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Machado de Assis: do teatr

teatroo .
Textos críticos e escritos diversos
de João Roberto Faria
São Paulo, Perspectiva, 2008.

E lizabeth R. Azevedo

O
ano 2008 foi marcado por inúmeros boca em comentários de clareza e justeza la-
eventos comemorativos ao centenário de pidares na medida em que o autor é profundo
falecimento de Machado de Assis. Em se- conhecedor do período e já estudara em traba-
tembro, o pesquisador e professor de Li- lhos precedentes a obra dramática de José de
teratura Brasileira da USP, João Roberto Alencar, o estabelecimento do teatro realista no
Faria, lançou seu mais recente trabalho: Macha- Brasil, a rarefeita presença do teatro naturalista
do de Assis: do teatro. Textos críticos e escritos di- entre nós e, numa pesquisa de grande fôlego si-
versos, 679 páginas, pela editora Perspectiva1. milar a que apresenta agora, realizou a compila-
Independente da efeméride, a obra já surge ção do pensamento teórico teatral brasileiro no
como referência fundamental nos estudos ma- século XIX. É portanto com muita propriedade
chadianos e do teatro brasileiro. Composta de que destaca desse contexto maior a figura da-
duas partes distintas, apresenta inicialmente quele que é considerado um dos melhores críti-
uma análise da trajetória percorrida por Macha- cos teatrais brasileiros.
do como crítico teatral, especificamente, ou Inicialmente, são apresentadas as premis-
como folhetinista sempre interessado nos acon- sas e convicções do jovem crítico (nacionalis-
tecimentos dos palcos cariocas entre os anos de mo, moralismo, engajamento, isenção crítica –
1856 e 1908. No restante do volume (a maior muito próximo ao que propunha seu amigo
parte dele), colige e edita cuidadosamente as Quintino Bocaiúva), passando pela revisão de
matérias publicadas nos diferentes órgãos de certas posições até chegar ao desalento expresso
impressa com os quais Machado colaborou ao no desiludido comentarista maduro. O estudo
longo de sua carreira de jornalista. começa ressaltando como Machado se empe-
As análises do professor João Roberto são nhou na luta pela renovação do teatro nacional
sempre no sentido de realçar o diálogo entre o em meados do século, apoiando iniciativas que
pensamento de Machado e o meio teatral brasi- procuravam trazer para o Brasil a estética realis-
leiro com o qual conviveu. Essa tarefa desem- ta, tanto na dramaturgia quanto na encenação,

Elizabeth R. Azevedo é professora do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Gradua-


ção em Artes Cências da ECA-USP.
1 Assis, Machado de. Machado de Assis: do teatro. Textos críticos e escritos diversos. São Paulo: Perspectiva,
2008.

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s ala p reta

não se furtando a criticar o consagrado ator tária”) o agradava, mas também toda aquela de
João Caetano, representante maior da antiga qualidade estética e artística inegável.
escola. Isso porque Machado foi um crítico Entre outras coisas, é importante chamar
completo, que abriu espaço para a análise de a atenção para a apreciação do efeito que tive-
cada elemento componente da obra, desde o ram também sobre Machado as atuações dos
texto até a interpretação e a encenação (limita- grandes atores europeus presentes no Rio em
da pelos padrões da época a questões acerca da suas temporadas no Brasil. Destaque-se a in-
adequação de cenários, figurinos e, eventual- delével marca deixada por Ernesto Rossi, sobre-
mente, música). Dedicava-se também a avaliar, tudo em suas interpretações de Shakespeare.
criticar e sugerir mudanças na prática empresa- Apesar de conhecer muito bem a obra escrita
rial que regia a lógica das apresentações. Apesar do dramaturgo inglês, ter visto as boas ence-
de ter mudado de opinião sobre outros assun- nações desses textos pelo consagrado ator italia-
tos, nunca abandonou a idéia de que o teatro, no propiciou a Machado uma maior percepção
assim como as outras artes, deveria ser apoiado da profundidade no desenho dos personagens.
pelos poderes públicos. Essa posição conca- E teria sido essa profundidade, essa universa-
tenava-se com sua crença, também perene, de lidade chamada de desenho da alma que ele,
que o teatro é uma escola de moralidade e apri- tão nacionalista a princípio, passou a buscar
moramento social, na qual o público pode se em suas próprias criaturas. “(...) Shakespeare no
aperfeiçoar constantemente. Apesar de ter man- palco foi uma revelação para Machado (...)
tido essa convicção até o fim da vida (motivo a partir desse ano [1871] torna-o um constan-
pelo qual se desiludiu profundamente com os te interlocutor (...)”.3
rumos do teatro nacional no final do século Por que tal profundidade foi conseguida
XIX, diante do irreprimível sucesso do chama- mais em seus romances e contos do que nas pe-
do teatro ligeiro), a premissa sobre a qual a fun- ças não é possível discutir aqui. O que importa
damentava mudara alguns anos depois de ter é notar como a vivência teatral foi importante
começado a atuar como crítico. O professor na formação do grande escritor.
João Roberto aponta a leitura dos escritos de Por outro lado, o livro não deixa de apon-
Mme. de Stäel como responsável por essa gui- tar as atitudes de Machado que poderiam ser
nada. Na verdade, Machado ampliou seu con- consideradas hoje como preconceituosas ou au-
ceito de moralidade, não mais o restringindo ao toritárias, como sua atuação como censor do
ideário burguês, mas incorporando a idéia de Conservatório Dramático Nacional e sua reivin-
que “uma obra é moral se a impressão que se dicação de um poder ainda maior para a enti-
recebe é favorável ao aperfeiçoamento da alma dade, a qual deveria poder proibir peças de bai-
humana. [...] A moralidade de uma obra con- xo valor artístico; ou a constante crítica que fez
siste nos sentimentos que ela inspira”2 como aos gêneros do teatro musicado, à farsa burlesca
sugerido pela autora francesa que tanta influên- e à sátira. Contudo, tais convicções do crítico
cia tivera sobre o romantismo. A partir daí, são apresentadas à luz do século e apreendidas
Machado parece mais tranqüilo para afirmar como parte da opinião corrente no ambiente
que não só a estética moderna (realista e “utili- intelectual nacional.

2 Idem, p. 69.
3 Idem, p. 86.

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R esenha

Na segunda parte do livro, arrolam-se as tuação (imagine-se o quanto deve ter lutado
críticas e os folhetins existentes nos acervos com o programa do computador ao preservar
nacionais, ampliando o número de textos já co- as vírgulas que separam sujeito e predicado!).
nhecidos nas, assim chamadas, “obras comple- Então, a partir de agora, podemos con-
tas” de Machado de Assis. O cuidado e o res- tar com uma obra de mérito inegável que facili-
peito na reprodução do material expressam-se ta o acesso à documentação e permite a aprecia-
em notas de rodapé que justificam e esclarecem ção da contribuição de Machado tanto para a
os partidos adotados, bem como na manuten- história das idéias teatrais como para a crítica
ção da integridade dos textos e mesmo da pon- no Brasil.

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