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Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço

da liberdade plena e para todos1


Mario Alighiero Manacorda: a Marxist in the service
of full freedom and all
Paolo Nosella*
* Mestrado e Doutorado em Filosofia da Educação na PUC/
SP. Professor Titular em Filosofia da Educação na Univer-
sidade Federal de São Carlos/SP. Mestrado e Doutorado
em Fundamentos da Educação. Docente do Programa de
Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Nove
de Julho de São Paulo (UNINOVE). Pesquisador Sênior do
CNPq. E-mail: nosellap@terra.com.br

Resumo
O texto trata do falecimento de Mario Alighiero Manacorda em Roma no dia 17 de fevereiro de 2013,
um dos maiores intelectuais marxistas italianos do século XX. Ao longo do texto é tratado sobre a sua
formação sob o regime fascista, como professor, pesquisador, militante e, por fim um adeus a um grande
homem que soube distinguir a cultura ideal comunista da prática do socialismo real.
Palavras-chave
Mario Alighiero Manacorda. Falecimento. Intelectual.

Abstract
The paper deals with the death of Mario Alighiero Manacorda in Rome on 17 of February of 2013, one
of the largest Italian Marxist intellectuals of the twentieth century. Throughout the text is treated on their
training under the fascist regime, as a teacher, researcher, activist, and finally a farewell to a great man
who knew how to distinguish the ideal communist culture of the practice of real socialism.
Key words
Mario Alighiero Manacorda. Passing. Intellectual.

1
Palestra proferida no X Colóquio Nacional e II Colóquio Internacional do Museu Pedagógico da Uni-
versidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista, em 30 de agosto de 2013.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-30, jul./dez. 2013
1 Apagou-se um farol comunista da Itália, dos anos 1950,
1960 e 1970, de Vittorio De Sica,
No dia 17 de fevereiro de 2013, fale- Federico Fellini e Pier Paolo Pasolini.
ceu em Roma Mario Alighiero Manacorda, (e-mail 18 de fev.2013).
um dos maiores intelectuais marxistas Os amigos responderam e divul-
italianos do século XX. No dia seguinte, os garam a notícia. Destaco a resposta de
jornais italianos La Repubblica, Il Corriere Marisa:
e L’Unitá publicaram o seguinte obituário:
Que tristeza, Paolo, o mundo ficou
“Ho vissuto dal princípio alla fine mais pobre sem ele. Eu perco meu
e ormai nessuna sorte, per quanto grande inspirador, o intelectual que
maligna, mi toglierá quello que il mais me influenciou como professora
tempo mi ha dato” (Petronio) [vivi do de História da Educação. Quanto lhe
início ao fim e agora nenhuma sorte, devo! Ele me deu tanta energia sem
por maligna que seja, me furtará o o saber! Estará para sempre no meu
que o tempo me deu]. Apagou-se um coração, nas minhas aulas, no meu
farol: MARIO ALIGHIERO MANACOR- pensamento, nos meus escritos e
DA, historiador, literato, intelectual, reflexões. Nunca morrerá. Obrigada
esportista, nos deixou. Um homem por ter me ajudado a conhecê-lo
único que perseguiu com espírito pessoalmente. Foi um dos momentos
laico, durante um século, a humana mais emocionantes e significativos da
solidariedade de corpo e de mente, minha vida. Meu grande abraço neste
de razão e sentimento. Com Anna momento em que você se sente órfão.
Maria, maravilhosa companheira de (e-mail, Marisa, 18 de fev., 2013).
uma inteira vida, choram os netos de
três gerações. A última despedida será No dia 9 de dezembro de 2012, pelo
na quarta feira, 20 fevereiro, às 10 seu aniversário de 98 anos, havia recebido
horas, no templo egípcio do Verano. um novo computador para revisar seu tra-
(e-mail de Giuseppe Manacorda, 18 balho sobre jogos e esportes na história:
de fev. 2013). “Diana e as Musas: três milênios de espor-
Encaminhei essa informação aos tes na literatura. Antologia comentada de
amigos José Claudinei Lombardi (Zezo), Homero aos nossos dias”, texto inédito de
Gaudêncio Frigotto e Marisa Bittar, solici- mais de 1200 páginas.
tando divulgação e acrescentando: De onde extraia tanta energia? Teve
a sorte de herdar um organismo biologi-
Amigos, quando penso nele, um nó
camente privilegiado, ao qual correspon-
me fecha a garganta. Meu inspirador
intelectual. Mais do que isso: meu deu alternando sabiamente atividades
exemplo de vida, porque eu queria intelectuais com físicas. Era um excelente
viver como ele, trabalhando com as esportista (nadador) e sabia deleitar-se
mãos e a cabeça; era, também, mi- de todas as simples e boas coisas da
nha ligação com aquela bela cultura vida. Nascido em Roma, em 1914, onde

16 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
possuía um pequeno apartamento de A primeira enfatiza a importância do tes-
apoio, transcorria a maior parte do ano temunho individual do professor, mesmo
na casa de campo de Bolsena, no lago à revelia da ideologia do sistema político
homônimo, onde estudava, escrevia e e da gestão escolar: “A marca do ensino,
cuidava da pequena propriedade que lhe quase sempre liberal-conservadora, depen-
proporcionava o vinho, o azeite, o mel, as dia muito da individualidade do professor”
frutas e as verduras. (MANACORDA, 2010, p. 29). A segunda
destaca a íntima força ético-política da ele-
2 Formação vada cultura: “A longo prazo, por meio de
mil contradições, a cultura termina sempre
As quartas capas ou as orelhas de
sendo revolucionária” (MANACORDA, 1985,
seus livros trazem quase sempre uma
p. 159). São duas ideias que confluem na
sinopse de seu percurso formativo. Mas
convicção de que a ideologia e a política
a melhor narração encontra-se no texto
da instituição nem sempre correspondem
La mia scuola sotto il fascismo [A minha
aos valores professados individualmente
escola sob o fascismo] (Manacorda, 2010),
pelos educadores que nela trabalham. Por
delicioso autorretrato de sua trajetória es-
isso o laicismo e o socialismo, dimensões
colar, desde o jardim da infância das Irmãs
fundamentais para Manacorda, não o im-
Francesas do Sagrado Coração (1918) até
pediram de reconhecer e elogiar mestres
os anos universitários e as primeiras expe-
que vestiam a batina sacerdotal ou mesmo
riências como professor (1943). Toda sua
que haviam aderido ao fascismo. Assim,
escolarização ocorreu durante o governo
por exemplo, com admiração, rememora
fascista: cinco anos de instrução elementar,
o caríssimo professor Pe. Primo Vannutelli:
cinco de ginásio (com latim e grego), três
de liceu clássico, quatro de universidade Seja-me permitido lhe dedicar uma
(na Escola Normal Superior de Pisa) e um recordação particular de estima e
afeto. [...] Era um sacerdote sui generis,
de aperfeiçoamento em Frankfurt.
homem de profunda cultura e huma-
Existe um segundo depoimento em nidade, espírito tolerante, competen-
que analisa especificamente o período tíssimo não apenas de latim e grego,
de formação universitária: Il contributo mas também de hebraico e de cultura
dell’universitá di Pisa e della Scuola Nor- bíblica; leitor de latim na Faculdade
male Superiore alla lotta antifascista ed de Letras da Universidade La Sapien-
alla guerra di liberazione [A contribuição za, onde dava aulas de latim. [...] Era
da Universidade de Pisa e da Escola para nós um ponto de referência em
Normal Superior na luta antifascista e na nossos estudos [...]. Sua lembrança é
guerra de libertação] (Manacorda, 1985). para mim e para minha mulher – nos
Na leitura desses depoimentos, há conhecemos nos bancos do Liceu –
entre as mais caras de nossas vidas.
duas ideias fortes sobre a influência da
(MANACORDA, 1985, p. 32).
instituição escolar na formação do aluno.

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Como sabemos, o clero representa a-fascistas, ou talvez também antifas-
a categoria mais típica dos intelectuais cistas, mais por dignidade e moral do
tradicionais e, justamente por isso, por que por reflexivas razões políticas. [...]
não estar organicamente comprometida Gentile era sem dúvida uma grande
personalidade, e eu, mesmo que mais
com esta ou aquela classe econômica
tarde tenha duramente criticado suas
fundamental ou com uma proposta política
ideias, continuo conservando uma
definida, ondula, com aparência de auto- boa lembrança de sua humana
nomia, entre o apoio ora a movimentos pessoa. (MANACORDA, 2010, p. 42).
políticos progressistas, ora conservadores e
reacionários, conforme valores individuais. Gentile amava a Escola Normal
Um segundo nome, entre os vários Superior de Pisa, considerando-a a melhor
citados no depoimento sobre a Universida- “norma” escolar para a formação das elites
de de Pisa, é Giovanni Gentile. Manacorda italianas, tanto que, quando Diretor, elevou
frequentou essa renomada Universidade o número de suas matrículas de duas
entre os anos de 1932 até 1936, justamente dúzias para mais de uma centena:
quando Gentile, que também fora aluno A ampliação da Escola Normal deter-
daquela Instituição, era diretor. Sem dúvida, minada por Gentile não foi um triunfo
um exímio diretor e professor. Gentile fora do fascismo; em longo prazo, por meio
ministro da Pública Instrução no governo de mil contradições, a cultura termina
fascista do ano de 1922 a 1924. Renunciou sempre sendo revolucionária. Como
foram as Universidades do Risorgi-
ao cargo em decorrência de seu desacordo
mento, de onde saíram os Lorenzo
com o assassinato do deputado socialista Benoni-Ruffini e i Fantasi-Mazzini,
Matteotti. Sua reforma da escola marcou assim a Normal era predestinada a se
a cultura italiana, menos por ser uma tornar ela também viveiro de liberda-
reforma fascista (como muitos sustentam) de. (MANACORDA, 1985, p. 149-150).
quanto por ser idealista e elitista, ou seja,
Com efeito, o antiautoritarismo políti-
a caricatura populista da proposta fascista
co está sempre subtencionado na cultura;
após 1936 não teve o consentimento de
ao contrário, o mau gosto da ignorância e
Gentile. Desse ponto de vista, entende-se
do populismo é sempre um caldo oportuno
o depoimento de Manacorda:
para todo tipo de autoritarismo.
Os anos da Escola Normal foram para Não poderia deixar de acenar à didá-
mim autênticos anos de noviciado tica do ensino da palavra, espinha dorsal
cultural e político. Aí o antifascismo
da metodologia que formou Manacorda,
era de casa, os veteranos nos pas-
sobretudo no liceu, onde encontrou pro-
savam a memória dos normalistas
que os precederam, exaltando sua fessores muito severos voltados para um
severa moralidade, a cultura e, sobre- ensino rigorosamente histórico filológico,
tudo, seu rigor moral ainda da velha para os quais a gramática não era a porta
marca liberal. Os nossos anos foram de acesso aos autores, ao contrário: “No

18 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
liceu (ensino médio) começamos a ler os daquelas harmonias de tanto que as
autores por si mesmos e, finalmente, a gra- sentíamos nossas e sentíamos que
mática serviu os autores e não os autores jamais deixarão de fazer parte de
à gramática” (MANACORDA, idem ibidem, nosso espírito. [...] (GRAMSCI, A luz que
se apagou, Cronache Torinesi, Einaudi
2010, p. 3). Nessa escola, Manacorda se
Editore, 1980, p. 23-24).
tornou um mestre da palavra. Por meio da
difícil arte da filologia e da hermenêutica, Esse elogio, como disse, aplica-se
na leitura dos clássicos e dos documentos perfeitamente ao nosso mestre: a forma
históricos em geral, retratava a história da como lia e comentava alguns passos da
educação à luz de valores humanistas obra de Santo Agostinho ou de Karl Marx,
absolutos. com grandes reservas para o primeiro e
indiscutíveis afinidades teóricas com o se-
3 Professor gundo, me deixava boquiaberto; ensinava-
me de fato “como abrir” um texto clássico,
Pode-se dizer que Mario era pro- como compreender certas passagens.
fessor nato. Assunto e forma didática Gostava de datar tudo, se possível, identifi-
encantavam alunos e ouvintes em geral, cando o mês e o dia, os interlocutores e as
motivando-os a ler e amar os clássicos. A circunstâncias em que foram redigidas. Era
ele aplica-se perfeitamente o elogio que um verdadeiro mestre, um mago da cultura.
Gramsci fez dos professores Renato Serra Começou a lecionar literatura ita-
e Francesco De Sanctis. Permitam-me a liana no liceu clássico de Siena, em 1939.
bela citação: Eram os anos do fascismo mais insensato,
Esses dois homens foram, realmente, e a pressão política fazia-se sentir cada vez
mestres, como entendiam os gregos, mais irracional, ridícula e cruel. A escola,
isto é, mistagogos; iniciaram-nos nos felizmente, abrigava muitos homens cuja
mistérios da poesia, mostrando que postura liberal e crítica evidenciava que,
esses ‘mistérios’ são vãs construções conforme disse, a relação dialética entre
de literatos e que tudo é tão claro, lím-
sistema político e instituição escolar não
pido aos que têm olhos puros e vêm a
luz como cor e não como vibrações de é absoluta e mecânica:
íons e elétrons. Esses dois mestres são O diretor Orsini Begani era um
colaboradores da poesia, leitores da verdadeiro cavaleiro de marca libe-
poesia. Todos seus ensaios são novas ral que me acolheu com paternal
luzes que se acendem para nós. Nos cordialidade e, no final do dia, me
sentíamos como que arrebatados por levou para visitar a cidade que eu
um encanto. [...] A palavra deixava ainda não conhecia. [...] Conversando
de ser um elemento gramatical que amavelmente, me disse, entre outras
devia ser encaixada em regras e em coisas, que nas ‘notas características’
esquemas livrescos; [...] nos davam que era obrigado a redigir sobre os
a ilusão de sermos nós os criadores professores ficava em posição muito

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prudente, assim que, por exemplo, sibilidade de lecionar às crianças de
justificava um professor conhecido seu povo, não esqueçam, sobretudo,
como liberal e antifascista, definindo- duas coisas: que vocês também, uma
o como ‘homem da ordem’. Dessa vez, foram crianças e que um aluno
forma nos defendíamos do fascismo distraído não é um aluno imbecil, é
reinante. [...] Eu dava aula lendo os um aluno que tem outros interesses.
clássicos italianos e latinos, e os (MANACORDA, DVD, 2007, p. 20).
comentava com grande participação.
Mario concebia a escola voltada à
(MANACORDA, 2010, p. 45-45).
formação onilateral que garantisse “com
Após a queda do fascismo, os ita- firme doçura” (MANACORDA, DVD, 2007)
lianos, que na clandestinidade haviam os ensinamentos rigorosos necessários ao
lutado contra ele, puderam finalmente homem para ser um homem moderno e,
hastear as bandeiras de seus Partidos ao mesmo tempo, possibilitasse a cada um
Democráticos. Os comunistas também se formar livremente naquilo que é do seu
hastearam as bandeiras vermelhas e vol- gosto (MANACORDA, DVD, 2007). Ou seja,
taram a cantar abertamente o conhecido a escola, para ele, deveria ser um centro
hino popular Bandiera rossa trionferá. difusor de elevada cultura para todos.
Entre estes havia o Professor Manacorda, Uma vez que, obviamente, a escola não
comunista, militante, agora Diretor da Es- poderia especializar cada aluno nos vários
cola/Convivência (instituição em que os ramos da cultura, das artes, da ciência, da
alunos recebem formação, alimentação e literatura e da tecnologia, deveria ensinar
moradia) para partisãos e ex-combatentes como “desfrutar de todas as contribuições
da Associação Nacional Partisãos da Itália da civilização” (MANACORDA, DVD, 2007):
em Roma (ANPI). É preciso que a escola, ao invés de ser
Seguiu carreira de Professor Univer- um lugar aberto, cinco horas diárias,
sitário, assumindo a cátedra de História da durante nove meses por ano e, pelo
Pedagogia, primeiramente na Universidade resto do tempo, permanecer fechada e
de Cagliari, Viterbo, Florença e, finalmente, vazia, seja o espaço dos adolescentes
de Roma (La Sapienza). A profissão de onde recebam da sociedade adulta
professor o orgulhava, conforme deixou tudo o que é possível receber e ao
explícito numa mensagem que enviou mesmo tempo sejam estimulados
para os alunos brasileiros dos cursos de em suas qualidades pessoais e ca-
Pedagogia, futuros professores: pacitados de gozar todos os prazeres
humanos. (MANACORDA, DVD, 2007).
Em que pese tanta retórica que
se utilizou sobre essa profissão de O maior desafio didático da escola
professor, é sempre uma das profis- moderna, para Manacorda, é superar as ve-
sões mais bonitas porque se trata lhas concepções autoritárias e doutrinárias
justamente de ajudar a nascer o da pedagogia tradicional, mas também, a
homem do futuro. Se tiverem a pos- concepção liberal idealista que destina

20 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
uma escola de elevada cultura para os 4 Pesquisador
dirigentes e outra de abstrata cultura ins-
trumental para as classes trabalhadoras. Suas atividades docentes embasa-
(MANACORDA, DVD, 2007). vam-se em pesquisas de documentos e
Quem conheceu Mário, pessoalmen- textos dos clássicos da filosofia, da peda-
te, sabe que ele tinha o dom da comunica- gogia e da literatura em geral. Filólogo e
ção. Sua voz de barítono, com o inconfun- linguista, além do grego e latim clássicos,
dível sotaque romano, conservara-se clara conhecia perfeitamente o inglês, o alemão
e forte até os últimos anos de vida. Quando e o russo. As línguas francesa, espanhola
alguém lhe colocasse um microfone na e portuguesa não representavam para ele
frente, aí se transformava, como vimos na dificuldade de entendimento. Era apaixo-
videoconferência do VIIº Seminário Nacio- nado por línguas porque era apaixonado
nal na UNICAMP, em Julho de 2006. Não pela palavra que, como bom leitor de
utilizou óculos, nem caneta, nem papel. Giambattista Vico, sabia não nascer se-
Nenhuma anotação. Falou mais de uma parada do pensamento, mas inseparavel-
hora, fluente e espontaneamente, citando mente junto com este. Mais ainda, sabia
datas e nomes, esboçando em densa que palavra e pensamento nascem e
síntese um balanço político, econômico “concrescem” (termo amado por ele) junto
e cultural do século XX. Sua fala era ágil, com as condições materiais, políticas e ide-
precisa, elegante, sem o tom do decorado. ológicas vivenciadas pelo ser humano. Por
Era um exímio professor e orador. isso, para compreender uma palavra não
Não sem razão, a R.A.I. (Rádio Televi- bastava recorrer ao dicionário, precisava
são Italiana) o convidara, em 1980, para ser perscrutar a situação concreta vivida por
o autor (e ator) de uma série de transmis- quem falou ou escreveu. Em suma: filologia
sões radiofônicas intituladas “A escola nos e hermenêutica eram os seus principais
séculos”. Ao todo, foram doze transmissões instrumentos técnicos de pesquisa.
com base na leitura direta de seus textos Inicialmente, nos anos de 1942
para uma sala de aula do tamanho da a 1962, traduzira textos literários como:
Itália. Sua proposta inicial era realizar uma Novalis, Cristianitá o Europa, Einaudi,
exposição pela Televisão Italiana acompa- 1942; Hugo von Hofmannsthal, La donna
nhada de imagens de obras de arte e fotos senz’ombra, Guanda, 1946; Karl Marx, Le
sobre educação nos séculos. Tal ideia não lotte di classe in Francia dal 1848 al 1850,
foi efetivada pelas dificuldades técnicas Einaudi, 1948; Marx-Engels, Carteggio:
que apresentava, porém está impressa em gennaio 1852- dicembre 1864, 3 vols.,
forma de um belíssimo volume Storia illus- Editori Riuniti, 1972. Elegera como objetivo
trata dell’educazione - dall’antico Egitto ai geral de seu trabalho intelectual cuidar
giorni nostri. Editora Giunti, Florença, 1992. da coleção “Os clássicos do marxismo”,
traduzindo e comentando do original para
o italiano os textos mais importantes do

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marxismo sobre Educação. Para isso, pro- parte final da nota 14 do seu livro “Marx e
duziu a importante antologia: Il marxismo a pedagogia moderna” (2007), se lê:
e l’educazione, testi e documenti, em três Remonta exatamente a Lênin a
volumes. Vol. 1º, I classici: Marx, Engels, escolha do termo “politécnico” em
Lênin, Editora Armando Armando, Roma, vez de “tecnológico” para o ensino
1964; vol. 2º, La scuola soviética (1917- na perspectiva do socialismo. Foi
1964), Editora Armando Armando, Roma, precisamente a sua autoridade que,
1965; vol. 3º, La scuola nei paesi socialisti, posteriormente, determinou o uso
Editora Armando Armando, Roma, 1966. constante de “politécnico”, não só na
Essa antologia comentada merece terminologia pedagógica de todos os
um destaque especial por representar a países socialistas, mas também – o
que é filologicamente incorreto – em
base documental de toda sua produção
todas as traduções oficiais dos textos
posterior sobre o tema educação e mar- marxianos em russo e, daí, em todas
xismo; em particular, o primeiro volume. as demais línguas, inclusive quando
A epígrafe inicial conota a preocupação Marx escreveu ou falou em inglês,
do autor ao entreprender esse trabalho: como nas suas intervenções na
“Gostaria também recomendar-lhe que Internacional, foi traduzido em “seu”
estude esta teoria nas fontes originais, e alemão technological por polytechis-
não de segunda mão” (Carta de F. Engels ch. Também, finalmente, quando varia
a G. Bloch). Mas, não sendo possível para os termos alternando technological e
todos os seus alunos a leitura nos originais, technical, para distinguir consciente-
Manacorda garantiu o rigor da tradução. mente a escola socialista da burgue-
sa, traduzem sempre por polytechnis-
Os textos e os documentos seguem ri-
ch, criando inevitavelmente bastante
gorosamente a sequência cronológica, confusão. É desnecessário repetir,
acrescentando informações precisas e até aqui, quanto de importância se deva
meticulosas sobre o momento em que atribuir à escolha de uma palavra. À
foram redigidos. Não o diz explicitamente, parte a “responsabilidade” de Lênin,
mas entende-se que para ele as edições que – repitamos – foi o primeiro, e por
russas (Moscou) dos clássicos marxistas, longo tempo o único, a compreender
bem como muitas edições italianas, não e relançar aquelas teses marxianas,
ofereciam o rigor filológico necessário. parece que a ênfase tecnicista, quer
Sobre seu rigor de tradução, há um dizer aquele risco de o ensino socia-
exemplo, já emblemático entre nós, que lista decair a esse ensino “industrial
universal” (ou, como se deveria dizer
ilustra muito bem a grande preocupação
hoje, “polivalente”, que, com ou sem
metodológica de Manacorda. Trata-se de razão, muitos creem divisar), tem,
um erro de tradução, involuntariamente naquela escolha filológica, se não a
de sua autoria, de um termo marxiano sua origem, pelo menos um indício.
que, posteriormente, foi por ele corrigido, Consideramos, por outro lado, nosso
da palavra “politecnia ou tecnologia”. Na dever acrescentar, aqui, que a tra-

22 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
dução das Istruzioni ai Delegati, do como apresentação da tradução no Brasil
citado primeiro volume da obra IL do seu livro “História da Educação – da An-
Marxismo e I’Educazione (1964, p. tiguidade aos nossos dias”, Editora Cortez.
82-84), feita a partir do texto alemão, Em sua carta resposta, manuscrita,
usa sempre o termo “politécnico”, até de Bolsena, diz:
quando deveria dizer “tecnológico”,
isto é, em todos os casos exceto um. Caro Paolo, sua apresentação está
Pedimos desculpas aos eventuais ótima [...]. Talvez, eu esclareceria me-
leitores daquele volume. Atualmente, lhor a escola “politécnica” e a função
dispomos, afinal, do original inglês, do industrialismo; [...]. Diria “uma
The General Council of the First escola tecnológica”, sublinhando
International, 1868-1870, Minutes, os princípios científicos gerais e não
Moscow, Progress Publishers, s.d. (será somente as exigências do pluripro-
1864?), do Instituto para o marxismo fissionalismo. Ciao. Grazie. tuo Mario.
leninismo. (MANACORDA, 2007, p. [negrito meu]
192-193). Eu havia escrito:
Com outras palavras, Manacorda Sem dúvida, na visão dessa obra, o
diz que, no primeiro volume da antologia momento estratégico da síntese da
Il marxismo e l’educazione de 1964, havia- Escola-do-dizer com o Treinamento-
se utilizado do texto de Marx Istruzione ai para-o-fazer será marcado pela
revolução industrial que, negando o
delegati na tradução alemã, em que em-
‘sapateiro por natureza’ de Platão, des-
prega o termo “politécnico” mesmo quando
truindo também o treinamento-para-
deveria empregar o termo “tecnológico”. sapateiro dado nas corporações me-
Mais tarde, todavia, verificou que o texto dievais, fixa as bases de uma escola
original era em inglês e utilizava o termo politécnica para os trabalhadores
technological, isto é “tecnológico”. Assim, e lança a hipótese de uma escola
pede desculpas aos leitores pelo equívoco para todos, como espaço e tempo de
que, finalmente, corrigiu no seu novo livro plenitude de vida. (Nosella, São Carlos,
Marx e la pedagogia moderna de 1966, outubro de 1988). [negrito meu]
que foi traduzido em língua espanhola, Obviamente, em decorrência de sua
na Colección Libros Tau, Barcelona 1969; resposta, substitui o termo “politécnica”
em seguida, em português (Editora Cortez por “tecnológica”. Hoje, o livro “História da
e Autores Associados, São Paulo 1991); e, Educação – da antiguidade aos nossos
ultimamente, pela Editora Alínea, Campi- dias” está no Brasil na 1ª reimpressão
nas 2007. da 13ª edição. É um belo livro de 455
Sobre o mesmo assunto, há outra páginas, originado, como disse, das doze
curiosidade significativa. Em 1988, lhe transmissões radiofónicas de 1980. É lido,
enviei para apreciação o meu texto: “Ao preferencialmente, entre os alunos dos
leitor brasileiro”, destinado a ser publicado cursos de Pedagogia e pós-graduação em

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Educação, na disciplina História da Edu- palavra “conformismo”, para chocar os
cação. É um amplo passeio pelos séculos, imbecis. (GRAMSCI, in MANACORDA,
discorrendo sobre educação e pedagogia 2008).
com base, sobretudo, em textos clássicos Esse livro mostra o jovem professor
da literatura: Mario Manacorda intento a formar seus
Minha intenção foi não fazer um alunos pela disciplina nos estudos, con-
texto corporativo que fale do interior formando seus instintos à árdua lógica
da escola, mas que se relacione com do trabalho intelectual. Coerente com
o crescimento geral da sociedade, essa ideia, esse livro cita com destaque o
nos aspectos culturais e também caderno do cárcere n. 22, Americanismo e
nos aspectos da vida cotidiana e do fordismo, de Gramsci.
trabalho (MANACORDA , DVD, 2007, O segundo livro é uma seleção de
p. 15 do livreto).
textos de Gramsci, organizados conforme
Em 1970, Manacorda ensinava um plano teórico que destaca a concep-
História da Educação na Universidade de ção de educação como processo político
Cagliari, na Sardenha, terra natal de An- hegemônico que ocorre no interior das
tonio Gramsci. Empenhado na tradução e instituições escolares, mas, sobretudo, em
difusão do pensamento marxista na Itália, todas as complexas relações coletivas e
não poderia, obviamente, deixar de apre- individuais da sociedade.
sentar aos seus alunos o pensamento pe- O primeiro livro foi traduzido e
dagógico do coetâneo deles, considerado o publicado no Brasil pela Editora Artes
maior intelectual marxista. Assim, publica, Médicas de Porto Alegre, em 1990 e, em
entre 1970 e 1972, Il principio educativo segunda edição, pela Editora Alínea de
in Gramsci e Antonio Gramsci, l’alternativa Campinas, em 2008. A antologia não foi
pedagógica. O primeiro, dedicado Aos aqui publicada. Na Itália, os dois livros
meus estudantes de Cagliari, levava como foram ultimamente relançados pela Editori
subtítulo: Americanismo e conformismo e a Riuniti university press, Roma, 2012, eviden-
epígrafe escolhida deixa claro o intuito pro- ciando o renascimento atual dos estudos
vocativo de Manacorda contra a tendência marxistas na Itália.
liberalizante do pensamento pedagógico, Na trajetória formativa de Mana-
certo laisséz faire ou espontaneísmo em corda, a década de 1960, marcada pela
educação: publicação (seleção dos textos, tradução e
O antiamericanismo é antes cômico comentários) da citada trilogia Il marxismo
que estúpido. e l’educazione, pouco conhecida, na ver-
A respeito do “conformismo” social [...] dade, mas determinante na sua formação
o alarme dado por certos intelectuais teórica, representou a descoberta e a posse
é apenas cômico... definitiva do método marxista, il filo rosso,
[...] me agrada utilizar precisamente a o fio de Ariadne, vermelho, que o acom-

24 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
panharia na compreensão dos fatos e da rino Boringhieri, 1983). Em 1977, publicou
cultura do século XX, verdadeiro labirinto um estudo Per uma pedagogia dell’uomo
teórico que desafia qualquer analista: integrale, na Revista Critica Marxista, n.
Um século que foi chamado por al- 4-5. Em 1980, na mesma revista, n. 6,
guém [Eric J. Hobsbawm] um século publicou Pedagogia e politica scolástica
breve ou, por outros, um século longo del P.C.I. dalle origini alla liberazione. Em
[Fernand Braudel]. Para mim, é muito 1988, ainda na Revista Critica marxista n.
longo. Em todo caso, nos deu muito 5, publicou Franco Rodano lettore di Marx.
de bom e muito de ruim. Diria em Um carinho particular demostrava
medida exorbitante comparando com para o livro Lettura laica della bibbia,
todos os outros séculos da história Editori Riuniti, Roma, 1989. Literariamente
humana. Foi um século de fortes ace- original, evidencia a grande postura laica
lerações e de fortes contrastes. Diria,
de Mario: qual a razão de tamanha fortuna
aliás, que é caracterizado exatamente
por um excesso de contraditoriedade.
histórica da Bíblia, pergunta-lhe um dia
A contradição é uma boa chave de lei- Yúkiko, sua admiradora japonesa? Vocês
tura para esse século. (MANACORDA, ocidentais – continua Yúkiko – referem-
DVD, livreto, 2007, p. 8-9). se à nossa cultura como expressão do
“mistério oriental”, mas, na verdade, nós
Sem abrir mão do filo rosso, isto é,
orientais estranhamos o mistério da cultura
da raiz da história que é o trabalho do
ocidental. Tão racionalista como se crê,
homem em colaboração com os outros
como pode essa cultura reverenciar livros
homens para dominar e humanizar a na-
sagrados que narram histórias de patriar-
tureza, o perfil intelectual de Manacorda
cas que se dispõem a matar seu filho por
tomava cada vez mais a forma poliédrica:
ordem de um deus pai misericordioso e im-
variada nos assuntos, unitária no método.
por a todos a adoração de um deus único
Na Itália, são conhecidas suas intervenções
em três pessoas? Manacorda, estimulado
no debate pedagógico em favor da unici-
pelas provocações da amiga, estrutura um
dade do ensino médio (ginásio e liceu),
livro alternando as cartas dela às suas
mas também seus estudos históricos da
respostas. Ao todo, são 58 cartas, datadas
Antiguidade, como, por exemplo, sobre a
de junho de 1987 a outubro de 1988, nas
crise ideal educativa do IV século d.C. em
quais “explica” laicamente o “mistério”
torno da figura e da proposta educativa
da alma ocidental; as origens míticas do
de Juliano, o Apóstata que contrapunha à
mundo e dos homens; o conteúdo histórico
Paideia de Cristo a Paideia de Aquiles (A
dos patriarcas etc.. Na última carta, Yúkiko
paideia de Aquiles, Editori Riuniti, Roma
pergunta: “Caro Mario, por que os homens
1971) e sobre as origens e o perfil da
têm necessidade de buscar fora do homem
profissão docente na antiga Grécia e em
as razões do homem?” E Mario responde:
Roma (Scuola e Insegnati, cap. IX, in Oralitá,
“Sim, eu também sonho uma humanida-
scrittura, spettacolo. Org. Mario Vegetti, To-

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de futura que não tenha necessidade de uma alma, há um corpo animado ou uma
buscar fora de si as razões para uma sua alma encarnada. Com efeito, essas páginas
convivência solidária e fraterna. “ (Lettura representam uma atenta costura de textos
laica della Bibbia, p. 283). clássicos, comentados, feita com o filo rosso
O último grande trabalho de Mana- característico do método marxista.
corda, de 1.200 páginas, em fase de revisão,
é Diana e le muse: tre millenni di sport 5 Militante
nella letteratura – antologia ragionata da
Um dia, em 1987, perguntei: “Mário,
Omero a noi (Diana e as musas: três milê-
qual sua relação com o Partido Comunista
nios de esportes na literatura – antologia
Italiano?” Respondeu: “O partido fez meus
comentada de Homero aos nossos dias).
dentes e, depois, me deu muito osso para
Ele faleceu sem poder ver o livro:
roer.” Não acrescentou mais nada. Naquele
Esse trabalho sobre o esporte decidi ano, o PCI já havia sido extinto e substituí-
dividi-lo numa antologia esportiva do pelo P.D.S. (Partido Democrático Social).
onde tem Homero, tem Píndaro, tem
Manacorda, desgostoso, havia aderido ao
Virgílio; mas tem também Dante,
Petrarca, Erasmo de Rotherdam, tem
grupo político de Refundação Comunista:
Goete, tem até Shakespeare porque Do fim do socialismo real devemos
a literatura está cheia de referências tirar uma conclusão ruim (brutta). Que
ao esporte que as histórias literárias não se deve mais fazer revoluções.
põem num canto. Os intelectuais se Mas, também, que se devem fazer
envergonham de serem também es- revoluções todos os dias, porque
portivos, ou talvez não o sejam, talvez haverá sempre necessidade delas.
sejam apenas torcedores. (DVD, livreto, Parece contraditório, mas é assim.
2007, p. 18). Com efeito, se [as experiência do so-
cialismo real] acabaram mal, significa
Alguém poderia pensar que Mana-
que as coisas permaneceram num
corda estava esquecendo o marxismo e ponto ruim de sua história. Então será
pagando tributo desmerecido à corrente sempre necessário fazê-las. O que nos
teórica chamada Nova História. Nada disso. interessa é o ‘como’. Marx distinguia,
Ele, sem negar a importante contribuição na premissa das ‘Lutas de classe na
na historiografia dos Annales Franceses, França em 1948’, a insurreição da
com essa obra objetiva criticar a separação revolução, dizendo que no decorrer
entre o físico e o cultural, herança da filo- da luta de 1948 o Partido Insurrecio-
sofia espiritualista e idealista: “Não se move nal havia amadurecido para Partido
o corpo sem um trabalho da inteligência, Revolucionário: da insurreição para
revolução. Este é o progresso que
nem a inteligência sem um trabalho do
precisamos fazer. Revolução significa
corpo, do cérebro, da voz, da caneta, do
mudança total dos sistemas sociais [...].
computador” (Diana e le muse, 2008, p. Creio que se trate de um ensinamento
10). Não há, costumava dizer, um corpo e

26 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
marxista muito esquecido, quer pelos Insisto (com esse nome) porque
seus seguidores, quer pelos seus sei distinguir a tradição cultural e
adversários. [...] Eu já havia cortado o socialismo real. Partindo desta
as relações com a União Soviética distinção, podemos ainda evocar
de Brejnev e havia sempre corrigido um ideal que conserva o nome de
os companheiros soviéticos pela sua comunismo, embora no mundo já
interpretação errônea de Marx, como existam poucos comunistas; mas a
se fosse um teórico do poder; era um necessidade de um resgate geral
teórico da liberdade civil. (DVD, 2007, do homem, de superar esta situação
p. 9-10). de divisão da humanidade que o
progresso científico e técnico de hoje
A militância de Manacorda carac-
acentua e exaspera, esta exigência
terizava-se pela sua atuação no campo permanece. [...] Enquanto não saímos
da cultura; era um difusor dos ideais dessa contradição, que é planetária,
comunistas nas expressões culturais mais um ideal, que até hoje foi chamado
elevadas. Foi Diretor das Edições Rinascita; de comunista, é necessário, qualquer
responsável da Comissão “Escola” junto que seja o nome que a humanidade
à Direção do Partido Comunista Italiano; futura queira escolher. Eu assim me
responsável da “Seção Educação” do Ins- nomeei, sou um homem do século
tituto Gramsci; Diretor da “Revista Reforma passado; não seria decoroso que re-
da Escola”; membro do Comitê Diretivo da negasse a mim mesmo como fizeram
muitos outros. (DVD, 2007, p. 14-15).
“Federação Internacional dos Sindicatos
do Ensino”; membro da Comissão Italiana Obviamente, neste breve texto, não
na UNESCO; colaborador de vários outros poderei deixar de destacar a relação de
Jornais, Revistas e, como vimos, também da Manacorda com o Brasil. Ainda recente-
R.A.I. (Rádio Televisão Italiana). Em minha mente, quando o vi em Roma, ao falar-lhe
pequena biblioteca pessoal, conservo mui- do Brasil se emocionava. A primeira vez
tos exemplares das revistas Riforma della que visitei Mário, em sua residência de Bol-
scuola e Rinascita. Folhando-as, mesmo sena, foi em fevereiro de 1985. Fui visitá-lo
que rapidamente, percebe-se logo uma porque, conhecendo seus livros em língua
característica editorial: a preocupação com espanhola Marx y la pedagogia moderna
a comunicação de massa e com o elevado (Barcelona, 1969) e El principio educativo
nível cultural e científico. Não há ranço de en Gramsci (Salamanca, 1977), que circula-
sectarismo político, nem, como ele dizia, de vam entre nós educadores brasileiros, dese-
“racismo ideológico”. java trocar ideias sobre literatura marxista
Aberto ideologicamente, insistia, em educação e, quem sabe, publicar aqui
todavia, em se identificar como comunista, algumas das suas obras. Ainda guardo
mesmo quando a denominação era fora com carinho o exemplar do seu livro Sto-
de moda: ria dell’educazione – dall’antiquitá a oggi
Edição ERI, Torino, 1883, recebido de suas

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mãos naquela ocasião. Na 1ª folha em tória, Sociedade e Educação no Brasil” (HIS-
branco, manuscrito, se lê: a Paolo Nosella, TEDBR) comemorava 20 anos de fundação.
ricordo de uma viva conversazione su temi Dermeval Saviani me telefonou solicitando
di comune impegno. Bolsena, 5 febbraio que contatasse o Prof. Mario Alighiero
1985. Mario A. Manacorda (assinado). Em Manacorda para proferir a conferência de
1986, a Revista da Associação Nacional de abertura do VII Seminário Nacional pro-
Educação (ANDE), n. 10, publicou trechos movido pelo grupo na UNICAMP, em julho
de uma entrevista com ele, realizada por daquele ano. A intenção dos organizado-
Maria de Lourdes Stamato De Camillis. res do evento era trazê-lo pessoalmente,
Em 1987, o Programa de Pós- mas a idade avançada (93 anos), mesmo
Graduação de São Carlos, SP, coordenado gozando de boa saúde, aconselhou a “pre-
pela Profª Ester Buffa, organizara um sença virtual”. O tema da conferência foi “O
Seminário Comemorativo dos 10 anos século XX e as perspectivas para o futuro”.
de funcionamento: “Por que – disse para Diante do microfone, Mario falou mais de
Ester – não convidarmos Manacorda para uma hora, fazendo um denso balanço do
proferir a palestra de abertura?” Foi traba- século XX e apontando problemas para o
lhoso, mas conseguimos trazê-lo. Proferiu século XXI (o texto foi publicado no livro
aqui a palestra “Humanismo de Marx e “Navegando pela História da Educação
industrialismo de Gramsci”, posteriormente Brasileira-20 anos do HISTEDBR”, Editora
traduzida e publicada no livro “Trabalho, Autores Associados, Campinas, 2009). Na
educação e prática social”, organizado oportunidade, foi possível também realizar
por Tomaz T. da Silva, Editora Artes médi- na casa de campo de Bolsena uma entre-
cas, Porto Alegre, 1991. Na oportunidade, vista filmada que deu origem a um simpá-
Manacorda realizou um ciclo de palestras tico DVD, ainda a disposição graciosa dos
em várias universidades brasileiras. Essa simpatizantes, Mario Alighiero Mancorda
sua permanência no Brasil, quando tam- aos educadores brasileiros.
bém deu várias entrevistas (uma delas foi Sua preocupação incessante com
publicada em 1989 pela Revista Educação as recentes e antigas leituras abstratas,
em Questão), motivou as traduções para o hermeneuticamente pouco rigorosas ou
mercado brasileiro de algumas das suas mesmo mal intencionadas, dos escritos
mais importantes obras: “História da Edu- de Marx, deu origem a um belo “desaba-
cação – da antiguidade aos nossos dias” fo” teórico “Karl Marx e a liberdade”, livro
Cortez, 1989; “O princípio educativo em publicado no Brasil antes do que na Itália,
Gramsci” Ed. Artes Médicas, 1990; “Marx e pela Editora Alínea, Campinas, 2012. O livro
a pedagogia moderna” Cortez, 1991. é desdobramento de um notável artigo em
A segunda sua vinda ao Brasil foi jornal, 2005, Perché non posso non dirmi
virtual, isto é, em videoconferência. Em comunista (Por que não posso deixar de
2006, o Grupo de Estudos e Pesquisa “His- me chamar comunista). Para a publicação

28 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos
do livro, as coisas assim se passaram: em da liberdade. Com efeito, Marx pertence à
julho de 2008, voltei a visitá-lo em Bolsena, antiga cepa dos liberais progressistas, para
visando conseguir seu grande texto Diana os quais o valor máximo é a liberdade. To-
e le muse: tre millenni di sport nella lette- davia a eles se contrapõe porque reivindica
ratura. Permitiu-me copiá-lo, porém disse- a liberdade plena e para todos. Amá-la
me que, no momento, preferia publicar no assim não é amá-la de menos. Por isso, se
Brasil outro texto pronto desde 2007: Quel ardorosamente defende a igualdade social,
vecchio liberale del comunista Karl Marx. o faz como garantia dessa universal liber-
Aceitei o desafio e, junto com o amigo dade. Não são dois valores contrapostos,
Newton Ramos-de-Oliveira (2012, Prefácio), nem equivalentes: a liberdade é valor fim,
trabalhamos por longas horas na tradução. e a igualdade é valor meio.
A linguagem do texto, conforme
escrevi no prefácio, é colorida, meta- Adeus
fórica e coloquial, carregada de muita
— Caro Mário, se você sabe distin-
emoção, típica de alguém que realiza
um acerto de contas teórico. O título
guir a cultura ideal comunista da prática
foi um quebra cabeça. Propus, então, do socialismo real, por que não distinguir
outro título que se adequasse, obvia- também as culturas, ritos e mitos religiosos
mente, ao espírito do texto ‘Karl Marx das práticas das religiões reais?
e a liberdade’. Manacorda gostou e — Certamente, mas não esqueça,
aprovou, mas acrescentou: diga que Paolo, que o clero que te educou era o
este título é seu. No fim, editamos os clero do norte da Itália que protagonizou
dois títulos. importantes lutas populares.
Nesse livro, são retomados conceitos — Adeus, Mário, você pulou deste
e análises já várias vezes publicados, mas rio. Eu nele ainda continuo, movido pela
que, na sua versão compacta e sintética, contradição e alimentado pelo viático de
apresentam-se agora como um testamento seu exemplo que me faz pelejar em favor
teórico de sua leitura de Marx que, insis- da liberdade plena e para todos. (conversa
te, não é um teórico do poder, nem da imaginada entre mim e Mario)
economia, como muitos disseram, e sim

Referências (textos do autor)

A scuola nel vent’ennio. Ricordi e riflessioni. In: GENOVESI, Giovanni. “C’ero anch’io! Napoli:
Liguori, 2010.
Antonio Gramsci – l’alternativa pedagogica. Florença: Editora La Nuova Itália, 1972.
Diana e le muse – ter millenni di sport nella letteratura. - Antologia (mimeo), 2008.

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Franco Rodano lettore di Marx. Critica marxista, n. 5. [S.l.]: Edizioni Dédalo, 1988.
Il contributo dell’Universitá di Pisa e della Scuola Normale Superiore alla lotta antifascista ed
alla guerra di liberazione. Anais de Congresso. Frassati Filippo (Org.). Pisa: Giardini Editori e
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Il marxismo e l’educazione- testi e documenti: v. 1 Marx, Engels, Lênin. Roma: Editora
Armando, 1964.
Il marxismo e l’educazione- testi e documenti: v. 2 La scuola soviética. Roma: Editora
Armando, 1965.
Il marxismo e l’educazione- testi e documenti: v. 3 La scuola nei paesi socialisti. Roma:
Editora Armando, 1966.
Karl Marx e a liberdade. Campinas: Alínea, 2012.
La Paideia di Achille. Roma: Editori Riuniti, 1971.
Lettura laica della bibbia. Roma: Editori Riuniti, 1989.
Mario Alighiero Manacorda: aos educadores brasileiros. Campinas: HISTEDBR-FE/UNICAMP,
2007. DVD.
Marx e a pedagogia moderna. 2. ed. brasileira. Campinas: Alínea, 2007.
Marx e la pedagogia moderna. 1. ed. Roma: Editori Riuniti, 1966.
Momenti di storia della pedagogia. Torino: Loescher Editore, 1977.
O princípio educativo em Gramsci – americanismo e conformismo. Campinas: Alínea, 2008.
Pedagogia e politica scolastica del P.C.I. dalle origini alla liberazione. Critica marxista, n. 6. [S.l.]:
Edizioni Dédalo, 1980.
Per uma pedagogia dell’uomo inegrale. Critica marxista, n. 4-5., [S.l.]: Edizioni Dédalo, 1977.
Scuola e insegnanti. In: VEGETTI, Mario (Org.). Oralitá, scrittura e spettacolo, introduzione alle
culture antiche. Torino: [s.n.], 1983.

São Carlos, inverno, 2013.

Recebido em julho de 2012


Aprovado para publicação em agosto de 2012

30 Paolo NOSELLA. Mario Alighiero Manacorda: um marxista a serviço da liberdade plena e para todos

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