Você está na página 1de 10

PARA ALÉM DO ESTILO.

UM LUGAR PARA A PSICOLOGIA


No capítulo IV deste livro formulei a tese de que ao longo de todo o século passado os
processos de subjetivação enraizaram-se em um território triangular balizado pelos valores
e procedimentos iluministas, pelos modos românticos e pelas novas práticas de exercício de
poder, que, no conjunto, constituem o regime disciplinar radiografado por Foucault (1977).
Vimos, então, como estes três vértices criam entre si vínculos complexos, marcados por
mútuas afinidades e mútuas oposições. O caráter constitucionalmente conflitivo deste
espaço o tornaria um território de desconhecimento, já que qualquer posição dentro dele
contém em si aspectos interditados à consciência reflexiva.
Ora. o que vai caracterizar a segunda metade do século XIX, prolongando-se numa
trajetória sinuosa, mas reconhecível ao longo do século XX. São algumas alterações nos
pesos específicos, nas formas dc manifestação e modos de operação daqueles pólos. Em
linhas gerais. expandiram-se e aprolundaram-se as práticas disciplinares à medida que se
foi configurando o que alguns autores denominam de sociedade administrada ou
capitalismo tardio (Habermas, 1978 e 1981). Os procedimentos de exame, avaliação,
programação e controle foram invadindo de lorma insidiosa todos os refúgios em que os
indivíduos procuravam se abrigar do liberalismo e em que procuravam se nutrir e
desenvolver com espontaneidade as personalidades românticas. Com isso. a separação entre
esferas pública e privada perdeu muito da sua
151
vigência efetiva, embora imaginariamente ela possa parecer mais forte e valiosa que nunca.
De fato, o liberalismo e o romantismo flão niorreram. estão sempre retornando com novas
faces e novas funções. Enfim: o próprio território triangular do desconhecimento não se
desfez. Ao contrário, parece ganhar em densidade e volume a cada remanejamento de suas
forças constitutivas. Algumas das camadas deste terreno serão experimentadas e
reconhecidas como o psicológico’, dotado de especificidade e disponível como objeto de
saber e intervenção. Estas áreas nascem, por assim dizer, dos escombros do liberalismo e
do romantismo triunfantes, embora subsistam em um terreno formado e adubado por estes
mesmos ingredientes, só que agora condenados a uma existência problemática, insegura e
defensiva.
O significado existencial do ‘psicológico’ e o das posições das diversas psicologias, que, de
uma forma ou outra, o têm como campo próprio de investigação e atuação, poderão ser
melhor esclarecidos mediante a análise de uma figura representativa de um dos limites do
‘campo psi’ e cujos Iracassos existenciais nos levam diretamente para o meio deste campo.
Refiro-me ao homeni de estilo que no final do século encarnou-se em personagens ‘reais’,
como Oscar Wilde (1854- 1900). ou ‘fictícios’, como o protagonista do romance Às
avessas (1884) de J.-K. Huysmans (1848-1907). (As aspas simples em ‘reais’ e ‘fictícios’
devem-se à impropricdade desta distinção nos casos em exame.)
O Duque Jean des Esseintes, vida e obra
Na ‘Notícia’ que antecede o romance, somos apresentados ao jovem duque Jean, franzino,
anêmico e nervoso, último rebento de uma antiga e gloriosa família. Jean jamais teve dos
pais senão o mais frio e distante tratamento. A mãe vivia acamada e prostrada e assim
morreu. O pai raramente o via. ‘Sua família se preocupava pouco com ele.’ Enquanto
estava viva, a mãe estava geograficamente mais próxima (o pai vivia em Paris), mas ‘... sua
presença não tirava a mãe de seus devaneios: ela mal se dava conta dele...’ Huysmans nos
transmite claramente a idéia de que Jean nunca soube exatamente quem era seu pai.
enquanto a mãe de Jean nunca soube exatamente quem era seu filho. Sentiu-se mais bem
acolhido no colégio jesuíta no qual, contudo, tinha um desempenho irregular, marcado por
uma certa teimosia e calada
indisciplina. Ao final da adolescência, entra em contato com um primo e com sua família.
Neste meio só enconti’ou “... saraus opressivos onde parentes tão antigos quanto o mundo
entretinham-se com quartéis de nobreza, luas heráldicas, cerinioniais cediços”. Outros
ambientes sociais foram se revelando um a um igualmente estúpidos, monótonos,
destituídos de espírito. Aproximou-se, então, dos homens de letras:
foi outro malogro; revoltou-se com os juízos rancorosos e mesquinhos deles, com sua
conversação tão banal quanto uma porta de igreja, com seus discursos enfadonhos”.
Penetrou, também, para logo sair com repugnância. no círculo de livre-pensadores que
defendem a sua liberdade de “estrangular as opiniões alheias”. “Seu desprezo peI
humanidade aumentou; compreendeu enfim que o mundo se compõe, na maior parte, de
sacripantas e imbecis.” Do mesmo modo, o contato com as mulheres, que por um momento
o empolgara, desgasta- se rapidamente e ele sente que se aproxima a impotência. A isto ele
contrapõe, durante um tempo, o desejo e a prática de amores excepcionais. mas sem
sucesso. Nas práticas extravagantes de uma boemia romântica, gastara muito da sua
fortuna. “Suas idéias de afastar- se para longe do mundo, de fechar-se num retiro, de abafar
(como se faz para certos doentes cobrindo a rua de palha) o alarido rolante da vida
inflexível, se revigoraram.”.
Diante de uni mundo despojado de todo valor positivo restava, enfim, a excentricidade, a
saída do centro, o isolamento, a reclusão. Neste espaço periférico, des Esseintes projeta
uma vida absolutamente dominada pela obsessão do estilo. Aqui começa o romance.
Cada capítulo de Às avessas relata um momento e um aspecto do meticuloso proceder de
des Esseintes na produção de sua identidade singular. Os primeiros capítulos dedicam-se à
própria construção do espaço. que deveria ser confortável, acolhedor, absolutamente
original e 1 Deve ser um ambiente completamente artificial e imune às irrupções da
sociedade e da natureza. Dentro deste espaço deve vigorar uma rotina planejada até nos
mínimos detalhes e observada de forma quase religiosa ou quase científica. Por fim, des
Esseintes programa para si uma existência experimental perfeita; não há nada que seja
deixado ao acaso, não há brechas pelas quais as presenças da natureza ou da sociedade
possam se infiltrar. As diversas e infinitamente variadas sensações (sonoras, visuais,
olfativas, palatais
152
153
e intelectuais) não estão, contudo, excluídas deste mundo. Elas estão. no entanto, sob o
controle total de des Esseintes, que programa seu espaço de forma a tiltiw e dosar estas
experiências, de acordo com suas necessidades e possibilidades. O que se evita é o
turbilhão das experiências demasiadas: o que se persegue são as condições para disc,i,,u,iar
e classificar as sensações. Há em tudo um senso de medida que se pareia ao dos mais
soüsticados laboratórios de psicologia da épcca (cinco anos antes, convém recordar, Wundt
fundara o primeiro laboratório de psicologia, cm Leipzig). Trata—se, além disso, de um
laboratório totalitário, no qual uma existência inteira deveria decorrer. Através do artifício,
des Esseintes era capaz de se propiciar experiências ilusórias tão convincentes ou mais do
que as experiências reais; por exemplo, havia um cômodo decorado como a cabine de um
navio e nele, com seus diversos dispositivos e com um certo treino de concentração. des
Esseintes podia realizar viagens transatlânticas sem os riscos do naufrágio e os
aborrecimentos inevitáveis de quem se afasta do lar. A medida certa de experiências
variadas, mas sempre regradas e controladas, era a única maneira de ir vivendo e ao mesmo
tempo defendendo sua pele fina, sua sensibilidade excessiva, seu receio permanente de
invasão e desintegração (des Esseintes era um hipocondríaco) das misérias e agressões do
mundo ao redor.
Os capítulos posteriores vão recenseando um a um os gostos. preferências e antipatias de
des Esseintes no campo das artes, da literatura, da vida religiosa (ele era ateu), das artes
plásticas. Em todos estes setores, des Esseintes preferia o rebuscado, o estiloso, o artificial,
o que constrói e define sua identidade a partir do vazio ou da degeneração das tradições. o
que se identifica pela negação, pelo contra. Às avessas. Ir contra o mundo e suas
tendências, constituir- se na recusa às solicitações mundanas era para des Esseintes a única
forma de identidade possível: o estilo, para ser individual e subsistir num estado de tensão
sustentada com o mundo à sua volta, deveria ser o estilo cia indisponibilidade. Neste modo,
o ornamental, o inútil, o teimoso e o indiferente seriam as marcas da identidade. Pequenos
episódios. seguiclos de muitas reflexões, que Huysmans distribui ao longo de todo o texto,
‘ão reforçando e revelando novas facetas do estilo dc des Esseinies; alguns dos mais
famosos são o trabalho de ourivesaria que ele manda realizar no casco de urna tartaruga,
para
torná-la um objeto decorativo (o animal morre), o plano para transformar cientificamente
um pobre rapaz num libertino e num criminoso, e a aquisição de dezenas de plantas
exóticas que não parecem plantas. parecem animais, minerais ou coisa nenhuma (as plantas
também morrem). Em todos estes acontecimentos traduz-se a mesma vontade de submeter
o natural ao artifício, de separar-se da natureza, de expô ia em suas formas menos naturais e
mais bisonhas, de convertê-la em objetos de luxo, de inutilizá-la, de torná-la indisponível.
Nenhuma dessas operações consegue, ao fim e ao cabo, livrar cles Esseintes cio tédio e da
hipocondria. Após uma das crises, ele tenta uma viagem à Inglaterra. mas desiste poucas
horas depois de sair de casa quando num restaurante freqüentado por ingleses, ainda na
França. ele descobre que o essencial da viagem à Inglaterra já se tinha realizado. Nesse
episódio, farto e saturado de si mesmo no seu estilo. ele, fora de casa e perdido na cidade,
sente provisoriamente a felicidade de misturar-se à vida comum sem identidade alguma, no
completo anonimato. Além desta mistura no mundo social, a viagem iniciada num dia
chuvoso é também a oportunidade para que ele se misture à natureza: é invadido pela
umidade, é ensopado pela chuva, afunda na lama, é sufocado pelos odores. Tudo isso lhe
faz bem, mas o bem não dura e ele retorna ao seu estilo, aos seus contornos, aos seus
limites, rotinas, programas e proteções. Depois da malograda viagem, depois cia dissolução
de fronteiras experimentada, a organização metódica da vida, a estilização total da
existência lhe parecem ainda mais valiosas. É aqui que brotam os seus mais ardentes
elogios ao ‘decadentismo’, à literatura tardo-romântica de Baudelaii’e, Verlaine, Edgard
AlIan Poe, e à suprema poesia nova de Stéphane Mallarmé. Com eles, des Esseintes podia
identificar-se, porque neles sentia o mesmo repúdio a
esse sentimentalismo imbecil combinado com uma ferocidade prática que] represeniava o
pensamento dominante do século; as mesmas pessoas que teriam vazado o olho do próximo
para ganhar dez tostões. perdiam toda a lucidez, todo o faro, diante dessas taverneiras
equívocas que os importunavam sem piedade e os exploravam sem trégua. Indústrias
trabalhavam, famílias se extorquiam mutuamente a pretexto de comércio, a fim de
empalmar dinheiro para seus filhos, os quais. por sua vez, deixavam-se intrujar por
mulheres que esfolavam, em última instância, os amantes por amor. (p. 206)
154
155
Mas também o entusiasmo por aqueles que pelo estilo de vida e de escrita recusavam a vida
comum não durou e a doença voltou a se abater sobre des Esseintes. Neste momento, ele se
recorda com nostalgia de algumas experiências entre os jesuítas. Talvez as mais marcantes
delas fossem as audições de canto gregoriano “... com seu poderoso uníssono, suas
harmonias solenes e maciças como pedras”. Em comparação com esta música, quase tudo o
mais lhe desgostava. Apenas alguns músicos românticos, como Schumann, podiam
satisfazê lo. desde que ouvidos longe da turba de melômanos. Como não podia entrar em
contato com esta música, e principalmente com a música do “prodigioso Wagner” sem se
misturar às alegrias da “turba inconsciente”, des Esseintes optou por deixar a música de
lado. Mas enquanto ia assim rememorando suas experiências musicais, o estado do
personagem piorava. Finalmente, um dia pediu ao criado um espelho, o qual em seguida lhe
tombou das mãos: “mal conseguia reconhecer- se”.
Só então, depois dessa experiência de perda de identidade que emcrgia ao cabo de meses e
anos dedicados cuidadosamente à fabricação e à observância do seu estilo, des Esseintes
resolve chamar um médico. Este o examina, propõe-lhe urna dieta e receita: “... era mister
abandonar aquela solidão, voltar a Paris. rcingressar na vida comum” (p. 254).
No capítulo seguinte, des Esseintes passa em revista todas as suas lembranças daquela vida
comum que o médico lhe receitara: são algumas páginas da mais violenta condenação do
século XIX, o século da mesquinhez, da falsidade, da avidez, do espírito prático
americanizado, da funcionalidade estúpida. Nenhuma classe social parece ter se preservado
dessa imensa balbúrdia e deterioração de valores. Mas não há saída. O romance termina
com des Esseintes preparando-se para a ‘cura’:
Dentro de dois dias estarei em Paris: vamos — disse consigo — está tudo acabado mesmo;
como maremoto, as vagas da mediocridade humana elevam-se até o céu e vão engolir o
refúgio cujas barreiras eu mesmo abri, contra minha vontade. Ah! a coragem me falta e o
coração me arrasta! Senhor, tem piedade do cristão que duvida, do incrédulo que desejaria
crer, do farçado da vida que embarca sozinho, de noite, sob um firmamento que não mais
ilumina os consoladores finais da velha esperança. (p. 254)
Estilismo e excentricidade’
O experimentalismo existencial dc des Esseintes nos oferece um detalhado e extenso
panorama da estilização como modo de vida. Trata- se, em todos os aspectos da existência,
de elaborar um estilo próprio que se diferencie de todas as medidas centrais: a média, a
mediana e a moda. Há urna intenção permanente de ser original, de ocupar um espaço
excêntrico, tanto no sentido geométrico como no sentido existencial do termo.
Binswanger (1977) identifica na excentricidade um modo de ser composto pelas diversas
versões da indisponibilidade. O excêntrico coloca-se na posição dc recusa a ‘funcionar
com’, a ‘funcionar junto a’, torna-se imprestável: escapa dos circuitos funcionais e, desse
modo, conquista e mantém uma identidade absolutamente singular, desenraizada,
encapsulada, fechada ao mundo dos objetos e ao convívio social. O excêntrico organiza-se
em torno de um tema, de um princípio, de um sistema que garante sua completa unidade ao
longo dc) tempo e, simultaneamente, o torna impermeável a tudo que lhe vem ao encontro
desde o mundo físico e social. Como esta singularidade inteiriça e resistente é obtida
mediante um conjunto de meticulosos cuidados de si e do mundo — a estilização da vida
coloca, efetivamente, a existência como objeto de unia técnica sofisticada e inflexível , o
estilo do excêntrico reúne a singularidade identificatória a uma espécie de impessoalidade
maquinal; a partir de uma surpresa inicial, o excêntrico tende a se tornar extremamente
previsível.
Creio que não podem haver dúvidas de que as descrições fenomenológicas de Binswanger,
elaboradas à luz de alguns casos de psicose, ajustam-se muito bem a des Esseintes e, para
além dele, a toda uma maneira de ser que Huysmans encarna em seu personagem: o modo
de ser ‘decadente’. como era designado ao final do século XIX (hoje não há uma
designação consagrada, embora o fenômeno não tenha desaparecido). No entanto, a tese
que pretendo defender é a de que. apesar de ser um excêntrico geográfico (des Esseintes
monta seu refúgio numa região isolada na periferia de Paris) e de ser um excêntrico
existencial, a figura do estilista está rigorosamente no centro do território triangular
formado pelos vértices do liberalismo, do romantismo e da disciplina: o território do
desconhecimento. Pretendo mostrar, também, que enquanto ocupa este lugar, malgrado seu
156
157
ccntralíssimo. no espaço existencial disponível, des Esseintes está fora do alcance da
psicologia; o seu é exatamente o lugar da resistência, O ‘psicológico’ se constituirá daquilo
que deste lugar central se torna invisível.
O estilismo em des Esseintes leva às suas últimas conseqüências o desejo de privacidade
peculiar ao liberalismo. A procura de um espaço privado, seja o da casa e nela o dos
aposentos íntimos, seja o do jardim inglês, o do clube masculino OU O da sociedade
secreta, testemunhou desde o século XVIII a necessidade de locais privilegiados para o
cultivo de si (cf. eap .3 deste livro). Des Esseintes pertence a esta mesma tradição, mas a
leva adiante. Seus cuidados para reduzir, filtrar, dosar e, quando possível, impedir a
presença do mundo no interior de seus aposentos vai ao ponto de encadernar as paredes,
substituir janelas reais por fictícias, que se abrem para as paisagens programadas, conservar
os cômodos invulneráveis à luz e ao ar naturais etc. Neste ambiente hermético. des
Esseintes vive sozinho e se comunica com os criados através de bilhetes, sem nunca os ver.
A privacidade para ele, contudo, não é urna garantia de liberdade. Ao contrário, o refúgio
de des Esseintes é urna espécie de prisão-modelo na qual tudo é programado, segue rotinas,
obedece horários etc. Seu cardápio diário, por exemplo, é decidido com meses de
antecedência, item por item. Não só de liberdade ele está privado: está privado também da
propriedade. Esta afirmação requer maiores esclarecimentos, já que a casa é um verdadeiro
museu em que o dono conserva toda sorte de raridade. Contudo, a acumulação de objetos
preciosos, quadros, livros raros em edições exclusivas, dispositivos especialmente
fabricados para produzo’ sensações palatais, frascos de perfumes sutis, plantas exóticas etc.
tudo isso lhe é de muito pouco ou de nenhum proveito. Exatamente como peças de museu,
estas coisas estão ou vão ficando fora de circulação. No mundo de des Esseintes, abarrotado
de coisas, não há produção e mesmo o consumo é restrito, quando mais não seja por falta
de apetite. Vez por outra ele se encanta com seus livros, por exemplo, para logo se
embrenhar em divagações, para se enfastiar, para adoecer e para fazê-los retornar à
condição de fetichcs estéreis. Temos, assim, na identidade decadente uni rebento exangue
do liberalismo: privacidade sem liberdade e propriedade esterilizada e sem uso.
A presença do romantismo é fácil de localizar desde as preferências literárias e artísticas do
personagem. Na verdade, sua
recusa da sociedade burguesa, pragmática, calculista, hipócrita e mesquinha está toda ela
calcada na tradição romântica antiliberal e antidisciplinar. E nitidamente romântica, ainda, a
aspiração a uma forma de identidade absolutamente singular e única, radicalniente
diferenciada de todas as demais. No entanto, ficam excluídos do projeto de des Esseintes os
impulsos espontâneos no rumo do autodesenvolvimento e qualquer esperança restauradora.
No lugar de impulsos, tédio mortal e falta de apetite, impotência; no lugar da
espontaneidade, a estilização minuciosa; no lugar da restauração, a resignação a um estado
de desenraizamento absoluto: nem a integração a unia comunidade mítica, nem a integração
a unia natureza matricial (não há como retornar a uni seio acolhedor e a própria perspectiva
do retorno lhe é nauseante).
Finalmente, apesar de toda a sua deliberada imprestabilidade, do seu ódio aos valores do
cálculo e da eficiência, do seu desprezo pelo espírito pragmático, des Esseintes monta para
si mesmo um mundo completamente submetido ao controle de urna l’érrea disciplina.
Trata- se, contudo, de unia disciplina para ociosos, de unia disciplina que se consagra à
inutilidade, ao supérfluo. ao ornamental, ao antifuncional, ao indisponível.
Como se vê, a reunião exata de liberalismo, romantismo e disciplina, no centro geométrico
do triângulo, se faz através de urna sucessão de exclu.võe.v. Ao se i’eunireni a privacidade,
a singularidade e a disciplina em suas formas puras e absolutas constitui-se, através de
múltiplas e sirnultâneas negações, unia identidade exemplarmente resiste,ite. Dela excluem-
se a liberdade e os usos, os impulsos e a funcionalidade. Neste ponto central em que está
postado, des Esseintes está paralisado. Todos os seus esforços dirigem-se para a
conservação desta identidade, o que também significa a manutenção das cisões que lhe
deram origem. Enquanto se mantém no equilíbrio instável deste centro, enquanto conserva
o estilo próprio, enquanto, enfim, resiste, ele na sua excepcionalidade rebuscada não será,
de fato, nem o homem médio nem o homem da moda. No entanto, e seguramente a
contragosto, na sua raridade ele se torna o exemplar mais representativo do próprio mundo
em que ‘sobre-vive’. É nele, inclusive, que se concentra a maior dose de ignorância acerca
de si: no mundo que constrói para viver, des Esseintes procura exatamente a liberdade, o
bom uso de si e das suas coisas, a satisfação plena de seus apetites, a
15
159
máxima funcionalidade do ambiente em relação às suas necessidades. Mas estes, como
vimos, são tudo aquilo a que des Esseintes deve renunciar para manter sua identidade.
Trata-se, dessa maneira, de uma identidade que se constitui na e como pura ilusão. O que
ela nega, entretanto, não tarda a reaparecer.
Efetivamente, a manutenção do estilo não é tarefa fácil, O romance de Huysmans, todo
leitor o percebe, não tem enredo. É um romance em que nada ou quase nada acontece. Ora,
o ‘não acontecimento’, a ausência de história são os testemunhos de uma severa
perturbação da teniporalidade. A exclusão da liberdade, dos impulsos. dos usos e da
funcionalidade retira os motores da história pessoal de des Esseintes. A partir de sua
mudança para a casa nos arredores de Paris, parece que todo o esforço do personagem se
volta para a conservação, com exceção do episódio da frustrada viagem à Inglaterra. que na
sua própria frustração reforça o caráter conservador de todo o projeto. No entanto, o que foi
excluído da identidade estilizada e excêntrica não foi por isso abolido, retorna como
elemento potencialmente desagregador. No caso de des Esseintes, creio que suas doenças.
que são tanto doenças de nervos como doenças físicas, resumem o sentido do tempo que
deixou de ser história humana para ser apenas um tempo natural, o tempo da deterioração,
da perda de controle, do aniquilamento. Pois bem, é tudo aquilo que este excêntrico
excessivamente centrado em si mesmo e no seu mundo sofre, é este seu padecimento, que,
ao contrário de tantas coisas que ele conserva, escapa ao seu domínio, e o expulsa
finalmente de onde estava alojado, de volta ao turbilhão das forças, das pressões e das
demandas da natureza e da sociedade.
Se des Esseintes tivesse vivido cinqüenta anos depois, não resta dúvida, ele sairia dessa
experiência fracassada de centramento para se entregar aos cuidados de quem, supõe-se, é o
especialista em ‘homens que perderam o estilo’ e se sentem imersos nos conflitos desse
território em que todos vivemos e no qual agem livres, para além da consciência
integradora das identidades, as forças submersas do ‘psicológico’.
Talvez seja o momento de recordar que ao final do século XV Picb delia Mirandola situava
o homem no centro vazio do mundo para que de lá ele tudo pudesse ver e tudo pudesse
escolher para si.
Quatrocentos anos depois, ao final do século XIX, des Esseintes, deliberadamente
excêntrico, mas também ele no centro do mundo, pouco vê e nada pode. Parece que se vai
fechando assim o ciclo da modernidade Mas não sem sofrimento e dores. Neste solo nasce
a psicologia tal como a conhecemos.
Para além do estilo
Para encerrar, caberiam agora algumas poucas considerações visando situar os diversos
projetos contemporâneos de psicologia no solo em que estão ainda plantados. procurando,
também, dar um fecho às observações que foram sendo feitas ao longo destes ensaios.
Todos estes projetos referem-se, de uma forma ou de outra, ao que, simultaneamente, se
localiza no campo das experiências possíveis, mas está fora do alcance de unia consciência
integradora, fora do âmbito da identidade, para além do estilo. Na verdade, creio que para
as psicologias a identidade é um conceito-limite e o ‘psicológico’ vem a ser exatamente o
que condiciona/pressiona/estrutura/destroça as identidades.
Para além do estilo como identidade há diversos processos de dissolução. que resultam, por
sua vez, em novos estilos.
O estilo da identidade é. paradigniaticaniente, o da suposta soberania do eu de des Esseintes
no casulo de sua estrita e confinante privacidade. As dissoluções do estilo, por outro lado,
são os processos que impõem a esta unidade de si para consigo os reveses do ‘adoecimento’
são as explosões e implosões do casulo sob o impacto das aspirações de liberdade, das
exigências de funcionalidade e dos extravasamentos pulsionais.
Neste contexto, a oposição entre esferas pública e privada, ainda tão cara ao imaginário
social, não tem mais nenhuma vigência efetiva. Não era dentro de casa que des Esseintes
podia ser livre, satisfazer seus desejos, saciar seus apetites e se organizar de forma
funcionalmente confortável, embora fossem estes os seus propósitos. Não era, obviamente,
fora de casa que isto poderia ter ocorrido. Tanto no público como no privado ele estaria,
como identidade-estilo. igualmente submetido às mesmas restrições. Aquilo de que ele
carece, por ter sido negado como condição de emergência de si como
160
161
identidade, não lhe está disponível em parte alguma. Somente saindo de si ele poderia
reintegrar algo do excluído, mas isto, naturalmente, à custa da própria unidade.
Os movimentos artísticos e literários desde o final do século XIX até OS dias de hoje
testemunham, de variadas maneiras, o destroçamento do eu e a problematização do sujeito
individual pela aut000nhização daqueles elementos que operam no registro do excluído. A
saída de si no campo das artes e da literatura foi buscada tanto na direção das formas
funcionais, como no da expressão autêntica das torças pulsionais, como na liberação do
jugo da identidade convencional, conveniente e soberana. É possível reconhecer nestas
orientações, cada uma das quais admitindo uma ampla gama de efetuações, por exemplo, a
arquitetura funcional, as artes plásticas e a música expressionistas e os surrealismos, entre
outros. Há, em todas estas manifestações artísticas, uma ruptura radical com o princípio da
estilização identificatória. Cada uma delas, contudo, arrisca-se a, rapidamente, converter-se
também em estilo. Talvez este destino ‘estiloso’ do nosso tempo se deva a que a
incorporação dos elementos excluídos seja sempre parcial: o outro de si que a identidade
incorpora é sempre apenas um dos outros vale dizer, cada descentramento parece repetir
também uma exclusão. Cada estilo novo segrega, ele mesmo, o seu impensável, o seu
próprio inconsciente. Isto não nos deve surpreender se nos lembrarmos da natureza
genuinamente conflitiva do espaço da contemporaneidade, que o torna por isso mesmo um
território de desconhecimento. A outra consideração pertinente é a de que a sobrevivênria
neste espaço exige formas de subjetivação inevitavelmente úusórias e resistentes. Em
última instância, há, inclusive, que saber respeitar este ingrediente essencial de ignorância.
Se formos agora do plano das tendências literárias e artísticas para o dos processos de
subjetivação e ‘des-subjetivação’, encontraremos os mesmos movimentos, só que
realizados à revelia, Os elementos excluídos e tornados independentes do eu retornam
como irrupções indesejáveis e incontroláveis, na compulsividade dos sintomas ou num
difuso e inexplicável mal-estar. Retornos como esses tiraram o excêntrico des Esseintes de
seu centro na forma de doenças de causas desconhecidas; o adoecer é uma experiência
modelar de alienação: as forças e pressões alienadas da funcionalidade, dos
impulsos, da liberdade e usos de si e das coisas disputam entre si o sujeito supostamente
indiviso e soberano e desmantelam o seu estilo.
O espaço do ‘psicológico’ será exatamente o que abriga as forças alienadas do eu, os
elementos dos três vértices do espaço triangular expulsos da identidade-estilo, as relações
entre eles e os processos de suhjetivação/’des-subjetivação’ que promovem
incessantemente.
Há diversas maneiras de pensar e fazer psicologia, porque há diversas possibilidades de
lidar com estes elementos, sua estrutura e dinâmica. É possível, por exemplo, privilegiar
um, dois ou os três vértices. Se a psicanálise freudiana é ainda hoje um modelo de
teorização — independentemente de aceitarmos as teorias propriamente ditas é, creio, pela
sua disposição em acolher e lidar com um complexo sistema de forças em conflito, embora
isso lhe traga dificuldades extremas para a sua própria articulação e consistência.
Por outro lado, é possível pensar a psicologia como um recurso de uma estratégia a serviço
da ‘reidentificação’, vale dizer, da integração dos elementos alienados em formas mais ou
menos centradas e flexíveis de identidade. Ou então, ao contrário, pode-se colocar a
psicologia a serviço da desidentificação, dando-lhe uma tarefa eminentemente analítica,
crítica, desilusionadora e desconstrutiva. Novamente, aqui, a psicanálise freudiana é um
modelo seminal em que pesem leituras da psicanálise que enfatizam os processos
integrativos e regeneradores, seja no vértice romântico da restauração, seja no vértice
disciplinar da adaptação funcional.
Enfim, a psicologia nasceu e sobreviveu numa encruzilhada: há maneiras nostálgicas e
reparativas de fazer psicologia; são formas comprometidas com a modernidade e com a
soberania do sujeito; são estas psicologias que, independentemente de escolas, pertencem
ao campo do humanismo moderno; elas militam para restabelecer para o homem os
privilégios que lhe atribuía Pico delia Mirandola. Há, por outro lado, psicologias que
ajudam a tirar o sujeito do centro do mundo, da posição de fundamento do saber e de foco
de irradiação das escolhas e ações. Estas psicologias já não cabem na Idade Moderna. Elas
não têm nada a ver com o humanismo.
Seria excessivamente simples declinar agora minhas preferências. Penso, na verdade, que
em qualquer destas alternativas a posição do psicókgo seria corno a de alguém que recebe
uma carta anônima com
162
163
revelações importantíssirnas, mas cuja validade não pode ser estimada porque se
desconhece sua procedência. Acreditar ou jogá-la no lixo dependeria, desta maneira, de
uma decisão bastante arbitrária do leitor. Da mesma forma, escolher entre as psicologias
hoje disponíveis é um ato de pura arbitrariedade enquanto não entendermos a proveniência
de nossos ‘objetos’, enquanto não compreendermos a história do ‘psicológico’ e, portanto,
a pré-história das posições da própria psicologia no século XX. Isto, creio eu, a psicanálise,
também ela, não logra compreender, tendendo a naturalizar seus objetos e a desconhecer a
conjuntura em que o ‘psicológico’ se oferece como campo sai generis de saber e
intervenção. Creio, enfim, que a compreensão de que falo não se pode elaborar na posição
de psicólogo, OU psicanalista, enquanto um especialista no psicológico. Ela deve partir,
quem sabe, deste lugar-nenhum em que os saberes ‘psi’, a história, a filosofia e as artes se
encontram e se perdem no exercício do mero pensar.
Notas
1. A análise que faço do personagem de 1-luysmans beneficiou-se da leitura de Eugen
Weber (1988) para situar o tipo em sua época; do capítulo XVII, entre outros, do texto de
Morsc Peckham [ 981) para compreensão do estilismo, e do capítulo X de Frederick Garber
(1982) para a compreensão da experiência de autonomia de se/f elaborada por des
Esseintes, e de suas vicissitudes. Creio, porém, que é original a sugestão de compreender a
excentricidade como ocupando uma posição central no território do desconhecimento, ou
seja, como sendo uma forma de subjetivação representativa da contemporaneidade, apesar
de infreqüente.
2. No capítulo 2 deste livro tratei do amaneiramento como estratégia de construção de
identidade e, à primeira vista, o estilo amaneirado pode ser confundido com o estilo da
excentricidade de que estou tratando agora. Realmente, nos dois casos trata-se de uma
construção de identidade em condições precárias de existência, em condições nas quais as
ameaças de desintegração rondam permanentemente o sujeito. No entanto, conviria agora
enfatizar as diferenças entre estes dois estilos. No caso de dom Quixote, por exemplo, há
nitidamente urna adesão a modelos idealizados e uma procura de confirmação em relações
especulares; daí a ânsia de reconhecimento que dá o tom das falas e dos gestos do
personagem. Na mesma medida, os nobres da corte, o rei inclusive, sobrevivem inseridos
num vasto sistema social em que cada um devolve ao próximo sua imagem e sua
identidade. Não é por acaso que as cortes se organizam num sistema altamente codificado
— a etiqueta — e que no mesmo período os espelhos tenham se tornado uma peça
indispensável dos interiores mundanos. Já no caso de des Esseintes, a identidade prescinde
e recusa qualquer modelo; o estilismo excêntrico procura elaborar urna identidade original
e absolutamente singularizada. De outro lado, a confirmação pelos outros não é necessária e
até pode ser arriscada. Na verdade, quando um espelho é introduzido na história é para
revelar exatamente a diferença, ou seja, o fracasso de todo esforço de estilização
identificatória. É interessante lembrar que também as relações do Dorian Gray, de Wilde,
com sua imagem especular são relações conflituosas e marcadas pela diferença entre as
duas imagens; ele será sempre o contrário do que o famoso retrato mostra.
3. As rapidíssiinas observações acerca das quebras e restaurações de estilo na virada do
século e nos primeiros anos do século XX encontram apoio, penso eu, em análises como as
desenvolvidas por CarI Schorske ( principalmente nos capítulos!, 5,6 e 7,
164
165

Você também pode gostar