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Castoriadis (O Instituinte) e A Instituição
Castoriadis (O Instituinte) e A Instituição
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Introdução
O presente artigo apresenta idéias de Cornelius Castoriadis (1983; 1985 1989; 1992; 1995;
2002; 2007; Castoriadis e Cohn-Bendit, 1981), um dos pensadores de língua francesa que
mais intensamente trabalhou o conceito de instituição. O interesse na sua obra está no descarte
do enfoque isomórfico, em prol da preocupação com a criação humana. O autor releva não a
conservação, mas o potencial de transformação implicado nas instituições: pensa uma força
instituinte operando desde o interior do instituído. O tipo de análise organizacional que tal
perspectiva teórica impulsiona, vai ao encontro da crítica ao conservadorismo da teoria neo-
institucional proposta pelos pesquisadores do Observatório da Realidade Organizacional
(CARVALHO, GOULART e VIEIRA, 2005).
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do caos e da indeterminação. A psique humana entra em cena como operadora privilegiada da
dinâmica institucional e organizacional, o inconsciente e os mecanismos psíquicos ganham
centralidade e o tratamento teórico da instituição se abre à transformação e à mudança. A
concepção de imaginário permitirá construir a mediação entre psique individual e instituição
social, afirmando a indeterminação como princípio dinâmico da mediação.
A instituição social – entendida como fazer e pensar humanos no tempo – é a própria história,
trama diacrônica das sucessivas instituições da sociedade, dissociar instituição e história seria
pensar o mundo independentemente de sua própria construção (CASTORIADIS, 1992, p.
265). O social-histórico é criação à medida que a atividade que tece o social se consubstancia
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em história, é a história da instituição social se fazendo, no tempo; processo que excede o
puro desenvolvimento lógico-racional, para apresentar-se como um continente que comporta a
indeterminação. Na recusa de ver a instituição sob as formas da mimese e repetição,
vislumbra-se a criação histórica como aquilo que põe esta instituição social, dentre todas as
possíveis. “O social-histórico é... criação a cada vez de sua instituição por cada sociedade (a
história não é desdobramento racional)” (CASTORIADIS, 1989, p. 464).
Castoriadis propõe a noção de imaginário para dar conta do que excede a racionalidade e
funcionalidade da instituição social: o componente criativo-imaginativo. O imaginário da
sociedade é o que dá orientação específica à funcionalidade e adere sistematicidade a cada
conjunto institucional, é a componente que aporta sentido ao simbolismo inscrito no social. O
imaginário é o “significado-significante central” em que radica o que “se dá como sentido
indiscutível e indiscutido, suporte das articulações e das distinções do que importa e do que
não importa, origem do aumento da existência dos objetos de investimento prático, afetivo e
intelectual” tanto individuais quanto coletivos (CASTORIADIS, 1995, p. 175).
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dela. Entretanto, é preciso “insistir na centralidade da dimensão imaginária da instituição da
sociedade e seu caráter social irredutível” (CIARAMELLI, 1989, p. 92, grifos meus).
Na psique reside o imaginário de cada um de nós, que se produz como realidade psíquica
manifestando-se sob a forma da representação. Castoriadis o designa “imaginário radical”.
É imperativo que a psique seja socializada, o que envolve “uma ruptura forçada da clausura
da mônada psíquica”, cujo sentido não é apenas o de adaptar “o ser humano a tal ou qual tipo
de sociedade, ela é o que torna o ser humano capaz de viver...” (CASTORIADIS, 2002, p.
109). Sendo a psique destituída dos índices de realidade necessários à sobrevivência, a
instituição social e a própria sociedade aparecem como invenções humanas relacionadas tanto
ao ser biológico quanto ao ser social-histórico do homem.
O ser biológico não é simples determinação natural, mas resultado da porosidade do mundo
ao que é humano. Castoriadis designa “primeiro estrato natural” à parte do mundo que
corresponde à existência animal do homem, organização natural-biológica análoga à sua
própria organização enquanto simples ser vivo. Esta camada não poderá jamais ser ignorada
sob pena do homem se fazer desaparecer; a instituição da sociedade está apoiada sobre esta
organização que lhe apresenta “uma série de condições, pontos de apoio e de incitação, de
marcos e de obstáculos” (CASTORIADIS, 1995, p. 273).
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Esta condição implica a impossibilidade de esgotar as construções do mundo por um simples
motivo: em última análise, não estamos em condições “de separar inteiramente e desligar
rigorosamente o que nessas construções se origina no sujeito construtor – nesse caso
particular, na sociedade – e o que pertence ao mundo em si, ao que está presente”
(CASTORIADIS, 1992, p. 277). O esforço de separar essas camadas não é irrelevante ou sem
sentido, mas está fadado a ser interminável.
O ser social vincula-se ao modo de ser da psique, pois “a verdadeira polaridade não é aquela
entre indivíduo e sociedade, mas entre psique e sociedade” (CASTORIADIS, 1992, p. 274). A
socialização da psique está na origem da fabricação social do indivíduo e implica a ruptura
violenta da mônada psíquica. A instituição social é responsável por isso, pela emergência da
separação, para o indivíduo, entre um mundo privado e um mundo público. Não há passagem
tranqüila da psique à sociedade, o indivíduo “não é um fruto da natureza, mesmo tropical, ele
é criação e instituição social” (CASTORIADIS, 1995, p. 355).
A sublimação é o processo que força a psique a substituir seus “objetos próprios” por “objetos
que valem na e pela instituição social”:
Isso implica, de um lado, a psique como imaginação, a saber, como possibilidade de
estabelecer isto por aquilo, no lugar daquilo (quid pro quo); por outro lado, o social-
histórico como imaginário social, a saber, posição na e pela instituição, de formas e
de significações que a psique como tal está na impossibilidade absoluta de fazer ser
(CASTORIADIS, 1995, p. 356).
Imaginário radical e imaginário social são sempre referências à posição, criação e fazer-ser,
dimensões centrais do pensamento castoriadiano, relacionadas à atividade humana instituinte.
Imaginário social e/ou sociedade instituinte designam aquilo que no social-histórico é
posição, criação e fazer-ser. Imaginário radical é aquilo que é posição, criação e fazer-ser na
e para a psique. Castoriadis utiliza também o termo imaginário radical numa acepção ampla,
referenciado a toda e qualquer atividade instituinte, individual ou coletiva: no social-histórico,
o termo referencia a “corrente do coletivo anônimo”, na psique, referencia o “fluxo
representativo-afetivo-intencional” (CASTORIADIS, 1995, p. 414).
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O termo magma designa o modo de ser e a organização lógico-ontológica emergente da
relação entre o psíquico e o social. A irredutibilidade lógico-biológica do psiquismo humano
combinada à delinqüência das concepções racional-funcionais motiva Castoriadis a propor
uma maneira diferente “de pensar para poder compreender a natureza e o modo de ser
específico desses domínios, o psíquico de um lado, e o social-histórico de outro” (2002, p.
408). A lógica dos magmas é a tentativa de fundar uma alternativa ao pensamento centrado no
esquema primordial da determinidade. Na filosofia ocidental, a presença do cosmos e a
ocultação do caos são dominantes desde Platão; esta preferência pelo par determinação e
cosmos revela uma decisão ontológica escondida sob as categorias tradicionais da lógica
(CASTORIADIS, 2002, p. 415).
Tais artefatos institucionais nunca estão postos de uma vez por todas, nunca são em última
instância determinados ou necessários; são criações social-históricas da atividade imaginária
da sociedade. Deve-se ter cuidado para não confundir a dimensão conjuntista-identitária
(necessária à instituição) com a própria instituição da sociedade, porque:
...a instituição da sociedade nunca pode reabsorver a psique enquanto imaginação
radical – essa é uma condição positiva da existência e do funcionamento da
sociedade. A constituição do indivíduo social não elimina, e não pode eliminar a
criatividade da psique, sua auto-alteração perpétua, o fluxo representativo como
emergência contínua de representações diferentes (CASTORIADIS, 1995, p. 364).
Mas, a relação de inerência do humano ao social-histórico deixa-se antever no quid pro quo
da instituição recorrente de ‘coisas’ e ‘indivíduos’ sociais pela sociedade:
A instituição social-histórica da ‘coisa’ e de sua percepção é homóloga à instituição
social-histórica do indivíduo, não somente na medida em que só há ‘coisa’, e tal
coisa, para os indivíduos, mas também na medida em que o indivíduo, como tal, é
uma ‘coisa’ cardial, necessariamente instituída também como tal pela sociedade
(CASTORIADIS, 1995, p. 365).
A lógica dos magmas assenta sobre a “inerência recíproca” da auto-criação, é uma lógica da
auto-posição enquanto negação de uma origem transcendente, que tenta contornar o problema
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ontológico da anulação da criação pela determinação, propondo um fundo de indeterminação
(caos, sem-fundo). A imersão completa num universo conjuntista-identitário impediria uma
ruptura qualquer com o já dado: “um sujeito completamente inserido em um universo
conjuntista-identitário... não poderia sequer saber que está preso a tal universo”
(CASTORIADIS, 2002, p. 435). A identidade e a determinidade sufocam toda imaginação e
criação, instaurando a mais completa heteronomia. Daí a necessidade de outra lógica para
fundar o imaginário e a instituição, que englobe e exceda a lógica identitária, sem o que nada
poderia adquirir outra forma ou ser organizado diferentemente.
O argumento de Castoriadis é cristalino: “... tudo que pode efetivamente ser dado –
representação, natureza, significação – é segundo o modo de ser do magma”. O fato de a
instituição social-histórica do mundo ser também instituição da lógica identitária, organização
conjuntista num primeiro estrato, não a esgota; “ela é sempre também e necessariamente
instituição de um magma de significações imaginárias sociais” (CASTORIADIS, 1995, p.
390).
O imaginário aparece como uma abertura no tempo histórico, eterna possibilidade do novo,
em lugar do eterno retorno do mesmo. A tese sobre a instituição imaginária da sociedade pode
ser entendida como uma reivindicação de erigir a atividade humana (enquanto ação instituinte
da sociedade) em equivalente da temporalidade originária. A relação de inerência do humano
ao social-histórico presentifica o sentido profundo das escolhas humanas, enquanto escolhas
fundadoras da vida social, a ação humana como criação coletiva social-histórica é tomada na
acepção política (forte) do termo.
Minha meta é que se passe de uma cultura da culpa para uma cultura da
responsabilidade... O que tenho em vista são indivíduos capazes de assumir tanto
suas pulsões quanto o fato de que pertencem a uma coletividade que somente pode
existir enquanto coletividade instituída, que não pode existir sem leis, nem por
acordo milagroso das espontaneidades... é porque deus está morto – ou porque
nunca existiu – que não se pode fazer tudo. É porque não há outra instância que nós
somos responsáveis (CASTORIADIS, 2002, p. 107).
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Castoriadis desloca a contradição fundamental do capitalismo do “embate entre forças
produtivas e relações de produção” para uma “teleologia da reificação que não pode ser
realizada” (MACIEL, 1988, p. 101). A luta incessante contra a reificação – contra a
coisificação completa do trabalho e do homem – é o que faz funcionar o sistema:
Uma fábrica na qual os operários fossem, efetiva e integralmente, simples peças de
máquinas, executando cegamente as ordens da direção, pararia em quinze minutos.
O capitalismo só pode funcionar com a contribuição constante da atividade
propriamente humana de seus subjugados, que, ao mesmo tempo, tenta reduzir e
desumanizar o mais possível. (CASTORIADIS 1995, p. 27)
Aceitar a burocracia significa aceitar os objetivos e o modo de vida do capitalismo. Foi o que
aconteceu com o movimento operário. A centralização e burocratização dos sindicatos e da
organização operária resultam de um processo de crescente heteronomia do proletariado. As
implicações dessa constatação vão muito além da debilitação da capacidade de resistência
operária sob o capitalismo, relacionam-se a uma tensão interna ao magma de significações
imaginárias das sociedades ocidentais modernas: a tensão entre heteronomia e autonomia.
Estas são “as duas significações imaginárias nucleares cuja luta definiu o ocidente moderno”:
a heteronomia “parece ter triunfado vigorosamente”, submetendo a autonomia “a um eclipse
prolongado...” (CASTORIADIS, 1989, p. 511, grifo meu).
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institucionais. É preciso que os operários parisienses façam a Comuna... É preciso
que o povo russo crie os soviets... Na Hungria ninguém ‘ensinou’ as pessoas... os
operários formaram conselhos de fábrica. Todas essas formas não foram nem
preditas, nem deduzidas de uma teoria qualquer; elas foram criadas pelas pessoas,
em sua luta e através dela. (CASTORIADIS, 1983, p. 241-2, grifos meus).
A memória histórica das lutas operárias presentifica “... a vontade de criar e instituir formas
não alienadas de organização social” (França, 1996, p. 199). Tais aspirações, e as
organizações que concretamente instituíram na história, manifestam o imaginário do
movimento operário. A forma emergente do autogoverno ou da autogestão – na especificidade
histórica dos soviets e conselhos operários, por exemplo – antagoniza a ordem instituída pelo
Estado burocrático a ponto impedir, em todas as situações revolucionárias, uma continuidade
não violenta desse Estado.
Este é o sentido da afirmação sobre a “nossa relação de inerência” com o social-histórico, por
ser ele o terreno em que “liberdade e alienação podem existir”. O projeto da autonomia é
“desalojado da inelutabilidade histórica do socialismo” e colocado como “uma discussão
sobre a possibilidade de uma transformação da sociedade num determinado sentido”
(CASTORIADIS, 1995, p. 99). Abre-se, então, uma interrogação extensiva e não menos
fundamental que aquela do social histórico: a pergunta sobre o ser da sociedade autônoma.
Mas, a autonomia não é a expressão livre da insatisfação singular dos indivíduos diante de sua
condição heterônoma, nem sua somatória. Uma sociedade só pode ser o que é “pela
incorporação, fragmentária e complementar, de sua instituição e de suas significações
imaginárias pelos indivíduos viventes, falantes e agentes” (CASTORIADIS, 1992, p. 122).
Isto significa que a sociedade nunca será redutível à intersubjetividade – ao face a face
indefinidamente multiplicado. Ela ultrapassa a totalidade dos indivíduos que a compõem, não
corresponde a qualquer propriedade de composição, e tampouco à idéia de uma totalidade
excedendo suas partes. Não há constituição independente de indivíduos e sociedade, a
inerência recíproca implica entendê-los no mesmo registro:
A sociedade é obra do imaginário radical... Os dois pólos irredutíveis são o
imaginário radical instituinte – o campo de criação social-histórico – de um lado, e a
psique singular de outro lado. A partir da psique, a sociedade instituída faz a cada
vez indivíduos – que, como tais, não podem fazer mais nada a não ser a sociedade
que os faz (CASTORIADIS, 1992, p. 123).
Onde reina a “heteronomia instituída”, uma manifestação da psique singular fora dos papéis
sociais previstos torna-se imperceptível, ou somente identificável como transgressão,
patologia. Entende-se que a autonomia significa uma ruptura completa com a heteronomia,
em que “a imaginação radical da psique singular” possa achar ou criar os meios sociais “de
uma expressão pública original e contribuir efetivamente à auto-alteração do mundo social”
(CASTORIADIS, 1992, p. 123). A experiência histórica evidencia que sociedade e indivíduos
se alteram juntos, implicando-se reciprocamente.
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Castoriadis entende que a manifestação histórica das significações imaginárias atinentes ao
projeto da autonomia tenha ocorrido em dois momentos: na Grécia antiga e na sociedade
moderna ocidentaliii (CASTORIADIS, 1992). O gérmen da autonomia emerge na pólis grega,
quando em ruptura com a sociedade heterônoma surge uma subjetividade política deliberante
e reflexiva; as idéias de julgar e escolher são criações desta sociedade que engendrou a
democracia e a filosofia. “É justamente porque a história é criação que a questão do
julgamento e da escolha aparece como uma questão radical e não trivial”, porque não há e não
pode haver fundamento indiscutível para julgar e escolher (CASTORIADIS, 2002, p. 283). A
autonomia é o disparo da significação imaginária que interroga a origem da instituição social.
Precisamente isto, a possível elucidação do problema da auto-posição da sociedade, foi
criação do mundo grego; e o fato mesmo de isto poder ser aqui evocado e compreendido,
sinaliza um vínculo com a sociedade ocidental moderna.
A história da tradição grego-ocidental revela, ela mesma, esta tensão que emana da
impossibilidade de uma solução definitiva para o problema de julgar e escolher. A escolha e o
julgamento aparecem como núcleo problemático pulsante, sua inscrição e inerência no social-
histórico desenham uma interrogação inescrutável a respeito desse problema: a história do
mundo grego-ocidental pode ser interpretada como a história da luta entre a autonomia e a
heteronomia (CASTORIADIS, 2002, p. 284):
... embora tenha engendrado a democracia e a filosofia, as revoluções americana e
francesa, a Comuna de Paris e os conselhos operários húngaros, o Partenão e
Macbeth, ela também produziu o massacre dos mélios pelos atenienses, a
Inquisição, Auschwitz, o Gulag e a bomba H. Criou a razão, a liberdade e a beleza –
mas também a monstruosidade em massa... Essas possibilidades extremas da
humanidade no domínio do monstruoso concretizaram-se par excellence em nossa
tradição. (CASTORIADIS, 2002, p. 284).
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A autonomia é também um projeto, posto na história pela “questão política par excellence” do
juízo e da escolha entre diferentes instituições da sociedade, da existência de uma sociedade
instituinte (CASTORIADIS, 2002, p. 298). A atividade humana inscreve-se definitivamente
neste projeto sob a forma da práxis: “modalidade do fazer humano” que ao se distinguir do
fazer em si, é “... atividade que considera o outro como ser podendo ser autônomo, e tenta
ajudá-lo a aceder à sua autonomia” (CASTORIADIS, 1989, p. 494). Na práxis não se
distinguem meios e fins. Há uma “relação interna entre o que é visado (o desenvolvimento da
autonomia) e aquilo por que é visado (o exercício da autonomia), são dois momentos de um
mesmo processo” (CASTORIADIS, 1995, p. 95). Se a técnica permite destacar a finalidade e
o término da ação de sua mediação, a práxis é atividade sem fim, não existe para ela um limite
derradeiro, pois ela não se deixa discriminar por um estado ou característica.
Como atividade consciente, a práxis se apóia num saber fragmentário – porque não pode
haver teoria exaustiva do homem e da história – e sobre um saber provisório – porque “faz
surgir constantemente um novo saber... ao fazer o mundo falar numa linguagem ao mesmo
tempo singular e universal” (CASTORIADIS, 1995, p. 95). Progridem em condicionamento
recíproco elucidação e transformação do real, esta dupla progressão justifica a práxis, porém,
a ação precede logicamente a elucidação, porque a última instância é a “transformação do
dado” (CASTORIADIS, 1995, p. 96).
A impossibilidade de uma teoria absoluta se evidencia pelo caráter do saber que está em jogo.
Não se trata de uma deficiência provisória superável por redução progressiva. A práxis é
histórica, não se coloca como um horizonte, mas como um trabalho – o trabalho do projeto da
autonomia. Esta “lucidez relativa” não significa precariedade, ou algo na falta de coisa
melhor: a práxis é “... o outro lado de sua substância positiva, seu próprio objeto é o novo, o
que não se deixa reduzir ao simples decalque materializado de uma ordem racional pré-
constituída, em outros termos, o próprio real, e não um artefato estável, limitado e morto”
(CASTORIADIS, 1995, p. 96). O sentido do projeto da autonomia define-se como:
... uma práxis determinada, considerada em suas ligações com o real, na definição
concretizada de seus objetivos, na especificação de suas mediações. É a intenção de
uma transformação do real, guiada por uma representação do sentido dessa
transformação, levando em consideração as condições reais e animando a atividade
(CASTORIADIS, 1995, p. 96).
O caráter profundo da produção capitalista é o que se revela por estas tendências. “O sentido
que elas encarnam define, para além da produção, um tipo de antinomia, de luta e de
superação desta antinomia, essencial para a compreensão de um grande número de outros
fenômenos da sociedade contemporânea” (CASTORIADIS, 1995, p. 101). A práxis dos
trabalhadores é uma atividade de busca, cujo intento é a transformação da vida por meio do
trabalho. Concretizar a gestão da organização pela coletividade dos que nela trabalham aponta
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para uma resolução global da heteronomia social: a direção da sociedade por ela mesma. O
problema não se resume ao conflito interno à fábrica, nem à gestão econômica da produção,
ele transborda para a sociedade: “torna-se claro que... qualquer solução desse problema
implica uma mudança radical na atividade dos homens em relação ao trabalho e à
coletividade. Somos assim levados a colocar as questões da sociedade como totalidade e da
responsabilidade dos homens” (CASTORIADIS, 1995, p. 103).
O capitalismo é o avesso disso, presentifica uma significação imaginária social central à sua
instituição social-histórica: a expansão ilimitada do “domínio racional” (CASTORIADIS,
1992, p 20). O sentido da transformação intensa e permanente dos meios técnico-científicos,
da interminável acumulação, da revolução tecnológica da produção, comércio e finanças está
neste domínio imaginário. O critério da expansão ilimitada do “domínio racional” penetra a
totalidade da vida social, fazendo do capitalismo um movimento de “auto-re-instituição” da
sociedade, fechado sobre si mesmo:
Na acepção capitalista, o sentido da Razão está claro: é o “entendimento”... é o que
eu chamo de lógica conjuntista-identitária, encarnando-se essencialmente na
quantificação e conduzindo à fetichização do ‘crescimento’ por ele mesmo... Tudo
está convocado perante o tribunal da Razão (produtiva) e tudo deve demonstrar seu
direito à existência a partir do critério de expansão ilimitada do ‘domínio racional’.
(CASTORIADIS, 1992, p. 20).
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A fé depositada no conhecimento técnico-científico torna-se similar à fé religiosa, reforçando
a “potência crescente da tecnociência e o impoder manifesto das coletividades humanas”
(CASTORIADIS, 1992, p. 77). O imaginário social torna-se autônomo e separado da
sociedade que o engendrou; aparece como algo inevitável, e a respeito do que não há escolha.
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159-178.
i
“Entendo por política... uma atividade coletiva cujo objetivo é a instituição da sociedade enquanto tal. É na
Grécia que encontramos o primeiro exemplo de uma sociedade deliberando explicitamente acerca de suas leis e
modificando-as. Em outros lugares, as leis são herdadas dos ancestrais, ou são dádivas dos deuses, quando não
do único deus verdadeiro; mas não são estabelecidas, isto é, criadas pelos homens após discutirem e
confrontarem, coletivamente, as leis boas e más” (Castoriadis, 2002, p. 299).
ii
Em francês “ENSsembliste-IDentitaire” dá origem ao acróstico “ensidique”, cunhado por Castoriadis; a
tradução para o português, por analogia ao acróstico de “CONjuntista-IDentitária”, resultou em “conídico” (ver
Castoriadis, 2007).
iii
A sociedade ocidental moderna, no período denominado “época crítica moderna”, mantém uma “coexistência
ambígua” das duas vertentes imaginárias (de 1750 a 1950 aproximadamente). Castoriadis é menos otimista com
a sociedade ocidental contemporânea, na qual identifica um “conformismo generalizado” (Castoriadis, 1992).
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