Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ad Sorores Quatuor
Os Quatro Discursos de Lacan
AD SORORES QUATUOR
OS QUATRO DISCURSOS
Seminário 1978
editora
é uma editora da
Presidente
Rosane Araujo
Diretor
Aristides Alonso
Preparação do texto
Patrícia Netto A. Coelho
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
Nelma Medeiros
Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso
...etc.
Estudos Transitivos do Contemporâneo
M176a
Magno, M.D. 1938 -
Ad sorores quatuor: seminário 1978 / M.D. Magno. – Rio de Janeiro:
NovaMente, 2007.
276 p ; 16 x 23 cm.
ISBN – 978-85-87727-35-0
1. Psicanálise – Discursos, ensaios, conferências. I. Título.
CDD-150.195
5. A QUADRILHA
Sintoma como Nome do Pai (metáfora paterna) – Exame dos discursos do senhor, da
histérica, do analista e do universitário – Discussão sobre passe em psicanálise – Senso
Contra Censo: equivalência entre passe e ato poético – Estatuto da matemização em
psicanálise – Psicanálise não é hermenêutica.
103
6. TOPOLOGIA DO ESPELHO
Investigação sobre o espelho – Espelho é banda de Moebius – Entendimento da análise
a partir do modelo óptico de Lacan – Estrutura do espelho e lógica do significante –
Questões sobre instituição, transferência e interpretação
123
7. SEXUAÇÃO E ANATOMIA
Discussão com Serge Leclaire a propósito do feminino – Retomada da lógica da sexuação
de Lacan a partir das fórmulas quânticas – Questionamento da relação entre anatomia
e sexuação em Leclaire – Proposição de esquema sobre gozo masculino, gozo feminino
e gozo dos anjos.
151
11. ESCREVIDÃO
Intervenção de Betty Milan sobre Sebastião do Rio de Janeiro, de MD Magno – Relação
entre obra de arte e psicanálise – Com-sideração da obra de arte: atingimento do $entido
– Sublimação e fetiche na obra de arte – Crítica ao libertarismo de Deleuze e Guattari.
229
12. HIÂNCIA
Função da hiância nos construtos teóricos da psicanálise – Função lógica e topológica
do não-todo – Tópica freudiana como tentativa de construção topológica – Jogos
transferenciais não são interpretação – Formação de analista.
245
13. FÁLIA
Falha ôntica do falante: Fália – Requisição do impossível e faz-de-conta a partir do conto
Nada e a nossa condição, de Guimarães Rosa – Partição da sexuação difere da ordem
imaginária.
259
ENSINO DE MD MAGNO
271
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
1
TRADIÇÃO FREUDIANA
(OU ATRA DICÇÃO FREUDIANA)
9
Ad Sorores Quatuor
* * *
10
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
prática sexual na era de cada cultura, desde a pré-história até nossos dias,
supõe o autor. Na página 322 da tradução francesa, fui encontrar algo muito
interessante, uma peça da arqueologia tirada da Roma antiga que era uma
tabuleta. Isso até me fez lembrar um poema de Fernando Pessoa, A Tabacaria.
Uma tabuleta que tem a ver com tabaco, mas não é bem de uma tabacaria,
porque era uma tabuleta de anúncio à porta de uma casa de prostituição. E na
tabuleta estava escrito: Ad Sorores IIII, Às Quatro Irmãs. Devia se tratar,
portanto, de quatro irmãs num exercício profissional, como quem diz “Aos Três
Irmãos”, uma loja que houve no Rio e onde também se vendia alguma coisa.
Hojendia não se faz mais publicidade como antigamente... Por exemplo, na TV
com suas tabuletas luminosas não se faz anúncio direto da sua prostituição.
A tabuleta tinha este título escrito, Ad Sorores IIII, com quatro pauzinhos
e acima o desenho de três mulheres nuas, mais ou menos enlaçadas, abraçadas
como “as três graças” e mais uma, meio de lado, envolvida e velada por um
manto.
11
Ad Sorores Quatuor
12
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
menos, elas grassam. É por essas graças que vamos tentar abordar, depois de
Lacan, com muito desconforto, esta incorporação dos discursos. E é desta
incorporação discursiva que tudo se pró-institui, dependendo deste ou daquele
corpo, isto é, deste ou daquele discurso quae corpore merent, discursos que
vivem de seus corpos. E é de graça, como vamos ver, de pura graça.
E como se incorporam esses discursos? Qual é a razão, digamos, dessa
incorporação? Falar da incorporação dos discursos seria dar razão, conseguir-
se a razão desse discurso, ou seja, conseguir descrever a fatura desses discursos,
saber como se erige o construto de cada um deles, saber qual é sua arquitetura.
Afinal de contas, é isso que quer dizer, ou sempre quis dizer, a Arquitetura: a
razão dos construtos. Assim, é por esta via, de arquitetura, que Lacan vai
promover a, digamos, arqueologia dele. Que não é aquela Archéologie, mas
sim a arqueologia da sexualidade, uma vez que não há algo de mais sério para
o falante – o parlêtre como diz ele e que traduzi por falesser –, o falesser
seccionado. Então, trata-se de uma arqueologia da secção ou do Sexão, se
quiserem.
* * *
Vamos falar um pouco de arquitetura para ver se, dentro desta série,
conseguimos entrar no que gosto de chamar de a tradição lacaniana.
Tradição, este nome precisa ser pensado porque, dos pré-socráticos
até Freud, é na mais rigorosa tradição que se persegue este curso. Um prá-
frente chamado Schönberg, que, uma vez perguntado como conseguia fazer
toda aquela novidade, a música serial, disse: – “Muito fácil, é só se manter
estritamente dentro da tradição”. Poucas vezes nos damos conta disso e vamos
mostrar que é exatamente o que Lacan faz – serial quer dizer a sério, como o
Outro. Então, é na mais rigorosa tradição que se faz o percurso que vai dar na
psicanálise.
E já que falamos em partir de arquitetura, podemos dizer que vamos de
Dédalo a Ícaro, pai e filho. Desde um labirinto de pedra do arquiteto até o vôo
13
Ad Sorores Quatuor
14
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
15
Ad Sorores Quatuor
concepção idealista do que ficou conhecido mais tarde como o campo euclidiano:
a esfera em sua completude ou as esferas em suas relações que deveriam ser
harmônicas.
Platão escreveu um diálogo chamado Timeu – que parecia um pouco
esdrúxulo dentro de sua obra, pois é extremamente pitagoricizante –, onde tenta
empolgar a alma do mundo e discernir o universo. Em Platão, reencontramos a
tradução pitagórica – e não é de graça que ela vai passar por toda a cultura
ocidental, inclusive por dentro da Igreja. Tratava-se de harmonizar ou encontrar
a razão entre o macrocosmo e o microcosmo, estabelecer a relação precisa
entre o micro (homem) e o macro (universo) e sair do caos para encontrar a
ordem na cosmologia, ou “cosmogonia” que fosse. Buscava-se, portanto, uma
lei que desse conta dessa relação, lei essa entendida, no discurso pitagórico,
como lei do número. Não foi pouca coisa o movimento pitagórico, como veremos,
desde seu nascimento até hoje.
Pitágoras chegou a reinar sobre uma grande quantidade de discípulos,
pois tinha, inclusive, poder político muito grande, de tal influência que, a um
certo momento, as forças contrárias tiveram que avançar sobre os pitagóricos
e dizimá-los. Assim, foram todos trucidados num momento de paroxismo político
– sobraram uns dois ou três que fugiram e foram levar o recado a outras bandas.
Há certo autor que diz mesmo que Pitágoras conseguiu constituir um “fascismo
esotérico”. Resta-nos, depois, pensar o que pode ser um fascismo esotérico no
campo pitagórico e onde ele remanesce.
Na tentativa de dar conta, por uma lei do número, da harmonia universal,
Pitágoras supunha a possibilidade de conquistar e dizer o nome sagrado, Ieros
Logos, a palavra sagrada, se quiserem. E a lei do Ieros Logos era de que “as
coisas não são mais do que aparências do número”, ou seja, as manifestações
do número através de todos os avatares não eram mais do que as aparências
dessa manifestação primeira, ou melhor, dessa não-manifestação primeira. Logos
em grego, todos sabem, quer dizer razão, raciocínio, relação, a palavra por
excelência. Logos no latim vai dar o termo verbo, “vai dar” quer dizer vai se
encontrar, mas não há relação alguma. O verbo tem também as mesmas
16
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
17
Ad Sorores Quatuor
Eles chamavam ao que está escrito acima, onde temos quatro letras diversas, de
proporção disjunta. Deste modo, a partição de uma relação tinha que ser
qualitativamente, diziam eles, da mesma grandeza – notem como estão
embananados entre a relação grandeza e qualidade – que a outra relação. Essa
relação constitui, nessa escrita, a projeção, no plano da matemática, da operação
elementar do juízo. Ou seja, dentro do Logos. Juízo algum se produz no campo
desse discurso fora da operação elementar que é a relação de uma letra sobre
outra, como inscritível no campo da matemática. E eles consideravam essa
operação elementar do juízo como dando conta da percepção exata das relações
entre as coisas e as idéias. Estamos aí aproximadamente em 500 anos a.C.
Quando as duas grandezas, ou seja, as duas relações, postas em
equivalência, apresentavam seus termos intermediários repetidos e havendo
igualdade (b=c), eles diziam que se tratava, não de uma proporção disjunta, mas
de uma proporção contínua: a está para b, assim como b está para c. Isso deu
muito pano para manga, pois, além das razões serem equivalentes, o termo que
faz a partição do primeiro é aquele que sofre a partição pelo terceiro na mesma
ordem de grandeza. E esse negócio ficou conhecido naquele tempo como o nome
de secção de ouro.
18
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
19
Ad Sorores Quatuor
* * *
20
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
21
Ad Sorores Quatuor
22
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
regular a relação entre o raio, o círculo e o lado é uma relação áurea. E se,
dentro de um pentágono regular, traçarmos um pentágono do tipo estrelado,
que é aquele construído pelas diagonais, teremos repetida a infinita relação
chamada áurea, mesmo porque cada um dos lados do pentágono estrelado
corta o outro lado dentro da razão áurea.
Vejam que estamos em plena sinfonia, ou seja, aquilo que do outro lado
era chamado de simetria. É esta a idéia que temos que ter de simetria: a sin-
fonia de uma grandeza regente. Essa figura se tornou adorada como um grande
símbolo de Logos Sagrado, e vai se repetir de então até nosso tempo. Isto ficou
nas mãos de todos nós, qualquer folha de papel que se preze mantém as
proporções áureas em seus lados, segundo as artes gráficas. Os arquitetos não
fazem uma fachada sem pensar, en passant, na relação áurea. Uma janela que
seja, é preferida na relação áurea.
O engraçado é que, ao falarmos da proporção contínua, a que estaria
na razão áurea, estamos falando de uma analogia. Diz Aristóteles a seguinte
frase: “Porém, a maior coisa de todas é, de longe, ser o mestre da metáfora. É
a única coisa que não se pode aprender dos outros, pois uma boa metáfora
implica a percepção intuitiva da semelhança nas coisas dessemelhantes”
(Poética, livro XXII). Ao que ele estava fazendo reforço senão à razão áurea
da metáfora? Está aí instituída a metáfora como uma proporção áurea. Não é
dentro de outro espírito que, na vocação do amor cortês, Dante Alighieri diz a
sua régua do universo, quando fala em “l’amore qui muove il sole e l’altre
stelle”. Isso que certa tradição chama a sua Opera Magna, quer dizer, sua
obra alquímica, que é encontrar o número da regência do universo.
23
Ad Sorores Quatuor
Por que metemos obra alquímica nesse meio? Sejam quais forem os
avatares místico-mítico-religiosos ou crendices, etc., que aconteçam durante
todo esse percurso, é na mesmíssima tradição pitagórica que tudo isso se
movimenta. Vai aparecer nos judeus, regulando seu movimento cabalístico.
Lembrem da figura de Hermes Trismegisto e sua operação de regulação de
todas as relações universais no pensamento cabalístico. No campo da alquimia,
seja o que for que qualquer Jung possa ver de fantástico, ainda era a regulação
matêmica dos pitagóricos que regulava aquelas produções. Na Gnose, como
movimento contestatório dentro do cristianismo, retomava-se o pensamento
pitagórico. A Gnose, aliás, embora destruída, deixou seus traços no campo do
catolicismo e das igrejas cristãs em geral. Vemos isso ser retomado, sobretudo,
no campo da maçonaria medieval das grandes ordens, guildas, dos arquitetos
chamados então de pedreiros – nome mais bonito –, que constituíam toda a
ordem social de sua transmissão sobre confrarias organizadas estritamente nos
moldes pitagóricos, tendo mesmo o reconhecimento recíproco assentado sobre
a escrita de uma figura qualquer que recomendasse a instituição do número de
ouro. Basta lermos as paredes das catedrais góticas para reconhecer, ainda
que por vezes aparecendo fantasticamente, o escrito matemático desse número
que regula toda a ordem de pensamento medieval. Depois, a maçonaria, deixando
de se referir no plano da arquitetura de construção – já se sabe, desde Heidegger,
que a casa do homem é a linguagem –, veio dar a outra maçonaria chamada
especulativa que, em sua decadência, ainda se regula por vocações pitagóricas.
Temos os chamados rosacruzes, em cujo papo podemos talvez
encontrar até um Descartes, também na mesma tradição, embora
manifestamente decadente. Estou chamando de decadente tudo aquilo que saltou
do reconhecimento da matemática, que ali está inclusa, para a produção do
fantástico, para as fantasias – isso que analistas, às vezes, querem chamar de
fantasma – dos que lidavam com essas grandezas. Não é outra coisa que
encontramos na ordem beneditina, na ordem jesuítica, na ordem dos templários
que foram exterminados exatamente porque conseguiram um poderio tão grande
quanto o de Pitágoras e sua escola. Então, vejam que a tradição atravessou
séculos e séculos, mesmo que embuçada às vezes sob fantasias.
24
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
* * *
Desdobramento que deu, reduzido a uma equação de segundo grau, o valor que
muitos chamam de número fi (), que são as duas raízes da equação de segundo
25
Ad Sorores Quatuor
Mas vamos verificar que algo estranho acontece: esse número se infinitiza
numa proporção que mantém, em sua escrita, o desdobramento repetitivo da
mesma proporção, digamos assim. Um certo Leonardo de Pisa, mais conhecido
com o nome de Fibonacci – que existiu a partir de 1180, considerado um dos
maiores matemáticos de sua época, supõe-se mesmo que foi quem introduziu o
algarismo arábico na Europa –, de tanto trabalhar com a vocação euclidiana e
pitagórica, acabou inventando uma série de números esteada sobre a razão áurea
que ficou com o nome de série de Fibonacci (o que também está em qualquer
livro de matemática). Ele observou que, se fizéssemos uma série de números
cuja progressão consistisse em que cada número fosse a soma dos dois anteriores,
deveríamos encontrar em qualquer momento da série a proporção áurea. Ou
seja, se tivermos o número 1 e, depois, o número 1 repetido, podemos somá-lo ao
número anterior e teremos 2, o próximo a + 1 e teremos 3. Depois, teremos 3+2
= 5, 5+3 = 8, e assim por diante. Cada número é a soma dos dois anteriores, e a
relação entre cada número e o anterior tende sempre, aproximada ou
assintoticamente, para o número , o número de ouro.
26
Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)
27
Ad Sorores Quatuor
que ficara abandonado, mas sim retoma, em seu modo de cosa mentale, algo
que sempre esteve em vigor e que havia passado para um modo fantasioso e
imaginário.
E o que vamos mostrar aqui, tentando pensar os tais discursos, é em
que ordem discursiva cada coisa dessas se coloca. Essa repetição, por mais
que se imaginarize, que se rebata de novo sobre o imaginário das construções
formais, parece estar exigindo a consideração do simbólico. Assim, no vigor
das formas constituídas sobre essa numerologia, digamos assim, há uma
insistência de emergência do simbólico. O simples fato de se tentar a escrita de
algum modo já é abandonar o imaginário para se recorrer ao simbólico na
organização do processo.
27/ABR
28
Mais-gozar: não mais gozar
2
MAIS-GOZAR: NÃO MAIS GOZAR
Este trecho do poema de Paul Valéry está gravado num dos frontispícios
do Palácio de Chaillot. Ocorreu-me remetê-lo a nosso trabalho na medida em
que o que se faz aqui exclui todo convencimento. Não se trata de convencer,
mas de dispor a algum desejo que não necessite de convencimento.
* * *
Quando terminei nosso encontro passado fiz alusão a certo texto, e por
isso houve quem achasse que devesse correr a ler Mário de Andrade e seu
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Claro que se deve lê-lo, até se ler
todo Macunaíma. Há mesmo quem suponha, a partir de uma filmografia, que
isto exprima alguma realidade brasileira (está-se procurando pela realidade
29
Ad Sorores Quatuor
* * *
30
Mais-gozar: não mais gozar
31
Ad Sorores Quatuor
do falante. Assim, sem nenhum rigor lógico, mas apenas como um artifício de
aproximação, vou situar um pequeno teatro (lógico) para que possamos repensar
esta sobra. A experiência parece apontar, assim como as fenomenologias
parecem exprimir constantemente, que objeto algum considerado por um sujeito
consegue se manter em sua identidade. Ou seja, há uma oscilação constante
entre a tendência à identificação do objeto com ele próprio e a tendência à não
identificação, ainda que num momento de distração, de mancada, de equivocação,
em que este objeto discorda de si mesmo.
Se considerássemos dois objetos, repetindo a mesma oscilação,
poderíamos dizer que, diante desse objeto, minha indicação de sua identidade
oscila entre reconhecimento de que: o objeto a é si-mesmo; o objeto b é si-
mesmo; o objeto a difere do objeto b; o objeto a difere de si mesmo; o objeto b
difere de si mesmo; e, no plano da identificação do objeto a si mesmo (aa), no
momento em que o objeto b, supostamente idêntico a si mesmo (bb), empastado
nessa identidade, daria ab.
Então, fixado na identidade, não se veria não-identidade. Estaríamos aí
– e isto é falso, pois não poderia ser falado –, se lá estivesse, no regime do Real:
algo empastado, impossível de ser diferenciado, impossível também de não estar
lá, nessa dureza de indiferenciação.
Ou seja:
32
Mais-gozar: não mais gozar
Tudo isso é falso, pois apenas estou fazendo um artifício para mostrar,
e não para demonstrar. É como se pudéssemos escrever uma identificação
plena, em todos os elementos, ao mesmo tempo em que pudéssemos diferenciar
um elemento do outro ou que equivocássemos, num terceiro regime, o elemento
em relação a si mesmo.
Poderíamos também, não seriamente, apenas como mostração, falar
da loucura do real e emprestar o nome de Parmênides para este brinquedo;
como poderíamos falar da loucura do simbólico e emprestar o nome de Heráclito
para essa não-identidade constante de tudo a si mesmo; como poderíamos falar
da loucura do imaginário e invocar a Filosofia.
Acontece que, seja como for, fica a questão pré-socrática por excelência
em nossa posição ocidental, do escape constante do objeto a si mesmo e da
diferenciação sucessiva sem possibilidade de identificação constante de um objeto.
Se pudéssemos fazer alguma passagem (não muito rigorosa) para a
estrutura – ou seja, para aquilo que já tratamos diversas vezes: o nó não relacional
de real, simbólico e imaginário –, teríamos que partir, como faz Lacan, do real
dessa estrutura. Real este que se determina, e à estrutura também, por essa
convergência numa impossibilidade de não sobrar o resto.
33
Ad Sorores Quatuor
34
Mais-gozar: não mais gozar
* * *
35
Ad Sorores Quatuor
Vejam que não é questão de dizer que ele não inclui a si mesmo, como
fingi interpretar aquela borda. Se raciocinarmos um pouco, veremos que a
resposta é indecidível, como demonstrou Gödel em seu teorema da incompletude
sintática da formalização da axiomática aritmética. No regime de um cálculo
puramente formal (algorítmico), no interior de um sistema axiomático, qualquer
resposta demonstra-se radicalmente indecidível posto que suscita sua oposta.
Se o barbeiro, único dentro de uma cidade, faz a barba de todos que não fazem
a própria barba, se ele não fizer a própria barba, quem faz a barba dele? Ele,
porque faz a barba de todos aqueles que não fazem a própria barba. Entretanto,
se ele resolver fazer a própria barba, ele não faz a própria barba, porque faz a
barba de todos aqueles que não fazem a própria barba.
Estamos diante de uma questão irrespondível, dentro do campo fechado
dessa lógica e foi onde os Principia Mathematica tiveram que dar de cara
com o real. Esta questão de um possível catálogo que fosse um catálogo de
todos os catálogos que não incluem a si mesmos, não inclui nem deixa de incluir,
muito pelo contrário. Se inclui outros catálogos, por isso mesmo não os inclui, e
se não os inclui, por isso mesmo os inclui. Então, não é questão de dizer que
esta borda espacializada não pertence ao conjunto. Ao contrário, o conjunto
dos conjuntos não pertinentes a si mesmos pertence a si mesmo quando não
pertence a si mesmo, e não pertence a si mesmo exatamente quando pertence
a si mesmo. Embora não acreditem, já disse que a psicanálise é arte de fazer
nem-nem: nem uma resposta, nem outra.
Isto está em pleno acordo com o que disse de começo, quando coloquei
um h no meio do poder. Neste caso também há o paradoxo: se pode, é porque
não pode; se não pode, é porque pode. Isso quer dizer que, nesse jogo de
esconde-esconde, se supuséssemos a possibilidade de orientar o percurso para
este ponto, é o outro que surge; assim como, se orientarmos para o outro, é o
primeiro que aparece.
* * *
36
Mais-gozar: não mais gozar
Daí que Lacan vai partir para tratar daquilo que muitos pensam que ele
não trata: o discurso de Marx. Todos sabem que Marx conseguiu fazer a
crítica da economia política e do capitalismo a partir do desvelamento da lógica
fundamental do capitalismo segundo o conceito de mais-valia. Ele descobre
que há um jogo de esconde-esconde no modo capitalista de produção, que se
situa no que se escamoteia entre o valor de uso de um produto e seu valor de
troca. Posso ter muitos sacos de feijão para comê-los, ou posso tê-los guardados
para suportar um símbolo que me permita uma relação social de troca. É a
mesma coisa que trocar a mãe, ou seja, a mesma coisa que a interdição do
incesto. O valor de uso de uma mulher nada tem a ver com seu valor de troca
e a interdição do incesto vai portar sobre alguma coisa que escapole entre
esses dois valores.
Na dialética entre o valor de uso e o valor de troca, o que Marx aponta
como crítica da lógica do capitalismo? Exatamente o valor não pago que aparece
no fruto do trabalho daquele que trabalha, que costumamos chamar de
trabalhador, que aparece no valor de uso do fruto desse trabalho – o verdadeiro
preço do fruto desse trabalho. O que Marx demonstra é que, do ponto de vista
da lógica capitalista, a coisa foi paga (justamente), no entanto sobra um resto,
um lucro.
O que Lacan aponta, que em Freud já se articula para além e para
aquém da mais-valia de Marx, é a vigência produzida necessariamente pela
subsunção do falante à ordem simbólica, o aparecimento necessário do resto
ou sobra que já situamos antes como sendo o objeto a, essa constância de
convergência. O que acontece, então, é que a mais-valia, a partir da relação
valor de troca / valor de uso, não incidirá apenas sobre o trabalho ou sobre o
objeto produzido por um trabalho, mas, sobretudo, pela imposição simbólica,
pelo vigor e pela vigência, no campo do saber, do mesmo escamoteamento
indefectível para o falante. Se pensarmos com rigor, veremos que o saber não
tem proprietário, pois é algo que só tem valor de uso em sua estrutura radical.
Na medida em que passa a ter valor de troca, que saber ele vale? Qual é a
relação que existe na intersubjetividade para com o saber? Um saber só o é
37
Ad Sorores Quatuor
38
Mais-gozar: não mais gozar
paga a transmissão do saber, paga-se o valor de troca. Mas o saber, uma vez
adquirido, como se diz, “não tem preço”, do mesmo modo como quando se diz
que uma obra de arte “não tem preço”. É claro que ela tem preço no mercado,
enquanto valor de troca, mas alguma coisa não é paga, pois é obtida de graça –
o poeta a entrega de graça mesmo quando é regiamente pago. É articulado ao
regime de todo e qualquer saber – não apenas no regime das trocas de objeto
sob essa ordem dual de valor de uso / valor de troca –, ou seja, da essencialidade
do saber enquanto marca proliferante, que Lacan situa o que chama de objeto
a e, ao invés de chamar de mais-valia (que em francês é plus-value), vai
chamar de plus-de-jouir. É difícil traduzir. Costumo chamar de mais-gozar,
mas não significa exatamente isso, pois o termo em francês quer dizer “mais
gozar”, como “gozar a mais”, ou quer dizer “não mais gozar”, “acabou o gozo”.
Eis a equivocação do mais-gozar.
Mais-gozar porque, no campo freudiano, não se trata de outra coisa
senão do gozo, que é o requerido e o interditado. É o interditado no regime do
simbólico, pois há uma renúncia radical ao gozo, que é estruturante da
possibilidade do sujeito em sua fala. Veremos adiante que isso está no vórtice
mesmo de toda possibilidade de fala enquanto regime mesmo do recalcamento
originário, sobre o qual Freud coloca o núcleo de atração de toda possibilidade
de recalque. Assim, há um recalque originário que faz parte da estrutura, que
nada tem a ver com alguma repressão externa. Ele faz parte necessariamente,
na medida em que se refere à estrutura. No recalcamento originário é que vige
a renúncia ao gozo, que tem a ver com o regime do mais-gozar, ou seja, com o
regime que institui o objeto a.
“O gozo só se ordena, e não se ordena de outro modo, e só se estabelece,
não se estabelece de outro modo, como gozo procurado e perverso”, diz Lacan.
Assim, não há possibilidade de gozo a não ser a partir da estrutura onde o
recalque originário, enquanto modelo da renúncia, propôs o objeto a, o seu
paradoxo. Só há possibilidade de gozo na gravitação desse objeto, que é
propiciada pela renúncia. Logo, só há gozo enquanto perseguição desse objeto,
mas tal perseguição jamais escapa do regime da perversão.
39
Ad Sorores Quatuor
* * *
40
Mais-gozar: não mais gozar
Segundo ele, as pessoas pularam por cima, não quiseram ler, mas Freud deixa
claro que não há possibilidade de pensar alguma identificação a partir de uma
fenomenologia de aparências, pois toda identificação não se dá para além da
marca de um traço distintivo, se formos falar em termos lingüísticos. Assim, é
por um traço distintivo, que se marca sobre alguma coisa a ponto de anotar, que
vou estabelecer a possibilidade de identificação. Não vou fazer uma preleção
sobre os processos de identificação, mas apenas situá-los (se quisermos, de
maneira simplificada e bastante falsa, podemos fazer referência àquele brinquedo
que fiz sobre os objetos, na seção anterior).
Lacan apresenta a prova do traço unário na pura marca – encontrada
nos achados pré-históricos sobre o osso de um animal –, absolutamente não
figurativa, de uma série de tracinhos – os pauzinhos com os quais as crianças
contam as coisas –, que não fazem senão marcar o mesmo traço repetidamente,
que identifica certo evento, daí nascendo toda possibilidade de se pensar, cardinal
como ordinalmente, qualquer possibilidade de número. Então, isso que ficou
abandonado no texto freudiano, mas que na verdade constitui seu núcleo, é o
que ele vai apontar como sendo a marca originária, ou seja, uma primeira marca,
um significante primeiro. E não há outra identificação, a chamada identificação
do sujeito, senão enquanto marca, enquanto significante. Vimos tal significante
quando um ou vários caçadores pré-históricos juntos, num evento extremamente
complexo, caçam um bisonte e fazem uma marca, e de outra vez fazem outra
marca. O que tem a ver esse traço figuralmente, imaginariamente, com os
bisontes e com os eventos? Nada além de ser traço distintivo da vez. Assim
como, para eu me ser – me que nada tem a ver com o ego (o eu, le moi) –, não
posso fazer mais do que referência a uma marca distintiva que nada tem a ver
com figurações ou expressões, mas que está lá, no regime do inconsciente,
recebido de fora, de outrem, nesse confronto intersubjetivo como marca distintiva
de eu é, não de eu sou. A diferença é que eu sou se refere freqüentemente a
uma formação imaginária egóica, euóica.
No traço distintivo, então, Lacan situa um significante primeiro que não
pode, sozinho, situar sujeito algum. É o que chama signifiant-maître, que posso
41
Ad Sorores Quatuor
ler também como m’être, significante mestre ou significante “ser eu”, um Senhor
significante ou um significante ser eu. Acontece que, se esse significante é
posto de outra parte, vindo marcar a possibilidade de referenciação de um
sujeito, ali não surge o sujeito a não ser que este significante que o representa o
represente para outro significante, como na repetição das vezes da caçada
como tracinho sobre o osso. Um tracinho isolado não se representa a si mesmo,
não posso supor que ali haja presença de sujeito, a não ser que surja sua repetição.
Se encontrássemos aqui no quadro negro um tracinho, poderíamos supor que
se tratasse apenas de um acidente, pois ele nada representa, nem a si mesmo.
Mas no que se repete, faço a suposição de alguma “intencionalidade” de
representar a vez de alguma coisa que se repete. Portanto, não posso supor
algum sujeito que tivesse posto ali os tracinhos a não ser na repetição deles, ou
seja, supor que um sujeito ali se representou como intencionalidade de repetição
de marca de tracinho para tracinho.
É isto que Lacan quer dizer com: “o sujeito é aquilo que um significante
representa para outro significante, e não para outro sujeito”. E um significante,
giratoriamente, é apenas aquilo que representa um sujeito para outro significante.
Não há como sair disso, a definição é circular. O sujeito é impegável, posso
reconhecê-lo, defini-lo como representado de um significante para outro, assim
como, ao perguntar: “o que é um significante?”, não posso dizer mais do que: “é
aquilo que representa o sujeito para outro significante”. Se ele estivesse sozinho,
não seria significante nem insignificante, pois insignificante o significante o é.
Ou como diz uma piada brasileira: “insigne-ficante”. Ora, o que vai acontecer é
que, se o traço unário, enquanto repetição de um traço, é traço de sujeito, posso
reconhecer ou supor, pela repetição dos tracinhos pré-históricos, uma
“intencionalidade” de um sujeito, uma vigência de sujeito, entre um tracinho e
outro – e se posso fazer esta suposição é porque o sujeito ali se dividiu.
Neste ponto, acontece que, se não posso situar sujeito algum senão na
repetição, como representado de um significante para outro – pois não é para
mim que o sujeito se representa, e sim entre um significante e outro, por isso
posso supô-lo representado lá e mais nada –, ele é apresentado como
42
Mais-gozar: não mais gozar
43
Ad Sorores Quatuor
44
Mais-gozar: não mais gozar
45
Ad Sorores Quatuor
46
Mais-gozar: não mais gozar
47
Ad Sorores Quatuor
* * *
Por que disse que hoje iria falar sobre Máquina-Ímã? Não falei
Macunaíma, e sim Máquina-Ímã, o erói sem nenhum caráter. É o jogo de
Eros que está nessa Máquina-Ímã, o objeto a, aquela grandeza constante que
está lá fazendo com que o objeto morra e ressuscite, fazendo com que se possa
dizer de cada vez: “O rei está morto! Viva o rei!” Aliás, não há outra cura,
segundo a psicanálise, senão o reconhecimento dessa máquina-ímã, ou seja, a
possibilidade da ressuscitação do objeto, “rei morto / rei posto”, como a vigência
do desejo.
Já que nos equivocamos, tanto eu dando o título, como vocês o ouvindo
– o que é muito importante e abandonado freqüentemente na chamada “formação
analítica” –, que não se equivoque o que é dito com o barato literário de Mário
de Andrade, que, de modo algum, deixa de apontar para o objeto a... Para
terminar, citarei o próprio Mário de Andrade em Macunaíma. No período final
48
Mais-gozar: não mais gozar
do texto, diz o narrador: “...e eu fiquei para vos contar a História. Por isso que
vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na
violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as
frases e os casos de” Máquina-Ímã, o erói de nossa gente. Só que Mário de
Andrade termina dizendo que “tem mais não”, e a gente tem que terminar aqui
dizendo: tem mais sim!
Da próxima vez, falarei sobre certas rãs que coaxam em Pessoa.
* * *
49
Ad Sorores Quatuor
que existe isso que posso chamar de linguagem, ser falante enquanto tal e, por
isso, e por se ser falante é que o recalcamento original vai se dar na produção
de um saber. O ser falante, aquilo que é a única coisa que poderia chamar de
linguagem, é que produz, nesse recalcamento, os processos do inconsciente, e
não o contrário.
Por que há inconsciente? Porque há recalque originário. Por que há o
recalque originário? Porque uma marca significante vem pressionada pelo
tesouro que lá está, sem historial algum antes disto, vem pressionada por fatos
de linguagem. Caso contrário, tenho que inventar um inconsciente que nasce
de alguma estrutura natural, ou coisa assim, que começa a produzir fala. Não
há inconsciente originário, mas apenas uma brecha originária. E daí, o processo
de entrada de significante vai estruturar o recalcamento e vai estruturar o
inconsciente. Se não, teríamos que pensar uma máquina chamada inconsciente
que nasce sozinha, e tudo que bate lá é transformado em produto de fala.
P – Retomando esta questão da “linguagem estruturada a partir do
inconsciente” e do “inconsciente estruturado a partir da linguagem”,
Derrida diz que o inconsciente estaria estruturado não como linguagem,
mas como escrita. Que tipo de diferença teórica há entre Derrida e Lacan?
A rigor, não há diferença teórica. Simplesmente, ele se apropriou da
idéia de escrita que Lacan havia colocado num seminário, onde mostra que
não há condição de estabelecimento do significante para fora da escrita – e é a
partir desse ponto que Derrida começa a fazer filosofemas. O significante para
Lacan é alguma coisa que se inscreve, está lá sua marca, e é na escrita que ele
se coloca, ou seja, o significante é o que se escreve e se inscreve. Para entender
melhor, teríamos que tentar abordar o modo como Lacan apresenta o surgimento
do significante.
Retornando ao traço unário de Freud, há um objeto, e não são figurações
ou formas que vão estabelecer a diferença que está lá, inclusive, no jogo do
fort-da. O que marca o carretel enquanto presente e ausente? É o significante
da diferença entre presença e ausência. O que marca, na diferença sexual, a
diferença entre macho e fêmea? Não é o pênis, mas presença e ausência. É a
50
Mais-gozar: não mais gozar
A
Isto é que Freud veio mostrar como traço distintivo, traço perceptivo. Eles
podem até se formalizar, digamos assim, numa analogia com o imaginário, mas
há um momento em que analogia alguma é necessária mais, pois vira um traço,
uma letra. Qual é a relação da letra A com o boi? O que tem a ver o nome do
boi com o próprio? Nada, não há processo de significado algum. Há uma
51
Ad Sorores Quatuor
52
Mais-gozar: não mais gozar
53
Ad Sorores Quatuor
11/MAI
54
Lugares, letras, barras, traços
3
LUGARES, LETRAS, BARRAS, TRAÇOS
55
Ad Sorores Quatuor
56
Lugares, letras, barras, traços
Ele teria posto esses juncais como emergência que vem junto com a do
charco. “Coaxam ao fim / de uma alma antiga que tenho enorme / as rãs sem
mim”. É o cúmulo da lucidez e é claro que a alma é metáfora, “que tenho
enorme / as rãs sem mim”. As rãs sem mim são as rãs que estão aí, estão na
estrutura do Inconsciente e estariam coaxando mesmo sem mim, sem construção
figurativa alguma que pudesse chamar de mim – mim reflexivo, que é posição
egóica de eu e não posição subjetiva. O sujeito suporta que as rãs coaxem
“sem mim”, quem não suporta isto é o ego.
O coaxar sem mim, que coaxaria ao fim dessa alma enorme, remete à
estrutura mesma do Inconsciente, em suas formações, como lugar do recalcado,
do externamente recalcado, como lugar do saber, de onde retiro o que há para
elaborar e para engolir, e apresenta a alienação fundamental, irrecuperável.
Isto apesar dos conceitos ditos políticos, marxistas talvez, de alienação – que
57
Ad Sorores Quatuor
Lacan vem retomar – que existe no falante, alienação radical que há na relação
fundamental que estamos colocando desde a primeira seção deste Seminário.
Alienação que põe o sujeito como radicalmente dividido. Alienação que vige
entre o significante unário, aquele que apontamos como advindo de um traço
unário que se marca como pura diferença, e a intervenção desse significante
no campo do saber, ou seja, nas cadeias que lá estão, nas formações do
Inconsciente, lá, no lugar aonde os códigos se instalam, à disposição faltosa do
sujeito.
* * *
58
Lugares, letras, barras, traços
59
Ad Sorores Quatuor
60
Lugares, letras, barras, traços
61
Ad Sorores Quatuor
62
Lugares, letras, barras, traços
* * *
63
Ad Sorores Quatuor
Como vemos no lado direito do esquema acima, alguma coisa vai cair
como primeiro traço, unário e identificatório, que não pode representar o sujeito
a não ser para um outro significante. Esse outro significante, como S2, S3, S4...Sn,
pode representar o saber, ou seja, a regionalidade do Outro que o representa.
64
Lugares, letras, barras, traços
65
Ad Sorores Quatuor
* * *
66
Lugares, letras, barras, traços
67
Ad Sorores Quatuor
68
Lugares, letras, barras, traços
Quando alguém quer saber, não é; quem é, não quer saber. Esquecemos
de pensar isto que é tão simples. A demanda de saber é uma falta-a-ser e se
pudéssemos ser, não iríamos querer saber de nada. Por isso é que caímos tão
facilmente no discurso do senhor: o senhor não quer saber de nada, só quer que
a coisa funcione. Só podemos escapar do discurso do senhor pelo avesso, pelo
discurso da psicanálise. Lacan diz que, em seu seminário, está fazendo a análise
de seu “não querer saber de nada disso”. Eu, estou aqui, e quando estou falando,
espero que haja analista sentado por aí, pois também estarei certamente fazendo
a análise do meu “não querer saber de nada disto”.
Não vamos atribuir ao analista psicose alguma, mas podemos dizer que
a estrutura é de psicose, pois ninguém melhor que o psicótico dá testemunho do
modo de saber, de agir, de falar do Outro. Quando cito Lacan, sou eu que não
sou psicótico. Quando Lacan fala, ele é psicótico. Como bom neurótico, cito
Lacan, ponho um enunciado e remeto à autoridade dele. Mas quando ele prolifera
o discurso que tem a proliferar, em deriva pelas tramas do Outro, ele está num
regime que em certo sentido posso chamar de psicótico. Eu é que sou
deslumbrado de supor que Lacan seja a origem, a fonte do que ele diz. Mas ele
está dizendo ali o quê? O meu desejo, uma vez que para ele sou também parte
do Outro. Isto acaba com o mito do autor. O que é um autor? Não é uma
pessoa, evidentemente. É um significante, insigne-ficante. Preso ao discurso
imaginário, fico querendo o autor concreto, em carne e osso, mas não existe
este autor. Existe um sujeito que é loucomovido pelo Outro e dejeta, faz obra,
fica obrando...
A invocação das musas é absolutamente verdadeira. O sujeito é
inspirado. Por isso, é perfeitamente anti-universitário, poético, no sentido clássico,
quando Lacan, ou qualquer um de nós, que se não é igual a ele, pelo menos o
imita, vai fazer um seminário e diz: “Eu hoje não estou inspirado, vou falar
bobagem”. Qual o professor universitário que fala inspirado, que não sabe dar
aula, que não sabe o que vai dizer? Todos sabem e sempre dão aulas, sempre
preparados, o que é completamente diferente do sujeito estar inspirado, estar
69
Ad Sorores Quatuor
* * *
70
Lugares, letras, barras, traços
71
Ad Sorores Quatuor
72
Lugares, letras, barras, traços
* * *
73
Ad Sorores Quatuor
74
Lugares, letras, barras, traços
* * *
75
Ad Sorores Quatuor
01/JUN
76
Estrutura e posições
4
ESTRUTURAS E POSIÇÕES
77
Ad Sorores Quatuor
* * *
78
Estrutura e posições
79
Ad Sorores Quatuor
80
Estrutura e posições
* * *
81
Ad Sorores Quatuor
82
Estrutura e posições
83
Ad Sorores Quatuor
não é senão aquilo que vem barrar o gozo, que vem impossibilitar ao falante o
gozo em sua plenitude de morte. Dito de outro modo, vem proibir que o gozo se
dê a não ser pelo regime da parciarização do objeto a. Esta é a estrutura da
economia libidinal. O saber, enquanto regionalidade constituída dentro do Outro,
não quer senão barrar, limitar o gozo e, ao fazer isto, significa que se salva a
vida, ou seja, evita-se a queda incessante dentro das proliferações do Outro.
Assim, a deliração plena do campo do Outro seria a vigência do princípio de
morte.
O que vai operar entre S1 e S2, esse lugar onde se representa o sujeito?
Uma certa perda, pois na relação fundamental há o regime reconhecível, mesmo
empiricamente, de uma entropia em que sempre uma perda se coloca. Ora,
essa perda está na dependência do que Lacan matemizou, algebrizou, como
objeto a, que já vimos anteriormente. Nessa perda, que expressa a intervenção
do primeiro significante no campo do saber, nesse regime do desejo que é um
tropeçamento constante atrás de um objeto perdido (por isso fundamentalmente
irrecuperável e deslizante), há uma falta a gozar. Assim, o movimento na série
seria o movimento mortal do gozo, mas há uma perda constante que, equacionada
nesse entrelaçamento, vai colocar em funcionamento o princípio do prazer, ou
seja, vai possibilitar que a falta a gozar possa, no regime do desejo, ser gozo
(mesmo em falta).
Vamos nos reportar às duas seções anteriores, quando mostrei que não
há possibilidade de percorrer o regime do gozo a não ser mediante o objeto que
é sempre constituído no regime mesmo da renúncia a gozar, já que essa renúncia
não é total, mas parcial. Daí a idéia de objeto parcial. Apesar da inocência de
alguns teóricos da psicanálise, não é parcial porque seja parte de um todo ou
parte do corpo, mas sim porque só representa parcialmente a estrutura de que
faz parte, e não porque seja pedaço de alguma outra coisa. Portanto, no movimento
do gozo em falta, ele representa parcial e parciariamente a própria estrutura do
movimento do gozo. Assim, a renúncia a gozar não exclui a totalidade do gozo,
pois é mediante ela que se goza um pouco – como o instrumento de um gozo
que barra e limita a função da morte, ao mesmo tempo que faz prosseguir
84
Estrutura e posições
85
Ad Sorores Quatuor
gozar), a falta a gozar que está em jogo foi aparentemente suturada e estamos
já na ordem discursiva, no discurso que segura o enunciado.
P – A recuperação de Édipo se deu em parte porque a posição dele,
através da cegueira, chega a certo tipo de totalização, na medida em que
passa a ter um acesso mais direto à divindade, que lhe permite apreender
melhor um Real que não através da visão.
O que é desvelar esse Real senão desvelar o impossível, dar de cara
com a pedra, com a dureza real do Deus? Serge Leclaire escreveu um livro
que tem esse título: Démasquer le réel: un essai sur l’objet en psychanalyse
(Paris: Seuil, 1971, 187p). Édipo é o teatro montado da castração, a dramatização
do que ocorre aí e por isso podemos relativizar Édipo à vontade, pois ele surge
necessariamente onde a Lei está inscrita, ou seja, onde a perda está colocada,
onde o movimento da relação significante se coloca, onde o significante aparece.
Esta é a Lei. A Lei é o desejo. Não confundir a Lei, que está aí vigendo no
teorema mesmo da castração, com os surgimentos legiferantes no campo da
legislação, que, no entanto, só existem na dependência disto. Por isso, Lacan
diz que é estrutural, e não abre mão de dizer que basta deitar o sujeito no divã
que ele começa a falar de Édipo. É o teatro que ele tem para dizer a Lei, não há
outro.
Édipo não é mais do que um mito de referência no pensamento de
Freud, pois o que ele está querendo mostrar é a estrutura da castração – e
certamente a estrutura edipiana vai aparecer sempre. Ora, quando dizem que
há um Édipo africano diferente do Édipo grego, isto é simplesmente mudar de
palco, procurar outra companhia de teatro para ler a mesma peça. Afinal, não
é a castração que é edipiana, é Édipo que só vigora no teorema da castração. E
mesmo falar em castração já é metaforizar, articular o falo sobre a diferença
peniana. O que vai se impor até no estabelecimento da diferença do “tem pênis
/ não tem pênis” é exatamente a estrutura da diferença e a dissimetria essencial.
Não há simetria alguma porque falta: uma mulher com pênis jamais será um
homem, assim como um homem sem pênis jamais será uma mulher.
86
Estrutura e posições
87
Ad Sorores Quatuor
* * *
Darei um salto agora. Vamos para outra região para ver se entendemos
melhor. O que talvez não tenham visto ainda é que, se regressarmos à estrutura,
88
Estrutura e posições
de que não falei ainda aqui neste Seminário, mas já falei em outros lugares,
estaremos lembrados de que Lacan apresentou como estrutura a relação Real-
Simbólico-Imaginário. Ora, se estivéssemos na vigência da intricação
borromeana de RSI, seria a própria folia (pode até fazer um pouco de assonância
com a folie, do francês), ou seja, seria o próprio gozo. A coisa vai na direção da
morte, mas algo vem barrar, situar, possibilitar que isso fale. E o próprio
surgimento da fala, da possibilidade de se falar, vem de um golpe que vai ser
dado nesta estrutura, que vai desencadeá-la para reencadeá-la de outro modo.
É isto que Lacan mostra em Freud quando apresenta a instância do
surgimento do falo. Freud pode não o ter desenhado ou topologizado, mas está
claro que pôde escutar na fala da histérica o que amarrava os registros para
ela, ou seja, aquilo que lhe dava garantia de transar real, simbólico e imaginário:
o sintoma. Ao falante, não é dado gozar. Seu gozo é proibido, interditado, inter-
dito, está nas entrelinhas: há sempre um escorregão no meio. É-se falante na
medida em que alguma coisa – e aí voltamos ao Édipo – vai introduzir o
significante como representação do sujeito para outro significante. Algo vai
intervir como marca e como diferença. (Lembrem-se de que não é preciso
historicizar. O fato de apresentarmos uma coisa depois da outra não significa
que venha depois). Então, nessa estrutura de marcação, o que está em jogo é o
movimento da própria castração. É certa intervenção – que vem da ordem do
saber no momento em que o significante, por se marcar, por sua vez intervém
no saber – de algo que aponta a perda e põe a Lei. E quem intervém no momento
do Édipo é o pai, segundo o anedotário, o teatro ou a cena, como quiserem. O
pai que vem cortar relações com o Outro, com a mãe, o saber. Mas Lacan
retirou esse pai imaginarizado para mostrar que se trata do Nome do Pai,
assim chamado porque não há pai algum em jogo, nem real, nem imaginário: o
pai é simbólico.
O que é, afinal de contas, o Nome do Pai? É o sintoma que aparece aí
como Lei, como desejo, na medida em que a metáfora paterna remete ao que
há de menos provável e puramente simbólico, que é exatamente a instância
paterna e até real. Como diz Lacan, não há outro pai real senão o espermatozóide,
89
Ad Sorores Quatuor
o qual não se controla muito bem: pelo menos até hoje parece incontrolável por
metáfora. O Nome do Pai é, pois, o surgimento de algo que vem re-modular a
estrutura. É o trauma. O chamado traumatismo originário é isso começar a
falar, ou seja, a estrutura entrar no regime da fala, poder receber – e não há
aprendizagem alguma aí – o golpe, a batida, que transmitirá exatamente alíngua,
a fundamentação sintomática da entrada na ordem da fala.
Vejam como a coisa vai se especificando. Na marcação, na intervenção
do traço unário – que, por sua vez, foi retirado do Outro, pois não havia outro
lugar de onde retirá-lo –, na intervenção dessa marca diferencial no campo do
próprio saber, no surgimento do sujeito, na queda do objeto a, o que se está
instituindo aí é a intervenção do Nome do Pai (Lei/Desejo) mediante a constituição
sintomática, que é o momento de fundação d’alíngua. A linguagem não existe,
o que existe é um sintoma chamado alíngua, que é a montagem retirada do
Outro, mas com a intervenção deste. Portanto, cada sujeito fala uma alíngua,
pois não há referência de língua para sujeito algum a não ser a referência de
sua sintomática. A lingüística pode encontrar semelhanças imaginárias,
articulações lógicas, etc., mas como fundação, a língua é sintoma específico e
não há outra referência. Como alguns de vocês viram, foi a brincadeira que fiz
ao pedir a alguém que estava na sala de aula na Escola de Artes Visuais do
Parque Lage que mordesse a língua. Não podemos morder a língua sem o
verbo morder, simplesmente pelo fato de sermos falantes. Aí, temos a concretude
dessa sintomática, pois, inclusive, dói...
Então, na representação do traço unário como primeiro significante
para o saber – não esquecer de que o traço unário não pode não ser da ordem
do próprio saber, do Outro –, mediante a perda fundamental, funda-se o sujeito.
O que é a Lei aí? Ora, é que há o desejo, há a gozar, há mais a gozar como
perda, ou seja, há menos a gozar. Assim, o que está em vigor é a fundação
mesma da possibilidade de representação de significante para significante, que
está no jogo da Lei, que é a fundação do sintoma, da postura do traço diferencial
nesse campo que é o Nome do Pai. Sintoma, no sentido mais concreto, pois não
há nada que mais exponha real, simbólico e imaginário do que o sintoma. O
90
Estrutura e posições
91
Ad Sorores Quatuor
fazer esses três se amarrarem do mesmo modo que estavam antes? Se Lacan
topologiza concretamente com o nó desenhado acima – os três elos estão
completamente separados –, é o quarto elo, o Sintoma ( da figura abaixo,
que dá um passeio de tal modo entre eles que os amarra exatíssimamente do
mesmo modo, borromeanamente:
* * *
92
Estrutura e posições
93
Ad Sorores Quatuor
94
Estrutura e posições
poderá significar qualquer coisa. É verdade que também vai aprisionar em algum
ponto, aí vindo o tal mito individual do neurótico, a história do sujeito, etc., coisas
que é preciso desfazer no trabalho analítico para o sujeito dar de cara com o
fato de que ele é significante, o que é o máximo de insignificância.
P – Como se pode falar na predominância de um registro?
Num certo momento, o indivíduo está aprisionado por determinado
sintoma. Ou ele não tem mil maneiras de cair “historicamente” neste ou naquele
campo sintomático? O sujeito está aprisionado num campo discursivo,
sintomático. Estou lhes falando há uma hora e meia e já devo ter passado por
vários campos sintomáticos, só que não foi pontuado. Quando Lacan lê o
Banquete, de Platão, e aponta Sócrates enunciando o discurso psicanalítico,
ele está mostrando isso. O sujeito, em sua vida ou mesmo em momentos breves,
pode passar por várias ordens sintomáticas. Não atribuam substancialidade ao
discurso. A histérica teria obrigação moral de ser histérica o tempo todo? Ela
não pode ser analista? A histérica não é histérica o tempo todo. Se o fosse,
Hegel não seria filósofo. O analista não pode ser analista o tempo todo, embora
seja o que pensam ditos analistas que se formam por aí. Eles se formaram, logo
são analistas: substancialmente analistas. Não sei como conseguem... Estamos
no regime de atribuir a coisificação de um sintoma a uma personalidade, mas
isto é psicologia pura e acaba situando, substancializando o sintoma. Mas o que
Lacan mostra é que o sintoma é posicionamento discursivo. Se não fosse assim,
o sujeito não saía jamais da histeria, por exemplo, pois seria substancialmente
histérico. Aí, recairíamos em Lombroso.
O sujeito está aprisionado. Vamos à história do analisando, àquela
mitologia toda que nos narra, mas só para ver em que aprisionamento discursivo,
em que repetição ele está. A pergunta é: repetirá ele o tempo todo? Se o fizesse,
para que serviria a escuta analítica? É preciso escutar justamente porque ele
não repete o tempo todo, mas, de repente, repete, e, se estivermos com atenção,
ouvimos. Com atenção, quer dizer com desatenção para tudo que diz e só com
atenção para a repetição. É por isso que Lacan diz que a interpretação
psicanalítica é o avesso de tudo que pensamos que seja interpretação. O
95
Ad Sorores Quatuor
analisando – que é, antes de tudo, um trouxa – está nos falando e pensando que
estamos trabalhando intelectualmente toda sua historinha. Não estamos dando
a mínima para aquilo, pois não importa. Ele tem um trato conosco de falar o que
pintar e, às vezes, pensa que estamos interpretando. Só que, quando fazemos
um comentário qualquer, é pura rasteira para ver se ele cai lá na repetição do
sintoma.
* * *
96
Estrutura e posições
97
Ad Sorores Quatuor
junto a um outro significante. O que se produz como resto – nos dois sentidos,
de algo que se perde e de algo que sobra (e por isso é mais-gozar nos dois
sentidos que coloquei) –, como cadente dessa relação é o mais-gozar, o objeto
a. Vimos, então, acima, a estrutura e aqui a temos posicionada já em discurso,
que podemos balizar em Hegel como o Discurso do Senhor, que é o
posicionamento de sua diferença específica no lugar do desejo como agente
fazendo trabalhar o outro. O trabalho que há nesse discurso é do saber, do
campo do Outro, para produzir a mais-valia enquanto mais-gozar.
Ora, isto aí é de morrer de rir, ou de chorar, pois o que quer a sintomática
chamada Discurso do Senhor é suturar essa coisa, apossar-se realmente do
mais-gozar, da mais-valia. Mas acontece que está em jogo aí uma impossibilidade,
já que o significante mestre não pode fazer trabalhar o trabalho e apoderar-se
da mais-valia por inteiro. Isto porque, também para ele, a mais-valia é mais-
gozar. Ou seja, sua verdade é que ele também só tem emergência por causa de
uma cisão, também há perda, como Hegel demonstrou. O escravo, por sua vez,
está do lado do saber. Quem goza mesmo, ao contrário do que pensam certos
discursos, é o escravo. Só há gozo do lado do saber, que é onde está o escravo.
O senhor, este, não quer saber de nada, só quer que o negócio funcione. Ele
rouba o saber do escravo, mas não quer saber. Por isso, Lacan diz que a tal
pulsão de saber, o desejo de saber, não leva a saber algum. Não há desejo de
saber como tal, ou seja, não há desejo de saber como saber, e desejar o saber é
querer apoderar-se da mais-valia, do mais-gozar. O desejo de saber nada tem a
ver com o saber. Saber é o que se tira dele.
Há uma relação desta questão com a autenticidade – palavra tão
desmoralizada hoje – do percurso. Ou se está, ou não se está no saber. Se
desejamos saber, não podemos desejar o saber porque não sabemos que saber
é. Só quem está no saber é que sabe. Assim, desejar o saber é desejar o lucro
que o saber poderia dar se o explorássemos, se o escravizássemos. A pedagogia
é que se regala com a imbecilidade de suscitar o desejo de saber do outro, mas,
na verdade, a tal motivação pedagógica é o sujeito começar a desejar exatamente
o que nada tem a ver com o saber. O sujeito não deseja saber, e sim deseja os
98
Estrutura e posições
efeitos produtivos desse saber. Pode ser que, de tanto desejar os efeitos,
eventualmente caia na região do saber, mas não há garantia de espécie alguma.
Está aí a Universidade para provar que não faz nada disso, não suscita saber de
ninguém, só suscita diploma.
* * *
99
Ad Sorores Quatuor
Freud disse com todas as letras que era impossível governar, educar e
psicanalisar. Só não disse um dos discursos que vai aparecer aqui: fazer-se
desejar é impossível, que é o desejo da histérica.
Então, por rotação, vão surgir os quatro lugares e as letras sobre esses
lugares. Os lugares – do agente, do outro, da produção e da verdade – são os
mesmos, não mudam. São as letras que vão trocar de lugar e fundar a
sintomática. Basta começar a fazer o balé aí:
100
Estrutura e posições
feita que a transferência aparece. Foi este o grande golpe de Freud: ele era o
sujeito suposto saber, Dr. Freud.
P – Os discursos são todos impossíveis?
Não é que sejam impossíveis de serem proferidos, e sim que esbarram
e sempre estão jogando com o impossível. Ocorre que o impossível nem sempre
aparece como tal. Por causa da rotatividade dos lugares, a histérica, por exemplo,
jamais, de dentro de seu discurso, vai supor a impossibilidade. Ela dirá que é
impotência, que “não conseguimos ainda, porque não temos todos os elementos”.
É a impotência de Hegel de precisar de toda a história para fechar o saber
absoluto. Ele não diz que é impossível, e sim que vai fechar no terminal da
história. É o discurso da psicologia quando diz que o sujeito descobriu mais uma
coisa, que vai poder ajustar todo mundo, só ainda não tem toda a potência. É o
discurso da ciência em geral, que tem muito a ver com o da histérica, pois está
sempre supondo que é possível totalizar o saber sobre seu objeto, só que tem
certas impotências. Isso, aliás, está na frase do cotidiano: “O homem não
descobriu ainda, mas vai descobrir”. Vai descobrir que ele não consegue. A
única coisa a descobrir é que é impossível. Não há nada mais a descobrir.
15/JUN
101
Ad Sorores Quatuor
102
A quadrilha
5
A QUADRILHA
103
Ad Sorores Quatuor
104
A quadrilha
105
Ad Sorores Quatuor
primeiro, etc., vão aparecer línguas. Por que cada língua é intraduzível na outra?
Porque é um sintoma específico. Então, traduzir é metaforizar sempre. A relação
não há. A psicanálise não promove nenhuma teoria da comunicação. É preciso
esclarecer bem estes pontos, se não, recaímos no pensamento metalingüístico,
na suposição de que há A linguagem, que há a teoria da língua, etc. O que a
psicanálise vem demonstrar é que isso não existe. Nesse ponto, está
perfeitamente de acordo com Wittgenstein, que demonstra que nada acontece
fora do dito, do enunciado.
* * *
106
A quadrilha
significante mestre, pois não temos uma palavra que signifique ao mesmo tempo
mestre, senhor, dono e “ser-me” –, aquele da fundação, da possibilidade da fala
do sujeito segundo uma ordem sintomática. É, pois, o significante mestre que
vai ocupar o lugar do agente e dar a dominante da entonação da cançãozinha
do senhor. Ele se apresenta para fazer trabalhar o saber. Nada indica que o
saber se saiba. Ele é apenas saber, mas não se sabe como tal e vai trabalhar
sob a égide do senhor, do significante mestre, para produzir o mais-gozar enquanto
aquilo que cai como resto, ou seja, algo que falta a gozar e que, portanto, é
requisitado como mais gozo.
É no Discurso do Senhor que o a, como mais-gozar, toma a posição
exata da mais-valia do discurso de Marx. Ou seja, o que em Marx é mais-valia,
no Discurso do Mestre é mais-gozar. Todos já pediram, eu mesmo pedi
pessoalmente, para Lacan escrever o discurso do capitalista, que até citou, mas
não quis escrevê-lo, porque acha que a possibilidade de escrever o discurso do
capitalista é a de escrever o discurso do mestre moderno, como ele chama.
P – [Pergunta sobre o capitalismo, tal como desenvolvida no Anti-Édipo,
de Deleuze e Guattari].
Tudo que Deleuze colocou em Anti-Édipo saiu direto dos seminários
de Lacan. Quando ele coloca o discurso do esquizofrênico, quer saltar fora da
ordem discursiva, que é sintomática, e vai por um rizoma, como chama. O que
simplesmente não entendo é como Deleuze vai estabelecer um discurso que
possa estar fora da ordem sintomática.
P – A metáfora paterna acontece em cada discurso especificamente?
Sim, e o próprio discurso, enquanto produção, é metáfora também.
P – Então, continuamos sob o antagonismo de micro e macro?
Não há micro e macro. Se houvesse, teríamos quantificação. Considerem
um holograma, se o cortamos ao meio, ele continua do mesmo tamanho, se o
partimos novamente ao meio, a quarta parte fica do mesmo tamanho do inteiro.
Então, não pode haver micro e macro, porque a estrutura é hologramática.
Quer dizer, a lei de composição coloca que o somatório não faz todo e que a
parte continua tão faltosa quanto a inteireza da foto, digamos assim.
107
Ad Sorores Quatuor
108
A quadrilha
interessa o mais-gozar que vai sair daí. Para falar português correto, o que se
quer é o lucro. Assim, o desejo de saber, que nada tem a ver com o saber,
apenas faz motivar o Discurso do Senhor na tentativa de produzir mais-valia.
Ele não motiva a produção do escravo. E, segundo esse mecanismo, o senhor
só sabe que quer, mas não sabe o que quer. Se soubesse, seria escravo.
Ocorre que a simples aparição do significante mestre no lugar do agente,
sem forçar nada nem ninguém, se faz trabalhar o saber no lugar do outro (o
outro do significante mestre) para produzir o mais-gozar, não consegue suturar
esse discurso. Isto pela simples razão de que a queda, a perda constante a
recuperar-se na mais-valia, ela própria faz cindir aquilo que suporta a verdade
do senhor. Ou seja, o sujeito enquanto cindido é o que está por baixo da ação do
significante mestre no Discurso do Senhor, impossibilitando que a relação
fundamental funcione em sua completude. Por isso, Freud disse que governar é
impossível. Se fosse possível, se a verdade do senhor não fosse a cisão do
sujeito, ele poderia simplesmente excluir a verdade – e o senhor freqüentemente
se apresenta ocultando a verdade – e faria trabalhar o escravo, o outro, para a
produção de seu lucro. No entanto, há algo que retira o lucro do senhor e que
não está em nenhuma revolta do escravo, e sim na própria estrutura desse
discurso: a verdade, que aí está oculta, de que o sujeito mediante o qual se
exprime esse discurso é um sujeito partido. Esta é a constante operação do
senhor para tentar recuperar o objeto a enquanto produção, ou seja, enquanto
mais-valia, mais-gozar.
* * *
109
Ad Sorores Quatuor
Mudada a situação dos elementos, eles não têm mais a mesma postura
que tinham no outro discurso. O sujeito no lugar do agente no Discurso da
Histérica é aquilo sobre o que ele se esteia: o sintoma. O sujeito histérico é o
sintoma que age, que domina, no sentido de dominante da tonalidade histérica,
o modo discursivo fazendo trabalhar o que a histérica não sabe que é – que ela
é –, a sua única possibilidade de mestria: não querer saber. A histérica quer
saber das coisas, ninguém quer saber mais das coisas do que ela. Basta perguntar
a Hegel. Então, o trabalho vai ser a agitação do significante mestre, que está
ocultado.
O que vai se produzir na fala da histérica? Todos que deitam no divã
são histéricos. Se não são, terão que ficar, pois a psicanálise é a histerização do
sujeito. Então, no começo de qualquer análise, trata-se de produzir uma histérica
que fala e, no que fala, produz saber inconsciente. Os remanejamentos são
outra coisa. Ela vai se defrontar com o Discurso do Analista, que lhe é, digamos,
simétrico (especularmente por um dos eixos) e não avesso (o avesso do Discurso
do Psicanalista é o Discurso do Senhor). A histérica, portanto, a partir de seu
sintoma como agente da produção, vai falar fazendo trabalhar o S1 para poder
produzir o saber. Acontece que a histérica também faz um rebaixamento da
verdade, ocultada sob a primeira barra. No lugar da verdade está alguma coisa
que não pode, digamos, confessar e, por isso, ela não supõe que, em seu discurso,
haja a mesma impossibilidade que existe evidenciada no Discurso do Senhor,
na medida em que este não consegue governar, e que ela faz aparecer como
impotência. A histérica é aquela que supõe que não possa suturar o discurso,
não porque seja impossível, mas porque ela é impotente no momento para isso.
Isso é algo muito próximo do discurso da ciência, pois, no dia em que se souber
tudo, a ciência fechará seu cerco. O que há de suposição histérica no discurso
da ciência é que é possível saber... Só que ainda não se descobriu tudo, é uma
impotência. Mas não se trata de impotência, é a impossibilidade mesmo que
está vigorando em todos os discursos.
Tanto é verdade que Freud se esqueceu deste discurso quando fez a
teoria psicanalítica. Ao dizer que governar, educar e psicanalisar são tarefas
110
A quadrilha
* * *
111
Ad Sorores Quatuor
analista tem que fingir ser objeto a, o que é absolutamente diverso e nada tem
a ver com fingir ser significante primeiro como está no discurso da chamada
psicanálise annafreudista, e outras, onde se pede como término da análise a
identificação do analisando com o analista. Se isto ocorresse, seria dizer qual é
o sintoma campeão. Faz-se um duelo para ver quem ganha: se o do analista
ganhar, o outro estará analisado.
Ao contrário, no Discurso do Analista, o que toma o lugar de agente é
o objeto irrecuperável, o objeto perdido, o qual, por perdido, não se sabe qual é.
Portanto, o analista não pode evidentemente suportar esse lugar. Se pudesse,
transformaria o objeto em significante de si mesmo e passaria ao Discurso do
Senhor. Não podendo, ele não faz mais do que sentar, digamos assim, no lugar
do objeto. Basta conseguir isto que faz trabalhar o sujeito enquanto divisão,
enquanto sintomática que está no discurso do analisando. Isto, na tentativa de
produzir o que, no Discurso da Histérica, está trabalhando e que não é sabido,
ou seja, o significante fundador daquele sujeito. Mas o analista só pode fazer
trabalhar o sujeito porque conta com a verdade. Por isso, o fundamento da
psicanálise é ético. Contar com a verdade para produzir o significante primeiro
é contar ambiguamente com o saber: o saber ser analista, no caso do analista,
mas, sobretudo, contar com que a verdade percorra o saber que está sendo
produzido na fala da histérica. Notem que é uma rotação radicalmente avessa
à do Discurso do Senhor, no qual a verdade que está oculta é a partição do
sujeito. No Discurso do Analista, o que está no lugar da verdade é o saber que
lá se produz, assim como o saber ouvir o saber, ou seja, saber suportar esse
lugar insuportável.
Foi este o golpe de Freud: quando deixou de ser senhor dentro do gabinete,
tornou-se analista. Isto aconteceu quando desconfiou que o Discurso da Histérica
portava a verdade, que a intenção da livre associação era a de falar qualquer
coisa, não importa qual, porque a verdade está lá. Uma vez que se está dizendo
a verdade e ela é o saber que está sendo lá surgido, este saber só vai se apresentar
no lugar da verdade na medida em que o objeto a se posture. Com isso, vai
funcionar a partição do sujeito enquanto sintoma, de modo a poder-se regredir.
112
A quadrilha
O processo é regressivo, o que nada tem a ver com virar feto, embora haja
psicanálise espiritista em que a pessoa começa a se contorcer, quer dizer, o
imaginário todo da história ocidental o faz virar feto. Não existe outro feto a
não ser o primeiro significante. Isto é que é a regressão: retornar ao desvelamento
do primeiro significante, pois então vai-se reconhecer sua significação. E qual é
esta significação? Nenhuma, tanto que é um significante.
Foi o que Freud inventou: a histerização do discurso possibilita a
psicanálise. Afinal de contas, o que vamos fazer na análise? Saber, segundo a
tônica do Discurso da Histérica. Ela está querendo saber e supondo que o
analista sabe o que ela está querendo saber. Só que ele não sabe. Se soubesse,
seria psicanalhista. Faço questão deste termo – um psicanalha – porque é o
que Lacan chama de canalha, aquele que supõe poder ser o Outro. Ainda que
ocupe a posição de objeto a, nem por isso o analista supõe ser o Outro. A
psicanálhise com lh é aquela que, bem observado o que ela pensa que diz, vê-
se que está colocando o analista na posição do Outro, ao qual o analisando deve
se identificar. Aliás, a coisa está de tal modo psicologizada que a menor mancada
do analista no processamento da análise torna o ambiente psicológico,
psicanalhístico. Não se pode escapar disso hoje, pois o analisando é especialista
em folclore psicanalítico, a ponto de perguntar se isto ou aquilo é seu “Édipo”.
Então, a relação se tornando de característica psicologizante, ele começa a
articular o pedido dos pedidos, a grande demanda, de que o analista seja o
senhor, seja canalha.
Entretanto, é impossível a completação da produção, pois o Discurso
Psicanalítico, como qualquer outro, sofre da mesma impossibilidade. Daí Freud
ter dito que é impossível psicanalisar. Ora, quando diz isto, não quer dizer que
não valha a pena psicanalisar ou que não funcione, e sim que é impossível a
terminação de uma análise. Por isso, Lacan diz que só existe análise didática,
se é que esse termo abominável serve. Quero supor que não pode existir outra
análise porque a aproximação do primeiro significante é infinitesimada pela
própria partição do trabalhador desse discurso, a cisão do sujeito. Sobretudo,
essa abordagem é infinitesimal porque, de dentro da própria possibilidade
113
Ad Sorores Quatuor
114
A quadrilha
* * *
115
Ad Sorores Quatuor
116
A quadrilha
* * *
117
Ad Sorores Quatuor
Quando Lacan diz que não há outra análise a não ser a didática, quero
supor que, porque a análise é infinita, das duas uma: ou levamos a análise tão
longe que caímos fora do discurso, no regime da psicose, ou pulamos a tempo,
saltamos fora. Na verdade, o fim da análise é quando o sujeito sarta fora. Não
confundir isto com o “defenestrar-se” de que falei acima. Não há outro modo
de saltar fora a não ser ficando dentro. Porque a coisa sofre a torção uniface,
saltar fora da análise é cair nela, é virar analista. Pode-se parar uma análise a
qualquer momento porque não está mais sendo útil. O sujeito aprendeu sobre
seus sintomas, está numa boa e só voltará se ficar mais doido. Mas se estamos
no processo da psicanálise, ou o rigor analítico é levado a tal ponto que vamos
entrar no rigor psicótico – e, por isso, saltar da posição de analisando para a de
analista é, de certo modo, poder arcar com esse rigor psicótico –, ou saltamos
fora. Por isso, Lacan se pergunta como teorizar o passe. Ninguém teorizou,
nem ele. Como teorizar esse salto, esse momento em que o sujeito salta? Isto
não quer dizer que é o momento em que o sujeito começa a praticar a psicanálise
enquanto analista. A Escola Freudiana de Paris está cheia de analistas, mas só
três tiveram passe.
P – Isso parece iniciático.
Se o processo fosse iniciático, seria exatamente como é na Sociedade
Internacional de Psicanálise. Desde que entremos em todos os rituais, que
façamos juramento de ser analistas, então seremos analistas.
Por outro lado, ninguém sabe o que é o passe ainda, pois não foi teorizado,
nem escrito, nem mesmo descrito. Simplesmente Lacan inventou um modo,
cheio de processos, de supor que houve passe. Só que ninguém passa. Que eu
saiba só três, de repente, foram achados passados. A teoria está em processo e
Lacan supõe que alguém vai escrever a fórmula do passe, como ele escreveu
a dos discursos. Todos tentam, mas é uma deliração imensa. Até eu. Foi o
caminho que tentei começar naquele escrito que saiu com o título Senso Contra
Censo: da Obra de Arte etc. (Rio de Janeiro: Colégio Freudiano/Tempo
Brasileiro, 1977). Alguns pensaram que estou falando de estética, mas, a partir
da obra de arte, estou tentando pensar o que poderia ser o passe. De uma coisa
118
A quadrilha
(não) tenho certeza: a obra de arte conseguida é passe, mas não do escritor, do
pintor, do artista, e sim da obra. A obra passa, vira analista. Se pudéssemos
fazer como Freud, portar-se como analisando diante da obra de arte, talvez
achássemos na obra a estrutura do passe. Quero supor que ato poético e passe
(ou seja, ato psicanalítico) são a mesma coisa; que obra de arte conseguida e
passe são a mesma coisa.
P – Mas na obra de arte existe um suporte material para garantir e, no
caso do analista, não.
Como não? Carne não é suporte material? Letra não é material? Corpo
não é material? Tanto é que, na histérica, comparecem sintomas mais do que
materiais. Concretos, substanciais, às vezes.
* * *
O que Freud criou com o nome Psicanálise nada tem a ver com os
discursos que estão afogando o Discurso Psicanalítico, nem mesmo com os
chamados psicanalíticos, psiquiátricos, psicológicos, etc. São discursos
universitários, de mestria, de histeria, tentando não deixar aparecer como produto
o significante mestre. As ordens médica, psiquiátrica e psicológica vivem da
deliração emprestada a um desses discursos, num modo de não deixar aparecer
o chamado paciente. Cada um tem seu delírio próprio de dizer que o sujeito está
bom porque seu comportamento está assim ou assado, quando, de fato, são
todas posturas bem comportadas.
P – Segundo que ordenação se produzem essas formulações?
Está-se no regime da escrita, no regime da repetição do modo mesmo
de produção do traço unário. Por isso, Lacan exige a matemização. Aquilo que
não se decanta em escrita permanece conteudizado. Assim, quando estava
falando sobre aquelas escritas, eu não estava mais do que falando sobre elas.
Quando fazemos um traço sobre um papel, o que colocamos ali? Para responder
a isto, temos que entrar, não na literatura, mas no que chamo de granerastia,
que é o que Lacan contrapõe à literatura como radical na escrita.
119
Ad Sorores Quatuor
120
A quadrilha
acontecimentos, dos entrelaçamentos dos materiais, das formas, etc., que estão
lá dentro. Mas do mesmo modo que o analisando, levado extremamente dentro
do discurso psicanalítico, vai cair na produção de um significante que não significa
coisíssima alguma, a não ser a si mesmo, a obra terá o mesmo processo. Do
mesmo modo, então, que o analisando, levado a extremo, cai no rigor psicótico
ou no salto para a posição de analista, a obra também. Lacan fez um belo
seminário, Le Sinthome, sobre Joyce, o qual, segundo ele, dá a abstração do
sintoma. O que se lê em Finnegans Wake? Não há nada para ler, pois ele
escreve um letrão: riverrun. E até figurativamente faz isso: começa pelo rabo
e termina pela boca, ou vice-versa...
P – Você pode retomar a questão do tornar-se analista?
Lacan vai demonstrar a vigência do Discurso Psicanalítico no Banquete
de Platão. Então, não é por ser analista ou analisando que se está no Discurso
Psicanalítico. Não há iniciação nesse campo. Eis senão quando, sem querer,
estamos na vigência do Discurso Psicanalítico e nem notamos.
P – Penso em Ernest Jones escrevendo sobre Hamlet e não vejo como se
poderia fazer uma interpretação escapando ao próprio círculo
hermenêutico.
Talvez você não tenha notado a diferença no modo como Lacan trata
A Carta Roubada ou como Freud trata Michelangelo do modo como Jones
trata Hamlet. Não encontramos nem em Lacan nem em Freud uma tentativa
de interpretar a obra. Encontramos nos dois uma pergunta à obra a respeito do
que possa ser a psicanálise. Isto é o que foi mal entendido pela chamada
psicocrítica. Lacan nunca fez o que a princesa Marie Bonaparte fez ao
interpretar Edgar Allan Poe. Ao contrário, ele perguntou ao texto A Carta
Roubada o que é um significante. A psicanálise veta que se interprete a obra
de arte, mas não proíbe que se interprete qualquer coisa diante da obra de arte.
No caso de Édipo, Freud simplesmente recorreu ao texto de Sófocles
para tentar explicar, em cena, o que é a castração. Que culpa tem ele de que
ditos analistas queiram repetir a encenação do Édipo cada vez que alguém
deita no divã? A psicanálise cura de neurose, mas não de imbecilidade. Há
121
Ad Sorores Quatuor
29/JUN
122
Topologia do espelho
6
TOPOLOGIA DO ESPELHO
Hoje, por dois motivos, farei uma pausa na falação sobre os Quatro
Discursos. Primeiro, ao visitar um grupo de estudo que se realiza duas vezes
por mês aqui, às quintas-feiras, verifiquei que é preciso acrescentar subsídios
que me pareceram urgentes para o trabalho de cada um e também para a
compreensão da seqüência do que venho apresentando. O segundo motivo é a
presença, no Rio, de Serge Leclaire, que tem dito coisas, numa metaforização
tal que talvez faça com que as pessoas tenham algumas questões teóricas
sobre o que está sendo dito.
Pretendo, pois, desenvolver algo que pode ajudar nos dois casos: trazer
subsídios ao entendimento dos Quatro Discursos e, ao mesmo tempo, esclarecer
certas coisas que Leclaire está dizendo. Talvez alguns aqui estejam
acompanhando seus seminários, ou tenham assistido sua conferência. De
qualquer forma, vai servir para nós, desde que não seja como fofoca política
internacional ou local da Escola Freudiana de Paris. Isto não está me
interessando, e sim o que é estritamente teórico.
* * *
123
Ad Sorores Quatuor
124
Topologia do espelho
a ver com o campo da psicanálise, pois qualquer bicho faz isto, mas Lacan
mostra que, para a criança, há uma dissimetria nessa relação imaginária.
Posso, no logro, colar diretamente sobre a relação imaginária. Ou seja,
como não posso ter a configuração do lado de cá, suponho que esta configuração
é aquela que toma pregnância do lado de lá, pois configuro de longe. Mas há
uma terceira pessoa – as imagens são duas, uma do lado de cá e outra do lado
de lá – que vai dar uma asserção, como que uma garantia de que realmente se
trata de você. É com a palavra, com o verbo, que ela vai cobrir a dissimetria.
Cobrir a dissimetria no sentido de que a imagem que apreendo do lado do
espelho não tem absolutamente garantia alguma de ser a imagem que está do
lado de cá, mesmo quando ela obedece aos comandos dos movimentos da
imagem do lado de cá. Isto porque não havia a pregnância desta imagem do
lado de cá a não ser pela configuração da imagem do lado de lá, que, não me
dando garantia, pede a garantia de um terceiro para dizer que é a mesma.
Repetindo, o lado de cá não tem a menor garantia. Faço movimentos e parece
que esses movimentos se comandam, logo, deve haver uma correspondência
ponto a ponto entre as duas imagens. Mas não tenho garantias, pois só apreendo
o que está do lado de cá no que vejo o lado de lá. A única garantia que tenho já
é um salto outro. É um terceiro que vai dizer: “É sim!” Mas isto não quer dizer
nada como garantia, porque há uma brecha, há o testemunho de um terceiro.
Não foi, então, o testemunho de um lado de cá, não foi o reconhecimento de
uma sobreposição ponto a ponto, e sim o reconhecimento de um terceiro de
que, talvez, aquela coisa esteja encaixando.
Tentarei mostrar-lhes agora a topologia desse fenômeno para verem
que realmente não encaixa. Já lhes mostrei isto outras vezes – no Seminário
sobre Marcel Duchamp, por exemplo –, mas vou arrumar melhor. Quando
alguém se defronta com o espelho, o que acontece? A coisa mais direta a
acontecer é que esse alguém não vê o espelho. Tanto não vê que nem
conseguimos pensar nisso. Quando é que vemos o espelho? O espelho é um
acontecimento, a escrita de uma lógica tal que, quando estou diante dele, ele
me propõe um imaginário reproduzido. Basta ler os poemas de Borges, consultar
125
Ad Sorores Quatuor
126
Topologia do espelho
127
Ad Sorores Quatuor
128
Topologia do espelho
tentando uma lógica da coisa, para depois colocar em cima da questão do Eu,
do sujeito.
Então, se na terceira vez já me abismo, se der meia trava e começar a
pensar, posso supor que, se a lógica me abismou para os dois lados, posso
talvez abismar para a frente, quer dizer, fazer um movimento de retorno: tomar
o terceiro olhar, reduzir ao segundo e tentar reduzir ao primeiro – num esforço
lógico violento. Encontramos uma descrição maravilhosa disto no conto de
Guimarães Rosa, em Primeiras Estórias, intitulado O Espelho. É metafórico,
mas aí se vê como ele tenta trabalhar a angústia diante do espelho e o momento
de visão do espelho. Posso, então, tentar retornar. Se fizer esse movimento de
retorno e, rigorosamente, tentar levá-lo avante, vou pular da terceira posição,
que é qualquer lado, para a segunda, e da segunda tentar recair na primeira.
Recair na primeira é atravessar da segunda imagem para a primeira, é ficar
nessa travessia. Então, aí necessariamente vou dar de cara com a superfície do
espelho. Ou seja, não vou ter outra explicação para aquele fenômeno todo – o
que está no senso comum, aliás – senão de que se trata de um espelho: dou de
cara com a dureza da superfície do espelho. Isto está em Lewis Carroll, que, no
processo da Alice, tenta fazer, tenta explicar essa travessia. Trata-se de passar
para o outro lado do espelho para explicar que o importante não é o que está do
outro lado, e sim a travessia – dar de cara com o real que o espelho me propõe
em sua superfície, que não é, absolutamente, nenhum vidro (vidro é vidro,
transparente). O real do espelho é proposto pela lógica do espelho. Não posso
dizer que o espelho está no vidro, pois espelho não precisa de vidro. Posso
fazer uma superfície de aço e ela ser um espelho límpido. Mas tampouco o aço
é o espelho. O espelho é a competência refletora, digamos assim, que não está
na substância do objeto refletor: é uma relação com meu aparelho de visão e
com o que faz a minha estrutura com a lógica dessa reflexão. O espelho é
apenas isso, não tem dureza própria. Sua dureza é aquela que ele escreve
como lógica de reflexão. No entanto, ele me propõe o real, porque dou de cara
com essa dureza lógica – e não há outra dureza a não ser a lógica.
Portanto, se tento o movimento de retorno, darei de cara com o espelho.
Mas fiz esse movimento todo para mostrar, na relação angustiante com o
129
Ad Sorores Quatuor
* * *
130
Topologia do espelho
131
Ad Sorores Quatuor
ao mesmo tempo, façam o mesmo gesto, dizendo: “Fica lá”. Acontece que, se um
está de frente para o outro, vão apontar para o Shopping Center, um com o braço
esquerdo e o outro com o direito. Exatamente como acontece no espelho. Como
apontaram para o mesmo lugar, para o mesmo lado, faz sentido para nós. Se fôssemos
observar que cada um está apontando com um braço diferente, diríamos: “É uma
loucura!” Mas supomos estar sendo bem informados na medida em que damos o
mesmo sinal não à posição do braço deles, mas à posição da indicação deles. Aí
podemos marcar o mesmo sinal. Mas será que, como faz o antropólogo, basta fazer
esta distinção de braços, ou de mesmo lado, para resolver a questão? Ou a estranheza
permanece? Imaginemos que os dois respondessem de outra forma, isto é, na
mesma posição em que estavam antes, um apontasse com o braço esquerdo e
outro com o direito. Então, ou estariam nos gozando, ou não sabiam, ou nos
defrontaríamos com o absurdo: como o Shopping Center fica ao mesmo tempo
para dois lados opostos? Evidentemente, o senso comum dirá que estão enganados,
ou que não sabem. Isto, para não pensar na hipótese do absurdo que pinta. Mas o
que quero lhes mostrar é que, se as duas imagens que estão diante do espelho nos
apontam para o mesmo lado, o espelho nos aponta para os dois lados ao mesmo
tempo – não as imagens, mas o espelho que está entre elas.
132
Topologia do espelho
o espelho. É a metáfora que faz Guimarães Rosa em seu conto quando diz
que, depois de muito se exercitar, um dia olhou e não viu nada. Ou seja, viu o
espelho.
Por que estou dizendo que o espelho, e não as imagens que reproduz,
aponta para os dois lados ao mesmo tempo? Se considerar o que suponho ser
a simetria das duas imagens no espelho procurando achar agora a situação
dessas duas imagens, não apenas como dois triângulos simétricos entre si,
digamos, isósceles, e simétricos em relação ao espelho, verei que sempre
caio no logro de supor que, se rebater os dois triângulos um sobre o outro e
usar o espelho como charneira, eles encaixam bonitinho. Mas só encaixam
no imaginário da geometria cartesiana e em meu imaginário, que é cartesiano,
e não em sua lógica de constituição.
133
Ad Sorores Quatuor
134
Topologia do espelho
Lewis Carroll pode fazer Alice passar para o outro lado, que é o mesmo. Mas,
para ir ao outro lado, tenho que dar com os cornos no espelho, ou seja, sacar
que o significante que o espelho é – topologicamente, uma banda de Moebius –
propõe imediatamente o real como impossível atravessamento. O atraves-
samento só se dá na estrutura lógica de sua escrita, e não no real do atraves-
samento, pois o real do espelho me quebra a cara. O real da parede não é
nenhuma materialidade ou substancialidade conhecida da parede. É, sim, uma
impossibilidade de eu atravessá-la. Amanhã, pode alguém inventar uma máquina
que nos faça passar através dela. Não estamos livres disto. Mas, por enquanto,
o real da parede é impossibilidade de atravessar.
* * *
135
Ad Sorores Quatuor
Diz Lacan que o que acontece na análise, para fazer uma metáfora
simplória, no caso da ótica geométrica, é como se tivéssemos, do lado esquerdo,
o percurso do analisando. Vamos supor que a imagem real se desse em O. O
analisando, que não está nesse lugar, faz a suposição de ter uma imagem real
construída aí. É o que se chama eu-ideal (Ideal-Ich). Ele faz a suposição de ter
uma imagem própria constituída em algum lugar, mas acontece que o que ele
mais desconhece é a imagem que supõe ter. Quer dizer, ele denega os elementos
que, num passado recalcado, constituíram sua imagem real, que ele desconhece,
mas que está lá funcionando. Ele tenta apreender que imagem é esta a partir de
um ponto qualquer, C, entre o espelho e a imagem real que ele produz, O. É isto
que ele vai procurar na análise.
Então, há um espelho plano e, do lado direito, outro espelho côncavo. A
quem recorre o analisando para poder descobrir sua imagem? Ao analista, que
está em B. No que recorre ao analista, este vai fazer certos truques de maneira
que, quando aquele vê, da posição qualquer em que estiver, sua imagem no
espelho da esquerda, a imagem virtual vai se constituir como imagem real no
espelho da direita, que estaria no lugar do analista. O’ é uma imagem real
produzida pelo espelho côncavo, B. Refletida no espelho plano, ela se torna
imagem virtual desta imagem real, O. Mas, para o espelho côncavo, B, ela é
sua imagem real. A babaquice do analisando é essa suposição de saber entregue
136
Topologia do espelho
ao analista. Ele vai ao analista supondo que este possa ser aquele espelho
côncavo, do outro lado, produtor da imagem real que, para ele, possa ser imagem
virtual de sua própria imagem real. Ele supõe que o analista possa fazer isso.
Mas é tão evidente que o analista não sabe, que ele vive da suposição que o
outro faz de que ele sabe, que, se considerarmos o espelho plano, aquilo da
direita não é senão o reflexo da esquerda. Toda esta região não é senão o
reflexo da outra. No entanto, é o método que há. Então, ele começa falando e
pintando umas imagens para o analista que vão, sucessivamente, se aproximando
da imagem real, O, quer dizer, aquela que o constituiu como eu-ideal. Mas ele
só pôde fazer este percurso porque estava no campo do desconhecimento dessa
imagem, estava agindo sem conhecer esta imagem, esta postura de ego, como
dizem os analistas.
Como faz ele esse percurso de vários pontinhos aproximando-se de O?
O analista lhe dando rasteiras, driblando-o do lado de cá. Ou seja, ele apresenta
um ponto à esquerda e o analista resiste em aceitar que seja a imagem verdadeira,
dialetiza a imagem pintada. Essa imagem é dialetizada, quer dizer, não recebe
resposta – se o analista dissesse: “Já entendi!”, o analisando jamais sairia dessa
posição –, o analista não entende, faz silêncio, dribla o sujeito pela incompreensão.
Não compreende, ou seja, exige que se diga de novo a imagem. E ela vem
deformada. Quando vem deformada, pula de lugar. O que aconteceu? A
exigência do analista é empurrar, driblar a imagem. O sujeito pintou com uma
imagem, ele faz silêncio, a imagem escorrega, passa para outro ponto mais
perto de O. Se ele aceitasse a imagem, ficava-se no mesmo ponto. Mas ele
dribla outra vez e a imagem vai se acercando de uma constituição. Chega um
momento em que, com muita rasteira que se dê, a imagem não se move mais,
ou não se move substancialmente. Então, deve ser aquela.
Isso é que é o Tempo na análise. Isso é que é a Transferência, essa
paixão narcísica que não se aceita como narcísica, pois o lado do analista não
aceita o narcisismo. O analista depõe o Poder – falaremos disso adiante. Ao
poder que lhe é dado de dar respostas e carimbar o outro, ele renuncia. No que
renuncia, o outro cai do lugar. Responder a demanda é um ato de poder, e não
137
Ad Sorores Quatuor
respondê-la é não ter poder para dizer se é ou não. Então, o sujeito vai deslizando
pelo logro, pelo drible analítico. Suponhamos que ele possa chegar em O. Aí
vemos que isso se processa como uma verdadeira espiral e que Lacan apre-
senta essa imagem apenas para mostrar como a função da análise, ou seja, da
transferência trabalhada analiticamente, é fazer o sujeito cair de seu lugar de O
– na correspondência de O e O’ – e encontrar a imagem ortodoxa, verdadeira,
aquela que ele tem e desconhece. A metáfora da ótica geométrica é de que se
constitui uma imagem real – aí está a brincadeira que Lacan fez. Suponho que
meu real seja essa imagem que se constituiu num dado momento e que tomo
como minha. Suponho que eu sou eu, ou seja, aquele ego que nomeio, mas que
desconheço, pois, no processo de recalcamento, perdi os elementos construtores
desse ego imaginário. Mas é imaginário puro. Ou seja, sou agido por uma imagem
cuja composição desconheço. Se não conheço sua composição, não terei como
ver que ela é puro nó de significantes. O primeiro trabalho da análise – e último,
digamos – é fazer o sujeito dar de cara com esse ego, quer dizer, passar a não
denegar mais. Isto porque o desconhecimento dele não é ignorância, e sim
denegação. Não é que ele seja ignorante da sua imagem, e sim que denega que
sua imagem seja imagem. Ele fica em volta, circulando a imagem. É um saber
que não se sabe.
E o analista vai tentar fazer o sujeito ver onde? Onde ele pode ver, que
só pode ser do lado da direita. Como sabemos, só se pode olhar para o próprio
rabo mediante o rabo alheio. Sempre foi assim. A frase não é “eu olha para
meu próprio rabo”, e sim “macaco olha teu rabo”. Ou seja, se alguém não
mandá-lo olhar o rabo mediante a posição de rabo em que alguém está, ele
jamais verá o rabo. Não tem outra coisa na cara dele a não ser o rabo, e, por
isso, ele não vê.
* * *
Lacan, então, mostrou que é vendo a imagem real como imagem virtual,
porque outro está lá refletido, que o analisando pode vir à sua posição de imagem
138
Topologia do espelho
139
Ad Sorores Quatuor
com esta posição. Não é, por questões teóricas, ele dizer: “não posso”, é preciso
provar no movimento, no processo. E o que vai acontecer se a análise for
levada adiante, para além da mera exposição do O enquanto O’? Será o
desfazimento da letra que essa imagem porta em significantes, in-significantes.
É chegar à in-significância do significante. Se quiserem, é chegar ao
dignificante. Esta é a diferença que há entre o significante de Lacan e o de
Saussure e outros. Para estes, é significante, para Lacan, é dignificante. É a
Ética da psicanálise: empurrar para tentar chegar ao lugar do espelho que cria
todo esse sentido, mas não o é. Ele o cria como efeito. Mas é puro não-senso.
Em outro momento pensaremos a questão do Passe analítico, mas é aí
que está a travessia. Por isso, Lacan diz que a psicanálise só é psicanálise
quando é didática, quando atravessa. Se tento essa aproximação, vou dar de
cara com o espelho. Quando dou de cara com o espelho, porque ele é banda de
Moebius, volto ao mesmo lado e fico eternamente nessa travessia, de dar de
cara com o espelho. É, portanto, passar para o lugar do analista, que não é em
B, como supõe o analisando, e sim no espelho, no centro do esquema de Lacan.
Isso é que é chamado de “neutralidade analítica”, “posição silenciosa”, “insignifi-
cante”, “merdificante”, “dejetada” do analista, e é por isso que ele pode se
colocar como objeto a. Ele se coloca num lugar onde não há especularização
possível. O objeto a não é especularizável, não tem imagem no espelho. Aliás,
nem o espelho tem imagem no espelho. Não se enganem com o labirinto que
suponho existir quando eu me coloco entre dois espelhos, que é imaginário, pois
um espelho diante do outro não reflete nada. E o passe, nessa topologia, não é
senão conseguir sacar no percurso que é possível apenas refletir, sem responder.
Ou seja, provocar a mesma angústia que sinto quando estou sozinho diante do
espelho. Mas só que agora ela é empurrada, não desisto e saio correndo, não
denego. O analista continua o processo. Alivia aqui, quebra o galho ali, mas
insiste no empurrão. Insiste em ser espelho diante do analisando. Este lhe pede
para parar, para tirar o espelho daí. O analista diz: “Tá bom, eu tiro” – e o
coloca de novo.
Vejam, então, que a topologia unilátera da superfície do espelho no que
funciona, no que produz efeitos, os efeitos são partidos, são biláteros. É o que já
140
Topologia do espelho
* * *
141
Ad Sorores Quatuor
142
Topologia do espelho
que é a diferença sexual. Ele, aliás, apresenta isso no decorrer de uma série de
trabalhos, como vimos no Seminário do ano passado: o molde macho, o molde
fêmea, os coletes, o retrato de travesti, etc. Mas no Grand Verre é onde tenta
teorizar isso (antes de lhe dar a grande configuração final no Étant donnés).
Ele colocou o campo dos celibatários e o campo da mariée – o campo dos
homens e, talvez, A mulher, o Outro sexo. E o que põe entre os dois, e ainda
inscreve aqueles objetinhos da travessia? Um espelho. Ele nos engana porque
constrói a obra sobre um vidro e coloca uma barreira: de um lado, o campo da
máquina celibatária, do outro, o campo da mariée. A barreira é que é o espelho
– e ele tenta uma travessia pelo espelho. Mas ele me engana porque faz a obra
em cima de um vidro que tem certa competência refletora, e posso pensar que
o espelho é isso. E é. Ele coloca o espelho aí para mostrar que não se é senão
espelho, e para mostrar que o outro lado não existe. Isto é indicado em várias
coisas, sobretudo no même do título, La Mariée Mise à Nu par ses Céli-
bataires, Même, a noiva despida por seus celibatários, mesma. Vejam que ele
diz que même, que a coisa mesma, começa a mesmar: você atravessa e cai do
mesmo lado.
É porque há o significante que Lacan diz que A mulher não existe. Não
é que mulheres não existam. Mulheres são sintomas que andam por aí. A mulher
não existe porque, se existe o significante, se o homem fala, não existe o outro
sexo. Então, se as imagens no espelho são radicalmente dissimétricas – mesmo
se fizermos a reversibilidade, mesmo que tenham uma coincidência, elas mantêm
sua dissimetria –, toda vez que algum falante se coloca diante do espelho, o que
está no lugar da imagem é outro. Em qualquer posição do falante numa relação
imaginária, automaticamente, ou seja, pela incidência do significante, ele está
tratando com outro-sexo, seja qual for o sexo com que ele esteja tratando. A
dissimetria implica que, se eu resolver transar comigo mesmo, não conseguirei,
pois minha imagem no espelho é outro-sexo, ou foi operada pela Sexão, tornou-
se dissimétrica. Só falei do outro sexo para esclarecer, porque é simplesmente
Outro, sexo – foi seccionado de outro modo. Como o espelho enquanto banda
de Moebius, superfície unilátera, é absolutamente heterogêneo a toda e qualquer
143
Ad Sorores Quatuor
144
Topologia do espelho
* * *
Vimos, então, como está tudo misturado na mesma relação. Espero ter
acrescentado algum entendimento melhor à questão do significante, para continuar
nossas conversas e o trabalho de estudo de vocês. Vi que o pessoal não estava
percebendo a diferença radical do significante em Lacan, que é pura escansão do
145
Ad Sorores Quatuor
sentido. Onde o significante funciona, ele subverte o sentido. Por isso é que
existe metáfora e metonímia. Agiu o significante, cai-se na metáfora e na metonímia.
O aprisionamento num sintoma é aprisionamento da cadeia significante. É querer
que a cadeia não seja significante. É pegar os pontos de basta, os points de
capiton, e querer congelá-los. Disso é que sofre o neurótico, que tem um
congelamento de significantes num recanto que insiste em ficar congelado naquela
ordem, não fazendo metáfora nem metonímia. Não se trata absolutamente de
destruir o sintoma do analisando – se não, o destruímos –, trata-se de desfazer o
sintoma em seus significantes e deixar os significantes lá.
Está aí rebatida a questão de psicanálise e poder, que não é nada disso
que a patota esquerdista fica querendo resolver com golpes de institucionalidade.
Nenhuma escola, nem a de Lacan, nenhuma sociedade psicanalítica representa
o que é a psicanálise. Representa simplesmente uma instituição que, de um
modo ou de outro, tenta ajuntar uma porção de gente que pensa que é psicanalista
para fazer algum trabalho. O discurso psicanalítico não é a Escola Freudiana
de Paris, como não é a Internacional de Psicanálise. Esta é a política radical da
psicanálise, que me parece ultrapassar qualquer virulência política em qualquer
discurso já pronunciado. Isto porque subverte toda e qualquer arregimentação
significante congelada, toda e qualquer tentativa de imposição ideológica.
Acontece que existe uma moça-velha chamada Anna Freud que não
entendeu nada do que o pai estava dizendo e transformou isto numa situação de
poder. Transformou a tal ponto que, não satisfeita com sustentar rigorosamente
a tal sociedade psicanalítica e produzir aquilo que ela pensa que é um analista,
ainda por cima aconselha que o analista deva congelar e reforçar a imagem do
desconhecimento do analisando. É conseguir dizer o contrário do que Freud
trouxe. Será que filho é avesso do pai? Como disse Leclaire em sua confe-
rência, é porque não há imagem de pai que ela se defrontou com o pai como
mãe. E quem conhece a mulher de Freud, sabe de quem se está falando.
P – No Seminário 2, Lacan refere-se função simbólica, como o único
registro onde pode funcionar a análise. Ao falar em significante, você
está falando disso também?
146
Topologia do espelho
147
Ad Sorores Quatuor
analisando de hoje não é o mesmo do tempo de Freud, ele vem com um saber
psicanalítico que derruba qualquer analista. Ele já vem no barato. Se interpretar,
destruí toda possibilidade de análise. Fiz a hermenêutica que ele já estava fazendo
há muito tempo. Ele já estava deslocando. Irei eu deslocar esse deslocamento
dele? Não. Ele vai quebrar a cara.
P – A interpretação correta é fazer vigorar o significante?
A escuta é necessária, é séria, não é nenhum araque, pois só se pode
fazer vigorar o significante na medida em que aquela narrativa faz sentido. Ou
seja, é preciso que você perceba o sentido e o empurre para o lado. Se não, a
interpretação não faz sentido como empurrão.
[Pergunta sobre a Medusa]
Freud escreveu um trabalho sobre a Medusa, interpretando como “ato
apotropeico”, a exposição de falo. O falo, para a psicanálise, chama-se: espelho.
O espelho é o lugar do falo, do significante, do sujeito, do analista, é o ponto da
travessia. Como sabem, a Medusa é aquela figura da mitologia com serpentes
em vez de cabelos, uma proliferação fálica do ponto de vista do imaginário na
cabeça. Qualquer um que se defronte com ela se petrifica, vira uma estátua de
pedra. Só um herói, Perseu, consegue acabar com aquele poder ao colocar seu
escudo polido na frente dela. Ela, ao se ver refletida, se petrifica. Tudo que se
disse de sério e de decente na arte, no pensamento, na mitologia, recai nessas
coisas. Retomando o Estádio do Espelho, a Medusa é o primeiro momento,
aquele em que, diante do espelho, a criança se petrifica numa imagem para
poder chamar-se de alguma coisa. E Perseu é aquele que põe o espelho pela
segunda vez. É o analista. Ele vence a Medusa porque lhe apresenta seu (dela)
verdadeiro rosto: nenhum.
O heroísmo de Perseu foi dizer que o espelho é o espelho. Se investirmos
o olhar no espelho, ficamos petrificados, caímos na imagem. É preciso
reconsiderar o que acontece nesse aprisionamento para poder ver o espelho, e
não a imagem que ele nos mostra. Então, o que há a fazer é tornar-se espelho,
aprender sua lógica. Do mesmo modo, a transferência petrifica. Não há análise
sem transferência, mas há que analisar a transferência porque é a maior de
148
Topologia do espelho
149
Ad Sorores Quatuor
seria mulher. Se pudesse dizer A verdade, você encontraria A mulher, que não
existe. O místico é quem transa nessa ordem.
[Pergunta inaudível]
É a letra do sujeito, seu estilo, só que ele desconhece. Ele tem que se
defrontar com sua figura. Essa figura foi fundada por um encadeamento
significante que é congelado. Esse encadeamento significante é o que Lacan
chama de letra, que é uma amarração significante que está presa ali. O tal do
seu estilo, que você desconhecia, que o fazia agir uma porção de sintomas e
que você denegava, você terá a chance de chegar agora e ver de perto. Isto é
a possibilidade da cura, da travessia. Não é nada mais que uma porção de
significantes, que não quer dizer absolutamente nada.
10/AGO
150
Sexuação e anatomia
7
SEXUAÇÃO E ANATOMIA
151
Ad Sorores Quatuor
* * *
152
Sexuação e anatomia
tem que ser dos alunos. Se ele desfundar o que fundou, tira a chance de as
pessoas dilacerarem o pai, de algum modo. Acho que ele faz muito bem em
bater o pé e manter a instituição. Se não, ninguém chia.
Mas, quanto à questão das mulheres, como há um grupo aqui que estudou
On tue un enfant, talvez seja bom retornar ao texto. Não há nada nesse texto
de Leclaire que não seja bonito ou que me pareça errado ou divergente de
Lacan. Mesmo porque está na coleção dele. Quero supor que Lacan publicaria
desvios em sua coleção, mas não contradições. Como disse, acho que consigo
entender tudo que disse Leclaire, sobretudo quando faço reportagem ao
Seminário 20 – seminário entendemos menos, pois vai mais longe e é mais
complicado. Só há uma questão que preciso retomar. Aliás, por colocá-la, alguns
pensaram que eu estava contra a posição de Leclaire, mas nada tenho contra
ou a favor, muito pelo contrário, simplesmente tenho a questão.
Muitas pessoas que citam Lacan e partem de seu trabalho, mesmo que
para contestá-lo, sempre retomam a parte central onde ele demonstra e afirma
que A Mulher não existe. A própria Luce Irigaray, nesse texto, Ce sexe qui
n’en est pas un, que é comentário de seu livro anterior, mostra que não há
comum no sexo e retoma, concordando, o que disse Lacan. Portanto, aqueles
que não leram o Seminário 20, Encore, dado o sintoma que pintou, deveriam
fazê-lo. E também ler um texto mais difícil, chamado L’Étourdit, publicado em
Scilicet 4 (Paris: Seuil, 1973), além de Radiophonie, publicado em Scilicet 2/3
(Paris: Seuil, 1970) e Télévision (Paris: Seuil, 1974), que são momentos em que
trata da questão do feminino.
Quando Lacan, no Seminário 20, divide os seres sexuados, falantes,
em dois campos, que chama de Homens e Mulheres, é preciso sempre lembrar
que estas duas palavras são significantes. Eugenie Lemoine-Luccioni, no livro
que citei há pouco, diz que não podemos esquecer que, quando Lacan usa
palavras, ele usa significantes. Então, quando escreve “Homens” e “Mulheres”
no gráfico da partilha da sexuação, da divisão dos sexuados em campos
diferentes, está usando significantes do mesmo modo que, nos Écrits, em A
instância da letra no inconsciente, colocou duas portas absolutamente idênticas
153
Ad Sorores Quatuor
154
Sexuação e anatomia
155
Ad Sorores Quatuor
* * *
156
Sexuação e anatomia
157
Ad Sorores Quatuor
Sexão. A relação ao sexo é única. Por isso, diz ele, o estatuto do homem é de
homossexual. Assim, nessa lógica, como pode aparecer a heterossexualidade?
Esta é a questão trazida por Leclaire, que quer construir uma sociedade
heterossexual, pois nossa sociedade, segundo ele, seria homossexual, como diz
Lacan. Assim, o hommosexuel, em sua relação ao sexo, repartiu-se em dois
campos: um, chamado Homem; e outro, chamado Mulher.
Lacan diz que o Homem existe e A Mulher não existe porque o falo é
o referente único da relação ao sexo. Ele é o significante primordial fundador
da diferença sexual no simbólico, e foi fundado como significante na perplexidade
da diferença que a criança encontrou no momento de entrada na ordem
significante. Então, se o falo é o único significante de referência do falante, há
que supor que todo falante satisfaz a condição fálica. Pode-se, pois, escrever a
fórmula, x.x, que está lá significando isso: para todo falante (x) a função
fálica (x) é satisfeita. Portanto, se é gente, falou, satisfaz a função fálica, seja
homem ou mulher. Mas, diz Lacan, não há possibilidade lógica de pensar um
para-todo que satisfaça a função fálica, a não ser que se limite o todo com algo
que extrapola a função fálica. Se temos determinado conjunto que podemos
nomear como todo, é preciso, logicamente, supor que exista pelo menos um
(x) que não satisfaz essa condição (~x). Ou seja, é a exceção que (não
confirma, mas) dá garantias à regra. Não posso pensar logicamente num totum
se não ponho como limite a esse totum algo que não o satisfaz, que lhe é
externo. Então, para pensar que todo falante satisfaz a função fálica, tenho que
pensar que existe pelo menos um, ainda que suposto, que não satisfaz. Este é o
limite dessa expressão, a qual não é pensável sem este limite. É nesse ponto
que entra a chamada função paterna. Por isso, o pai só pode ser pensado
enquanto morto. É a suposição da existência de pelo menos um que não satisfaz
a função fálica, que Freud pintou como sendo o mito do assassinato do pai da
horda primitiva. Este, miticamente, como limite lógico dessa função, não passou
pela satisfação da função fálica. Lá é dito miticamente porque o (~x) é uma
exigência lógica para se pensar o para-todo (x).
158
Sexuação e anatomia
159
Ad Sorores Quatuor
falo, portanto de sujeito. O importante talvez seja o referencial fálico que coloca
o referencial sujeito. Então, o movimento de desejo desse sujeito atinge outro
sujeito? Não, ele atinge um objeto. O sujeito procura um objeto a, que está notado
do lado direito. Nesse procurar é onde se coloca a fórmula da fantasia: $a. E
não há realidade que se estabeleça a não ser na relação do sujeito para com o
objeto a: funda-se uma fantasia que é a tentativa de criação de realidade, e é
mediante essa fantasia que se dá a relação que o sujeito tem com o real.
Continuando, diz Lacan que qualquer um que caia do lado Mulher terá
uma relação partida, será um ser dividido em sua relação significante. Não se
trata da simples divisão do sujeito, que está em todos, e sim de que, em seus
movimentos de referência, será um ser partido, que não pode se inteirar e que
não pode dizer “O” ou “A”. Dizer que existe esse ser falante – que existe pelo
menos um, ou que vemos existentes por aí – é dizer que se relaciona com o
falo, mas não-todo: relaciona-se, por um lado, com o falo, e, por outro, com o
Outro, ou seja, com o significante do Outro enquanto faltoso: S ( A ). Como
sabem, o Outro não é inteiro, não faz uma completude, tem uma falta. Assim,
para me situar como significante unário, ser-me, significante na minha referência
com o saber, há que estabelecer uma relação com o significante do Outro
enquanto faltoso. Então, há uns seres, falantes, que caem na posição de se
verem divididos em sua relação a quê? Ao gozo. Como gozam os seres falantes,
no sentido mais pleno e mais geral de gozo? Como abordar o gozo do ser
falante? Aqueles que estão do lado do todo, no esquema, gozam de objetos a, o
que é diferente de fazer gozar o objeto a. É o falo que fazem gozar. É a isto que
Lacan chama de gozo fálico.
Embora não coloque no esquema, Lacan nomeia (Le Séminaire. Livre
XX: Encore, p.74) como indecente, como inde-senso (indé-sens), como
reticente, como reti-senso (réti-sens), a postura absolutamente sem sentido do
falo que não se pode tocar, e sim apenas representar para cada sujeito pelo
significante primeiro (S1). Trata-se, pois, na posição de falo no esquema, de S1.
Quem colocou o sinal de idêntico () lá, fui eu, pois não temos o falo como
referente escritível, enunciado, só temos o S1. É quanto a esse ponto que quero
160
Sexuação e anatomia
161
Ad Sorores Quatuor
* * *
162
Sexuação e anatomia
163
Ad Sorores Quatuor
perigosa na presença de Leclaire no Rio foi ele chamar as mulheres, que não
tenho a menor idéia de quem sejam. Sobretudo, se elas têm a potencialidade de
serem mulheres, mas se tornaram mães. Mulheres grávidas são homens, têm
uma rolha, uma completude. Leclaire, aliás, criticou isto muito bem, pois não se
trata de reduzir a mulher à função de mãe, ou de esposa, coisas que arrolham,
refalicizam sua postura. Minha questão é que, para um público que não está
transando esse discurso, tentar capturar as mulheres pela aparência anatômica
é ajudar o imaginário desse público.
O falante não é falante no nível da diferença anatômica, há que instalar
o significante. Se o sujeito se põe diante da diferença anatômica e é com ela
que ele se assusta, das duas, uma: ou se funda a teoria de que há dois significantes
originários, e aí tomamos garantias na anatomia; ou se funda a teoria de que há
um significante originário, e aí a anatomia começa a ficar louca. O momento de
entrada do significante enlouquece a possível marcação significada da pregnância
anatômica. No que faço do falo o referente de uma castração, o referente, no
simbólico, de toda e qualquer possibilidade de cadeia significante, todo imaginário
estará, de uma vez por todas, infectado de simbólico. É preciso conceber que,
no máximo, pode-se tentar demonstrar – e, que eu saiba, não foi demonstrado
– que, por não se ter pênis, cai-se mais facilmente na posição feminina.
Leclaire disse também que a mulher tem um filho, uma criança real.
Não entendo como possa ser isto. Ou sou estúpido, ou não me demonstraram.
Concordo que haja um sujeito num corpo, que haja um real, que é a impossibilidade
de escrever certa postura dele. Mas a produção, a própria criança, quando
recai no campo do simbólico, vai ser indicada como falo, não na medida em que
é real, mas na medida em que se reimaginariza porque é falicamente posturável.
E depois que a criança saiu, a mulher continua lascada. Aí, abriu-se a rolha...
P – Mas fica a possibilidade de produção de outro real.
Quer dizer que a proveta é mulher? Estamos no século do bebê de
proveta, e, se me permitem, posso dizer que está acabando o bebê de boceta...
Repito que não estou dizendo que saiba a resposta, mas não podemos
continuar tratando assim essas questões.
164
Sexuação e anatomia
* * *
165
Ad Sorores Quatuor
166
Sexuação e anatomia
* * *
167
Ad Sorores Quatuor
* * *
Como lhes disse, tentei um esquema que não estou garantindo, mas
vou colocar para continuarmos pensando.
168
Sexuação e anatomia
169
Ad Sorores Quatuor
falo enquanto S1 apontando para ela. E se ela goza do gozo fálico que a indica
como significante unário, que é indicação de que ela está lá como falo, como
masturbatório, por outro lado, ela tem uma relação com o outro angélico, ela
excede. É como se dissesse: “O falo enquanto S1 é o que penso que sou, no
entanto, gozo a mais, pois também gozo do lado do Anjo”.
Os anjos, diz Lacan, têm um sorriso besta. Por minha vez, digo que os
homens têm um gozo idiota. E as mulheres? As mulheres têm um gozo alegre.
Isto é não ficar triste por gozar apenas falicamente. “Depois do coito, o animal
é triste”, diziam os antigos. Mas não as mulheres, aquelas que conseguem ser.
Por quê? Alguma coisa excede. O gozo masturbatório cai imediatamente e é
entristecedor, mas o excesso é o fundador da Alegria. Chamo alegria, pois,
para mim, o ato poético é isso. As mulheres – e não quem não tem pênis – são
os poetas. A obra de arte tenta produzir o Feminino, mas só finge fazer isto, pois
não pode escrever A Mulher, e sim produzir uma tentativa de ser uma mulher.
Ou seja, como diz Augusto dos Anjos, produzir alegria, apesar de tudo.
É, portanto, por esta via que tento equacionar. Por isso, não posso dizer,
como faz Luce Irigaray, que é preciso dar a palavra às mulheres. Isto, no
sentido de fazer grupos de mulheres, não portadoras de pênis, começarem a
tomar a palavra. Concordo plenamente que o Ocidente está tomado pelo discurso
fálico. Tanto é que os poetas nunca foram ouvidos, mas sempre tentaram dizer
e produzir – coisa que tentei dizer como piada na palestra de Leclaire e o
pessoal não entendeu – um pouco de silêncio, em vez de falar pelos cotovelos.
O abuso do Ocidente foi endereçar o significante fálico para a representação
penial da arte pré-histórica, da arte grega, etc., quando o importante é entender
a diferença entre o sentido e o não-senso. A partição sexual fundamental é
esta, a qual é produzida a partir do falo: no que empresta sentido, ao mesmo
tempo desfaz o sentido. Assim, gozar falicamente, é gozar na posição idiota da
masturbação que vai no mesmo sentido. E o feminino não é o avesso disto, e
sim diferença disto. Ele cai para outro, o que não é o outro lado do espelho, pois
lá só pode estar o avesso do que está do lado de cá. Cai-se no espelho, como
tentei demonstrar na seção anterior. Irigaray e Leclaire, em seus livros, falam
da travessia do espelho. Mas a travessia do espelho é a travessia, a vigência do
170
Sexuação e anatomia
* * *
Retornemos aos Anjos. Eles não podem gozar falicamente. Por isso,
têm aquela cara de besta. Por outro lado, eles não falam. Trata-se, pois, de um
171
Ad Sorores Quatuor
gozo besta. Lembrem-se que bête, em francês, quer dizer também ‘animal’.
Marcel Duchamp viu isto com clareza. Se a Mariée, desnudada pelos
celibatários, masturbadores, mesma (do verbo mesmar) no conjunto da esquerda
(H), ela mesma no regime do rebate no conjunto da direita (A). Ela tem que
mesmar, pois a imagem do outro lado do espelho, quando passa para cá, começa
a mesmar. Mas pelo simples fato de atravessar o espelho – que não é a superfície
da Mariée, e sim aquilo que chamam le vêtement de la Mariée –, ela já entrou
no desnudamento, ou seja, passou pelo espelho. Então, se, por um lado, a Mariée
mise à nu par ses célibataires, même, por outro, a Mariée vêtue (habillée)
par ses célibataires, autre. É preciso manter o vestido da noiva, pois só ele
faz a outragem, se não o ultraje. Ou seja, as mulheres são vestidas, exatamente
como Dionísio. Podemos até olhar pelo buraco da fechadura para dar uma
espiada. Foi o que Duchamp fez, mas há um aparelho.
Então, se o sintoma trazido pela presença de Leclaire continuar, podemos
trabalhar estas questões, já que estamos tratando dos Quatro Discursos e está-
se falando de discurso do homem e discurso da mulher... Na verdade, o que
Lacan colocou é algo tão subversivo quanto a postura freudiana. Muito mais
subversivo, como afirma Lemoine-Luccioni em seu livro, Le Partage des
Femmes, do que, como ela mesma cita, Luce Irigaray. Nisto ela me parece
mais cautelosa que Irigaray e Leclaire. Isto porque, na referência ao sexo e ao
falo temos dois campos, mas se ambos independem da anatomia, o que é ser
heterossexual? Ou seja, o que é construir uma sociedade heterossexual, esta
que Leclaire está pregando por aí? Estou certo de que nossa sociedade é homo,
pois só goza no H e, o mais que pode, proíbe que se goze do lado feminino. Não
que não se goze, mas não se quer ouvir o gozo aí. De novo, pergunto: o que
seria a possibilidade de ser heterossexual, digamos, na cama? É fazer papai e
mamãe? Não, pois aí estamos no regime da produção edipiana: o pai está
comendo a mãe, e não há relação heterossexual. Qualquer relação corporal de
quaisquer sujeitos em que esteja incluída a relação da alteração é heterossexual.
Por isso, Lacan diz que “heterossexual é aquele que ama as mulheres”, e não
aquele que promete alguma relação com o que não pode ter relação.
172
Sexuação e anatomia
173
Ad Sorores Quatuor
24/AGO
174
Giratório dos discursos
8
GIRATÓRIO DOS DISCURSOS
175
Ad Sorores Quatuor
176
Giratório dos discursos
verdadeiro sem falso, pois o falso disso é o silêncio radical que se torna verdadeiro,
quer dizer, recai no paradoxo. Assim, está pondo em periclitância toda e qualquer
possibilidade de sentido, o que nada tem a ver com acumular os sentidos, pois
está na razão oposta do que poderia enunciar qualquer imaginário, como na
literatura junguiana, de coincidência dos sentidos opostos, de coincidentia
oppositorum. Não é que os sentidos se completem, e sim que se anulam: não
é nem um nem outro. É preciso manter isto em mente, se não, recaímos no
imaginário do andrógino.
* * *
177
Ad Sorores Quatuor
porque não são feitos a partir de sentido algum, e sim na escansão do não-
senso. Por isso, é tão difícil pensar a possibilidade de um ato na representatividade
que tem o mundo contemporâneo como embate de ideologias. Isto porque quase
não vemos ato, mas só ações representando sentidos. O ato poético, o ato
analítico, em qualquer campo, até no campo da política, seria um ato, um ato
falho. Por isso, ele tem sucesso: começa a produzir efeitos que não estavam
contabilizados no momento do ato, ou seja, não pode se responsabilizar por seus
efeitos. O ato é irresponsável – a responsabilidade pertence à moral da ideologia,
e não à ética do ato.
Lembrem-se que, há pouco, eu disse que, dado um enunciado, ou é
verdadeiro ou é falso, e não que o enunciado é verdadeiro ou falso. Se
separarmos os enunciados em verdadeiros e falsos, já estamos na falsidade da
ideologia. Esta é a subversão lógica de Wittgenstein: dado qualquer enunciado,
só posso dizer uma verdade a seu respeito, que ou é verdadeiro ou é falso, e
mais nada. Dizer que é verdadeiro ou – vírgula, dois pontos, uma porção de
espaços – é falso, não vale, pois estarei necessariamente no falso. Só estou no
verdadeiro quando digo que é ou verdadeiro ou falso. Isto porque o ou pertence
ao regime da alienação do vel, que já lhes mostrei. Então, como o ato falho
pertence à mesma lógica do chiste, que não tem pé nem cabeça, dele só posso
dizer que é ou verdadeiro ou falso. Ou seja, como ele pertence ao regime da
verdade, dele não posso dizer que aqui está o pé e lá está a cabeça, mas apenas
concomitantemente que é ou verdadeiro ou falso.
Por que a interpretação no campo da psicanálise pode ser demonstrada
como ortodoxa? Quando digo que a interpretação deve ser correta num regime
de ortodoxia, deve-se supor que eu esteja apontando para um enunciado
verdadeiro, e não para um enunciado que é ou verdadeiro ou falso. Estou dizendo
que há um enunciado verdadeiro, de cuja aparência temos que cuidar. E se a
interpretação é correta, só-depois ela produz a emergência da escansão. Por
quê? Considerem o esquema do espelho, de Lacan – (O) e (O’) –, que mostrei
na seção 6.
A cada vez que o sujeito constitui uma imagem na fala, num daqueles
pontos que vai chegando perto de (O), e que essa imagem é interpretada, o que
178
Giratório dos discursos
179
Ad Sorores Quatuor
dedo. Isto não tem a menor importância, pois é um direcionamento que dá uma
coalescência aparente de sentido, mas que, na verdade, não tem sentido
definitivo. Então, o sujeito é empurrado para a frente e tenta constituir outra
vez aquela imagem toda... A interpretação é, portanto, ortodoxa no que coincide
com a enunciação do sujeito num momento dado. Ela lhe dá texto, deixando-o,
ainda que momentaneamente, na doce ilusão de que arrumou a figura, o
enunciado. Mas como, na interpretação, ele é o enigma, estou dizendo que ou é
falso ou é verdadeiro. Então, ele cai para a frente. O caminho é no sentido de
fazê-lo chocar com o não-senso, com o chiste, com a piada radical, que é o
espelho, o qual está em vigor na interpretação, pois ela é o posicionamento do
modo do espelho.
P – Qual a diferença que há entre isso e a operação do paradoxo do
lógico?
A diferença é o que Wittgenstein denuncia no discurso da filosofia, que
tenta a artimanha de ganhar a mais-valia de uma verdade chamada de verdade
– verdadeiro ou falso (e dizer que é falso, deve ser verdade) –, pois coloca
como agente alguma coisa já apontada de saída e que não porta o paradoxo.
* * *
180
Giratório dos discursos
portanto, tentar coalescer a imagem até dar com os olhos. Guimarães Rosa diz
isto bonito no conto O Espelho. No momento em que a imagem se coalesce,
mas fica o enigma dos olhos contra os olhos, remeto a imagem para mais adiante,
e torno a tentar reconstituir a imagem de outro modo. Isto porque sobra um
resto, ou melhor, aparece a falta.
P – Na produção discursiva dentro de uma análise, não há certeza de
encadeamento, pois ele altera.
Altera de uma vez para outra, só-depois, e não durante o momento. Se
o Senhor se olha no espelho, fica muito contente com ganhar a sua imagem
como se fosse objeto a. Isto porque ele faz tudo, menos olhar nos olhos, menos
ver que há um buraco, que sua verdade é a cisão do sujeito. O agente – notem
o absurdo que vou dizer – do olhar dele não é um olhar, já é uma figura puramente
geométrica. O agente do olhar do Analista é um olhar, e não uma figura.
P – Por isso é fácil o Discurso do Mestre entrar no Discurso Universitário.
Sobretudo, se ele dá para trás, é onde ele cai diretamente. Não podendo
colocar-se como autoridade, como autor, a universidade coloca um saber e
pensa que está produzindo um sujeito tapado, sem cisão.
O que faz o analista? O analista, ele é que é o desejante. Ele se faz de
objeto do que é a suposição de saber, do sujeito que sabe. Encontramos
freqüentemente no analisando a desconfiança do saber do analista, mas nem
por isso, quando está em transferência, a suposição deixa de estar lá. O que ele
supõe realmente que o analista sabe? A postura dele como sujeito. Isto porque
o analista é colocado como objeto de desejo do analisando. É colocado assim,
porque é desejante, porque não é reconhecível de cada vez que é olhado como
analista: ele faz buraco, desobjeto. Sobretudo, na postura sexual do analista.
Qual é o sexo de analista? Ele é a-sexuado, objeto a. (Pessoas que não
entendem isto pensam que ele é brocha). Ele, freqüentemente, participa da
postura do feminino como desobjeto. Por isso, pode ser desejado por qualquer
discurso de sexualidade. Ele até pode ser fisicamente horrível, mas, porque
funciona como analista, é a-sexuado, o analisando sempre dá um jeitinho de
encaixá-lo no lugar do desejo. Tanto é que, se procurarmos as produções
181
Ad Sorores Quatuor
* * *
182
Giratório dos discursos
183
Ad Sorores Quatuor
Mulher não existe, mas as mulheres existem nessa partição. Desconfio, então,
seriamente que, seguindo essa lógica com rigor até o fim, posso provar que os
homens não existem, a não ser como discurso. Como só posso constituir
um homem com apoio num discurso que o constitua baseado na negação de um
elemento na sua função fálica, O Homem existe, mas “os homens” não garanto.
Vejam que toda vez que quero chamar algum sujeito de homem, refiro-me a um
discurso que dá garantias a ele de sua macheza. E toda vez que quero chamar
uma mulher de mulher, posso fazer isto se ela funciona como tal, e não preciso
de discurso algum. Pelo contrário, é na loucura do discurso que ela se apresenta
como tal, absolutamente particular. Em compensação, A Mulher não existe,
quer dizer, não existe discurso que garanta que seja mulher. Nunca vi Lacan
enunciar que os homens não existem, mas ele diz com todas as letras que “o
homem, o macho, o viril é uma criação do discurso”. Ou seja, fora da criação
do discurso, não posso apontar para um homem. Eles se chamam de “um
homem” – do que, aliás, as mulheres participam – na medida em que fazem
referência a um discurso que só se garante pela limitação que está na fórmula:
há pelo menos um que nega a função fálica. “Mas se o indivíduo cai na alteridade
do significante, ele surge como objeto a de algum modo, como o analista surge,
portanto, ele pode ficar partido; e nessa partição, em cada momento, o resto, o
que sobra da felicidade fálica, é uma alteração particular”.
Por isso, contra a aparência feminina de que falava Serge Leclaire,
insisto na manutenção da significância do falo. É por negar a função fálica
(x~x) que se limita a alteridade do falo dentro do discurso masculino. Mas
no feminino, onde ela não é barrada, pois não existe nenhum que não seja
(~x~x), ela se torna falo alterado. É o mesmo significante, e não preciso
fugir da ordem significante nem me projetar em alguma anatomia para pensar
isso. Por incrível que seja, se levarmos muito longe o raciocínio que me pareceu,
pelo menos, ser trazido no papo de Leclaire, talvez cheguemos à conclusão de
que, diferentemente do começo da psicanálise, quando as mulheres analistas
reclamavam de Freud por este dar a impressão de que analista era tudo homem
– e ele até brincava dizendo isso mesmo –, só as mulheres em nível anatômico
184
Giratório dos discursos
poderiam ser analistas, e os homens não. Schreber tinha certeza disso, tanto é
que, em sua paranóia, havia um processo de viração, de reviramento para o
feminino, que nada tinha de homossexual. Ele queria revirar para o feminino, o
que lhe dava alucinação corporal: via tetas, queria se ver sendo trepado por um
macho, etc. Ora, não é isso que faz o analista no nível da postura discursiva,
sem nenhuma anatomia? É claro que o imaginário funciona, quer dizer, as
mulheres, pelo fato de darem aparência de serem mulheres, talvez sejam mais
facilmente captáveis como aquele objeto. Aparentemente! Outro dia fui ver um
show de travestis, e durante alguns minutos não sabia realmente se era macho
ou fêmea, embora tudo indicasse ao meu imaginário que se tratava de mulheres.
P – Lacan diz que a questão não é haver o psicótico, a questão é haver
nós outros. Há alguma relação com isso?
O espantoso não é que haja a região de reconhecimento de que é do
Outro que vem o meu desejo pronto, e sim que os neuróticos suponham que o
desejo vem deles. Não estou dizendo que os homens sejam neuróticos, e sim
que o neurótico pensa que é homem, o que é muito diferente. Todos nós temos
experiência o bastante para notar que os machinhos da vida vivem fazendo um
esforço desgraçado para provar que são mesmo. Eles ficam se virando num
discurso que lhes garanta que são machos. As mulheres não ficam fazendo
força para provar que são mulheres, a não ser que não o sejam. Observem que,
quando entram no discurso masculino, ficam veadas: têm que provar por alguma
coisa feminina que são mulheres. Mas este feminino é aquele exorcizado pelo
discurso masculino, para dizer que ele é macho. Acho óbvio que, quando estão
na folia da alteridade, elas não têm que demonstrar nada. O negócio é meio
doido mesmo.
P – Nesse sentido, a lingüística seria um discurso masculino?
Jean-Claude Milner quer dizer que não. Para ele, na medida em que
seja lingüística lacaniana, a lingüística porta essa relação com o real. Mas, se
falamos da lingüística tout court, o que vemos é o discurso do macho, o discurso
do Presidente da República... No entanto, se a língua que chamamos de materna
– acho eu que porque olhamos pela via do masculino – é reconhecida em sua
alteridade constante, ela é feminina. Não há nada mais feminino do que uma
185
Ad Sorores Quatuor
* * *
186
Giratório dos discursos
187
Ad Sorores Quatuor
P – O domínio é mútuo?
Não posso acreditar que esses analisandos tenham domínio sobre ele,
e sim que exijam que ele seja mestre para reinar sobre ele. Ou seja, continuam
exigindo mestria dele. Isto porque é muito difícil se desembaraçar de alguém
que realmente está na posição de analista, pois o desejo vai em frente e aquele
objeto não se perde com facilidade. Acho que a questão mais honesta é: quantos
sujeitos suportam essa posição, realmente passam?
Vejam, então, que o fato de dissimular com algum truque o momento
em que se cai na postura de mestre numa análise, não quer dizer que, quando
se consegue a posição de analista, estejamos em simulação. Isto porque o analista
não existe, não é possível. Lacan diz algo muito interessante, que “a verdade
vem a galope, num galope tal que, logo que atravessa nosso campo, já partiu
para outro lado”. Por isso, o analista é impossível, e nem por isso deixa de
acontecer sua posição, mesmo à revelia do sujeito que está sentado naquele
lugar. O sujeito pode se munir de saberes, de aparatos, de técnicas, sentar-se
na postura de analista, mas é o outro que está supondo porque está votando
naquilo. Ele próprio não consegue sentar ali. Eis senão quando, surge a travessia,
mas ela passa a galope: já caiu do outro lado do espelho, que é a mesma coisa
do lado de cá. A única coisa que justifica a psicanálise são esses momentos em
que a verdade passa. Mas como estamos impregnados na debilidade mental da
psicologia, de supor que se deve configurar a verdade, a grande maioria das
intervenções não é intervenção de coisa alguma, e sim produção de retratinhos
de bolso para se dar ao analisando.
Estamos, portanto, no regime da coisa mais radical da produção do
falante – e tocar a enunciação é algo que passa a galope. É muito difícil e cada
vez será mais difícil falar disso na contemporaneidade, pois estamos cercados
por todos os lados por produções bem construídas em discursos outros que nos
convencem – le con vaincu, como diz Lacan: o babaca vencido – o dia inteiro
de seu retrato. Isto, nas ciências humanas, na televisão, na pedagogia, em todo
lugar. É o sujeito convicto, e até aquele que entra em análise fica pedindo que
lhe dêem essa configuração, pois está acostumado a conviver com ela. É o que
188
Giratório dos discursos
faz o psicólogo: ajustamentos. O sujeito está com certa imagem e vai ao psicólogo
fazer uma reforma, mudar sua decoração para ficar numa boa, de casa nova,
etc. Psicologia é instituto de beleza mental. Trata-se de design. Saca-se qual é
a da pessoa, onde o negócio não está funcionando e diz-se para ele trocar de
discurso, dar um jeitinho para cá, outro para lá... Há até uma novela na televisão,
em que uma psicóloga fica aconselhando as pessoas.
P – É a questão da profissão, que se tipifica aí.
Basta acontecer de se desenhar a profissão de analista para que todo
sujeito decente deixe de ser.
P – Mas estão tentando o regulamento da profissão...
Regulamenta-se a profissão de poeta, por exemplo. O primeiro que
escrever um poema, será um cretino! Não há mais profissão marginal para se
ter neste país? Lavador de carro, está regulamentado? Wittgenstein teve a
brilhante idéia de deixar de ser professor universitário e vender pipoca. E ainda
houve um tempo em que ele era jardineiro num convento. Ele era um dos
professores mais brilhantes de Cambridge, mas, de vez em quando, se tocava e
ia arranjar uma profissão decente para ver se equilibrava as coisas.
P – Lacan lembra que se a psicanálise pudesse fazer alguma relação,
seria com as chamadas Artes Liberais.
Uma vez, lá na Escola Freudiana, comentando com Daniel Sibony sobre
a questão da regulamentação da profissão no Brasil, ele me falou que tinha
uma idéia já formada sobre isso. Deve-se procurar um fulano que, por exemplo,
seja um excelente sapateiro. Aí está um bom cara para se ser analista. Isto é
que deve decidir.
É muito difícil, hoje, enfrentar o Discurso Universitário. É o “mestre”
moderno, com a garantia cínica de não posturar nenhum S1 como agente. É “o”
saber como agente. Quando falamos frente a frente com um professor
universitário, às vezes temos medo de que nos morda. Ele tem uma coalescência
de saber da qual não pode se afastar, pois aquilo é verdadeiro, e, insistindo
muito, crê que é capaz até de me educar, de me transformar em alguém sério.
O que se escamoteia aí é, no lugar da verdade, a postura do S1, do ser-ele do
189
Ad Sorores Quatuor
190
Giratório dos discursos
agente... e ele nada tem com isso, só cumpre “a” ordem: –”Ordis é ordis!” É
parecido com o que Pierre Legendre aponta como o lugar da burocracia.
P – A religião não está perto disso?
Na Escola Freudiana, Pierre Chemama quis demonstrar que o discurso
do obsessivo é o Discurso Universitário. Ninguém gostou porque a demonstração
foi muito ruim, mas o discurso obsessivo deve estar por aí, perto. É o discurso
religioso que é obsessivo. A rigor, não sei se há muita diferença entre me referir
ao saber da escritura como conteúdo, como enunciado significado, e me referir
ao saber escrito, dito, a que se refere o discurso pedagógico. Lacan diz que o
marxismo é uma religião. O discurso universitário está solto pela rua...
P – Haveria diferença no método, pois o discurso de Marx estaria na
ordem do Discurso do Mestre. O efeito do marxismo é que virou uma
pedagogia.
Estou falando do marxismo, e não de Marx – que não era burro –,
desse marxismo que se coalesceu como uma religião que provavelmente tem
como suporte o discurso pedagógico. É aquele papo sobre um grupo de
intelectuais, de artistas, etc., que faz coisas para “conscientizar o proletariado”.
Ora, isso é pedagogia: vão lá ensinar como eles devem pensar. Conscientizar
significa: –”Vocês estão pensando errado, têm que pensar assim!” É uma luta
de discursos pedagógicos. E é claro que estão pensando errado mesmo...
P – Quem desempenha esse papel é o humanismo, de fazer algo “em
nome de”.
Trata-se de salvar o homem. Não sei para quê!
P – Nem que seja violento, mas isso não importa, pois a violência não
entra em jogo, o importante é salvar o homem.
Vejam, por exemplo, os escamoteamentos violentos que se fazem nas
propagandas da história. Hitler era um fdp que matou seis milhões de judeus...
mas esqueceu de matar o resto. De propósito, é claro, pois se matasse todos,
como existiria o nazismo? Então, já que não matou todos os judeus, ainda há
nazistas. Não nos espanta essa dialética? Eles estão aí de novo andando de
solidéu, se candidatando às Câmaras de Vereadores ou Deputados, etc., para
191
Ad Sorores Quatuor
poder levantar espigão, o que dá muito dinheiro. E isto não é anti-coisa alguma,
é a dialética da coisa. Como pode existir um discurso sem o outro? Até Hitler
sacava isso, porque deixava tudo na reserva. Os nazistas são racistas, e os
judeus não? Branco é racista, e crioulo não? Não dá para entender. Isto é que
é o escamoteamento ideológico.
14/SET
192
Gozo, prazer e transferência
9
GOZO, PRAZER E TRANSFERÊNCIA
193
Ad Sorores Quatuor
Lembro que tudo que colocar aqui como resposta será precário e parcial,
pois, nos tratamentos de Lacan, a questão do gozo, jouissance, é algo central
e é manejada nos mais diversos contextos, além de se referir a registros diversos
no campo lacaniano. Trata-se, pois, de saber como se pode, em base de registros
ou outra coisa, discernir o que é prazer e o que é gozo. Há também a outra
questão de saber se podemos afirmar que o que é chamado de ponto morto no
momento de transferência é referenciável ao gozo. Se pensarmos um pouco,
veremos que, ao tratar da questão do gozo, estamos mexendo na ordem
paradoxal do significante.
* * *
Podem estar certos de que os autores não sabem articular bem a questão
do gozo e do prazer, embora, nos textos, possa parecer muito clara. Todos
devem se lembrar, por exemplo, de um livro de Roland Barthes, Le plaisir du
texte (Paris: Édition du Seuil, 1973), já publicado em português, onde, baseado
justamente no seminário de Lacan, ele tenta fazer a distinção entre textes de
plaisir e textes de jouissance, textos de prazer e textos de gozo. Distinção
que absolutamente não é feita no texto dele, Barthes.
Tentarei encaminhar o que entendi do que coloca Lacan em relação a
esses dois termos, prazer e gozo. Ele não utiliza o termo jouissance num único
registro. No corpo mesmo do nó borromeano, que indica o entrelaçamento dos
três registros, real, simbólico e imaginário, ele o utiliza, pelo menos, duas vezes:
como jouissance phallique (gozo fálico) e como jouissance de l’Autre (gozo
do Outro). Quanto a este, às vezes ele diz que é o gozo do corpo do Outro, no
que o próprio corpo é Outro, considerado em sua alteridade. Vejo nos textos e
tratamentos dos termos lacanianos o grande perigo de se reportar as distinções
topológicas que Lacan faz constantemente a imagens, ainda que
metaforicamente bem construídas. Ou seja, quanto às precisões topológicas
que ele tenta estabelecer no corpo do ensino, procuram-se distinções, exemplos
didáticos, representações de imagens e metáforas que confundem a abstração
194
Gozo, prazer e transferência
que ele terá feito para situar a questão. Parece-me que, sem usar sartreanamente
o termo, há um processamento progressivo e um processamento regressivo
nisso tudo. Se, por um lado, é da experiência intersubjetiva do cotidiano ou da
prática analítica que posso me garantir dos construtos lógicos ou topológicos
em que eu queira esclarecer cada questão, por outro, é preciso também, depois
desses construtos mais ou menos ou precisamente elaborados, partir deles para
recolocar a experiência pelo menos tentando retirá-la de seu jargão cotidiano.
E o que quer me parecer é que há certo afã de transmissão da psicanálise, ou
da teoria psicanalítica, que pode piorar o que foi conseguido como construto
lógico. Cada vez que o sujeito coloca certos tipos de questões que querem
abordar os comportamentos cotidianos, ele se arrisca a deteriorar o construto
em sua elaboração custosa, a partir naturalmente da experiência, mas que,
justo por sua elaboração custosa, não deve regressar com a brutalidade da
exemplificação cotidiana.
Não estou a priori me colocando contra o que é situado nos textos,
mas confesso que estou um pouco perplexo com esse tipo de tratamento dado
às funções do pai e da mãe, que me parece, se não errôneo, pelo menos no
perigo de cair nos ouvidos como algo psicologizante. Não estou dizendo que
Leclaire seja um psicólogo, mas isto me dá certo mal-estar para tratar do tema.
Digo isso porque estamos aí no campo da manipulação de significantes, de
letras, de escritas do pensamento psicanalítico que se organizam em conjuntos,
determinando certa topologia discursiva, e que, ao menor rebatimento sobre
uma imagem ou sobre um enunciado fechado, perde toda a razão de ser, ou
corre o perigo de deteriorar o conseguido.
De qualquer modo, a relação entre prazer e gozo é uma questão
delicada, na medida em que, mesmo no corpo da teoria, é difícil estabelecer o
momento da diferença. Trata-se evidentemente de uma questão de diferença.
Então, como seria tratada a diferença no campo do prazer e no campo do
gozo? Leclaire, em outro texto, acho que em Psychanalyser, no que fala da
letra, coloca encontros, às vezes, de pequenos objetos parciais no corpo a corpo,
mostrando esse limiar, essa borda de toque. Dá o exemplo de um beijo, de
195
Ad Sorores Quatuor
língua no dente e coisas dessa ordem, ou seja, dois limiares de borda produzindo
o prazer do contato. Mas a questão é muito delicada, pois se o gozo, a partir do
que foi relatado do texto de Leclaire, é a ruptura de um limite, resta saber em
que sentido. O que é ruptura do limite senão o atingimento desse limite enquanto
tal, isto é, o percurso mesmo do limite? A questão é de uma grande ambigüidade
e, sobretudo, de uma tendência a expor, o que me parece ser o correto no
campo teórico, o paradoxal que vige no gozo.
P – [Pergunta sobre a Lei e o incesto].
É claro que o tema deve ser abordado por esse lado, pois estamos na
vigência da Lei. Mas que diabo é o incesto? Se a Lei é proposição de interdição
e de desejo, concomitantemente, ela tem a ver com o prazer e com o gozo. É no
regime da própria Lei que posso estatuir a relação prazer e gozo e, portanto, o
pretenso universal cultural que se chama interdição do incesto aí estaria em
jogo. No entanto, como o processo é lógico, me parece figurativo demais colocar
o corpo erógeno da mãe, fracionado em seus objetos parciais, como o lugar da
ultrapassagem da interdição. O incesto é nada mais nada menos do que o
enunciado da sua interdição. Onde não aparecesse um enunciado interditor do
incesto, o incesto não seria colocado. Então, não existe pensar o incesto a não
ser no campo de sua interdição.
Como o quê, então, é colocada a interdição do incesto? Não precisamos,
para isso, nem perguntar a Lacan, e sim a quem Lacan perguntou: Espinosa.
Quando este foi expulso da sinagoga, do mesmo modo, aliás, que Lacan da
Internacional de Psicanálise, uma das coisas que estava em jogo com muita
veemência era a questão da interdição do incesto, não enunciada desse modo,
mas enunciada sobre a mordida que Adão tivera dado na maçã, no texto bíblico.
Se não é toda a questão, pode ser considerada como aquela que representaria
todo o processo racionalista de Espinosa sobre as religiões. Ele diz algo muito
importante: é a ignorância de Adão que o faz supor que o enunciado de Lei,
pronunciado pelo Senhor, seja um enunciado de punição. A frase que diz “não
comerás do fruto do bem e do mal”, no texto bíblico e em outros desenvolvimentos
segundo a análise de Espinosa, se refere aos efeitos que teria Adão do
196
Gozo, prazer e transferência
197
Ad Sorores Quatuor
198
Gozo, prazer e transferência
* * *
199
Ad Sorores Quatuor
o nome daquele outro significante. Não posso, então, pensar a relação entre
prazer e gozo a não ser no jogo da diferença entre dentro e fora, o qual só é
distingüível miticamente. Isso quer dizer que só posso pensar o prazer como um
manter-se no limite dessa significação como se ela não extrapolasse pela própria
borda que apresenta. Ao passo que o gozo, se fosse possível, seria a extrapolação,
ou seja, seria vigorar na alteridade dessa borda mesma.
Trata-se do que já expliquei quando coloquei O Homem e A (barrado)
Mulher, de Lacan, e disse que o significante fálico, enquanto gozo fálico, pode
se remeter ao significante como arrolamento. Ao passo que, do outro lado, no
que é o objeto a que está em jogo, pode ser referido o mesmo significante
enquanto sua função de alteração, de alteridade, que Lacan chama gozo do
Outro. Lembrem-se que o que está do lado esquerdo da fórmula, Lacan chama
de gozo fálico, e não de prazer. Mas não posso supor, provisoriamente pelo
menos, a distinção entre prazer e gozo, a não ser no paradoxo desse limite,
dessa borda. Mesmo o prazer, a rigor, não pode ser mantido, pois, se há uma
falta é preciso uma função de não-querer-saber (méconnaissance, como chama
Lacan, e que significa mais que desconhecimento) para poder supor a vigência
do prazer. Isto porque, no próprio regime do prazer, o querer-saber do prazer já
remete à virulência do gozo, gozo este inatingível. É o que Lacan diz por duas
vezes. Em Télévision: “a quem joga com o cristal da língua... um ganso sempre
come o sexo” (p. 71-72). E em outro lugar: “o gozo é inatingível a quem fala
como tal” – ou seja, enquanto falante, o gozo é inatingível e insustentável. No
entanto, é essa função do gozo que pode fazer surgir a questão da alteridade do
significante.
Lembrem-se que a metáfora que fiz da elipse, quando falei em Nome
do Pai – e aí vem a questão da função paterna –, foi de um risco de circunscrição.
A palavra risco com dois sentidos: de traçado de uma borda e de correr o risco.
É o risco que, ao mesmo tempo, arrola e omite: produz a elipse, o ato paterno.
Isto é a função paterna, produtora de metáfora, ou seja, é metáfora, na medida
em que arbitrariamente faz a passagem do significante ao significado: nomeia o
conjunto com um significante qualquer. O risco, que é metafórico no que coalesce
200
Gozo, prazer e transferência
201
Ad Sorores Quatuor
* * *
202
Gozo, prazer e transferência
* * *
203
Ad Sorores Quatuor
204
Gozo, prazer e transferência
205
Ad Sorores Quatuor
dos Anjos em seu Monólogo de uma sombra: “Que a mais alta expressão da
dor estética / Consiste essencialmente na alegria”.
P – O ato poético tem a ver com correr o risco...
O ato poético é algo que tem a ver com a função paterna, portanto com
a Mulher. É aí que vem a diferença.
P – ....mas se o risco for explodido não é o caso de psicose?
O risco não é explodido, e sim repetido, apontado. Não se trata de explodir
o limite, mas de percorrê-lo. É muito delicado vincular isso à psicose. Lacan foi
claro quando disse que uma análise levada até ao extremo só tem como fim a
psicose. Ele deu o seu depoimento: Moi, je suis psychotique. Portanto, não é
preciso ninguém chamá-lo de psicótico, ele mesmo já o fez. Há coisa mais rigorosa
do que uma psicose? Mas alguma pequena diferença há e deve ser destacada.
Aliás, um dia essas palavras deverão ser trocadas de lugar, pois assim como
Freud apontou para um negócio chamado inconsciente e mostrou sua estrutura,
também mostrou que o inconsciente não é propriedade privada do neurótico, nem
de fulano ou sicrano, mas é a estrutura da coisa. Então, o que me parece – e
estou correndo um risco grave ao dizer isso – é que Lacan está mostrando que
existe uma estrutura chamada psicose. No que aprontou o inconsciente, Freud
demonstrou os mecanismos da neurose. Digamos que é como se seu problema
fosse a neurose. Pois bem, o problema de Lacan é a psicose. Ele veio demonstrar
a vigência psicótica do falante. O falante é o ser psicótico. É claro que ele se
tranca numa neurose qualquer para não querer saber disso – é seu modo de
garantir os prazeres locais. No entanto, isso que chamamos de psicótico talvez
seja essa mesma coisa sem referência ao significante que Lacan chama Nome
do Pai. É como se fosse a realização do Nome do Pai, sua alucinação. Ou seja,
cai no registro do real. Isso é que é a foraclusão do Nome do Pai. É o que lhes
mostrei antes e que tento representar dizendo que uma coisa é correr o risco
sabendo que é risco, outra, é supor que o risco é real. Mas tudo isso ainda está
muito não-sabido, precisa ser desenvolvido.
Nós outros, que nos supomos não-alucinados, embora todos sejamos
um pouco – sem alucinação, não há constituição do verbo –, talvez imaginemos
206
Gozo, prazer e transferência
28/SET
207
Ad Sorores Quatuor
208
Prazer, gozo, etc.
10
PRAZER, GOZO, ETC.
209
Ad Sorores Quatuor
* * *
210
Prazer, gozo, etc.
211
Ad Sorores Quatuor
* * *
Vamos agora à tal função da mãe, analisada por Leclaire. Como acho
que ele a deixa ambígua e mal definida, não falarei do que ela seja em seu texto,
mas me referirei a ela e direi do meu modo. É, pois, a função de que, na verdade,
mãe já é metáfora de determinado conjunto de objetos, de significantes, o que
quiserem, com o qual determinado sujeito quer se recobrir na repetição desse
conjunto porque se mantém numa segurança da ordem do destensionamento.
Isto, aliás, é como Freud define o princípio do prazer: é homeostático. Façamos,
212
Prazer, gozo, etc.
então, de conta que temos como sendo esse significante uma série de círculos
concêntricos. É como se jogássemos uma pedrinha numa superfície de água
estagnada e obtivéssemos uma série de significantes relacionados uns com os
outros:
213
Ad Sorores Quatuor
* * *
214
Prazer, gozo, etc.
dialetizar todas as interpretações para que o desejo venha à tona. É claro que
vem como certo enunciado de uma fantasia. Mas se a fantasia começa a falar,
ela remete para o real. Aí, a pessoa pode se desancorar da mãe.
O que é importante saber sobre o sonho, Freud já o dizia, é qual o
desejo que o sonho está não dizendo no que diz. E enunciar qual é o desejo é o
bastante para que ele não mais o seja, desejo. Este é o drama. O importante em
alguém descobrir qual é o desejo que está enunciado em seu prazer é que, ao
dizer, ele cai de sua posição de desejo e exige uma posição de desejo, ou seja,
procura o gozo. É por isso que ele tem que dizer as demandas, os pedidos,
aquilo que vem no lugar do desejo. Isto, para a demanda desabar e só restar o
desejo. Lembro a vocês que a psicanálise nada tem para ensinar ou pregar a
respeito dos comportamentos, muito menos do comportamento sexual. Se a
sexualidade é o núcleo da psicanálise, é sexualidade enquanto estrutura. A
psicanálise até hoje não soube dizer nada de novo sobre a sexualidade enquanto
comportamento. Para ela, o que há são estruturas e discursos para ler, nada
mais.
215
Ad Sorores Quatuor
216
Prazer, gozo, etc.
217
Ad Sorores Quatuor
mesmo pode ser uma escola, pois deixa de ser psicanálise e passa a ser igreja
ou coisa parecida. Se constituir aqui um terreno para ser minha fazenda e
disser que o campo freudiano termina aí, acabei com a essencialidade do campo
freudiano, que é traçar o horizonte, vigorar no regime do desejo, do risco, do
traço, da borda. Para estar próximo do pensamento psicanalítico, é preciso, por
exemplo, ficar no discurso de Lacan não por mera pirraça, mas para estar no
desejo de continuar dizendo. A mera referência ao campo já traçado é vigorar
no regime da Lei, apenas. Então, é preciso atravessar esse campo para saber
que ele não me serve como campo.
Leclaire diz que a interdição do incesto não é senão a colocação da
existência do incesto. Já cansei de dizer isto, mas, segundo ele, quando o sujeito
avança sobre o corpo da mãe e quer cometer o incesto, ele entra na explosão
do contorno. É justo desta metáfora que não gosto, pois acho que confunde.
Não vejo nada a criticar no fato de que, se explode o contorno, está no regime
do gozo, ou seja, fazendo vigorar o desejo. Mas é preciso desenvolver, pois fica
mal entendido na medida em que se fala de “explosão”. Como já lhes disse, o
incesto não se comete. Ele não é proibido apenas, é impossível. E agredir
desejosamente o campo materno é simplesmente perder a mãe, não é encontrá-
la. Observem que se quiser atravessar com suspensão o campo do regime do
prazer, e não apenas me referir centripetamente a esse mundinho de prazer
que me equilibra, extravasarei o limite. É o que Lacan diz quanto ao limite ser
do prazer, da Lei, mas isto no sentido do que está limitado, pois a borda, a
fronteira, é da ordem do paterno. E quando atravesso a fronteira, não preciso
dizer que é explodida, e sim que salta de lugar. Isto pela simples razão de que,
se me locomovo de minha posição sintomática, o horizonte muda de lugar. Aí,
estarei no regime do desejo, do gozo. Mas não pensem que fico aí. O drama é
que, se uma vez cometi o ato poético – no sentido do que chamo de ato poético
– de deslocar o círculo, a elipse de circunscrição de meus significantes de base,
fazendo perder o sentido momentaneamente, logo em seguida caio no sentido
de novo e traço outra fazenda. Já é outra, mas nem por isso deixa de ser uma
fazenda, um terreno maternalizante de novo.
218
Prazer, gozo, etc.
* * *
219
Ad Sorores Quatuor
220
Prazer, gozo, etc.
Neste ponto, Lacan faz a distinção entre amor e paixão. É muito difícil
alguém passar ao regime do amor, que é a única saída que há (e isto sem ser
cristão). A paixão quer murar o objeto, quer que ele seja estritamente aquilo,
parado e possuído ali. E mais, aquele que está apaixonado quer também ser a
mesma coisa para o outro. Já o amor, segundo Lacan, não é isso, é estar
interessado no sujeito, o que é representá-lo de significante para significante.
Então, a maioria das coisas que falamos e chamamos de amor nada tem a ver.
Afinal, quem está interessado no sujeito do outro? Por isso, Lacan pergunta: o
que é desejo do analista? É o desejo vigorar fora da Lei, fora dos enunciados,
único lugar onde o amor é possível.
Outro dia, uma analisanda me dizia: –”Estou lhe pedindo para me explodir,
para me fazer nascer, ou melhor, para me fazer renascer, pois estou presa,
amarrada, afogada”. Vejam a demanda que está na metáfora desta pessoa
(que não tem a menor idéia de quem seja Lacan). Ela falava da mãe nesse
momento. Acontece que ela é homossexual e vive com outra, a qual confunde
constantemente com a mãe, não sabe bem a diferença. As relações inconscientes
são para lá e para cá, uma hora é mãe, outra, filha. Há um mês atrás, conta ela
que estava na cama fazendo sexo – que ela diz que é “fazer amor” – e, num
rompante que não soube explicar, disse para a outra: –”Vou meter meu peru na
sua xota”. É espantoso como ela formula o que é o amor, mas de dentro do
sintoma. É a fórmula que Lacan dá para o amor: dar o que não se tem. O que
não se tem? Liberdade, por exemplo. O que não temos, e mesmo quando
estamos nele, não o temos? O ato poético. O Ato. O que não se tem? O objeto,
A Coisa, das Ding... Então, ela prometeu dar o que não tinha, pois supôs que a
outra estava requerendo. Ela caiu na fórmula do amor. Sabem o que aconteceu?
Daí para a frente não consegue fazer o sexo a que estava acostumada sem
ficar com muita vergonha. Ela tocou no que Lacan diz que é a Hontologia que
a psicanálise pode mostrar: a Vergonhontologia. Mostrou que há uma falha,
uma brecha, mas tudo isso só como bandeira de liberdade, por enquanto. No
nível do imaginário do corpo, o que disse foi: –”Quero te amar, mas não posso”.
Por quê? Isto faz parte da confusão que faz de sua parceira com a mãe. Afinal,
221
Ad Sorores Quatuor
estamos numa sociedade que fala em amor materno, amor de mãe... Mas o
que é isso? A mãe só dá o que tem.
Observem a dicotomia que Lacan faz entre Lei e desejo. A metáfora
paterna, que é o que constitui o terreno, o corpo da mãe, é portadora da ordem
do desejo. Quando o pai mostra o terreno e diz que tudo será do filho, o que está
transmitindo? O terreno ou o horizonte? No regime neurótico, nos aferramos às
posses do terreno, quando, na verdade, estamos recebendo o horizonte. O que
o pai oferece? O incesto. Ele diz que tudo será do filho, como se tivesse cometido
o incesto, mas isto é impossível. Por isso, quando Leclaire diz que estamos
numa Social Incestocracia, acho ambíguo demais para ser colocado a quem
não conhece nada de psicanálise ou de Lacan. Só poderíamos falar em Social
Incestocracia na medida da utilização do corpo da mãe: mamar e outras coisas
que a mãe tem para dar. Isto porque, no mesmo ato paterno, vai o desejo e o
corpo da mãe. Então, é (não errado, mas) perigoso chamar de Social
Incestocracia, pois se trata do contrário. Justamente o que não se comete em
nossa cultura é o incesto. Pensa-se que ele é proibido por alguém, mas esquece-
se de que ele deve ser tentado porque é impossível. É a metáfora que faz
Antônio Callado, sabendo ou não, no final de Quarup, quando descreve o Brasil
como se fosse o corpo de uma daquelas mulheres de seu texto. Trata-se, lá, de
avançar sobre aquele corpo e fazê-lo gozar gozando. É exatamente atravessar
esse corpo para o outro lado. Édipo cometeu o incesto, ou seja, não conseguiu
– mas ele foi lá para isso. Entender mal a interdição do incesto é supor que a
Lei não é portadora de desejo. A mãe é proibida. Pronto! Não se pensa mais
nisso?! Não! É proibida para não se pensar em outra coisa. Ela só desaparece
quando atravessada. Se não, qual era a graça?
Então, retornando: prazer, desejo ou gozo? É preciso entender o
significante como banda de Moebius. No que o percorro, passo para o mesmo
lado, mas revirando Lei/Desejo. Lei é o enunciado. Todo enunciado é Lei.
Pode não colar, mas é. Quando Lacan diz que o ato poético, a produção do
poema, é por excelência a produção de metáfora, pode parecer espantoso, pois
estamos vendo que a metáfora está do lado do sintoma, da Lei, do prazer. Mas
222
Prazer, gozo, etc.
não é a metáfora que é a poesia, e sim sua produção. Quando fazemos o risco,
fazemos o terreno. Assim, quando Freud produz o campo freudiano, faz um ato
poético, mas, infelizmente, teve uma filha que acredita que é o terreno...
Vejamos agora o nível ético. O incesto só aparece como interdição – é
claro, se não, não se pensava nisso –, mas, quando há a interdição do incesto, o
que está-se dizendo? Que deve ou não ser cometido? Cometer o incesto não é
dormir com a senhora sua mãe. Na verdade, o fundamento ético só pode estar
no seguinte: o incesto é proibido, logo devo cometê-lo, se não, não percebo que
ele é impossível. Isto porque, ao cometê-lo como dever de ir lá – wo Es war,
soll Ich werden –, vou encontrar o desejo, vou traçar de novo o limite, produzir
metáfora. Por isso, achei perigosa a nomeação de Social Incestocracia. Todos
que não estão curtindo este tipo de discurso que lhes apresento aqui vão entender
como uma referência ao enunciado da Lei. Penso que, em nossa cultura, não
se vigora na Lei da interdição do incesto, mas se crê em seu enunciado, o que
é muito diferente. O que caracteriza a cultura ocidental é que o enunciado “a
mãe é proibida” é lido como se não tivesse outra face. Com isso, vive-se no
logro do enunciado. Vigorar na Lei é saber que ela foi enunciada, ou seja, que
há uma enunciação por trás, e que, se chegou a ser enunciada, é porque é um
ato de mestria, que é necessariamente de impostura.
* * *
223
Ad Sorores Quatuor
224
Prazer, gozo, etc.
desce, ou seja, torna homeostático. No caso do Tantra, por exemplo, é como se,
num modelo qualquer adscrito à carne, tentasse produzir uma assíntota do gozo,
uma curva que tende a tangenciar outra, sem jamais encontrá-la. O Tantra
tenta não chegar ao orgasmo, não deixar que ele aconteça. Segundo sua dica
religiosa, o que eles querem é anular o prazer, ou seja, manter de pé o desejo de
alguma forma – literalmente de pé, aliás. Lacan diz que “a quem fala o gozo é
impossível”, mas é possível empurrar o limite do gozo para mais adiante. Isto
significa algo da mesma ordem de fazer uma assíntota, pois, na relatividade das
duas curvas, qual está sendo empurrada? É a mesma coisa que ampliar o limite,
porque, quando cometo o ato poético, que é uma intencionalidade de incesto,
não posso fazer mais, pois, se fizesse, cairia em outra elipse. Então, o gozo não
se deu. O que fiz foi outra metáfora: no que fiz metonímia. Se o gozo fosse
possível, acabariam metáfora e metonímia. Seria o Nirvana absoluto, que é o
que o budismo pretende alcançar. A única metáfora que temos para isso é a
Morte, da qual não se sabe dizer coisa alguma, pois ninguém que supomos –
mera suposição – ter passado por ela pôde nem mesmo talvez ter acesso a isso,
quanto mais nos dizer depois. É claro que há uns modos delirantes de testemunho.
Fulano morreu e os espíritas colhem umas falas do lado de cá e dizem ter vindo
de lá. Há uma porção de depoimentos das mortes, mas, quando examinamos
bem, vemos que não há morte alguma, pois funciona como se estivesse do lado
de cá. Só temos a suposição de morte, pois, no regime do significante do lado
de cá, enterramos o sujeito como um significante, um S1, um resto unário. E
esse resto, porque está lá e já percorreu aqui, continua criando muito problema
do lado de cá.
P – Lacan reverte o dito de Dostoievski ao colocar que, se Deus está
morto, nada mais é permitido. Então, se Deus está vivo, tudo é permitido?
Não necessariamente. Fiz a seguinte brincadeira num texto: “Ele está
muito vivo”. Não sei se Ele está vivo, mas muito vivo está. O que Lacan está
mostrando é que não há outra forma de situar isso que se tratou como Deus a
não ser na onividência do Outro: estamos cercados de significantes, estamos
cercados pelo Outro. Então, o que chamam Deus é não sacar que Deus é
225
Ad Sorores Quatuor
inconsciente, ou seja, é o Outro. Então, segundo Lacan, ser ateu não é dizer
que Deus não existe, e sim que Deus é inconsciente. Por isso, Lacan é ateu.
Se há o Outro, ou seja, se Ele está muito vivo, tudo é permitido. Então, se o
Outro há, o incesto é permitido – só que ele é impossível. Isto porque enunciar
corretamente o incesto é dizer o impossível do incesto, o real que vige no incesto
e que é impossível de ser tocado. Mas como é impossível dizer o impossível do
incesto, acaba-se dizendo um pedaço, uma região, uma banalidade que se chama
Lei, que é sempre proibitiva, limitatória. Então, fazer vigorar a Lei é sabê-la no
regime do limite, e não crer que o enunciado seja totalizante. É o que os estudantes
escreveram nos muros de Paris em maio de 68 e que Leclaire coloca como
epígrafe de um de seus livros: Soyez réalistes: demandez l’impossible! –
Sejam realistas, peçam o impossível! Isto é que é Lei, pois quando pedimos,
exigimos, demandamos o impossível, não fazemos mais do que um pedido, um
enunciado, no entanto, continuamos pedindo. Cuidar de seu próprio desejo é
querer o impossível... o impossível de realizar o desejo.
P – [Sobre a censura e a verdade].
A censura é produzida pela verdade. A censura não censura a verdade,
é a verdade que censura. Como vamos dizer uma verdade do tipo “o rei está
nu”? Isto não se diz, pois é verdade. Dizer a verdade é exibir o Discurso do
Senhor, tirar suas calças em público. Quando, em análise, dizemos a verdade,
ficamos sem calça. É uma vergonha, pois dissemos a verdade que nos comanda.
Por que a censura corta alguma coisa? Porque é verdade. Se fosse
evidentemente mentira, não precisaria cortar, pois todos saberiam que é mentira.
Mas como vige uma verdade lá, há que cortar. Foi isto que Freud denunciou
como censura. Por que o analisando não pode dizer a verdade? Porque é verdade.
Se não, poderia dizer. Então, por estar lá, a verdade censura o dito. No entanto,
o inconsciente produz marotagens como o ato falho, etc., em que a verdade se
diz nas entrelinhas. Ou seja, se inter-diz: diz como legislação proibitiva de dizê-
la. É o momento da Verneinung que também participa disso. Se disser “vou
falar o que não sou”, aí falarei com muita franqueza no nível intelectual. Lacan
diz que não há paradoxo na frase “eu minto”. Pode-se dizê-la perfeitamente.
226
Prazer, gozo, etc.
Se afirmo que tudo que acabei de dizer é mentira, estou dizendo uma grande
verdade, logo é impossível deixar de dizer a verdade. Podemos não saber lê-la,
mas basta falarmos, para dizer a verdade. Eu é que sou trouxa, me engano: –
“Nunca esperei isso de você!” Só porque sou babaca. Se soubesse ler,
esperaria...
12/OUT
227
Ad Sorores Quatuor
228
Escrevidão
11
ESCREVIDÃO
– Isto posto, vou falar dele, Magno, através de seu livro Sebastião do
Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Colégio Freudiano/Tempo Brasileiro, 1978). É
um livro de poemas que acaba de ser lançado e que me intrigou muito, pois nele
temos a tentativa de retomar um projeto de Fernando Pessoa: “...um pequeno
livro que percorre o círculo do fenômeno amoroso. E percorre-o num ciclo, a
que poderei chamar de imperial. Assim, temos: (1) Grécia, Antinous; (2) Roma,
Epithalamium; (3) Cristandade, Prayer to a Woman’s Body; (4) Império
Moderno, Pan-Eros; (5) Quinto Império, Anteros” (Obra Poética. Rio de
Janeiro: Aguilar, 1969, p. 587). Tratava-se, para Pessoa, de resumir a questão
do amor através deste Ciclo Imperial dos Cinco Impérios.
O livro, portanto, é a retomada deste projeto que, curiosamente, mas
não sem razão, se faz através do texto que o autor nos diz ser de um outro. No
caso, um certo J.M., que é escolhido pela sua paixão de M.J. Assim, é escolhido
pela especularidade através da qual ele vive sua relação amorosa, e, sendo
projeto e texto de um outro, o livro vai se estruturar para dizer não o amor de
J.M. para M.J., mas o amor de Eraste a Eromeno. Isto, obviamente, porque se
trata do Primeiro Ciclo Imperial, o da Grécia. Ou seja, o livro é o início de um
projeto – com mais quatro textos a serem escritos – e se encaminha para o fim,
229
Ad Sorores Quatuor
onde se lê: “Para OUTRO: No que, sem ti, à beira-letra, tresobrigado a meviver,
em pura escrevidão, grafando um chiste” (Sebastião, p. 121).
O que me intriga é que o texto, através do amor entre os amantes – e
fundamentalmente o amor é impossível de ser Um, de ser o amor da semelhança
–, tematiza um outro amor, que seria o amor do Outro. Amor próprio a isso que
o autor chama Escrevidão. Lembro aqui que é na medida mesmo em que o
Um se sustenta através da essência do significante, e que o amor é o desejo
impossível de ser Um, que Lacan diz que o amor é o evento de um dito. Não
fosse um dito, o amor não existiria. Ele é impossível de todo jeito, com ou sem
dito, mas, sem dito, não existiria. Lacan também correlaciona três termos: o
Um, o ser e a fruição. Vemos aí a razão da impossibilidade de ser Um, a saber,
que o amor supõe a fruição, que esta supõe o sexo, e que, quanto ao sexo, há
dois (que não fazem Um). Pareceu-me interessante mostrar que o texto de
Magno tematiza o amor da semelhança – i.e., o amor dos amantes, o amor de
Eraste a Eromeno – para dizer o Outro amor, o amor do Outro, e que o suporte
do amor da semelhança é a identificação. Quer dizer, o suporte do amor é a
vivência especular do outro que se espelha em mim no ato mesmo em que me
espelho nele.
Se tomarmos a formulação mais geral de Lacan, em que diz que o
amor é o desejo impossível de ser Um, o Outro de que se trata na Escrevidão é
o Um. Ou seja, a Escrevidão tem como referência o que Magno, em Senso
Contra Censo: da Obra de Arte (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978),
havia grafado como: $entido da obra. Ele quer dizer que o Outro, que é a razão
da Escrevidão, é o Um enquanto sentido: o sentido inalcansável que a escrita
busca, enquanto onipotência do sentido, ou sentido da onipotência, e que engendra
todos os outros sentidos no ato através do qual o sujeito, dizendo-se no processo,
designa a própria falta. O sentido inviável seria, portanto, o motor da Escrevidão,
que nada mais é do que o percurso do sujeito, o qual é o percurso do impossível,
pois o sujeito se eclipsa no ato mesmo através do qual ele se diz ou existe.
Sujeito é o que está entre dois, e, ao existir no significante que o diz, ele se
eclipsa, é como aquilo que se pesca na “pesca milagrosa”, de que fala Clarice
230
Escrevidão
231
Ad Sorores Quatuor
232
Escrevidão
* * *
233
Ad Sorores Quatuor
como obra. Uma obra apresenta, em fim, uma letra que é posturada em
significante, é insignificante, ou seja, é a perda de sentido na pura escrita de um
significante que é a que se resume a obra. Esse significante sem sentido, ou
com potencialidade de não-senso, pode ser nada mais nada menos do que o S1
a que chega a análise – e é só até onde ela pode chegar – reconhecido como
pura letra, portanto, sem sentido. Isto é do mesmo escopo que a psicanálise.
234
Escrevidão
235
Ad Sorores Quatuor
Mas vira voz, pura voz. Esta é uma questão que me parece absolutamente
não abordada.
BM – O analista pontua. Quem, na relação entre o leitor e a obra, pontua?
Foi o que tentei mostrar, citando mesmo Lacan, ao afirmar que a obra, no
final, é uma pontuação sem texto. A questão é: que acidente rege o surgimento da
pontuação na análise e que acidente pode reger o surgimento da pontuação diante
da obra? Isto deve ser pensado a partir do chamado tempo lógico. O de que
apenas desconfio, para ser precipitado, é que, sem garantia alguma de qualificar
isso, posso fazer a suposição de que uma análise se dê diante de uma obra. Para
o que procuro o testemunho do próprio Freud, sobre o qual se discute a
interminabilidade de sua análise. Então, se posso supor que, na obra, existe uma
pontuação sem texto, o que impede, enquanto analisando diante da obra, de ser
pontuado eventualmente por ela? Não vamos supor que toda análise seja bem
sucedida, nem diante do analista. A rigor, o término como fantasia fundamental,
só podemos dizer que ela é fundamental na medida em que é tradução da fantasia
fundamental que não aparece. Se não, Lacan não escreveria S1 para o término
da análise. No fim da análise, vai-se inventar a fantasia fundamental. Ela é um
construto. Caso contrário, cairíamos na crença: “Eureka! Achei a fantasia
fundamental”.
BM – Na verdade, a fantasia fundamental só pode ser dita em relação à
situação analítica. Ela não é a fantasia fundamental que me determinou
enquanto sujeito, pois, para supor isto, eu teria que supor que o significante
tem uma significação única, que existe uma relação biunívoca quanto à
significação. A fantasia fundamental é o construto fantasmático que
determinou meu processo analítico. É efetivamente um construto do
analisando. Quer dizer, no momento em que o analisando apreende a fantasia
fundamental, ele, na situação analítica, passa a ocupar a posição do
analista. Ele é quem passa a fazer os construtos.
Eu diria que é, afinal de contas, a psicanálise como sintoma desse
analisando. É quando ele troca qualquer sintoma pelo sintoma que se chama
psicanálise.
236
Escrevidão
* * *
237
Ad Sorores Quatuor
238
Escrevidão
239
Ad Sorores Quatuor
* * *
240
Escrevidão
241
Ad Sorores Quatuor
S1 não encontra sentido em parte alguma. Mas ele até poderá dar sentido a
isso, justo porque encontrou sua falta de sentido. Ele pode dar muitos sentidos,
mas não todos.
Vejo, portanto, algo um pouco mais pernicioso no texto de Guattari e
Deleuze. Para eles, o que positiviza o Outro, o objeto a, o sujeito, é não terem
relação falante, quer dizer, de significação, com esses elementos pois só
encontram esse S1 com sentido e para trás nada tendo sentido. Então, dizem
eles: “Viva a liberdade!” Ou seja: “Para que fazer análise? Cada um que pegue
seu sintoma e guerreie com ele daqui para lá!” Já a postura lacaniana é de dizer
que assim não há liberdade. Só há liberdade quando posso fazer o que for
preciso, mas não tudo, a partir do encontro com a falta de sentido. Até se pode
fazer o que quiser, mas a psicanálise não diz o que se deve fazer, pois não é
política. Aí está uma diferença radical, pois é sublimação enquanto renúncia.
Ou seja, posso renunciar porque isso não tem sentido.
BM – É o nível de distinção que é preciso fazer entre poder e autoridade.
Se “a cada um, seu sintoma”, se não existe uma barra sobre o A – ou seja,
se existe uma garantia da verdade –, se o não-senso não existe, o discurso
que se produz, o discurso libertário, é um discurso de poder. O que ele
afirma é determinada significação de S1, que é a verdade desse discurso
que se produz enquanto discurso dogmático. No caso de Lacan, o discurso
não pode ser dogmático, na medida em que o S1, ao qual fica suposto o
sujeito, tem como referência o lugar da palavra como lugar que torna a
palavra ambígua. Isto porque não há verdade em última instância. O que
há é uma meia-verdade se dizendo através da mentira. Esse ponto é capital
para distinguir um discurso dogmático, que não é próprio apenas dos
discursos políticos, mas também de certos discursos psicanalíticos.
Sobretudo, discursos que, em nome desse libertarismo, fazem supor que
são contrários ao behaviorismo, mas que, em última instância, são apenas
discursos behavioristas que visam à modificação das condutas trazendo
palavras de ordem, até mesmo aquelas de um sindicato.
242
Escrevidão
26/OUT
243
Ad Sorores Quatuor
244
Hiância
12
HIÂNCIA
245
Ad Sorores Quatuor
A escrita da partição do discurso d’A (La) Mulher, que não existe, está
entre o significante faltoso do Outro e a posição do sujeito referenciado ao falo.
É a escrita do significante de uma falta no Outro na medida que esse Outro
sofre da mesma hiância que se representa na postura de sujeito de significante
para significante. Quando Lacan diz que “A Mulher não existe”, o sentido lógico
é que, do lado da Mulher, não existe nenhum que não seja função fálica (~x
~x). Isto, como uma designação íntima à psicose. Diz ele que um homem só
encontra uma mulher na psicose... Enquanto que a função fálica, referenciável
ao significante unário, S1, estatui o discurso do homem, ou seja, do falante
enquanto referenciado à função fálica, no discurso d’A Mulher, que não existe,
como acabei de dizer, não existiria nenhum que não fosse função fálica. Isto é
mostrar que o Outro – ao contrário de todos os sistemas englobados por um
círculo de Euler, no caso da teoria dos conjuntos – é vazado. A hiância é, pois,
a estrutura mesma do Outro. Logo, A não existe, é não-todo, é furado. Por isso,
A Mulher não existe. Não há possibilidade de totalizá-la, pois o que temos é, do
lado esquerdo na fórmula, a Mulher enquanto Homem falante e, do lado direito,
o que seria a alteridade radical do feminino. O que mais não existe nesse feminino
que seja da mesma ordem de hiância que A Mulher? A Linguagem ou A Língua.
Se procurarmos a estrutura da língua – e está aí Chomsky que não nos deixa
mentir –, cairemos nessa hiância, como ele caiu. Do mesmo modo, A Verdade,
ou seja, o enunciado que diria a enunciação, também não é possível, pois recai
na hiância. E o que tem a ver a Causa com a hiância? Esta brecha é posturada
no pensamento de Lacan como o ôntico, e não o ontológico. Assim, o que é
radicalmente remissível a qualquer função de ser para o falante é a hiância.
Por causa dela, há uma perda de mais-gozar, de um objeto inapreensível, o qual,
como referência da hiância, passa a ser causa de todo e qualquer movimento
na ordem metonímica dos significantes.
Nesse ponto surge uma questão muito interessante, que é o porquê de
certas viradas lá na Escola Freudiana de Paris. Todos se lembram da questão
de Serge Leclaire, no Congresso de Bonneval, invertendo perigosamente a
formulação lacaniana, ao afirmar que o inconsciente é condição da linguagem.
246
Hiância
247
Ad Sorores Quatuor
248
Hiância
* * *
249
Ad Sorores Quatuor
recorrer ao real é aparecer como um dedo cortado? Por que não o nariz? É um
elemento qualquer imaginarizável no nível de reflexão corporal, e o sujeito depõe
aquele objeto. E isto já é algo estranho na estrutura da teoria. Observem bem o
fenômeno: não simbolizado, caiu no real, foi foracluído. Ser foracluído é não
existir? Não, pois mesmo o que é foracluído funciona em apegos de cadeia
significante. Se não, caímos nos radicalismos de fazer setorizações – que nunca
mais retornam e, daí a pouco, teremos uma gramática e uma geografia dos
acontecimentos do Inconsciente e viramos psicólogos. Ser foracluído significa
que teria (ou terá) tido possibilidade de ter entrada na cadeia significante. Se
não, não poderíamos jamais pensar na possibilidade de cura da psicose. Isto
porque, no campo do Outro, a coisa está simbolizada. O sujeito foracluiu de seu
registro simbólico, mas ela está lá simbolizada em algum lugar e se promete e
se promove como real porque não é aceita como símbolo. Ou seja, nas cadeias,
foi foracluída do simbólico, mas não do Inconsciente.
Acabei de falar algo de que ninguém reclamou e que é, talvez,
incompatível com o que Lacan disse. Se o Inconsciente depende do simbólico
puro e o foracluído do simbólico cai no real, como algo pode ser foracluído do
simbólico e viger dentro do Inconsciente? Como sair dessa topologia? Não
estou dizendo que não possamos, só estou perguntando como. Se não, olhamos
para um psicótico e pensamos que lhe falta um parafuso, como dizem. Se falta,
então não há jeito. Mas quando digo “falta um parafuso”, falei que parafuso há,
faltoso. Vejam que não há escapatória do conceito de significante. Não vamos
cair na bobagem de supor que o sujeito cuspiu fora do simbólico alguma coisa e
que, portanto, aquilo se perdeu para além do horizonte do objeto a. Como pode
ser foracluído um significante que não é significante? Só se pode falar em
foraclusão no regime de encadeamento simbólico do sujeito em questão. Por
exemplo, a legislação vigente diz que “o desconhecimento da lei não implica
inocência”. Então, o sujeito é suposto conhecer a lei porque ela está em algum
lugar do campo do Outro, funcionando encadeadamente com as séries
significantes. Se um elemento seu qualquer está foracluído como significante,
nem por isso ele deixa de estar, digamos, imantado nas cadeias que não estão
250
Hiância
foracluídas. Tanto é que ele procura onde se ajustar, onde se assentar, recaindo
no campo do real e pintando como imaginário. Pensar a foraclusão como alguma
coisa fora, é pensá-la como algo fora do regime do Outro, mas não há coisa
mais fora do que o Outro.
Vamos mais longe. Se digo “A Mulher não existe”, posso, tal qual o
personagem português de Guimarães Rosa, perguntar: como não existe, se
estou falando dela? Neste ponto, a lógica corriqueira, a mais aristotélica, não
pode aceitar a negação sobre o quantificador universal: não-todo é função fálica
(~x.x). Não pode aceitar porque o não-todo, no sentido da lógica corriqueira,
seria apontar uma inexistência radical, uma não tangenciabilidade pela fala.
Todavia, se posso dizer “não-todo”, já o estou colocando em regime de
significante. Então, por que A Mulher não existe? Ela é não-todo enquanto
alteridade, pura borda de significante, não-senso. Lacan jamais barrou a palavra
“Mulher”. Barrou o quantificador universal (~). Vejam que nem foi apagado,
pois quando se diz de um ponto com pretensão de universalidade, estamos nos
referindo a algo que é dividido em si e que se altera a cada passo. Então, não se
pode falar em universal de ponto algum de nossa fala. Isto, do mesmo modo
que os lingüistas se perdem na tentativa de conquistar A Linguagem. Se A
Linguagem é condição do inconsciente e ela não existe, então o que é condição
do inconsciente não existe. Quer dizer, não existe porque não pode assumir
existência de enunciado. Não pode ser enunciado, logo, não tem existência.
Qual é a existência da enunciação? É seu semi-aparecer no enunciado. A verdade
se semi-diz. Não podendo dizer a falha, a hiância, digo algo no lugar dela. Por
isso, Lacan diz que não há fala fora da metáfora, querendo também dizer que
não há fora da metonímia. Voltando à nossa construção inicial sobre o sintoma,
só se pode falar em termos de sintoma porque não se pode falar daquilo que
chamei de folia originária (Lacan não tem responsabilidade nisto). Como
aquilo não pode ser dito, pois o paradoxo não se diz, diz-se alguma coisa no
lugar: metaforiza-se. Isto é que é dizer que a linguagem é condição do
inconsciente. Ou seja, que a hiância é condição da metáfora, que a enunciação
é condição do enunciado.
251
Ad Sorores Quatuor
Se formos traduzir deste modo, o que Leclaire nos diz é que o enunciado
é condição da enunciação. Até poderíamos dizer que a criança cai num campo
de enunciados, onde ela percebe – e agora já estou saindo da postura que seria
a de Leclaire – um desejo que corre e, por isso, ela recai numa enunciação a
partir dos enunciados. No entanto, falo com os cachorros e eles não têm
enunciação. Qual é a diferença? Por que o cachorro não fala comigo, por mais
que eu fale com ele? Aliás, estou dizendo algo que não é correto, pois não é que
o cachorro não fale, que não tenha um modo qualquer de falar comigo, e sim
que ele não fala a partir de uma enunciação, não faz equivocação. Portanto, a
diferença é que ele não se engana. Ele, sim, é produto de enunciado. O ideal do
Discurso Universitário é que todos tenham o enunciado como condição de tudo.
É a felicidade absoluta do Senhor contemporâneo. Basta ver que a Universidade
fala, fala, despeja regra e todos começam a falar. Quando, na formulação do
Discurso Universitário, pretende-se produzir um sujeito x, um sujeito previamente
nomeado, está-se supondo que, numa acumulação de enunciados, venhamos a
produzir um falante naquela ordem de enunciados. O que a Universidade deseja
eliminar? A enunciação. É até estranho dizer que ela deseja, pois se deseja
eliminar a enunciação, não quer saber do desejo. Ela não pode nem desejar. A
fala de Leclaire, embora não seja bem isso o que quer dizer, seu modo de dizer
promove uma verdadeira festa de diferenças imaginárias. A última dele é, quando
lhe fazemos uma pergunta, dizer que não quer discussões acadêmicas...
* * *
P – Você pode falar um pouco sobre a diferença que Lacan faz entre Ego
e Moi?
Quando Lacan cita os ingleses, fala ainda em ego. Ele está simplesmente
usando a palavra que o discurso que critica usa. Não é que não possamos
traduzir moi por ego, mas não há necessidade. O ego é um objeto construído,
seja no pensamento deles, seja no de Lacan. A diferença é que Lacan não
admite que se possa assentar a psicanálise sobre relações de ego, “de ego à
252
Hiância
ego” (de iguais a iguais). Ele não quer usar a palavra ego porque, em francês,
pode utilizar o Je e o moi. Je, como shifter que promove o campo da enun-
ciação, o campo da escansão, como o Eu, em português. E moi, como referência
a um objeto construído para me substituir, para substituir a posição que cada
sujeito tem na posição subjetiva.
Observem que a tópica freudiana – ego, id, superego – é uma tentativa
de construção topológica inconseguida. Freud faz uma construção mais ou menos
euclidiana e diz que é isso, mas não é isso. Lacan se vale de conhecimentos da
matemática contemporânea, da lingüística, etc., para mostrar que podemos
pensar uma região sistêmica que se objetifica como o objeto – e é isto que está
chamando de moi –, que, metaforicamente, é o objeto “transacional” do sujeito,
o objeto de suas transações. Não estou falando do objeto transicional, de
Winnicott, e sim do ego como objeto, como rolha, supositório, e não como
suposição.
Na introdução de Lire le Capital, Louis Althusser explica que teria
aprendido com Lacan o que é uma leitura. Foi a leitura lacaniana de Freud que
ele transpôs para fazer a leitura althusseriana de Marx. Em vários momentos,
Lacan aponta que lê em Freud o que Freud escreveu, e não o que disse. Ele
procura pelo suporte mínimo, a lógica mínima de cada construção que Freud
apresenta com determinada metáfora. Com isso, ele se diz estritamente freudiano
e diz que não se trata de tomar as metáforas e ficar nelas. Ele quer saber qual
o modo de construção das metáforas, pois tem a mesma neutralidade durante
todo o percurso do pensamento de Freud. A tentativa de produzir um texto, um
enunciado, mediante armadura de uma tópica, mostra que Freud não era estúpido,
que tinha inteligência para não se amarrar a regionalismos euclidianos de
superfície, e, apesar da construção euclidiana que fez, começar a entrecruzar
para mostrar as relações de – ainda que sem o nome ou a matemática (e falar
em tópica já é muito aí) – topologização, de elasticidade dos fenômenos. Daí
que, quando procuramos fazer uma fronteira em qualquer das tópicas de Freud,
ela se perde. Por isso, não sei como as pessoas conseguem falar das tópicas
como se estivessem definidas. Na textualidade, as fronteiras se perdem.
253
Ad Sorores Quatuor
254
Hiância
* * *
255
Ad Sorores Quatuor
entrar no jogo transferencial, fazer essa loucura a dois a cada momento, mas
com distanciamento. Então, a dupla ficção não é aí. Não vamos, como o
psicólogo, pensar que, quando o sujeito fala meia dúzia de coisas, logo vai ao
fichário e tira uma interpretação do bolso. Esta é uma relação compreensiva
que escolhe o material a partir de uma dominância, de uma dominação do mestre
que está ouvindo. O analista vai escutar muito sem nada entender. Afinal, como
poderia o analista entender o analisando? Não pode. Se entendesse, não
precisava ficar fazendo análise, explicava logo. Estar entendendo nada é estar
na condição de entender tudo, como o homem do jazz fica: ele não está sacando
nada, mas, de repente, entra na música e sabe o som.
A grande dualidade não é, portanto, a partição da ficção do analista, de
um lado, e a do analisando, de outro. É, sim, a partição das ficções que serão
construídas com os materiais elaborados do lado do analista – as construções –,
agrupando (não interpretações, mas) possibilidades de interpretação no sentido,
quem sabe, de uma reconstrução. Reconstrução do quê? Existe um negócio
chamado recalque originário, que foi o fundamento de tudo. Na linguagem que
estamos usando aqui, onde encontramos inscrição para ele? Ele não é um
recalque qualquer, de qualquer coisa, e sim um recalque historicizado só-depois,
après-coup, e que vai ter que ser reconstruído. Isto significa que vou re-
encontrar aquela figura? Não! Se foi recalcada, não está lá. Então, é no
movimento pregresso do sujeito, de regresso por essas cadeias ficcionais, nos
empuxos, nos jogos transferenciais – que não são interpretação, pois, a rigor,
uma análise inteira só tem uma interpretação, que é o momento da reconstrução
–, nos jogos de esconde-esconde, de logro de namoro, de romance, que é preciso
fazer entender que são rasteiras para o sujeito dizer, reconstruir. Os maus ouvidos
de formação analítica estão sempre pensando que tudo que o analista diz é
interpretação. Não é. De vez em quando, pinta uma interpretação – que já
tinha sido dita pelo analisando. O analista só tem a escuta para ressaltá-la. O
resto é o judô para que o material venha, as articulações comecem a se produzir.
Então, temos a manipulação da transferência que, de vez em quando, permite
ressaltar uma interpretação, muito rara.
256
Hiância
* * *
257
Ad Sorores Quatuor
16/NOV
258
Fália
13
FÁLIA
259
Ad Sorores Quatuor
* * *
260
Fália
261
Ad Sorores Quatuor
* * *
262
Fália
Caetano Veloso pode dizer: “Eu sou apenas uma mulher”? Mas o que quer uma
mulher? Che vuoi? Foi a pergunta que Freud deixou em suspenso. O vulgo dá
sempre a resposta, pois pensa que sabe o que é e o que quer uma mulher. E
para falar vulgar e brutalmente como o vulgo (que somos nós), uma mulher
quer pica, o que não é absolutamente verdadeiro. Aqueles que são médicos
sabem de uma anedota constante na história da medicina diante dos chamados
ataques pitiáticos, os piti. Eles têm uma fórmula que, de modo geral, é dita em
latim: penis normalis dosim repetatur (pênis ereto em doses regulares), ou:
clister de corpos cavernosos. É interessante ver como se rebate redundante e
abusivamente por sob o imaginário o que é de uma ordem inteiramente outra.
Como se não existissem as virgens por opção e as santas por, digamos, verdadeira
afeminação.
Daí a suposição, que só não é falsa às vezes imaginariamente, da inveja
do pênis, que é uma questão que precisa ser retomada. Penisneid, o que é isto?
Quiçá funcione só no regime imaginário. A sexualidade não se confunde com
as práticas ditas sexuais. Recomendo-lhes o artigo de Charles Melman, Que
veut une femme? (Revista Ornicar? 15, Été 1978, p. 31s.), onde o autor destaca
o que vigora de fundamental na pergunta de Freud, à qual Lacan deu resposta
nas fórmulas quânticas da sexuação. O que quer uma mulher?, diz Melman, é,
em última instância, “um traço distintivo que marcasse sua pertinência a uma
classe” (p. 32). Isto porque, sendo não-toda, como mostramos no discurso de
Lacan, ela não faz classe. Aliás, todos sabem que as mulheres não têm classe,
nem no discurso de Marx... Não há um traço distintivo que pudesse superar a
alteridade radical de sua referência. Só no discurso de projeção fálica, que
promete a metalinguagem, se poderia, tanto ao gosto feminista quanto ao gosto
machista, produzir a classificação das mulheres. Mas, dizendo isto, não
respondemos o que seja uma mulher, e sim o que ela quer.
É espantoso ver, até em discípulos de Lacan, a constante confusão da
partição da sexuação com a ordem imaginária do corpo e do discurso biológico.
Em contraposição ao que se tem visto nesse campo, nesse modo de portar-se
no discurso – como, por exemplo, me pareceu, não posso garantir que seja, na
263
Ad Sorores Quatuor
fala de Serge Leclaire –, é que indico o artigo de Melman, que faz uma leitura
bastante adequada das fórmulas da sexuação lacaniana. Diz ele: “...é claro
que, por estar situado do lado do Outro, não se priva, de modo algum, da aferência
fálica, e que só se pode mesmo apegar-se mais a ela” – ou seja, apegar-se a
esse pedido de traço distintivo, que o vulgo chama de pica – “àqueles que não
deixam de tê-la” – que é a fórmula do masculino – “correspondem aquelas que
não deixam de sê-la”. E continua ele de modo interessante: “A única loucura do
transexualista é crer que ele o seja”. Coisa que nem as mulheres crêem. Não
deixam de ser, mas não acreditam ser.
* * *
O que se retira da algebrização precisa que Lacan nos deu nas fórmulas
quânticas é que a estrutura da divisão da sexuação é a mesma estrutura da
linguagem, isto é, a mesma estrutura da inserção do falante na ordem do
significante. Sob a égide do significante ou se é um ou se é outro, embora nem
um nem outro esteja marcado por algum traço que se inclua numa ordem de
significado. Está, sim, marcado por um traço distintivo que se marca para todo
falante, seja qual for seu sexo, como homem, e que deixa de se marcar para
todo falante, ou seja, para todo homem que se refira à Fália, ao significante de
que há uma falha no Outro, que é o que significa o S ( A ). É isto que estou
chamando de Fália. Não poderia Lacan chamar assim em francês, quem pode
fazê-lo somos nós em português. A Fália é o feminino do Falo, é o próprio Falo
no que é significante, e não significado, no que é marca distintiva do falante e
postura de impossível, ou seja, o que requer a Alteridade.
O que Lacan chama de Os Idiotas, Os Masturbadores, coloca-se do
lado do discurso da referência fantasmática que promove todo e qualquer objeto
à sua fantasia, $a. Mas aqueles falantes, aqueles homens que são mulheres,
independentemente de sua estrutura corporal, além da referência fálica, têm
uma referência suplementar (e não complementar), um excesso (que costumo
dizer que é um ex-sexo) que escapole da referência fálica. E não há para o ser
264
Fália
265
Ad Sorores Quatuor
ou não tem pai, como se a figuração de cena valesse pela estrutura. Entretanto,
faço outra pergunta, a qual Melman não deixa tangencialmente de responder
belamente: E a cena primitiva? Como pode surgir a diferença sexual sem a
visão da cena primitiva? Em vários casos, esta cena, descrita por Freud, era
dependente de certa postura de voyeur diante de uma cena primitiva de coito
tipo papai-e-mamãe. E se não há essa visão? Se a criança está num ambiente
que podemos chamar de monossexual, onde está a cena primitiva? A diferença
não vai aparecer? Como será equacionada a diferença sexual nesse caso? É
uma pergunta tão ingênua, por não se rememorar a estrutura, quanto aquela
que desconfia da existência do Édipo onde não haja o teatrinho edipiano da
metáfora sofoclesiana. Mas a pergunta é grave, pois, se garantirmos
estruturalmente que a diferença surge em qualquer cena, estaremos dizendo
que a diferença sexual não se postura de modo algum sobre aparências
anatômicas. Ou seja, qualquer sexo é outro. Desafio, portanto, qualquer analista
– pois, quanto a isto, outros não me interessam no momento – a demonstrar, por
exemplo, que o corpo de um outro, qualquer que seja este corpo, não seja
necessariamente de Outro sexo, no nível das construções inconscientes do sujeito.
O que já está equacionado nas fórmulas lacanianas subverte radical,
decisiva e definitivamente, talvez, toda e qualquer ideologia das práticas sexuais,
da direita e da esquerda, de frente e de trás, de onde quiserem. O que pode ser
uma cena primitiva do ponto de vista estrutural diante da alteridade radical do
corpo de outrem? Com o que até o narcisismo exigirá ser pensado
estruturalmente, e não do ponto de vista figural. Mesmo na fábula de Narciso
quem ele procura dentro da água se chama sua irmã gêmea. Narciso no espelho
é de Outro sexo. Marcel Duchamp já demonstrou isto com rigorosa geometria:
La mariée mise à nu par ses célibataires, même.
Se existe uma dialética da privação em contraste com a não-privação
suposta do outro lado, teríamos, no primeiro caso, as chamadas mulheres, porque
não têm pênis, e, no segundo caso, os chamados homens, porque o têm. No
entanto, a estrutura da castração vai alterar radicalmente inclusive a privação
que está do lado do real, e somente no simbólico estas coisas se articularão. E
266
Fália
* * *
30/NOV
267
Ad Sorores Quatuor
268
Ensino de MD Magno
SOBRE O AUTOR
269
Ad Sorores Quatuor
270
Ensino de MD Magno
ENSINO DE MD MAGNO
3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa
3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p.
271
Ad Sorores Quatuor
8. 1982: A Música
2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p.
13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final
Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio
de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.
272
Ensino de MD Magno
273
Ad Sorores Quatuor
274
Ensino de MD Magno
275
Ad Sorores Quatuor
Formato
16 x 23 cm
Mancha
12 x 19 cm
Tipologia
Times New Roman e Amerigo BT
Corpo
11,0 | 16,5
Número de Páginas
276
276