No capítulo IV deste livro formulei a tese de que ao longo de todo o século passado os processos de subjetivação enraizaram-se em um território triangular balizado pelos valores e procedimentos iluministas, pelos modos românticos e pelas novas práticas de exercício de poder, que, no conjunto, constituem o regime disciplinar radiografado por Foucault (1977). Vimos, então, como estes três vértices criam entre si vínculos complexos, marcados por mútuas afinidades e mútuas oposições. O caráter constitucionalmente conflitivo deste espaço o tornaria um território de desconhecimento, já que qualquer posição dentro dele contém em si aspectos interditados à consciência reflexiva. Ora. o que vai caracterizar a segunda metade do século XIX, prolongando-se numa trajetória sinuosa, mas reconhecível ao longo do século XX. São algumas alterações nos pesos específicos, nas formas dc manifestação e modos de operação daqueles pólos. Em linhas gerais. expandiram-se e aprolundaram-se as práticas disciplinares à medida que se foi configurando o que alguns autores denominam de sociedade administrada ou capitalismo tardio (Habermas, 1978 e 1981). Os procedimentos de exame, avaliação, programação e controle foram invadindo de lorma insidiosa todos os refúgios em que os indivíduos procuravam se abrigar do liberalismo e em que procuravam se nutrir e desenvolver com espontaneidade as personalidades românticas. Com isso. a separação entre esferas pública e privada perdeu muito da sua 151 vigência efetiva, embora imaginariamente ela possa parecer mais forte e valiosa que nunca. De fato, o liberalismo e o romantismo flão niorreram. estão sempre retornando com novas faces e novas funções. Enfim: o próprio território triangular do desconhecimento não se desfez. Ao contrário, parece ganhar em densidade e volume a cada remanejamento de suas forças constitutivas. Algumas das camadas deste terreno serão experimentadas e reconhecidas como o psicológico’, dotado de especificidade e disponível como objeto de saber e intervenção. Estas áreas nascem, por assim dizer, dos escombros do liberalismo e do romantismo triunfantes, embora subsistam em um terreno formado e adubado por estes mesmos ingredientes, só que agora condenados a uma existência problemática, insegura e defensiva. O significado existencial do ‘psicológico’ e o das posições das diversas psicologias, que, de uma forma ou outra, o têm como campo próprio de investigação e atuação, poderão ser melhor esclarecidos mediante a análise de uma figura representativa de um dos limites do ‘campo psi’ e cujos Iracassos existenciais nos levam diretamente para o meio deste campo. Refiro-me ao homeni de estilo que no final do século encarnou-se em personagens ‘reais’, como Oscar Wilde (1854- 1900). ou ‘fictícios’, como o protagonista do romance Às avessas (1884) de J.-K. Huysmans (1848-1907). (As aspas simples em ‘reais’ e ‘fictícios’ devem-se à impropricdade desta distinção nos casos em exame.) O Duque Jean des Esseintes, vida e obra Na ‘Notícia’ que antecede o romance, somos apresentados ao jovem duque Jean, franzino, anêmico e nervoso, último rebento de uma antiga e gloriosa família. Jean jamais teve dos pais senão o mais frio e distante tratamento. A mãe vivia acamada e prostrada e assim morreu. O pai raramente o via. ‘Sua família se preocupava pouco com ele.’ Enquanto estava viva, a mãe estava geograficamente mais próxima (o pai vivia em Paris), mas ‘... sua presença não tirava a mãe de seus devaneios: ela mal se dava conta dele...’ Huysmans nos transmite claramente a idéia de que Jean nunca soube exatamente quem era seu pai. enquanto a mãe de Jean nunca soube exatamente quem era seu filho. Sentiu-se mais bem acolhido no colégio jesuíta no qual, contudo, tinha um desempenho irregular, marcado por uma certa teimosia e calada indisciplina. Ao final da adolescência, entra em contato com um primo e com sua família. Neste meio só enconti’ou “... saraus opressivos onde parentes tão antigos quanto o mundo entretinham-se com quartéis de nobreza, luas heráldicas, cerinioniais cediços”. Outros ambientes sociais foram se revelando um a um igualmente estúpidos, monótonos, destituídos de espírito. Aproximou-se, então, dos homens de letras: foi outro malogro; revoltou-se com os juízos rancorosos e mesquinhos deles, com sua conversação tão banal quanto uma porta de igreja, com seus discursos enfadonhos”. Penetrou, também, para logo sair com repugnância. no círculo de livre-pensadores que defendem a sua liberdade de “estrangular as opiniões alheias”. “Seu desprezo peI humanidade aumentou; compreendeu enfim que o mundo se compõe, na maior parte, de sacripantas e imbecis.” Do mesmo modo, o contato com as mulheres, que por um momento o empolgara, desgasta- se rapidamente e ele sente que se aproxima a impotência. A isto ele contrapõe, durante um tempo, o desejo e a prática de amores excepcionais. mas sem sucesso. Nas práticas extravagantes de uma boemia romântica, gastara muito da sua fortuna. “Suas idéias de afastar- se para longe do mundo, de fechar-se num retiro, de abafar (como se faz para certos doentes cobrindo a rua de palha) o alarido rolante da vida inflexível, se revigoraram.”. Diante de uni mundo despojado de todo valor positivo restava, enfim, a excentricidade, a saída do centro, o isolamento, a reclusão. Neste espaço periférico, des Esseintes projeta uma vida absolutamente dominada pela obsessão do estilo. Aqui começa o romance. Cada capítulo de Às avessas relata um momento e um aspecto do meticuloso proceder de des Esseintes na produção de sua identidade singular. Os primeiros capítulos dedicam-se à própria construção do espaço. que deveria ser confortável, acolhedor, absolutamente original e 1 Deve ser um ambiente completamente artificial e imune às irrupções da sociedade e da natureza. Dentro deste espaço deve vigorar uma rotina planejada até nos mínimos detalhes e observada de forma quase religiosa ou quase científica. Por fim, des Esseintes programa para si uma existência experimental perfeita; não há nada que seja deixado ao acaso, não há brechas pelas quais as presenças da natureza ou da sociedade possam se infiltrar. As diversas e infinitamente variadas sensações (sonoras, visuais, olfativas, palatais 152 153 e intelectuais) não estão, contudo, excluídas deste mundo. Elas estão. no entanto, sob o controle total de des Esseintes, que programa seu espaço de forma a tiltiw e dosar estas experiências, de acordo com suas necessidades e possibilidades. O que se evita é o turbilhão das experiências demasiadas: o que se persegue são as condições para disc,i,,u,iar e classificar as sensações. Há em tudo um senso de medida que se pareia ao dos mais soüsticados laboratórios de psicologia da épcca (cinco anos antes, convém recordar, Wundt fundara o primeiro laboratório de psicologia, cm Leipzig). Trata—se, além disso, de um laboratório totalitário, no qual uma existência inteira deveria decorrer. Através do artifício, des Esseintes era capaz de se propiciar experiências ilusórias tão convincentes ou mais do que as experiências reais; por exemplo, havia um cômodo decorado como a cabine de um navio e nele, com seus diversos dispositivos e com um certo treino de concentração. des Esseintes podia realizar viagens transatlânticas sem os riscos do naufrágio e os aborrecimentos inevitáveis de quem se afasta do lar. A medida certa de experiências variadas, mas sempre regradas e controladas, era a única maneira de ir vivendo e ao mesmo tempo defendendo sua pele fina, sua sensibilidade excessiva, seu receio permanente de invasão e desintegração (des Esseintes era um hipocondríaco) das misérias e agressões do mundo ao redor. Os capítulos posteriores vão recenseando um a um os gostos. preferências e antipatias de des Esseintes no campo das artes, da literatura, da vida religiosa (ele era ateu), das artes plásticas. Em todos estes setores, des Esseintes preferia o rebuscado, o estiloso, o artificial, o que constrói e define sua identidade a partir do vazio ou da degeneração das tradições. o que se identifica pela negação, pelo contra. Às avessas. Ir contra o mundo e suas tendências, constituir- se na recusa às solicitações mundanas era para des Esseintes a única forma de identidade possível: o estilo, para ser individual e subsistir num estado de tensão sustentada com o mundo à sua volta, deveria ser o estilo cia indisponibilidade. Neste modo, o ornamental, o inútil, o teimoso e o indiferente seriam as marcas da identidade. Pequenos episódios. seguiclos de muitas reflexões, que Huysmans distribui ao longo de todo o texto, ‘ão reforçando e revelando novas facetas do estilo dc des Esseinies; alguns dos mais famosos são o trabalho de ourivesaria que ele manda realizar no casco de urna tartaruga, para torná-la um objeto decorativo (o animal morre), o plano para transformar cientificamente um pobre rapaz num libertino e num criminoso, e a aquisição de dezenas de plantas exóticas que não parecem plantas. parecem animais, minerais ou coisa nenhuma (as plantas também morrem). Em todos estes acontecimentos traduz-se a mesma vontade de submeter o natural ao artifício, de separar-se da natureza, de expô ia em suas formas menos naturais e mais bisonhas, de convertê-la em objetos de luxo, de inutilizá-la, de torná-la indisponível. Nenhuma dessas operações consegue, ao fim e ao cabo, livrar cles Esseintes cio tédio e da hipocondria. Após uma das crises, ele tenta uma viagem à Inglaterra. mas desiste poucas horas depois de sair de casa quando num restaurante freqüentado por ingleses, ainda na França. ele descobre que o essencial da viagem à Inglaterra já se tinha realizado. Nesse episódio, farto e saturado de si mesmo no seu estilo. ele, fora de casa e perdido na cidade, sente provisoriamente a felicidade de misturar-se à vida comum sem identidade alguma, no completo anonimato. Além desta mistura no mundo social, a viagem iniciada num dia chuvoso é também a oportunidade para que ele se misture à natureza: é invadido pela umidade, é ensopado pela chuva, afunda na lama, é sufocado pelos odores. Tudo isso lhe faz bem, mas o bem não dura e ele retorna ao seu estilo, aos seus contornos, aos seus limites, rotinas, programas e proteções. Depois da malograda viagem, depois cia dissolução de fronteiras experimentada, a organização metódica da vida, a estilização total da existência lhe parecem ainda mais valiosas. É aqui que brotam os seus mais ardentes elogios ao ‘decadentismo’, à literatura tardo-romântica de Baudelaii’e, Verlaine, Edgard AlIan Poe, e à suprema poesia nova de Stéphane Mallarmé. Com eles, des Esseintes podia identificar-se, porque neles sentia o mesmo repúdio a esse sentimentalismo imbecil combinado com uma ferocidade prática que] represeniava o pensamento dominante do século; as mesmas pessoas que teriam vazado o olho do próximo para ganhar dez tostões. perdiam toda a lucidez, todo o faro, diante dessas taverneiras equívocas que os importunavam sem piedade e os exploravam sem trégua. Indústrias trabalhavam, famílias se extorquiam mutuamente a pretexto de comércio, a fim de empalmar dinheiro para seus filhos, os quais. por sua vez, deixavam-se intrujar por mulheres que esfolavam, em última instância, os amantes por amor. (p. 206) 154 155 Mas também o entusiasmo por aqueles que pelo estilo de vida e de escrita recusavam a vida comum não durou e a doença voltou a se abater sobre des Esseintes. Neste momento, ele se recorda com nostalgia de algumas experiências entre os jesuítas. Talvez as mais marcantes delas fossem as audições de canto gregoriano “... com seu poderoso uníssono, suas harmonias solenes e maciças como pedras”. Em comparação com esta música, quase tudo o mais lhe desgostava. Apenas alguns músicos românticos, como Schumann, podiam satisfazê lo. desde que ouvidos longe da turba de melômanos. Como não podia entrar em contato com esta música, e principalmente com a música do “prodigioso Wagner” sem se misturar às alegrias da “turba inconsciente”, des Esseintes optou por deixar a música de lado. Mas enquanto ia assim rememorando suas experiências musicais, o estado do personagem piorava. Finalmente, um dia pediu ao criado um espelho, o qual em seguida lhe tombou das mãos: “mal conseguia reconhecer- se”. Só então, depois dessa experiência de perda de identidade que emcrgia ao cabo de meses e anos dedicados cuidadosamente à fabricação e à observância do seu estilo, des Esseintes resolve chamar um médico. Este o examina, propõe-lhe urna dieta e receita: “... era mister abandonar aquela solidão, voltar a Paris. rcingressar na vida comum” (p. 254). No capítulo seguinte, des Esseintes passa em revista todas as suas lembranças daquela vida comum que o médico lhe receitara: são algumas páginas da mais violenta condenação do século XIX, o século da mesquinhez, da falsidade, da avidez, do espírito prático americanizado, da funcionalidade estúpida. Nenhuma classe social parece ter se preservado dessa imensa balbúrdia e deterioração de valores. Mas não há saída. O romance termina com des Esseintes preparando-se para a ‘cura’: Dentro de dois dias estarei em Paris: vamos — disse consigo — está tudo acabado mesmo; como maremoto, as vagas da mediocridade humana elevam-se até o céu e vão engolir o refúgio cujas barreiras eu mesmo abri, contra minha vontade. Ah! a coragem me falta e o coração me arrasta! Senhor, tem piedade do cristão que duvida, do incrédulo que desejaria crer, do farçado da vida que embarca sozinho, de noite, sob um firmamento que não mais ilumina os consoladores finais da velha esperança. (p. 254) Estilismo e excentricidade’ O experimentalismo existencial dc des Esseintes nos oferece um detalhado e extenso panorama da estilização como modo de vida. Trata- se, em todos os aspectos da existência, de elaborar um estilo próprio que se diferencie de todas as medidas centrais: a média, a mediana e a moda. Há urna intenção permanente de ser original, de ocupar um espaço excêntrico, tanto no sentido geométrico como no sentido existencial do termo. Binswanger (1977) identifica na excentricidade um modo de ser composto pelas diversas versões da indisponibilidade. O excêntrico coloca-se na posição dc recusa a ‘funcionar com’, a ‘funcionar junto a’, torna-se imprestável: escapa dos circuitos funcionais e, desse modo, conquista e mantém uma identidade absolutamente singular, desenraizada, encapsulada, fechada ao mundo dos objetos e ao convívio social. O excêntrico organiza-se em torno de um tema, de um princípio, de um sistema que garante sua completa unidade ao longo dc) tempo e, simultaneamente, o torna impermeável a tudo que lhe vem ao encontro desde o mundo físico e social. Como esta singularidade inteiriça e resistente é obtida mediante um conjunto de meticulosos cuidados de si e do mundo — a estilização da vida coloca, efetivamente, a existência como objeto de unia técnica sofisticada e inflexível , o estilo do excêntrico reúne a singularidade identificatória a uma espécie de impessoalidade maquinal; a partir de uma surpresa inicial, o excêntrico tende a se tornar extremamente previsível. Creio que não podem haver dúvidas de que as descrições fenomenológicas de Binswanger, elaboradas à luz de alguns casos de psicose, ajustam-se muito bem a des Esseintes e, para além dele, a toda uma maneira de ser que Huysmans encarna em seu personagem: o modo de ser ‘decadente’. como era designado ao final do século XIX (hoje não há uma designação consagrada, embora o fenômeno não tenha desaparecido). No entanto, a tese que pretendo defender é a de que. apesar de ser um excêntrico geográfico (des Esseintes monta seu refúgio numa região isolada na periferia de Paris) e de ser um excêntrico existencial, a figura do estilista está rigorosamente no centro do território triangular formado pelos vértices do liberalismo, do romantismo e da disciplina: o território do desconhecimento. Pretendo mostrar, também, que enquanto ocupa este lugar, malgrado seu 156 157 ccntralíssimo. no espaço existencial disponível, des Esseintes está fora do alcance da psicologia; o seu é exatamente o lugar da resistência, O ‘psicológico’ se constituirá daquilo que deste lugar central se torna invisível. O estilismo em des Esseintes leva às suas últimas conseqüências o desejo de privacidade peculiar ao liberalismo. A procura de um espaço privado, seja o da casa e nela o dos aposentos íntimos, seja o do jardim inglês, o do clube masculino OU O da sociedade secreta, testemunhou desde o século XVIII a necessidade de locais privilegiados para o cultivo de si (cf. eap .3 deste livro). Des Esseintes pertence a esta mesma tradição, mas a leva adiante. Seus cuidados para reduzir, filtrar, dosar e, quando possível, impedir a presença do mundo no interior de seus aposentos vai ao ponto de encadernar as paredes, substituir janelas reais por fictícias, que se abrem para as paisagens programadas, conservar os cômodos invulneráveis à luz e ao ar naturais etc. Neste ambiente hermético. des Esseintes vive sozinho e se comunica com os criados através de bilhetes, sem nunca os ver. A privacidade para ele, contudo, não é urna garantia de liberdade. Ao contrário, o refúgio de des Esseintes é urna espécie de prisão-modelo na qual tudo é programado, segue rotinas, obedece horários etc. Seu cardápio diário, por exemplo, é decidido com meses de antecedência, item por item. Não só de liberdade ele está privado: está privado também da propriedade. Esta afirmação requer maiores esclarecimentos, já que a casa é um verdadeiro museu em que o dono conserva toda sorte de raridade. Contudo, a acumulação de objetos preciosos, quadros, livros raros em edições exclusivas, dispositivos especialmente fabricados para produzo’ sensações palatais, frascos de perfumes sutis, plantas exóticas etc. tudo isso lhe é de muito pouco ou de nenhum proveito. Exatamente como peças de museu, estas coisas estão ou vão ficando fora de circulação. No mundo de des Esseintes, abarrotado de coisas, não há produção e mesmo o consumo é restrito, quando mais não seja por falta de apetite. Vez por outra ele se encanta com seus livros, por exemplo, para logo se embrenhar em divagações, para se enfastiar, para adoecer e para fazê-los retornar à condição de fetichcs estéreis. Temos, assim, na identidade decadente uni rebento exangue do liberalismo: privacidade sem liberdade e propriedade esterilizada e sem uso. A presença do romantismo é fácil de localizar desde as preferências literárias e artísticas do personagem. Na verdade, sua recusa da sociedade burguesa, pragmática, calculista, hipócrita e mesquinha está toda ela calcada na tradição romântica antiliberal e antidisciplinar. E nitidamente romântica, ainda, a aspiração a uma forma de identidade absolutamente singular e única, radicalniente diferenciada de todas as demais. No entanto, ficam excluídos do projeto de des Esseintes os impulsos espontâneos no rumo do autodesenvolvimento e qualquer esperança restauradora. No lugar de impulsos, tédio mortal e falta de apetite, impotência; no lugar da espontaneidade, a estilização minuciosa; no lugar da restauração, a resignação a um estado de desenraizamento absoluto: nem a integração a unia comunidade mítica, nem a integração a unia natureza matricial (não há como retornar a uni seio acolhedor e a própria perspectiva do retorno lhe é nauseante). Finalmente, apesar de toda a sua deliberada imprestabilidade, do seu ódio aos valores do cálculo e da eficiência, do seu desprezo pelo espírito pragmático, des Esseintes monta para si mesmo um mundo completamente submetido ao controle de urna l’érrea disciplina. Trata- se, contudo, de unia disciplina para ociosos, de unia disciplina que se consagra à inutilidade, ao supérfluo. ao ornamental, ao antifuncional, ao indisponível. Como se vê, a reunião exata de liberalismo, romantismo e disciplina, no centro geométrico do triângulo, se faz através de urna sucessão de exclu.võe.v. Ao se i’eunireni a privacidade, a singularidade e a disciplina em suas formas puras e absolutas constitui-se, através de múltiplas e sirnultâneas negações, unia identidade exemplarmente resiste,ite. Dela excluem- se a liberdade e os usos, os impulsos e a funcionalidade. Neste ponto central em que está postado, des Esseintes está paralisado. Todos os seus esforços dirigem-se para a conservação desta identidade, o que também significa a manutenção das cisões que lhe deram origem. Enquanto se mantém no equilíbrio instável deste centro, enquanto conserva o estilo próprio, enquanto, enfim, resiste, ele na sua excepcionalidade rebuscada não será, de fato, nem o homem médio nem o homem da moda. No entanto, e seguramente a contragosto, na sua raridade ele se torna o exemplar mais representativo do próprio mundo em que ‘sobre-vive’. É nele, inclusive, que se concentra a maior dose de ignorância acerca de si: no mundo que constrói para viver, des Esseintes procura exatamente a liberdade, o bom uso de si e das suas coisas, a satisfação plena de seus apetites, a 15 159 máxima funcionalidade do ambiente em relação às suas necessidades. Mas estes, como vimos, são tudo aquilo a que des Esseintes deve renunciar para manter sua identidade. Trata-se, dessa maneira, de uma identidade que se constitui na e como pura ilusão. O que ela nega, entretanto, não tarda a reaparecer. Efetivamente, a manutenção do estilo não é tarefa fácil, O romance de Huysmans, todo leitor o percebe, não tem enredo. É um romance em que nada ou quase nada acontece. Ora, o ‘não acontecimento’, a ausência de história são os testemunhos de uma severa perturbação da teniporalidade. A exclusão da liberdade, dos impulsos. dos usos e da funcionalidade retira os motores da história pessoal de des Esseintes. A partir de sua mudança para a casa nos arredores de Paris, parece que todo o esforço do personagem se volta para a conservação, com exceção do episódio da frustrada viagem à Inglaterra. que na sua própria frustração reforça o caráter conservador de todo o projeto. No entanto, o que foi excluído da identidade estilizada e excêntrica não foi por isso abolido, retorna como elemento potencialmente desagregador. No caso de des Esseintes, creio que suas doenças. que são tanto doenças de nervos como doenças físicas, resumem o sentido do tempo que deixou de ser história humana para ser apenas um tempo natural, o tempo da deterioração, da perda de controle, do aniquilamento. Pois bem, é tudo aquilo que este excêntrico excessivamente centrado em si mesmo e no seu mundo sofre, é este seu padecimento, que, ao contrário de tantas coisas que ele conserva, escapa ao seu domínio, e o expulsa finalmente de onde estava alojado, de volta ao turbilhão das forças, das pressões e das demandas da natureza e da sociedade. Se des Esseintes tivesse vivido cinqüenta anos depois, não resta dúvida, ele sairia dessa experiência fracassada de centramento para se entregar aos cuidados de quem, supõe-se, é o especialista em ‘homens que perderam o estilo’ e se sentem imersos nos conflitos desse território em que todos vivemos e no qual agem livres, para além da consciência integradora das identidades, as forças submersas do ‘psicológico’. Talvez seja o momento de recordar que ao final do século XV Picb delia Mirandola situava o homem no centro vazio do mundo para que de lá ele tudo pudesse ver e tudo pudesse escolher para si. Quatrocentos anos depois, ao final do século XIX, des Esseintes, deliberadamente excêntrico, mas também ele no centro do mundo, pouco vê e nada pode. Parece que se vai fechando assim o ciclo da modernidade Mas não sem sofrimento e dores. Neste solo nasce a psicologia tal como a conhecemos. Para além do estilo Para encerrar, caberiam agora algumas poucas considerações visando situar os diversos projetos contemporâneos de psicologia no solo em que estão ainda plantados. procurando, também, dar um fecho às observações que foram sendo feitas ao longo destes ensaios. Todos estes projetos referem-se, de uma forma ou de outra, ao que, simultaneamente, se localiza no campo das experiências possíveis, mas está fora do alcance de unia consciência integradora, fora do âmbito da identidade, para além do estilo. Na verdade, creio que para as psicologias a identidade é um conceito-limite e o ‘psicológico’ vem a ser exatamente o que condiciona/pressiona/estrutura/destroça as identidades. Para além do estilo como identidade há diversos processos de dissolução. que resultam, por sua vez, em novos estilos. O estilo da identidade é. paradigniaticaniente, o da suposta soberania do eu de des Esseintes no casulo de sua estrita e confinante privacidade. As dissoluções do estilo, por outro lado, são os processos que impõem a esta unidade de si para consigo os reveses do ‘adoecimento’ são as explosões e implosões do casulo sob o impacto das aspirações de liberdade, das exigências de funcionalidade e dos extravasamentos pulsionais. Neste contexto, a oposição entre esferas pública e privada, ainda tão cara ao imaginário social, não tem mais nenhuma vigência efetiva. Não era dentro de casa que des Esseintes podia ser livre, satisfazer seus desejos, saciar seus apetites e se organizar de forma funcionalmente confortável, embora fossem estes os seus propósitos. Não era, obviamente, fora de casa que isto poderia ter ocorrido. Tanto no público como no privado ele estaria, como identidade-estilo. igualmente submetido às mesmas restrições. Aquilo de que ele carece, por ter sido negado como condição de emergência de si como 160 161 identidade, não lhe está disponível em parte alguma. Somente saindo de si ele poderia reintegrar algo do excluído, mas isto, naturalmente, à custa da própria unidade. Os movimentos artísticos e literários desde o final do século XIX até OS dias de hoje testemunham, de variadas maneiras, o destroçamento do eu e a problematização do sujeito individual pela aut000nhização daqueles elementos que operam no registro do excluído. A saída de si no campo das artes e da literatura foi buscada tanto na direção das formas funcionais, como no da expressão autêntica das torças pulsionais, como na liberação do jugo da identidade convencional, conveniente e soberana. É possível reconhecer nestas orientações, cada uma das quais admitindo uma ampla gama de efetuações, por exemplo, a arquitetura funcional, as artes plásticas e a música expressionistas e os surrealismos, entre outros. Há, em todas estas manifestações artísticas, uma ruptura radical com o princípio da estilização identificatória. Cada uma delas, contudo, arrisca-se a, rapidamente, converter-se também em estilo. Talvez este destino ‘estiloso’ do nosso tempo se deva a que a incorporação dos elementos excluídos seja sempre parcial: o outro de si que a identidade incorpora é sempre apenas um dos outros vale dizer, cada descentramento parece repetir também uma exclusão. Cada estilo novo segrega, ele mesmo, o seu impensável, o seu próprio inconsciente. Isto não nos deve surpreender se nos lembrarmos da natureza genuinamente conflitiva do espaço da contemporaneidade, que o torna por isso mesmo um território de desconhecimento. A outra consideração pertinente é a de que a sobrevivênria neste espaço exige formas de subjetivação inevitavelmente úusórias e resistentes. Em última instância, há, inclusive, que saber respeitar este ingrediente essencial de ignorância. Se formos agora do plano das tendências literárias e artísticas para o dos processos de subjetivação e ‘des-subjetivação’, encontraremos os mesmos movimentos, só que realizados à revelia, Os elementos excluídos e tornados independentes do eu retornam como irrupções indesejáveis e incontroláveis, na compulsividade dos sintomas ou num difuso e inexplicável mal-estar. Retornos como esses tiraram o excêntrico des Esseintes de seu centro na forma de doenças de causas desconhecidas; o adoecer é uma experiência modelar de alienação: as forças e pressões alienadas da funcionalidade, dos impulsos, da liberdade e usos de si e das coisas disputam entre si o sujeito supostamente indiviso e soberano e desmantelam o seu estilo. O espaço do ‘psicológico’ será exatamente o que abriga as forças alienadas do eu, os elementos dos três vértices do espaço triangular expulsos da identidade-estilo, as relações entre eles e os processos de suhjetivação/’des-subjetivação’ que promovem incessantemente. Há diversas maneiras de pensar e fazer psicologia, porque há diversas possibilidades de lidar com estes elementos, sua estrutura e dinâmica. É possível, por exemplo, privilegiar um, dois ou os três vértices. Se a psicanálise freudiana é ainda hoje um modelo de teorização — independentemente de aceitarmos as teorias propriamente ditas é, creio, pela sua disposição em acolher e lidar com um complexo sistema de forças em conflito, embora isso lhe traga dificuldades extremas para a sua própria articulação e consistência. Por outro lado, é possível pensar a psicologia como um recurso de uma estratégia a serviço da ‘reidentificação’, vale dizer, da integração dos elementos alienados em formas mais ou menos centradas e flexíveis de identidade. Ou então, ao contrário, pode-se colocar a psicologia a serviço da desidentificação, dando-lhe uma tarefa eminentemente analítica, crítica, desilusionadora e desconstrutiva. Novamente, aqui, a psicanálise freudiana é um modelo seminal em que pesem leituras da psicanálise que enfatizam os processos integrativos e regeneradores, seja no vértice romântico da restauração, seja no vértice disciplinar da adaptação funcional. Enfim, a psicologia nasceu e sobreviveu numa encruzilhada: há maneiras nostálgicas e reparativas de fazer psicologia; são formas comprometidas com a modernidade e com a soberania do sujeito; são estas psicologias que, independentemente de escolas, pertencem ao campo do humanismo moderno; elas militam para restabelecer para o homem os privilégios que lhe atribuía Pico delia Mirandola. Há, por outro lado, psicologias que ajudam a tirar o sujeito do centro do mundo, da posição de fundamento do saber e de foco de irradiação das escolhas e ações. Estas psicologias já não cabem na Idade Moderna. Elas não têm nada a ver com o humanismo. Seria excessivamente simples declinar agora minhas preferências. Penso, na verdade, que em qualquer destas alternativas a posição do psicókgo seria corno a de alguém que recebe uma carta anônima com 162 163 revelações importantíssirnas, mas cuja validade não pode ser estimada porque se desconhece sua procedência. Acreditar ou jogá-la no lixo dependeria, desta maneira, de uma decisão bastante arbitrária do leitor. Da mesma forma, escolher entre as psicologias hoje disponíveis é um ato de pura arbitrariedade enquanto não entendermos a proveniência de nossos ‘objetos’, enquanto não compreendermos a história do ‘psicológico’ e, portanto, a pré-história das posições da própria psicologia no século XX. Isto, creio eu, a psicanálise, também ela, não logra compreender, tendendo a naturalizar seus objetos e a desconhecer a conjuntura em que o ‘psicológico’ se oferece como campo sai generis de saber e intervenção. Creio, enfim, que a compreensão de que falo não se pode elaborar na posição de psicólogo, OU psicanalista, enquanto um especialista no psicológico. Ela deve partir, quem sabe, deste lugar-nenhum em que os saberes ‘psi’, a história, a filosofia e as artes se encontram e se perdem no exercício do mero pensar. Notas 1. A análise que faço do personagem de 1-luysmans beneficiou-se da leitura de Eugen Weber (1988) para situar o tipo em sua época; do capítulo XVII, entre outros, do texto de Morsc Peckham [ 981) para compreensão do estilismo, e do capítulo X de Frederick Garber (1982) para a compreensão da experiência de autonomia de se/f elaborada por des Esseintes, e de suas vicissitudes. Creio, porém, que é original a sugestão de compreender a excentricidade como ocupando uma posição central no território do desconhecimento, ou seja, como sendo uma forma de subjetivação representativa da contemporaneidade, apesar de infreqüente. 2. No capítulo 2 deste livro tratei do amaneiramento como estratégia de construção de identidade e, à primeira vista, o estilo amaneirado pode ser confundido com o estilo da excentricidade de que estou tratando agora. Realmente, nos dois casos trata-se de uma construção de identidade em condições precárias de existência, em condições nas quais as ameaças de desintegração rondam permanentemente o sujeito. No entanto, conviria agora enfatizar as diferenças entre estes dois estilos. No caso de dom Quixote, por exemplo, há nitidamente urna adesão a modelos idealizados e uma procura de confirmação em relações especulares; daí a ânsia de reconhecimento que dá o tom das falas e dos gestos do personagem. Na mesma medida, os nobres da corte, o rei inclusive, sobrevivem inseridos num vasto sistema social em que cada um devolve ao próximo sua imagem e sua identidade. Não é por acaso que as cortes se organizam num sistema altamente codificado — a etiqueta — e que no mesmo período os espelhos tenham se tornado uma peça indispensável dos interiores mundanos. Já no caso de des Esseintes, a identidade prescinde e recusa qualquer modelo; o estilismo excêntrico procura elaborar urna identidade original e absolutamente singularizada. De outro lado, a confirmação pelos outros não é necessária e até pode ser arriscada. Na verdade, quando um espelho é introduzido na história é para revelar exatamente a diferença, ou seja, o fracasso de todo esforço de estilização identificatória. É interessante lembrar que também as relações do Dorian Gray, de Wilde, com sua imagem especular são relações conflituosas e marcadas pela diferença entre as duas imagens; ele será sempre o contrário do que o famoso retrato mostra. 3. As rapidíssiinas observações acerca das quebras e restaurações de estilo na virada do século e nos primeiros anos do século XX encontram apoio, penso eu, em análises como as desenvolvidas por CarI Schorske ( principalmente nos capítulos!, 5,6 e 7, 164 165