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EVENTO RACIA’ 8u AQUILO QUE : oO ACONTECE SEM O TEMPO DENISE FERREIRA DA SILVA, 2016 Podemos muito bem nos pergunt quente efetivomente “se transferiu® seus diversos substitutes simbélicos repetem os momentos iniciéticos? HORTENSE SPILERS? Se e330 fendmeno da marcacdo com ferro de uma gerasio para outta, encontrondo ‘em uma eficécia de sigrificados que Nao vim aqui pora ser insultado por um bando de de:gracados, cade ticlo de nossa cidade infernal é cimentado com o sangue de um africano GEORGE FREDERICK COOKE? Nao se trata de o passado lancar sua luz sobre o presente, ou de o presente lancar sua luz sobre passado; mais do que isso, a imagem & aquilo em que (© que {6 foi se junta em um clardo com 0 agora para formar uma consteiacdo. Em outras palavros, a imagem é a dialética em um momento imobilizeda. Pois enquanto a relacdo do presente com o possado é puramente temporal continua, a relago daquilo-que-passou com o agora & dclétice: nd se trata de uma progresséo, mas de uma imagem, subitomente emergerte ‘Apenas as imagens dialéticas so genvinas (isto é, nao arcoicos}; e o lugar conde as encontramos é a linguagem. WALTER BENJAMIN? Quatro navios partiram do porto de Liverpool naquele dia do veréo de 1769. Entre eles o Unity, um dos cento e tantos navios negreiros responsaveis por transportar | 5 milhdo de pessoas que os comerciantes de Liverpool negociaram no periodo a que © comércio de escravizados era legal segundo a lei britanica. Quase um ono ere quando 0 Unity fazia a linha inferior do Comércio Triangular, em junho del? Eo diérios de bordo do navio registraram diversas tentativas de insurre'sSo Por Bt dos 435 cativos a bordo. Pouco mais de duzentos anos depois, em julho } ee moradores negros de Toxteth, na cidade de Liverpool, se revoltaram opts eel de um “rapaz negro” pela policia local (e 0 bairro pegaria fogo never! eae quando a policia de Londres matou um homem negro desarmado, Mar! pee boitto de Tottenham, no norte da cidade].4 Neste ensaio, interpreto ess08 TENT Como repeticées do evento racial. Minha proposicao @ qve Bes expben coma de léncia racial & uma condigéo sine qua non para o capital ait al ee agentnice Gre condigdo de possibilidade de acumulacéo de capital sob © capital financeiro. m movimento A rozéo para o exercicio que aqui seré realizado reoge ou mooie fecente entre filsofos europeus contemporaneos pela eee iferencos racials Comunista (da politica dos commons), em particular, que ee 407 fe enta ideolégica neoliberal. Nessa volta 20 universalismo, oe erro tensamento (liberal que justfica os episédios de violéncig 1 tipo de penser global para se reproduzir através da expropriagig. odo oe jos tors ‘e da mao de obra dos Outros raciais europeus.5 prodtne recentes comentarios de Alain Badiou sobre a brutalidade Vejamos, por exemP'S Ov tados Unidos e sobre a islamofobia na Fran¢a, ambos paliciol contra negros nos ESO ssado colonial. Ao comentar 0s ossossinatos lidos pelo filésofo como res iris Steere eestor dos pel encontra uma simi e a mee racista na a¢ao da policia” nos Estados Unidos e na Franca, que ele uma dimens 3s de uma distin¢Go espaco-temporal. E segue: “Nos Estados Unidos, 9 resolve atrovés de ume Gi desde 0 escravidao—é um probleme estrutural que em ey historia do pas desde os seus prim6rdios’ Ele ropidomene jestao deslocando 0 racismo nos Estados Unidos para uma outra época: tea aoe jo, podemos inerpretar @ policia matondo pessoas durante a gestio de um presidente negro como expresso de um reciag fundamen contra 0 povo negro. Por outro lado, ndo é este 0 caso, a elei¢ao de Obama aponta para uma ic te. re SN vorderodo G luz da defesa de Badiou do universalismo contra a di- ferenca cultural,’ é evidente que 0 que ele chama de “racismo fundamental” deve ser categoricamente negado (devolvido aos “tempos de outrora”). Isso € assim porque a versdo de Badiou do universalismo, que sustenta suas teses comunistas, € contingente @ fidelidade oo evento—no caso, a eleicdo de Obama, que assinalaria o fim do racis- mo nos pais. Observo que Badiou emprega tempo e espaco para estabelecer uma dis- tingdo; ele coloca o racismo no “lé longe”, relevante no contexto dos Estados Unidos devido 4 escravidao, e nesses “tempos de outrora”, a tese de que a escraviddo seria irrelevante apés a eleicdo de Obama, O que esta em operagdo nessa distingao é um tivo de pensamento temporal predominante que surgiv na Europa por volta da mesma época do surgimento do capital—uma espécie de pensamento que funciona através do imposi¢éo de uma separacGo entre o que acontece, isto é, ao ler os elementos em qualqver situacdo como relacionados sequencialmente. O pensamento temporal {sequencial) corresponde a um repidio do materialismo histérico ao significado das Se ae tattceecontnrzas colonia (como conquista, colonizacdo e escravi- a dimensdo apropriods a é um referente, Para © capitalismo. O tempo nao rode dos honor cnn gaa event ra I, pois o tempo exige uma libe- racial ¢ sue par, a cultural) & eats pene moderno, no qual a diferenca Nesta prtico, emprege ceed Soo de outros tempos e de outro lugar. tro historico € 0 registro global aod a logem materialista que oscila entre o regis: j ‘eslocar o pensamento temporal, que impoe & 08 “tempos de outrora” e 0 “la e culturais encontro o mesm: total como necess do copacidade pr a policia, ele probl faz porte nal,® leva em ‘s ator briténice George he aseet da critica estadunidense Hortense Spillers e do Corpo do escravizado se morshe geno (1756-1812) de que as marcas de torture n° Construida com songue africans, sm hore 2 Geracses seguintes e de que Liverpool fol no. Minha perspectiva materialista rudimentar consider® samento. Ler sempre “o que acontece” como uma ¢: posicdo), sempre como jd um momento, que Jaquilo que também consitvi “o que aconteceu © 0 que oi § materiaidade aqui se refere & materia no nivel quénti posicdo de tudo o que existe sempre como matéria/ens pevronhamento exige que abandonemos (ou descent Srrensao de Einstein) concebido como a flecha dot te sobre a predominancia do pensamento sequencial. Com empréstimos de Wol Benjamin [1892-1940], descrevo sempre o momento da ocorréncia {distinto do lo S do ocorréncia) | como uma composicdo, e necessariamente (porque com, sta do mesmas particulas) semelhonte a outras possiveis composicces ("o que coon lcs que oinda est6 para acontecer’) Quando se lida com o semelhante, inevitovelmente te procura 0 simettia, sto &, 0s cortespondancias. Ao esperar simetria—ou procurar por semelhangas—, @ possivel imaginar {recompor) o contexto tab observare como uma figura fractal. Isto é, em vez de procurar conexées causais (lineares}, 0 penso- mento composicional busca identificar um padrao que se repete em diferentes e ne Como isso funciona? Deixe-me comecar reunindo as pecas: a primeira, de uma entrevista de 2011 do programa BBC News com um policial de Liverpool encattegado de conter as revoltas de julho de 1981 em Toxteth: ‘omposic&o (decomposicé: ov recom Posicéo CO: aquilo que entra na com- fergio. Pensar o esse nivel de ralizemos) o tempo (a quarta lempo, © que explica bastan- Hovia um bocado de gente querendo matar um policial", disse 0 senhor Poms Lembro de ter pensando umas trés ov quatro vezes naquele noite, “porece que é is10 3 ndo vou conseguir escapar dessa”. Alguns policiais mais velhos vieram me dizer “mataram um policial, algu pera, alguém foi decapitado com uma pa". Foi uma situagGo assustadora antes mesmo de entrarmos em a¢éo. Os sargentos fizeram 0 possivel com seus préprios homens, mas logo a coise virou wm m perdeu a coos completo. lado bom (agora) que nenhum policial nunca mais ficaré em uma posice em oe possa ser ferido tanto assim. Foi um divisor de dguas, um momento em que a tatica da policia n Segundo, dos registros do capitéo Norris sobre as tentativas de motim a bordo do Unity to de matar os brancos Os escravos tentaram forgar a grade durante a noite com inte ou morrerem ofogados, mas foram impedidos pelo vigia. Pela mon $00 intengGo e as mulheres @ os homens se mostraram decididos, or néo matarem os brancos, a saltar da omurada, mas caso Foss agrilhdes, estavam decididos, como iltimo recurso, a incendiar 0 navio, A ebsnes dos escravos me levou 6 necessidade de balear o lider do grypo.~ hd, eles contessaram ainda que frustiedos Jem impedidos pelcs 30 zento entre eles? Como interpretar episdios que ocorreram com um intervalo de duzentos anes Primeiro, preciso escolher as pecas semelhantes 10 do navio moradores de Toxteth quant ‘éncia total + Liverpool & 0 | d lugar de origem tanto dos r te e ncios de ¥ Unity; ambos episédios ocorreram em rea lescravidéo e assassinato); Go 0 circunstar chos descrevem uma sityagGo em que os brancos envolvidos s trecl : violéncia total) esto sob ameaca de vida, mas " bi mo rosponsavels a Moore em Toxteth e 0 lider do grupo a bordo do Uninn”® so negros”: Dovie er ogra rogisttada durante ov depois da escravidg” Como toda insurro'ste Tg uma circunstincia de violéncia torgi* pee set eae eaaesle envolvidos “econdmica ou juridicamener 7 erode por aqueles di im Go de of (em A e te ites ‘em sua situacdo de opresséo. ‘as duas coisas) em $' vezes as dv corespondancias, descubro que © capitio Notis aka yy : Buscando er os correana controle jutidico (o direito de matay) sok $0 cargy Vestine oon pool tinha sobre os jovens negros desempregados em Ton gu © pall de aoe resto 0 poder juridico de Norris e do pole, descobri qu Coservando mois emporal (1770 @ 1981) e espacial (oceano Alanis ® Liverpoc, opesar da distéincia funsdio: como capitéo @ sonhor de escravos, Nomts nese ree im honem dali [policia) para 0 comércio de escravizedos fen seen don . Acesso em: 19.3.2018. 2. BENJAMIN, Waker. The Arcades Project Combridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, p. 462. 4. “Leroy Cooper: The Toxteth Riots were a wake-up «all and did some good". Liverpool Echo, 47.2011 Dssponivel em: , Acoso em: 19.3.2018 010.0 opresentodo do argumento de que 23 concede racial e cultura conshivem descritores Sevstemolégicos que produzem globaldade enquanto 4m contest ontolégico hgurado como o hovizonte morte ver StvA, Denise Ferreira do. Toward Global deo of Race. Minneapolis: University of eR phiosophy fo 6 “A philosophy fr miltons: Alain Badiow putrcewed by Aaron Hess" International Socialist ri 895, 2014's "9 uma descrigo do “sujeto do evento” deeenetcoder de ume posicdo universal que diesels delineodos pel a pela te Pagal wr BADIOU, Alin 5 Pool and Unvenne ot of Unverolsm. Stanford: Stonford 0 ide'a de imaginacao & inspirada pela ‘imagem de '2a0m de Walter Benjomin ver epigrofe) como ‘ortefato crtico que interrompe o pensamesto temporal e sua ideia de progresso nstonco. Tanto 0 foco na semelhanca quanto a otencéo 48s correspondéncias tombém se vole dos consideracdes de Benjamin sobre a ingvegem a imagem. Ver BENJAMIN, Walter. “Doctrine of the Similar’. New German Critique, 0. 17,1978, pp.65-68. 9. "Merseyside Police officer recalls 1931 Tow'eth Riots", BEC News, 3.7.2011. Neohum palicia! fot morto durante a revolta, [slices meus} 10. “Attempted Insurrection Aboord the Unity” International Slavery Museum. Disponivel em: . Acesso em. 2032018, 11. Algum historiader poderio escrever ume ov mois monogrotias refazendo a trajeteria do nahco negreiro e da situacde dos negros hoje em dio tem liverpool. ¢ talvez estobelacer olguma conexso causal, Alguns socidlogos poderiom se refer {00 trafico negreiro, mas se concentronam na ‘atuol situacdo econdmica dos excluidos, @ qual otribuitiom os excessos da policia @ do insurreigdo O foco sobre 0s “fotos”, no entanto, esconde ‘uma continvidade que 58 pode ser coptode se ‘tentormos para as correspondéncias em termos de Como, em ambos 03 casos, encontramos a meso felogao jundico-econdmica, a saber, « propriedode 12. A diferenca racial se escreve @ se imprim como 6 efeite do trabalho de evolucdo sobre 63 corpos humanos, visio em diferentes regides do globo, ¢ 00 reservar a temporaiidade para 08 corpos € lugares europeus. Ver SUVA, Denise Ferreira do. Op. cit.

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