26 27

dez horas e absorver-me livre e tu bem sabes que doirando-me a existência, infância com a morte de
todo o resto do dia... todas as minhas noites te que se desliza venturosa meus progenitores!...
pertencem exclusivamente! entre sorrisos e flores!...
— Neste caso, atalhou Um estranho que nos serve
Quer em nossos confortáveis
a esposa, não me levas Oh! Como é encanador estar de tutor, embora humano e
salões, no doce aconchego
à Ópera!... E tinha tanto sempre contigo, ouvindo compassivo, é sempre um
da intimidade recíproca,
empenho de assistir! frases tão sinceras e tão indiferente! Não houve falar-
conversando alegremente,
Segundo os cartazes e doces que teus lábios lhe n’alma a voz do sangue...
quer nos longos parques
apresentações de jornais, pronunciam num idílio de Não se preocupa com o que
onde dardejam os raios
figuram no elenco artistas amores... e que tanto me sofremos, nem vigia o que
claros do luar sobre as
de grande merecimento. fazem palpitar o coração, necessitamos!...
áleas floridas, é-me sempre
Olha! já estava me de amiga estremecida e de
agradável estar ao teu lado, Falta-me a sábia previdência
preparando para ir ao esposa feliz!...
sempre atento e vigilante, de carinhosa mãe... Não
espetáculo, já predispunha
como teu campeão e teu Sim: eu devo-te toda a segue a intuição divinatória
o meu espírito para gozar de um pai!... Mas, tu foste a
guarda! tranquilidade de minha
as deliciosas surpresas minha Providência! Tu velas
existência, onde florescem
do desempenho e já me De mais, os teus menores incessantemente, e sem
os teus afetos, devo-te todo
enlevavam as variadas desejos são ordens cansar-te, pela tranquilidade
o conforto de um porvir
perspectivas do pitoresco imperiosas para mim, de meu espírito! Em teu peito
independente, e sem encontrei os afetos da família,
cenário e assim as horas porque aceito com
trabalho nem humilhações, porque substituindo meus
distintamente... é o sinal do carinhosamente a mão, que passariam suaves ao som desvanecimento e ufania o
porque, se não te ligasses pais, te constituíste o meu
almoço! Nem ao menos deu- apertava entre as suas. das sinfonias da orquestra!... leve jugo de obedecer-te!...
a mim como o frondoso único e legítimo protetor...
me ele tempo de mudar a Mas, essa obrigação
— Hoje almoço mais cedo, — Compreendo-o, Revelle, carvalho protegendo a
toilette. intransmissível, que tantas O Sr. de Revelle
Victorina, porque tenho de e lhe sou em extremo frágil florinha do deserto,
vezes rouba-me a tua interrompeu-a dizendo:
E sai ligeiramente. Desce fazer diversas transações agradecida! Entesouro bem os meus dias escoar-se-iam
presença, vem ainda hoje
ao andar térreo, onde, na comerciais, regular certas no íntimo de minh’alma no isolamento e na sombra, — Logo que chegar ao
estorvar-me!...
todas as tuas amabilidades sem que os aquecesse uma escritório pedirei ao caixeiro
escada, o Sr. de Revelle já contas do banco e passar
— De modo algum, Victorina, e os teus carinhos, que eu réstia de sol! Devo-te todos para alugar um camarote
estava esperando-a e vindo quitações, de sorte que o
porque a noite fica-me considero joias verdadeiras, os desvelos que me foram no teatro. Depois, deixa-o à
ao seu encontro tomou-lhe trabalho deve começar às
de incontestável valor, fatalmente arrebatados na tua disposição mandando à
28 29

esplêndidas, cheias de plantas - Estátuas, figuras alegóricas, embarcações e navios surtos


aromáticas, reposteiros de áleas de acácias – árvore que no porto...
rendas e de gazes, paisagens simboliza a união dos bem
casados, cerrando à noite as Era esse o lugar favorito e
locais dos melhores artistas
duas folhas iguais, que abrem predileto em que Victorina
nacionais e estrangeiros,
aos pares, em cada galho gostava de recolher-se com os
lustres, arandelas, lâmpadas
guarnecido de flores róseas, seus recônditos pensamentos
pendentes do teto, baixelas
quando lhes aquecem os raios espraiando a vista pela
custosas, flores naturais,
do sol... imensidade... aí inspirava-se
outras exóticas e raras,
dessa poesia inata e natural,
encontrando-se por toda
Viam-se cômoros de selva que não encontra estrofes
parte, como nas longas
macia, mais doces que o reveladoras, mas expande-
escadarias da Rússia, onde as
sono, assim como cascatas se nalma, onde floreza e
flores recebem os hóspedes
artificiais jorrando aljofares esplende ao calor das emoções
casa de modistas, floristas, rosinhas purpurinas... naquele grande vaso de acompanhando-os com os
prateados, repuxos pitorescos, íntimas e profundas, influindo
joalheiros e lojas de um verdadeiro mimo... argila, esmaltado de azul, seus delicados odores até aos
caramancheis entretecidos poderosamente em nosso ser,
perfumarias, escolher tudo Simbolizam as afeições causando-me tantos cismares luminosos salões...
de trepadeiras cheirosas, atuando em todas as nossas
quanto precisares a fim de naturais e meigas, que poéticos!... Que estrofes Se no interior do castelo faculdades, e que perdendo o
onde as brisas passavam
completar os teus atavios e nascem espontaneamente encantadoras de um poema reuniam-se de conformidade efeito morre-se moralmente!...
sussurrantes...
ficares mais formosa... no coração, como nasceram de amor!... Vamos vê-la... o principesco luxo

III.
sem serem plantadas essas asiático e o requintado No meio de tudo isto um
— Não preciso de nada!
outras roseiras agrestes E tomando a mão de seu elevado pavilhão de ordem
Basta o meu vestido de gosto parisiense, que
em 1736 nas montanhas de marido levou-o pelas áleas coríntia, no gênero de
pelúcia cor de ouro com o deslumbrariam provocando
Borgonha, donde veio-lhes bordadas de madressilvas e Calímaco, de cujo centro Victorina tinha razão
adereço de brilhantes. Nos uma imaginação sedente
o nome de batismo, e depois jasmins. avistavam-se montanhas quando queixava-se de que
cabelos, flores naturais... e de voluptuosidade, ali,
foram-se propagando nos na extensão do parque, coroadas de arvoredos, que sua infância fora destituída
quanto a extratos, sabes que Se, no interior do castelo
jardins, sendo desde então deliciosamente encantador, tocavam nos céus, como de encantos e de afeições
prefiro A rosa branca... havia o luxo suntuoso dos
cultivadas! a Arte e a Natureza esculpindo-os de caprichosos verdadeiras!
móveis estufados de veludo
Oh! ia-me esquecendo... a desvelavam-se em formar desenhos, e ao longe
Oh! Como está encantadora a carmesim e os mais ricos Era de temperamento
minha roseira de Borgonha os mais soberbos conjuntos!... patenteava-se o mar cheio de
minha roseira de Borgonha tapetes da Pérsia, jardineiras ardente, de imaginação
amanheceu cheia de
30 31

muito viva, que pedia-lhe de a melhor alavanca contra a tinha medo de msotrar-se, Nada mais faltava para o
pronto expansão e objetivo; adversidade. expondo-se aos comentários complemento da existência
mas o seu caráter sério e indiscretos, porém nutria em faustosa de Victorina
refletido mostrava-se forte Muitos moços de sua silêncio uma paixão delirante, Lafourcade. Considerações,
e refratário aos anelos, terra, alguns mesmo verdadeira e única!... Era visitas, teatros, passeios,
equilibrando-lhe a razão, desinteressados e bem como o crente de Jagernat, viagens, carruagens, joias,
evitando, ou, antes, livrando-a colocados, aspiravam à que se deixa esmagar aos pés estofos caríssimos, ricos
de toda e qualquer sedução... sua mão, disputavam o de seu ídolo! artefatos de Paris, e mais
seu coração, procurando que tudo esse coração fiel
Sentia-se pobre, sem arrimo, merecer-lhe a simpatia, em Considerava-a como a sua
e amante, em que podia
dispondo apenas de esmerada quanto os mais enfatuados crença a qual se submetia
escudar-se com toda
educação, porque o seu esperavam que ela se com toda humildade, toda
confiança e firmeza!
tutor, a pretexto de gastar decidisse na escolha de um constância e todo estoicismo

V.
com os mestres e os livros, companheiro, mas, ou por de um casto sacerdote! – Era
tinha consumido todo seu excesso de timidez, ou mesmo Alexandre.
dote, esquecendo-se de que por natural desconfiança,

IV.
ela ficava sem recursos, Victorina os conservava Deixemo-la cumprir o seu
e o saber da mulher na distanciados, e nenhum deles destino!
sociedade sedenta de ouro ousava maldizer-se, tal era
não é credencial, com que o prestígio da imagem, cujo Victorina decidiu-se pelo .........................................................................................
se apresente impondo seus pedestal não poderia atingir! sr. de Revelle, menos pela .........................................................................................
méritos!... Não lhe assegurava, invejável posição, que lhe

VI.
por certo, um porvir isento de Entre esses havia, contudo, assegurava na sociedade, do
humilhações!... um jovem poeta, que não que pelo coração magnânimo
a perseguia com as suas e nobre, que trazia-lhe, e, por
Assim, pensando nas insistentes assiduidades, certo, a escolha não podia ser Depois do enlace matrimonial
consequências da pobreza, não seguia-lhe com o olhar melhor, nem mais acertada. do sr. de Revelle, ninguém
Victorina retraía-se, votando- cobiçoso, não se antepunha mais ouviu falar em
se ao trabalho manual, que ante os seus passos Sob esses lisonjeiros auspícios Alexandre. Ninguém o
à força de hábito, tornou-se assumindo a vaidade de realizou-se em poucos dias o encontrava nas ruas, em
uma segunda natureza, senão conquistá-la, e até mesmo casamento. que de ordinário trajetava,
32 33

e sua casa conservou-se Ainda não tinha descansado me a presença dela... E Sabia que ela estava neste
hermeticamente fechada. das fadigas da jornada, nem contudo não deixava cair mundo, e nada lhe faltava
desarrumado as malas, nem uma lágrima, porque para a satisfação de seus
Teria arrefecido o seu amor?
quando feriu-lhe o ouvido tinha secado a fonte à força desejos!... Mas a notícia de
Ou ferido pela intensidade
uma notícia fulminante, que de tanto chorar!... Mas sua morte... Perdê-la de
do golpe, procurara o
fê-lo vacilar e estremecer, sangravam-me todas as novo... Sem vê-la jamais...
suicídio precipitando-se
empalidecendo mortalmente! fibras do coração!... Antepondo-se a eternidade
nas profundezas do Sena?
ao meu amor, que também
Ninguém sabia dizê-lo! Victorina Lafoucarde de As flores aguardam o
é infinito porque contém em
Revelle tinha sido inumada orvalho refrigerante das
A pouco e pouco, os amigos si a imensidade... Abrange o
naquele mesmo dia, com noites serenas, dando-
foram-no esquecendo, e por oceano e o firmamento... Oh!
grande pompa – no jazigo da lhes em troca o seu doce
fim não se falava mais em Isto me faz enlouquecer!...
família, no meio do cemitério perfume, as plantas se
seu nome.
de uma aldeia, dependência animam com o leve roçar Hei de vê-la pela última
Passaram anos, sucederam- de um dos seus castelos!... das virações, mesmo os vez!... Quero certificar-me
se fatos diversos, novas irracionais têm uma alegria, com os meus próprios desta
Alexandre levou a mão ao
mudanças, outros e todos gozam de um prazer triste verdade! Quero cortar,
coração, que estalava de
acontecimentos se operaram na existência, todos, mais para servir-me de relíquia,
dor, e murmurou soluçando:
no minúsculo planeta, em ou menos, logram um afeto, uma trança de seus lindos
Perdida duas vezes a mulher
que habitamos, mas sempre ou sentem o esvoaçar de cabelos!... Depois... Não sei se
a quem amei delirantemente
o mesmo véu misterioso uma esperança... Mas eu... terei forças bastantes para
com todas as faculdades de
cobrindo o paradeiro de Eu sentia-me num báratro, resistir!... Eu também já me
minh’alma! Ai! Quanto o meu
Alexandre! onde minha vista se perdia considero morto!... Morri
fado foi negro!...
nas alucinações de um moralmente no mesmo dia,
Um dia, porém, impelido insensato!... em que ela deu-se a outrem...
Às vezes... Não!... Sempre!
pela nostalgia da pátria, Morri para a alegria...
Ai! Sempre, tomado de
ou mesmo por um secreto Contudo... Resignava-
sombria preocupação o meu Morri para os afetos do
pressentimento Alexandre me viver sem possui-la,
espírito se perturbava... coração... Morri para todos
regressou inopinadamente à porque sabia que ela era
a minha vista se perdia os passatempos da vida!...
França! feliz e amada, embora nos
no vácuo... Porque faltava-
braços de outrem!... Sim!
34 35

Às ocultas penetrarei nessa


aldeia que pertenceu-lhe,
e onde repousam seus
Por esquecimento, ou mesmo
de propósito, tinham deixado
ficar a chave do ataúde, que
Eternidade... Chamou-a
muitas vezes... Embalou-a
inutilmente numa canção
nessas horas mortas da
noite... Quis certificar-se
ainda uma vez inclinando
VIII.
Aquela noite fatídica, talvez
restos... não para perturbar era todo de veludo negro, de suspiros... Mas, imóvel e o ouvido sobre esses lábios
inflexível pelo destino, foi
o silêncio dos túmulos, nem com arabescos de ouro. fria, ela repousava sobre cerrados pelo selo da morte...
cheia de esperanças e
para profaná-la com os meus Abriu-o... um lençol de linho, trajando E não foi uma ilusão de seus
temores para o intrépido
olhares indignos, porém, brocados de fios de prata sentidos transtornados... Não
Tremiam-lhe as mãos... Alexandre, que, à cabeceira
para depositar sobre a fria bordados de pérolas, entre as foi a preocupação de seu
Os joelhos se vergavam de Victorina, tornou-se
lápide uma grinalda de beijos quais cintilavam num colar, espírito saturado de dores!...
a seu pesar... Mas ele não o mais solícito e delicado
orvalhada de lágrimas!... com os seus reflexos verdes,
recuava!... Ia contemplar Victorina respirava, e enfermeiro...
as aventurinas do Egito, e

VII.
pela última vez aquelas como despertando de longo
assim ataviada para a última Todos esses desvelos,
feições queridas, que pesadelo lançava em torno
e extrema jornada!... todas essas providências,
estavam gravadas em sua olhares desvairados... Cerrou
prodigalizadas a tempo e
Efetivamente, alta noite, às memória, e, talvez, num A cabeça pendia-se numa novamente os olhos... E seu
proficuamente, tiveram
dez horas, acompanhado de transporte de amor e de profusão de flores naturais, corpo flácido e leve perdeu
êxito feliz, fazendo-a pouco a
seu fiel criado, Alexandre, saudades, roçar num beijo sobressaindo a enorme toda rigidez cadavérica, que
pouco reanimar-se, embora
que levava uma escada o primeiro e último aqueles quantidade de rosas, que o entorpecia, tornando-o
indistintamente, porque
munido de uma lanterna lábios sagrados, que nunca exalavam brandos e pesado e inerte... Alexandre
as suas ideias estavam
furta-fogo, penetrou no tiveram para enleá-lo nem balsâmicos odores. auscultou o coração que
assombradas ainda pela
interior do parque à sombra um fugitivo sorriso... palpitava debilmente...
Alexandre contemplava tudo noite do túmulo!...
dos ciprestes, onde a solidão
e o silêncio eram profundos... Descobriu-lhe o semblante isto absorto em profundo Então, mais animado,
Dois meses se passaram
Somente as aragens oculto por finíssimo lenço pesar, com toda veneração revestido da coragem e da
assim, mas voltaram as
noturnas moviam de leve os de seda das Índias, bordado e religioso acatamento, mas, força que o caracterizavam
forças físicas, a consciência e
galhos das casuarinas, que com iniciais entrelaçadas de súbito sobressaltou-se... tirou-a do ataúde,
a saúde! Conhecendo, pois, a
formavam alas funerárias... formando o anagrama de Estremeceu violentamente prendendo-a nos seus
sua situação, que parecia-lhe
dois nomes diversos. porque sentia nas asas braços, e depois de envolvê-
falsa e precária, Victorina
Alexandre parou ante uma da aragem um como que la em seu capote, fugiu
Aí cravou os olhos como mostrou-se saudosa de
cruz erguida, ajoelhou-se e débil gemido... Prestou mais apressado com esse precioso
invocando uma visão da seu lar, acusando-se de
rezou... atenção... Tudo era soturno fardo...
36 37

ter infligido os deveres de


esposa fiel e honesta, mas
não podendo resistir à
IX. reivindicava os seus direitos
sobre a esposa, de quem
a religião e a sociedade
No fim de longo tempo os dois
atração, que a impelia para tinham-lhe dado a posse, os
novos amantes voltaram
os braços do seu salvador!... tribunais e a lei, anulando
à França imaginando que
esses sagrados laçados
Nessas alternativas ninguém os reconheceria.
conjugais, deixavam triunfar
inquietadoras, que pareciam Não sucedeu assim, porque
gloriosamente a causa
atuar fortemente sobre o o Sr. de Revelle apenas os
simpática de Victorina e de
seu espírito, por demais encontrou, exclamou:
Alexandre...
impressionável, e que
— Esta é a minha defunta!
deviam resolver o seu E, como a voz de Cristo,
destino, Alexandre lhe disse: E reclamou-a. Ela resistiu; ressuscitando Lázaro, o
os tribunais sustentaram Amor transformou aquela
— Amo-a, a senhora ama-
essa resistência e decidiram noite lúgubre do túmulo
me, e social e civilmente está
que as circunstâncias numa esplêndida aurora de
morta. Fazem fé as certidões
particulares (e na verdade paz e de felicidades!...
autênticas, logo porque se
o eram) e o longo espaço de
se há de preocupar com os
tempo decorrido tinham
seus deveres e sua honra?
anulado não só sob o ponto
Tudo isto morreu consigo,
de vista da equidade, como
visto que não tem nada a
da legalidade, os direitos do
poupar nem a recear. Venha
marido.
começar uma vida nova,

X.
que lanço nenhum prende
a que deixou. Comecemo-la
juntos.
Nessa sensacional e [Publicado originalmente no Diario
Ela deixou-se convencer, e extraordinária ação jurídica, de Pernambuco, no Recife, terça-
expatriaram-se. em que Sr. de Revelle feira, 2 de agosto de 1904, p. 2]
38 1855 – 24 de janeiro. Nasce
no engenho santo André, em
Heráclita, Joana Tiburtina Lins
e Anna Alexandrina. Cita dois
Em testemunho de minha ade­
são à civilizadora propaganda
lacqua, Anna Nogueira, Úrsula
Garcia, funda a revista femi­
do Monumento Comemorativo
da Batalha das Tabocas em Vi­
39
Jaboatão (PE), Francisca Izidora de seus poemas e informa que pela libertação dos cativos, tão nina O Lírio, editada no Recife. tória, em 27 de janeiro.
Gonçalves da Rocha, filha de Francisca Izidora traduzira o brilhantemente sustentada por Nessa revista, ela publicará 1906 – Em setembro, pronuncia,
D. Francisca Herculana Gon­ Manfred de Byron, era autora V. S., deliberei-me alforriar, contos, poemas e traduções. na Oficina Literária Martins
çalves da Rocha e do coronel do drama lírico em três atos, sem ônus algum, as minhas es­ Junior, da qual era sócia, uma
Pedro Gonçalves da Rocha. A filha dos Tupis e do romance cravas Julia e Maria do Carmo 1903 – Sócia correspondente conferência em homenagem à
O sítio de Lisandro. pela inclusa carta de liberdade, da Academia Pernambucana poeta Úrsula Garcia, recente­
1865 – Em Escada (PE), edita, que V. S. me fará o obséquio de de Letras, que publica em sua mente falecida;
com o irmão Herculano, “fale­ 1883 – O Almanaque Litterario mandar registrar. Faço votos Revista daquele ano seu drama
cido na flor dos dias”, utilizando publica seu poema “O banhista”. para que todos os possuidores lírico Elnar. O Almanaque Garnier, 1908 – Professora primária na
um prelo de madeira de cajá, Ilmo. Sr. Dr. Joaquim Nabuco. de escravos o aplaudam assim. do Rio, publica poemas seus. cidade de Vitória, onde o irmão,
o jornal­zinho A Vontade, que Recife, 12 de março de 1887. Francisca Isidora Gonçalves da o deputado Gonçalves da Rocha,
circulava apenas no seio da Rocha.” 1905 – Colabora nO Fanal, de edita o jornal A Vitória, no qual
família. 1887 - Na vanguarda do tempo, Jaboatão, com poema em home­ ela assinará, durante anos, a
Francisca Izidora foi mais do 1888 – Saem publicados poe­ nagem a Dona Maria Castro de coluna “Ao correr da penna”.
1879 – Em 1879, no livro Pernam- que uma ativa feminista, tam­ mas seus no jornal O laranjei- Freitas. Colaborações nO Com- Escreve também em O Lidador,
bucanos ilustres, o estudante de bém disse “sim” à causa aboli­ rense, de Laranjeiras, no Estado mercio, do município do Cabo, daquela cidade. O jornal O jabo-
Direito Henrique Capitolino, diz cionista, e noticia seu apoio em de Alagoas. O Astro, do Ceará, e O Escrínio, atonense, “periódico littero-noti­
que Francisca Izidora perten­ carta a Joaquim Nabuco: dirigido por Andradina de cioso”, publica sua biografia e
ce ao “grupo inteligente e espe­ 1902 – Artigos e poemas nos Oliveira (RS). Escreve o “Hino um retrato na sua Galeria de
rançoso de poetas e escritoras “Ilmo. Sr. Dr. Joaquim Nabuco. - jornais Diario de Pernambuco e à vitória das Tabocas”, cantado Jaboatonenses Ilustres, em 26
contemporâneas”, como Maria Recife, 12 de março de 1887. A Província. Com Amélia Bevi­ por ocasião da inauguração de janeiro.
40 O BANHISTA 41
Vem! Dá-me tua mão! Voemos sobre as ondas
Como cisnes, talvez, levados pelo amor…
Fica perto a cidade; o rema n’água afunda,
Do frágil lenho seu, o tardo pescador.

Vamos sonhar também um lago de Veneza


D’estrelas marchetado em noites de luar,
As gôndolas, que passam nas águas irisadas,
E o céu azul da Itália brilhando sobre o mar.

Mas tremes tanto assim! Tremes de enleio ou susto?


Bem sinto minhas mãos teus dedos apertar,
E mais nervosos inda – mais frios do que a onda,
Mais trêmulos que a brisa passando a sussurrar.

E o seio teu palpita sob a blusa de azul,


Ora arquejante ou sôfrego molhado pelo mar…
Que estranhas harmonias! – O peito arfa de gozo.
– Tens n’alma alguma lira, que fazes suspirar?

E passam como uns sons, que acalentei na infância,


Talvez vagos anseios à mente, que desmaia.
Oh! Tudo foge assim! O amor e a f’licidade
São como aquelas ondas, que vês morrer na praia!...

Enquanto é cedo amemos… Unidas nossas almas


Ao doce olhar de Deus em sensações à flux,
Que a existência mais suave no peito se dilate
Doirando d’áureo prisma

Sim, dá-me tua mão! Vamos além que a onda


Nos impele mais forte em mística atração…
Por bússola teu olhar – ninho de amor teu colo…
Assim qu’importa o mundo? Qu’importa a solidão?

Conchega-se a meu peito. Oh! Mais e mais ainda!


Prelibemos do amor o mel da felicidade,
Amanhã… será tarde!... a dita é como a onda,
Eu parto! Adeus! E ficas só co’a lânguida saudade!...

In: Almanaque Litterario Pernambucano, 1883.

Um banho em Asnières
(em francês: Une baignade
à Asnières), [detalhe]
óleo sobre tela de 1884,
do pintor francês
Georges Pierre Seurat
(1859-1891)
National Gallery, Londres.
42 43

CABELOS NEGROS

Com as negras torrentes de Gonzul


Sob os ramos dos sândalos frondosos,
são teus cabelos negros, perfumosos,
recebendo os aromas de Stamboul!

Ao ciciar das virações do sul


em ondeados feixes tão lustrosos,
ornam-te a fronte cachos preciosos
quais negras pér’las do oceano azul!

Mas, compassivo, na expressão florida,


dessa voz maviosa como o hino
de uma flauta indiana aoa longe ouvida,

não perguntes se sofro, ou desatino!


Nem me olhes assim! Prendes-me a vida
Nesses crespos da cor de meu destino!

In: O Commercio, Cabo, ano II, número 12, 1905.

Era assim
a Istambul à época
em que Francisca
Izidora escreveu
o poema.
A foto mostra
a Mesquita Azul
(Sultanahmet),
antes de 1895.
44 45

NENÚFAR

Quando a noite se estende sobre as águas caudais


E em lânguido silêncio queda-se a natureza
O nenúfar indígena de esplêndida beleza
Mostra-se à superfície do “rio dos currais”.

No monte vê-se os restos da extinta fortaleza


Lá onde os holandeses fizeram arraiais…
Ali a flor da noite em límpidos cristais
Se ostenta matizando a livre correnteza.

De dia retraindo-se às vistas curiosas


Modesta ou caprichosa conserva-se em botão…
A noite abre ao sereno as pétalas cheirosas!

Minh’alma é o nenúfar que vive em solidão,


Mas ao afago doce das frases carinhosas
Expande-se em estrofes de amor e gratidão!

In: O Lidador, Vitória, 27 de fevereiro de 1909

Óleo sobre tela de Claude Monet,


(1840-1926) de 1904. O quadro
retrata os nenúfares no lago do
jardim do pintor, em Giverny.
A tela pertence à série de pinturas
do mesmo nome que o presente
trabalho: “Nenúfares”.

No poema, acima, “Nenúfar”,


Francisca Izidora menciona
o “rio dos currais”, e se refere, mais
especificamente,
à freguesia da Luz
em S. Lourenço da Mata.
FORTUNA
habilitações literárias, e, das duas conferências E se o nome não é por completo estranho ao
46 que proferiu na Associação dos Empregados do nosso meio literário, onde são poucas – bem pou­ 47
Comércio – é um trabalho a desafiar a compe­ cas – as naturezas femininas que se fazem plumi­
tência de literatos e naturalistas. tivas, cultivando com amoroso carinho e fecunda
Aqui no Recife, na Oficina Literária Martins perseverança as belas letras, – sequer mesmo
Junior, – que um punhado de cultores das letras as artes que se dizem belas.
fundou e manteve com brilho por algum tempo, – Há cerca de três anos, Francisca Izidora vi­

CRÍTICA
Francisca Izidora fez-se ouvir num bonito trabalho sitou esta capital, que veio conhecer e onde re­
sobre a individualidade simpática de Úrsula Garcia, alizou algumas brilhantes conferências sobre
dando ao estudo crítico sobre a apreciada escrito­ assuntos naturalistas de sua predileção – uma,
ra morta a imparcialidade que o seu afeto por ela, sobretudo: “As árvores” – que lhe valeram me­
mesmo por ser muito grande, inspirava e impunha. recidos aplausos da imprensa e dos competentes.
Colaborou em quase todos os jornais de Per­ E, por isso mesmo, o seu súbito e surpreenden­
nambuco e em diversos outros estados; ultima­ te pensamento não nos pode eximir, ao menos, de
mente era assídua no Lidador, da Vitória, e no uma honrosa referência, a que ela tem incontes­
Escrínio, a valente revista que Andradina de Oli­ tável direito pelos seus altos toes de espírito e co­
[excertos] veira estoicamente mantém no Rio Grande do Sul.
Não faz muito tempo, vimo-la figurar na Revista
ração e acentuadamente, pelo seu bonito talento
de escol, esmerada cultura intelectual e subidos
de Ciências e Letras, de Amélia e Clóvis Bevilaqua. méritos. É o que fazemos nestas poucas linhas, –
Era, não obstante a sua idade já avançada, de antes tarde do que nunca.
uma capacidade de trabalho admirável! Solteira, D. Francisca Izidora, oriunda de principal e
manteve-se sempre do seu esforço próprio, ser­ abastada família de agricultores, nasceu em prós­
oposta aos velhos moldes, com eles rompendo des­
QUEM? de o alvor de sua mocidade, alvorotando e ilumi­
vindo com amor ao magistério.
Tinha ilusões e aspirações literárias, ela, aos
pera “fazenda” da zona açucareira do estado de
Pernambuco, marginada pela Estrada de Ferro
nando o austero solar paterno com os clangores sessenta anos, como eu nunca tive nem tenho, na do Recife ao São Francisco; e ali foi educada, re­
Edwiges de Sá Pereira e a luz de suas ideias novas, altruísticas, liberais. dolorosa certeza de que está muito longe o dia velando, desde a sua primeira mocidade, o mais
Passou leve e sutil a notícia de sua morte: nem Surgiam ainda longe os primeiros albores do em que o escritor nacional, e máxime a escritora, acentuado temperamento literário, que se foi gra­
necrológios pomposos, nem além do domínio dos abolicionismo e já o entusiasmo pela cruzada san­ possa fazer de sua pena brotar, no mesmo tempo, dualmente avigorando e aprimorou depois.
parentes e dos íntimos a dor de sua perda se fez ta a empolgava em absoluto, inspirando-lhe o es­ a independência e a glória. E assim foi que, em assíduo convívio com os li­
lágrimas... Entretanto, ela bem as merecia, – a tro de estreante em versos onde a sua piedade, Não cito neste rápido escrito a totalidade de vros e permanente contato com a bela, pujante
malograda escritora, – essas lágrimas de sau­ unida ao sentimento de justiça, fulgia como um sol. seus trabalhos, apenas aqueles de que tenho ab­ e oxigenada natureza – quase virgem – que a
dade: homenagem ao seu incontestável talento, E, enquanto media o verso e procurava a soluto conhecimento... ambientava, bem moça ainda, menina quase, co­
preito à denodada combatente que ela foi! rima, já recolhendo as memórias, que dos antigos E vão caindo assim, um após outro, os marcos meçou a exteriorizar, em prosa e verso, todos os
Eu senti, numa vibração dolorosa, plangerem­ lhe vinham, das penas em que gemia a raça in­ que de há mais tempo assinalam a nossa pas­ sonhos, todas as esperanças, todas as aspirações,
-me as cordas todas do sentimento ante o fato ir­ feliz, escrevendo mais tarde um livro – Um epi­ sagem pelo caminho das letras... Ignez Sabino, e até mesmo imaginárias desilusões de sua alma,
remediável, e conquanto o silêncio seja – segundo sódio da escravidão no Brasil, – romance que é Carmen Dolores, Francisca Izidora... a um tempo meridional e contemplativa.
Maeterlinck – o único meio de bem conhecermos um valioso documento dessa fase negregada. À memória da conterrânea, ilustre por tantos Daí, talvez, e da funda solidão em que sem­
a profundeza do nosso ser e de o darmos a conhe­ Nunca os prelos o viram; a insuficiência de títulos, essa demonstração modesta, essa home­ pre viveu, longe de maior convívio humano e do
cer, – um impulso de justificada solidariedade meios e a indiferença do meio não lhe permitira nagem sincera da minha veneração e da minha sugestivo bulício das grandes cidades, senão da
levou-me a traçar estas linhas, contrariando o a publicação desta obra. É mais uma companhia, saudade. influência byroniana que reinava no seu tem­
conceito de Maeterlinck para satisfazer a neces­ talvez, para os livros de Paulo de Arruda, de Edu­ [Publicado no Jornal Pequeno, Recife, em 30 de a­gosto po, que ela ia haurir no original, e da qual não
sidade do meu coração. ardo de Carvalho, e tantos outros que eu não sei, de 1913, p. 3] se pode nunca desprender, esse fundo românti­
Quem, neste nosso meio, desdenhoso e indife­ menos felizes que o inditoso Caetano Andrade na co, quiçá por demais subjetivo, doentio quase, e,
rente, dá-se ao trabalho de curar de letras, pro­ misericórdia de uma publicação póstuma. sobretudo, esse reflorido e adereçado estilo, nem
fissional ou diletante que seja, há de convir que o
nome de Francisca Izidora é o representante de
Não conheço bem o livro a que me refiro, mas
creio-o de valor, porque de valor foram inúme­
FRANCISCA IZIDORA: sempre correto, mas muitíssimo pessoal, que se
nota em todas as sua produções.
uma individualidade de prestígio próprio, de lon­
ga data firmado no conceito dos contemporâneos.
ros trabalhos insertos em revistas e jornais da
imprensa indígena, onde a saudosa escritora
UMA HOMENAGEM Como quer que seja, porém, muito trabalhou e
escreveu muito, não só com destino ao livro como
Educada sob os atrasados princípios da an­tiga sempre figurou com brilhantismo. Lacônico despacho telegráfico do Recife, tão à imprensa periódica; e deixa grande número de
disciplina doméstica obediente a Molière, que so­ O seu drama Elnar, na Revista da Academia lacônico que nos passou de todo despercebido na composições poéticas, muitas das quais enfeixadas
mente permite na educação feminina “poucas lu­ Pernambucana de Letras, – de que era membro labuta diária, noticiou, há dias, ali ter falecido a em volume, alguns contos, mais de um romance
zes”, – foi um milagre a resistência tenaz por ela correspondente – é um vigoroso atestado de suas literatura pernambucana Francisca Izidora. e imaginoso drama lírico, que não viram luz de
48
48 “Que perfume
prefere?”
O perfume
White Rose,
lançado em
1800. Como se
lê na enquete
nesta edição,
a fragrância
preferida
da escritora
Francisca
Izidora.

publicidade, – afora escorços biográficos e inúme­ Em todo caso, d. Francisca Izidora, que era a
ros artigos esparsos por periódicos, que efemera­ última descendente ilustre de uma dinastia de
mente editou, e em colaboração, por publicações poetas, a entroncar em Maciel Monteiro, Paes
estranhas. – Correspondia-se assiduamente com de Andrade, Marciano Rocha e outros, figura
escritores do seu sexo, dentro e fora do país. gloriosamente na bela galeria das Pernambu­
Como se vê, pois, cultivou todos os gêneros li­ canas ilustres, de Henrique Capitolino; pertencia
terários; mas, o que é verdadeiramente para no­ à Academia Pernambucana de Letras; e, sendo
tar, é que, em tão grande número de produções uma distinta poetisa, era uma escritora de pulso,
em que ela se patenteia uma escritora de raça e reconhecidamente, de real e verdadeiro me­
e, por vezes, um espírito mais varonil do que fe­ recimento.
minino, a sua forma literária mais característica Nossos pêsames às Letras Brasileiras.
e acentuada seja a prosa, que é sempre tersa, a
fazer lembrar um pouco Herculano, seu escritor
predileto, de preferência ao verso, que é por ve­ [Homenagem publicada na primeira página do
zes frouxo e descurado, a Casimiro de Abreu, seu jornal O Século, Rio de Janeiro, quarta-feira, 1 de
poeta favorito. outubro de 1913]

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