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ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA: ENTRE ACORDOS E DESACORDOS

Por Domício Proença Filho


Professor emérito da UFF, poeta e ficcionista. Integra a Academia Brasileira de Letras

Entrou em vigor, em 1o de janeiro de 2009, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Pelo


menos nos quatro países cujos parlamentos o ratificaram: Brasil, Cabo Verde, São Tomé e
Príncipe e, recentemente, Portugal. É de supor-se que, em função do Protocolo regulador da
vigência, a adoção dos novos princípios estenda-se a Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e
Timor-Leste. O objetivo, afinal, é a unificação da escrita em todos os países da comunidade
lusófona.

Trata-se de mais um capítulo de uma história longe de ser tranquila. Desde o primeiro texto,
datado de 1931, de elaboração conjunta da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia
Brasileira de Letras, cujas normas são tornadas obrigatórias em todo o Brasil por decreto de
Getúlio Vargas, abandonadas em 1934, na esteira do nacionalismo da proposta modernista,
restabelecidas em 1938, reformuladas, em 1943, pelos brasileiros e, em 1945, pelos portugueses,
com algumas alterações em 1972 e em 1973, respectivamente.

O ano de 1975 marca nova tentativa das duas Academias, com a elaboração de mais um projeto
de Acordo unificador. Motivos de caráter político impedem a aprovação oficial. Os esforços
prosseguem. Em 1986, um encontro na mesma direção reúne, no Rio de Janeiro, por iniciativa de
Antonio Houaiss, representantes dos citados países africanos, que tinham o português como
língua oficial. Termina, como o anterior, por não ir adiante.

Remobilizam-se em 1989, os países envolvidos. Um novo documento regulador, decorrente, ainda


uma vez, da ação das duas academias, a brasileira e a portuguesa, com a participação oficial
daqueles países, é formulado em 1990. Na base dos conteúdos, o texto de 1975, na estrutura, o
texto de 1986. Resultado: o documento final, elaborado em Lisboa em 16 de dezembro de 1990,
destinado a unificar a grafia de 98% do vocabulário geral da língua. Este o texto com a vigência
finalmente aprovada, dezoito anos depois de sua elaboração. Configura-se, ainda uma vez e de
forma exaustiva, a presença do debate e do caráter polêmico que, historicamente, têm
acompanhado o processo.

O novo documento regulador privilegia o critério fonético, deixado em segundo plano o critério
etimológico. Assim posicionado, leva em conta as diferenças de pronúncia das comunidades
envolvidas, em vários casos praticamente intransponíveis. E envolve, em relação aos critérios de
43 e 45, manutenção e mudança. Esta, porém, não tão abrangente como a que caracterizava o
texto de 1975. Poderia, sem maiores impasses, ter sido mais radical. Mas configura um avanço.

Possibilita ampliação significativa do mercado de livros e periódicos. Abre-se para Portugal, para
os países de africanos e para o Timor-Leste o contingente de leitores brasileiros e vice-versa, com
a decorrente superação de espaços de mútuo desconhecimento. A edição de livros ganhará maior
mobilidade e implicará redução de custos, compensatória do investimento e do tempo destinados
à adaptação das obras às novas regras. A língua escrita, em decorrência, passará a contribuir
ainda mais para a solidificação de laços e interesses comuns.

Dinamiza, na área diplomática, eliminada a onerosa duplicidade de textos, a elaboração e a troca


de documentos. Entre os países da comunidade lusofônica e, especialmente, no âmbito dos
organismos internacionais de que participam, notadamente na Organização das Nações Unidas.

Terá efeitos positivos também no processo de alfabetização em todas as faixas etárias.


Contribuirá para o aprimoramento da expressão escrita. O ônus da mudança situa-se na
duplicidade de cânones exigida pelo período de adaptação, fixado, no Brasil, em dois anos e, em
Portugal, em seis. A experiência anterior comprova que não costuma exigir tanto.

Abriga também, no âmbito linguístico, a possibilidade de fixação de uma política do idioma que
aproxime ainda mais os países da lusofonia. Na direção da preservação da língua comum,
respeitadas as normas paritárias nacionais.

Trata-se, entretanto, e o histórico dos documentos reguladores o comprova, de matéria complexa.


Por força das paixões e dos interesses que envolvem. A demora na implantação, a resistência à
mudança, os impasses criados o evidenciam. Uma proposta de tal natureza termina por envolver
muito mais do que aspectos meramente linguísticos. Mobilizam dimensões históricas, políticas,
ideológicas e econômicas. Ao que parece, no presente caso, em fase de superação, necessária
para que se concretize, um Acordo efetivamente unificador da ortografia da língua oficial da
comunidade lusófona.
Esta matéria faz parte da seção Edições Anteriores de "Pensando Junto".

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