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CAPA

Anton Roos
REVISÃO
Alec Silva

DIAGRAMAÇÃO
Alec Silva
Às vezes escrevemos meio sem querer, juntando uma palavra à outra, com uma
vírgula aqui, outra ali e quando menos nos demos conta, temos uma história,
uma crônica, um conto finalizado. Foi assim com Maquete. Comecei a escrever
observando a vista do apartamento de uma tia minha em Brasília e, após duas ou
três horas diante do notebook, estava com o conto pronto.
Maquete é o segundo conto que escrevo e publico. O primeiro, Adolfo, encontra-
se disponível para download e impresso nas páginas do livro Fragmentos,
coletânea de material feito exclusivamente por artistas de Luís Eduardo
Magalhães, no oeste baiano, onde atualmente resido.
Mas, talvez, você possa estar se perguntando sobre a capa desse novo conto.
Sim, foi proposital. Desse jeito mesmo. Simples, feita da maneira mais artesanal
possível, no Paint, sem uso de nenhum recurso adicional. Direta e até infantil,
embora Maquete revele um conteúdo totalmente diferente e até certo ponto
perturbador.
Lembra do velho ditado: não julgue um livro pela capa. Pois então, boa leitura e
até breve.
Anton Roos
A vista do apartamento, no meio de uma manhã de sexta-feira, pode até sugerir
que há alguma chance de que todos os erros até então cometidos não tenham
passado de um sonho ruim. Na pior das hipóteses, uma ressaca de bebida barata,
desta de garrafas empoeiradas no balcão de uma mercearia ou de embalagens de
plástico que custam menos de dez pratas.
Do décimo quinto andar pode-se ouvir o ronco distante dos carros e o latir dos
cachorros à passagem de algum estranho ou até de outro vira-lata sem coleira
que vagueia sem rumo definido, empertigado quase que tão-somente pela
necessidade de se alimentar e daí a remexer o lixo de frente dos quintais.
Entre as nuvens e o céu de um azul claro em degrade, esporadicamente, aviões
alçam voo rumo a outras capitais cheias dos mesmos problemas das demais e
que, daquela altura, parecem tão insignificantes quanto uma maquete imobiliária
em exposição.
Por uma estranha coincidência, foi uma destas malditas ferramentas de
persuasão que, sete anos antes, serviu como a última pá de cal de convencimento
para que ele assinasse o contrato e assumisse um compromisso ilógico de
aquisição do apartamento que agora, por conta própria, cobrava-lhe uma dívida
aquém às possibilidades do seu saldo bancário e capacidade cognitiva podiam
prever. Engraçado que dali, daquela posição, isso tudo soasse como alguma peça
de Lego perdida da caixa e nada mais.
Também havia, e isto ele sabe perfeitamente, uma parcela de culpa de Sueli, a
vendedora e dona de um decote provocante e revelador de uma linha tímida,
porém suficiente, da marquinha do sol, o que naturalmente fazia crescer no
subconsciente uma vontade desproporcional de ver, tocar e beijar aqueles seios,
nus. Não fosse por ela, o tempo gasto percorrendo os corredores do feirão de
imóveis teria durado não mais que 15 minutos.
No entanto, esse mesmo sol provocador, quase um malandro exímio dançarino
de gafieira, sob a ótica da privilegiada localização em que se encontra, não passa
de um mero lambedor dos telhados da vizinhança diminuta e um visitante
indigesto e mal educado, pois invade o imóvel sem pedir licença, fazendo-se
único pela janela do quarto e da sala.
Sueli, a vendedora, ficou pra história, guardada em duas horas de negociação,
três ou quatro visitas extras e algumas punhetas debaixo do chuveiro. Nem
presente à entrega das chaves ela estava, pois, casada e grávida do segundo filho,
seguiu o marido para uma nova vida no interior. Quiçá, tivesse sido naquele
momento que, enfim, a ficha e o mundo caíram e enviaram seu primeiro recado.
As chaves recebeu de Romeu, o novo vendedor da imobiliária. Um homem de
pouco mais de 25 anos, fora do peso, cavanhaque e óculos de grau. Nada
comparado à Sueli.
Dos dias e anos que se seguiram, quisera ter ele coragem suficiente para
vociferar alguns palavrões. Xingar e esbravejar toda sua raiva. Contra Romeu.
Contra Sueli. Contra os cachorros e seus latidos irritantes. Até contra o sol e
todos dançarinos de gafieira. Antes disso, lembrava-se sempre dos ensinamentos
da avó, beata convicta de doutrina rígida, que assumiu o papel deixado pela mãe
quando ele ainda era um meninote. Daí, e tão-somente daí, o desejo único de o
castigo pelas punhetas ser ameno e todas as lágrimas e desculpas depois de cada
uma delas suficientes quando a hora chegar.
Nu, como todos os cômodos do imóvel, a fisionomia é vaga. O corpo esguio, os
cabelos enrolados e a barba por fazer. Não há mais nada a lhe acompanhar na
amargura do viver conjugado apenas pela respiração e as batidas do coração. De
resto, só um vazio limitante de esparsas viagens insólitas para um mundo de
ilusão, causado pela má companhia de um lado e a perda da avó beata de outro.
O estepe e a fuga e vice-versa.
Tudo que vê estancado a dois metros do parapeito era aquela maquete gigantesca
e a cada minuto mais e mais aterrorizante. Uma sequência de barulhos uniformes
e ritmados chama atenção e o obriga a dar dois ou três passos à frente. O sol lhe
toca a pele nua com o mesmo gosto e despudor que tingira Sueli e a brisa faz os
pelos restantes do corpo ouriçarem-se.
Os olhos estão marejados e percorrem o horizonte com uma curiosidade juvenil.
Logo o barulho se revela em um rastelar de enxada em um dos quintais vizinhos.
A pessoa que manuseia a enxada parece um boneco de brinquedo movimentando
os braços para provar a funcionalidade da ferramenta.
Um novo avião ganha o céu, um caminhão baú vira uma esquina, uma criança
pedala sua bicicleta na calçada. Um carro de som anuncia as ofertas da quitanda.
Bonecos em movimento. Fazendo a maquete pulsar. O interfone toca. O susto é
grande. Cinco minutos. Angústia. Lágrimas. Aflição. Não demora a alguém
bater na porta. Intermitentemente.
— Senhor, senhor, sabemos que você está aí, abra a porta, senão teremos de
chamar a polícia. Por favor, colabore.
Colaborar. Polícia.
O choro aumenta, a maquete chama. Outro avião fura uma nuvem e some no
horizonte distante. É lindo. Mais um passo, mãos no parapeito. Sol ardendo na
cara. Enfim, um palavrão. Não. Dois:
— Viado, filho da puta.
Quem se importa. É só um impulso. Ele vai ver a maquete de perto.
Nasceu no dia de Santo Antônio, numa pequena cidade do Rio Grande do Sul.
Era o último ano da década de 1970. Na infância e parte da adolescência quis ser
locutor esportivo. Desembarcou na Bahia na transição entre a adolescência e a
vida adulta. Fez jornalismo na Faculdade São Francisco de Barreiras (FASB) e
posteriormente pós-graduação em Jornalismo Digital na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Em 2014, publicou seu primeiro livro de crônicas, A gaveta do alfaiate. Estreou
como contista na coletânea Fragmentos, com o conto Adolfo, no ano seguinte.
Após isso, escreveu uma novela e uma noveleta, ainda inéditos. Maquete é seu
segundo conto publicado na Amazon.
https://www.facebook.com/pages/Anton-Roos/1455846778038255?fref=ts

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