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modos

de habitar
Uma cartografia pessoal sobre o viver-casa

Suzana Massini

São Paulo, 2018


COLEÇÃO ARTES-MANUAIS PARA A EDUCAÇÃO:
aprendizagens e processos de singularização
organização da coleção Ana Lygia Vieira Schil da Veiga

Volume 2
Modos de habitar: uma cartografia pessoal sobre o viver-casa
Suzana Massini

1ª edição, 2018

Produção editorial e projeto gráfico da coleção


Carlos Vinicius Bressan, Sofia Amorim e Suzana Massini

Revisão Sofia Amorim e Ana Paula de Souza


Diagramação Suzana Massini e Marcel Copola
Fotos arquivo pessoal

Apoio editorial
Círculo das Artes
www.circulodasartes.com.br

Dados Internacionais para catalogação (CIP)

M418 Massini, Suzana

Modos de habitar: uma cartografia pessoal sobre o viver-casa / Suzana Massini;


Organização Ana Lygia Vieira Schil da Veiga.– São Paulo: Círculo das Artes, 2018 –
(Coleção ARTES-MANUAIS PARA A EDUCAÇÃO: aprendizagens e processos de
singularização ; vol. 2)

ISBN: 978-85-67449-07-4
ISBN COLEÇÃO: 978-85-67449-05-0

1. Educação 2. Artes-Manuais 3. Narrativas 4. Memórias 5. Moradia I. Veiga, Nina. II.


Veiga, Ana Lygia Vieira Schil da. III. Título.

CDD 372.5

1. Educação artística / Trabalhos manuais e arte 372.5

Artes-manuais
para a educação http://artesmanuaisparaeducacao.wordpress.com
aprendizagens e processos artesmanuaisparaeducacao@gmail.com
de singularização
A AMPLIAÇÃO DE UM TERRITÓRIO INVESTIGATIVO
Ana Lygia Vieira Schil da Veiga (Nina Veiga)*

A matéria pesa. É preciso corpo para lidar com o material.1

E dentro da pele é igual e sinto. E fora, nas peles, é igual e


sinto. Caminho e nos caminhos tropeço. Ossos e estrelas.
Aprendendo a vida ao produzir ritmos do Céu.2

A coleção Artes-manuais para a educação: aprendizagens e processos


de singularização brota do agenciamento de diferentes forças a corpos
distintos e se efetua na constituição de um território híbrido: artes,
manualidades, escrita e educação. Ação que se produz a partir de minha
investigação rente ao multiverso da casa e seus modos. A coleção reúne
as narrativas do existir nesta paisagem, expondo as múltiplas tonalidades
que as práticas de escrever e do artistar doméstico podem assumir na
aventura de tornar-se o que se é, no durante o viver em educações.

*www.ninaveiga.com.br

1 VEIGA, Ana L.V.S. da. Fiar a escrita: Políticas de narratividade – exercícios e experimentações entre arte
manual e escrita acadêmica. Um modo de existir em educações inspirado numa antroposofia da imanência.
Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa. Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2015.

2 BRESSAN, Carlos Vinicius. Encarnação: pistas para livr_, São Paulo: Círculo das artes, 2018. p.103.
Os livros foram compostos pelos participantes da pós-graduação em
Artes-manuais para a educação, curso que idealizo, coordeno e ministro
na A Casa Tombada/Facon, e que tem por vocação dar amplitude às
pesquisas desenvolvidas desde a tese de doutoramento3. Nesta exposição
de vozes que se fazem letra, percebe-se os processos ensaiados na
trajetória da especialização, em movimentos junto às artes domésticas
perdidas: costura, bordados, tecelagem, fiação e suas afetações.

A coleção está arranjada em seis diferentes modos de estar das


artes-manuais para a educação: Narrativas em Artes-manuais; Primeira
infância e as Artes-manuais; Vivências do feminino nas Artes-manuais,
Experimentações em Artes-manuais; Potências das Artes-manuais no
fazer brinquedo; e Vida educadora e as Artes-manuais.

Neste volume, a autora Suzana Massini se mostra junto às Narrativas


em Artes-manuais, modo de estar onde as histórias tecidas são permeadas
pelos processos de singularização junto ao subjetivo, ao encantado, à
intimidade entre as manualidades e o vivido. A produzir uma escrita viva
que chega ao leitor a legitimar o si mesmo na produção científica.
Aos que me fazem transbordar...
Alguns começos

Não sei escrever... nunca soube muito bem usar as palavras escritas.
Não sou de contar muitas histórias com palavras ditas também, a não ser
para os mais íntimos. Meus processos sempre foram mais demorados –
não à toa, estou aqui, às vésperas da entrega, a escrever essa introdução.
E o que escrever afinal? O que é tudo isso que pode caber em algumas
palavras e transborda em uma vida inteira?

E o que, numa vida inteira, teria mais sentido em se contar?

...

Durante as aulas da pós-graduação, tivemos um momento muito


marcante: uma aula de produção textual com a professora Ádelia
Nicolete – trouxemos nossos afetos em forma de objeto, trocamos
memórias, descobrimos nossas histórias contadas por pessoas que, na
época, mal conhecíamos. Nos afetamos. Passamos meses transforman-
do nossos afetos em livro. Um parto. Um filho. Mas não é sobre esse
livro que gostaria de falar. Esse trabalho de construção de um texto
a partir das dinâmicas propostas pela Adélia foi uma experiência de
processo criativo que fez tanto sentido para mim que a compartilhei
e ainda compartilho com várias pessoas.

Uma dessas pessoas foi o amigo Marcel, professor de Arte e Foto-


grafia na ETEC em Carapicuíba. Marcel orienta os alunos em alguns
semestres no trabalho de conclusão dos cursos de Processo Fotográfico
e Comunicação Visual. A partir da história que compartilhei sobre as
dinâmicas com a Adélia, surgiram experiências com seus alunos que os
instigavam a pensar no seu projeto final com a pergunta: o que te afeta?

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...

Olho meus escritos bagunçados das primeiras aulas com a Nina sobre
as possibilidades da pesquisa e me deparo com a seguinte anotação:

“o processo da pesquisa é produção de saúde” e, logo em seguida,


“o que me alegra?”.

...

Foi difícil chegar até aqui, a vida se bagunçou tanto no meio do


caminho e os afetos e aflições aos montes se misturaram.

“É preciso corpo”, eu me lembrava a todo instante.

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Um afeto

Pouca coisa a respeito da minha experiência com Artes-Manuais


vai ser encontrada explicitamente nesse trabalho, mas é preciso
dizer que foram as manualidades que me trouxeram a esse lugar. A
troca com essas pessoas que acreditam no fazer manual como modo
de existir, como ferramenta e arma de combate, que tecem todos
os dias com dor e amor uma vida-vida, foi fator importante para
construir esse afeto.

Nesse lugar de construção coletiva de um modo de existir, de


produção de conhecimento para sustentar, não apenas o que
acreditamos, mas o que criamos com nosso próprio corpo, este lugar
que também estou e onde me sinto em casa. E o que é sentir-se em
casa? Para que serve uma casa?

Ao longo da minha vida, questionei a relação que temos com nossas


casas, com o tempo que passamos nela e a energia que gastamos para
sustentá-la. Muita coisa não fazia sentido para mim e minha busca tem
sido experimentar as possibilidades da casa como um corpo vivo e pulsante.

Aqui, descrevo um pouco sobre as casa onde vivi. Um processo intenso


e cheio de descobertas de um eu conhecido/desconhecido.

A porta está aberta e a casa tem muito mais do que paredes,


portas e janelas.

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“A boca da casa me beija.
A casa quer me conquistar,
quer me engolir,
tem fome de mim.
Sou eu
o alimento da casa,
sou eu as substâncias,
sou eu que transpira
e as veias que cingem
o espaço.
Na boca da casa,
degusto meu gosto,
relembro meus sais,
salivo meus sonhos.
Na casa, descansa meu verbo.
A casa quer que eu pare um pouco,
me entranhe,
dê tempo para a digestão.
Vasculho
entre os dentes da casa,
meus restos, meus mortos,
minhas ninharias.
E a língua em que piso,
em que digo,
em que ouço,
é toda inventada,
só fala comigo,
é feita de vento
e ruídos.
Na casa repousam meus signos.”
O que é uma casa?
Raiça Bomfim e Vânia Medeiros

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Rua Ouvidor Portugal, 74, apartamento 33.

Minha primeira referência de casa não foi onde eu nasci, mas foi a
casa onde passei a maior parte da minha infância.

A casa onde aprendi a andar de bicicleta era um apartamento. Um


apartamento de dois quartos, duas salas, uma sacada, cozinha, banheiro,
área de serviço. Aquele lugar era enorme, não sei se em comparação com
o meu tamanho na época ou se pelo tanto de vida com sentido que havia
acontecido ali.

Nossa sala de jantar não tinha uma mesa de jantar, na verdade,


não tinha nada, nem por isso, ela deixou de ser um dos lugares mais
importantes. Aprendi a andar de bicicleta naquela sala que, por ve-
zes, com o escorredor de macarrão pendurado na parede e algumas
bolinhas de papel, virava uma quadrwa de basquete. Em outras, com
desenhos colados nas mesmas paredes, virava uma galeria de arte. E
ia mudando, todo dia.

Aquela casa era uma casa de verdade, cada pedaço dela era usado
e vivido, não me lembro de nada ali que não fizesse sentido. Não
sei se era porque criança consegue transformar tudo em qualquer
coisa que sente e dá sentido, ou se porque era uma casa de verdade
mesmo, tão de verdade que, hoje, eu já adulta, consigo ver, nesse
lugar, uma casa.

Lá vivíamos, meu pai, minha mãe, meu irmão Rafael, minha irmã
Simone (a única que nasceu naquela casa), Bruno, um primo que virou
irmão, e eu. Um lugar com tanta vida nova acontecendo, não tinha
como não ser esse o primeiro que chamei de casa.

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Eu poderia ficar aqui descrevendo cada canto dessa casa. Ao invés
disso vou me atentar aos que me são mais presentes na memória. O
que poderíamos chamar de sala de estar, onde ficava nossa televisão,
foi, durante muito tempo, uma sala sem sofá, havia muitas almofa-
das enormes, um tapete verde escuro, uma cortina com estampa de
vegetação que cobria toda a parede onde tinha a porta para a sacada.
Nossa sala era uma floresta. Quando criança, não me recordo de ter
reparado nesse detalhe, talvez porque era uma estética muito comum
naquela época, me lembro de outras casas com uma cortina no mesmo
padrão de estampa.

Em algum momento, nossa sala ganhou um sofá e uma mesinha


de canto que fazia par com ele (e que vez ou outras virava um palco).

Ao lado dessa sala, ficava nossa sala de jantar, ou sala das mil e uma
possibilidades, como já mencionei. Em algum momento, nossa sala de
jantar, sem mesa de jantar, ganhou uma mesa. Nessa época, eu e meu
primo costumávamos fazer a lição de casa nessa mesa, que ficava encosta-
da na parece. Parede essa que costumávamos usar para rascunhar alguns
cálculos da nossa lição de matemática. “Virava e mexia”, minha mãe nos
fazia apagar todos aqueles números, mas eles sempre tornavam a aparecer.

A lembrança que tenho da nossa cozinha era de um lugar com toda


a família. Uma geladeira azul clara e um conjunto de mesa e banquetas
de fórmica amarela. Ela sempre foi a mesa das nossas refeições. Lembro
de minha mãe apressada, servindo nosso almoço antes do horário da
escola. Ou de noites onde ocupávamos a mesa para a lição de casa,
enquanto ela preparava a jantar.

Os quartos não tinham nada de muito especial, mas cabe falar aqui
que era um quarto típico de crianças, quatro camas enfileiradas uma
ao lado da outra. Quando um de nós ficava com medo, todos ficavam
também. Logo, o quarto dos meus pais, com sua cama de casal, por
muitas noites acolheu a família inteira.

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No nosso banheiro, havia uma pia, uma privada, um bidê e um box
com chuveiro. Alguns de nós levamos dele cicatrizes, uma combinação
de peraltices e um chão molhado. Minha maior memória dele tem a
ver com minha transição de criança a adolescente. Menstruei. Minha
cicatriz veio de um corte na perna com lamina para barbear, uma ten-
tativa de depilação malsucedida.

1994 foi nosso último ano nessa casa. Ganhamos a copa do mundo.
Vimos o maior ídolo da fórmula 1 morrer em um acidente durante as
clássicas corridas de domingo. Ganhei minha primeira nota de Real.
Meu pai ficou desempregado, o aluguel atrasou, vários aluguéis... Adultos
preocupados, uma crise financeira, uma crise familiar, uma ordem de
despejo. Saímos daquela casa sem termos outra para morar.

Nem tudo o que estava acontecendo naquela época era claro para mim.
Passei alguns meses na casa de uma tia com meu irmão e meu pai. Minha
mãe e minha irmã foram com nossos móveis para a casa de uma outra
tia. Meu primo já não morava mais com a gente. Estava nascendo ali um
outro olhar sobre a casa, que trazia consigo algumas dificuldades. Talvez
tenha sido nessa época que ouvi pela primeira vez minha mãe falar sobre
o desejo de uma casa própria e de não ter que pagar mais aluguel. Não
era apenas minha mãe, o sonho da casa própria piscava nas propagandas
de loterias e agências bancárias. Todos queriam uma casa.

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Uma porta, uma janela,
uma casa com o mundo dentro

Sabe aquelas casas que a gente desenhava quando criança, um retângulo


com telhado, uma porta e uma janela, por vezes um gramadinho com algumas
flores ao lado? Era assim a frente da casa para onde nos mudamos no final
de 1994, depois de passarmos um ou dois meses na casa de alguns parentes.

Ao abrir o portão, dávamos de cara com um corredor que ocupava


toda a extensão da casa. Portas e janelas davam para esse corredor, lá
no fundo, havia uma área de serviço.

A disposição dessa casa não era das mais comuns (eu, na verdade,
sempre a achei um pouco estranha). Logo no começo do corredor, à
direita, tinha a porta onde se entrava para a casa, uma sala que seguia
para um hall, onde tínhamos um banheiro, e, mais à frente, uma co-
zinha. Da cozinha, uma porta que também dava para o corredor e
uma outra, que ia para os quartos. Um quarto seguido do outro: para
entrarmos em um, era preciso passar pelo outro. Três criaturas entre a
pré-adolescência e a adolescência, zero privacidade.

Mas, apesar do estranhamento, era uma casa acolhedora, acabava


sendo a extensão de alguns lugares ao redor e agregava sem dificuldade
os amigos da vizinhança.

Não à toa, as memórias mais marcantes dessa casa têm a ver com
essa expansão.

Nossa janela costumava estar sempre aberta e dava direto para a rua.
Era daquelas janelas de “fofoqueira” que se via nas novelas. A rua era

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movimentada, na frente de casa, do outro lado da rua, tínhamos uma
padaria e o ponto final de uma linha de ônibus. Ali fora, muita vida
acontecia – daquela janela se via tudo.

Do lado esquerdo do nosso corredor, tinha um muro que ficava


entre a nossa casa e a do vizinho, que se estendia pelo corredor como
a nossa, mas em uma disposição diferente. Era um sobrado. Quando
nos mudamos, nossa vizinha era Dona Alice, já conhecida da família,
pois, em sua garagem, funcionava uma bombonière que frequentávamos
desde pequenos. Era fácil localizar para os amigos onde ficava nossa
nova casa. Um tempo depois Dona Alice, se mudou para o interior
e nosso novo vizinho também era alguém que já conhecíamos. Um
moço que era da igreja que frequentávamos, fazia doces maravilhosos
e continuou com a bombonière na garagem. Cheguei a ajudar algumas
vezes, tomando conta da loja ou cuidando da filha pequena da prima,
que era sócia dele. Era uma família de amigos que morava na casa ao
lado, as conversas de muro eram rotineiras, assim como panelas de
brigadeiro que ele dava para a gente “raspar”. Passado algum tempo,
ele se mudou dali, a bombonière fechou e a família que veio dividir o
muro com a gente já não era mais de conhecidos, não faziam doces e
nem tinham crianças pequenas. O pai da família era agente funerário,
da porta da nossa cozinha dava pra ver alguns caixões na garagem, mas
esse trabalho tão diferente não impediu que ali naquele muro começasse
uma amizade. Eles foram os últimos vizinhos que tivemos nessa casa.

Nosso convívio agregador não se dava apenas com os vizinhos de


muro. Na mesma calçada, há algumas casas da nossa, ficava uma igreja
que minha mãe começou a frequentar pouco antes de nos mudarmos.
Não demorou muito para que nossa casa se tornasse extensão da igre-
ja, onde os amigos passavam antes de ir para o culto ou paravam para
conversar na janela depois que saíam dele.

Aquela janela baixa que dava para a rua era sempre o convite para
uma conversa. Naquela época, eu e meu irmão tínhamos alguns amigos

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pelo bairro e não era difícil ver a frente da nossa casa cheia de gente
reunida, ainda mais quando entramos na fase dos namoricos.

Foi nessa casa que tivemos, pela primeira vez, um aparelho de


telefone, coisa que, durante a minha infância, era raro de ver na casa
de todo mundo. Ali, também descobrimos a TV a cabo. O mundo
parecia estar mudando muito rápido e já era bem diferente daquele
que eu via do terceiro andar do apartamento da Ouvidor. Saímos dessa
casa seis anos e meio depois, também com dificuldade para manter
o aluguel em dia...

Eu havia chegado aqui com 12 anos e estava saindo maior de idade,


formada no ensino médio, sonhando em ser artista. Já não era mais
aquela menina que aprendeu a andar de bicicleta na sala de jantar e nem
a que descobriu um mundo inteiro pela janela daquela casa. Quando
nos mudamos, levamos junto mais um membro da família. Judy era
uma cadelinha que meu irmão havia levado para casa só por uns dias
e acabou ficando a vida toda.

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A casa caos,
ou uma casa com muita vida dentro

Eu me lembro de ter visto essa casa vazia na época em que estávamos


procurando outro lugar para morar. É possível que, antes, ali funcio-
nasse um escritório, me lembro da casa ter carpete verde-escritório logo
em que nos mudamos e que, só depois de alguns meses, ele foi tirado.
Era um assobradado, aquelas casas que costumam ter um comércio ou
algum outro imóvel independente na parte de baixo.

Éramos jovens agora, a diferença de idade entre eu e minha irmã


mais nova já não parecia mais tão diferente assim. Ela estava entrando
no ensino médio, meu irmão estava em crise com a escola já fazia algum
tempo, nem sei dizer ao certo em que lugar do calendário escolar ele
estava. Eu estava na época dos vestibulares, decidindo o que ia fazer
da vida. E que coisa difícil é decidir o que fazer dela, quando você está
apenas começando a descobri-la.

Três pessoas crescidas. Nossa nova casa tinha apenas dois quartos e
dividir o quarto com essas “novas pessoas”, com quem eu havia divi-
dido quartos ao longo da minha vida, já não era mais tão simples. As
dinâmicas eram outras, as brigas de criança viraram discussões calorosas
com xingamentos. Foi uma época turbulenta da vida.

A casa era assim: um portão que dava acesso a uma escada que levava
a dois “apartamentos”, o nosso era o de número dois. Ao abrir a porta
da casa, dávamos de cara com um corredor, logo próximo à entrada,
à direita, uma porta para um dos quarto, o menor. Um pouco mais
à frente, duas portas, a da direita, dava para um banheiro, e outra, à
esquerda, dava para a cozinha, e, desta, uma porta para a pequena área

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de serviço. Logo à frente, uma sala que tinha a largura de todo o imóvel,
do outro lado, como se continuasse o corredor, uma porta para outro
quarto, que também ocupava a largura da casa.

Viemos da casa antiga com um beliche e uma cama de solteiro,


lembro-me que tivemos várias formas de dispor o quarto. No início, o
nosso era o do fundo da casa, logo depois da sala: era comprido, abri-
gava os três sem muitas dificuldades a respeito do espaço físico, mas era
mais do que espaço físico o que queríamos naquele momento. Ocupar
aquela casa sempre foi um grande malabarismo, eram muitos quereres
para um espaço tão pequeno.

É difícil pensar em todas as coisas que aconteceram naquele lugar,


tivemos nossos momentos bons, mas minha memória me leva ao
estado de caos, foram anos complicados. Ainda assim, naquele lugar,
eu crescia pouco a pouco: entrei no cursinho, na faculdade, comecei
a trabalhar, me formei. Minha relação com a cidade mudou. Minha
relação com o tempo mudou. Minha relação com a casa mudou.
Afinal, o que é uma casa?

Apesar de todo caos, ainda era o lugar que eu queria chegar depois
de horas de trânsito, trabalho e estudo. De repente, eu comecei a per-
ceber que eu passava menos da metade do dia dentro de casa. Afinal,
para que serve uma casa?

As dificuldades de uma vida adulta não me deram muito tempo


para pensar, tínhamos contas para pagar. Apesar delas, nunca tinha me
passado pela cabeça escolher uma profissão pela estabilidade financeira
que me traria. Eu estava descobrindo outra maneira de entender e
trocar com o mundo e, nessa descoberta, eu estou até hoje...

Entrei para a faculdade de Artes, estudava no período da manhã.


Terminei o primeiro semestre. Tranquei. Comecei a trabalhar para
pagar a faculdade, mudei para o período da noite. Todos os dias,

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saía de casa pela manhã, atravessava a cidade; no final da tarde, mais
um longo percurso até a faculdade, 5 horas de aula; volta pra casa,
janta, toma banho e dorme. No outro dia, tudo de novo. Mas eu
tinha descoberto um fazer que eu amava e toda essa vida louca era
como combustível.

Logo que terminei a faculdade, comecei a namorar um rapaz que


morava no Rio de Janeiro, o movimento da vida era outro. Final de
semana sim, final de semana não, eu estava viajando. Rafael também
não parava mais em casa, começou a fazer bijuterias artesanais e “virava
e mexia” descia para vender no litoral. Estávamos descobrindo nossos
caminhos, as relações em casa iam se acalmando.

Depois de 7 anos naquela casa, aconteceu algo que mudou nossas


vidas. Em fevereiro de 2007, no final de semana pós carnaval, uma
briga na praia tirou a vida de meu irmão. Na noite anterior, a minha
cama estava cheia de roupas lavadas que precisavam ser dobradas e
organizadas para passar. Nessa noite, eu dormi na cama dele, acordei
de sobressalto, com falação e choradeira, minha tia que morava bem
próximo estava lá, minha irmã chorava desesperada, minha mãe des-
norteada falava com Deus em voz alta coisas que eu não compreendia.
Cheguei até a porta da cozinha e perguntei para o meu pai o que havia
acontecido. O Rafael morreu, ele me disse.

Não importam quantas coisas aconteceram nessa casa, a memória


mais clara que eu tenho desse lugar é do vazio que ele ganhou depois
desse dia. Um vazio que ia além do físico, já que, desde as festas de final
de ano, Rafael esteve viajando, o que também fazia com que parecesse
que, a qualquer momento, ele fosse entrar em casa batendo a porta de
vidro do jeito específico que ele fazia.

Vivemos mais dois anos e meio naquela casa, era um viver diferente,
tinha um buraco ali, um incômodo persistente. Com menos uma pessoa,
aquela casa podia parecer mais confortável, mas não era.

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Nessa época, a Judy também já havia partido, eu decidi que queria
adotar outro cachorro, era uma maneira de preencher aquele vazio e
aquele silêncio. Então, eu e Jujuba nos encontramos, ela chegou em casa
com apenas 3 dias, desde então, ter uma companhia canina se tornou
sinônimo de “sentir-se em casa”.

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Era uma vez uma casa

A primeira coisa que eu gostaria de dizer sobre essa casa é que tí-
nhamos um quintal! Sonho de criança era ter uma casa com quintal e,
quando me lembro disso, consigo sentir o calorzinho do sol que batia ali.

Essa casa com quintal era, na verdade, um apartamento térreo de


um prédio de 3 andares. Não era muito grande, assim que abríamos
a porta, à direita, se via a cozinha, que dava para a área de serviços e
o quintal que acompanhava a extensão da casa. À frente da porta de
entrada, estava a sala num formato meio quadrado, à direita, uma janela
grande que dava também para o quintal e uma porta para o banheiro.
Os dois quartos ficavam na frente da casa, com as janelas para a rua e
tinham praticamente o mesmo tamanho.

Talvez eu não tenha histórias muito marcantes para contar sobre esse
lugar, aqui, a vida já tinha outras dinâmicas, o tempo parecia passar ainda
mais rápido, minha relação com o trabalho e a cidade se conturbava,
episódios de ansiedade, crise de pânico. Que vida era aquela que eu
estava construindo? Que relação era essa que eu tinha com a minha casa?

Nessa época, muitos amigos já estava financiando a compra de


seus imóveis. Pra mim, pensar em uma dívida de 30 anos era surreal.
Mesmo com o argumento do imóvel ser um investimento para a vida
toda, os acontecimentos dos últimos anos me levavam a olhar para o
agora. E agora eu não estava disposta a ser refém de um mercado de
trabalho que me deixava doente.

Em 2011, sai do emprego que estava havia 3 anos, precisava mudar


de ares, comecei a trabalhar em uma agência por turnos, a doce ilusão

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de se trabalhar 6 horas. Entrava às 7h da manhã e ia até às 14h, uma
tarde livre para as possibilidades, ledo engano. Percebi que não era esse
o caminho. Eu queria mudar minha relação com o trabalho. Nessa
época, eu já ajudava nos custos da casa e não fazia sentido para mim
não aproveitar o sol do quintal daquela casa pela qual eu trabalhava
para manter. Foi nesse ano e nessa casa que eu comecei a trabalhar
como freelancer e explorar as possibilidades de passar a maior parte
do meu dia dentro dela. Mudei minha rotina e minha relação com o
trabalho se transformou. Descobrir como é ter outras possibilidades
para nortear o seu dia que não seja um horário rígido de trabalho foi
um tempo de aprendizagem. Voltei a desenhar, a andar de bicicleta, fiz
uma horta no quintal, adotei mais um filhote, a Amora. Simone casou.

Em 2012, eu recebi uma proposta para um projeto temporário


no Rio de Janeiro. Nessa época, meu pai estava em uma clínica de
tratamento em Florianópolis, estávamos em casa apenas eu, minha
mãe e as cachorras. Fui para o Rio. O prédio em que morávamos foi
vendido para uma incorporadora, empresa de negócios imobiliários,
tínhamos um prazo para nos mudar. Minha mãe estava trabalhando
como corretora de imóveis.

Quando voltei para São Paulo, nossa casa já não era mais ali. Hoje,
no lugar do simpático predinho onde ficava minha casa com quintal,
foi construído um enorme edifício que, de longe, dá para se ver.

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4m2 em Copacabana

Fui para o Rio em setembro de 2012, precisava de um lugar para


morar pelos próximos 4 meses, meu trabalho seria em Ipanema, um
dos metros quadrados mais caros do país. Trabalhando em casa durante
algum tempo, minha ideia não era voltar a brigar com o caos da cida-
de, mesmo que esse caos incluísse a vista para o mar. Minha opção era
alugar um espaço na casa de outra pessoa, o que era muito comum ali
naquela região de tantos turistas.

Depois de muita procura, encontrei um quarto em Copacabana


na casa de uma moça simpática. Era um quarto espaçoso, com uma
cama de viúva e um pequeno guarda-roupa antigo. Eu tinha acesso ao
banheiro e à cozinha, a casa em si não era muito receptiva, mas, em
poucos minutos, estava no trabalho a pé ou de bicicleta. Passei ali um
mês. Precisava de um custo mais baixo para estar ali.

Uma tia conseguiu um contato com um parente. Uma senhora que


morava com a neta em um apartamento, também em Copacabana, que
poderia me alugar um pequeno quarto.

Dona Deni, tia do marido de minha tia, uma senhora simpática me


recebeu como se fosse neta. Tinha ali um quarto por volta de 4m3, uma
cama e uma TV e um pequeno espaço que cabiam algumas coisinhas. Ela
me dava uma parte do guarda-roupa em seu quarto para que eu pudesse
usar. E eu tinha acesso à cozinha e ao banheiro. Mas ali, naquela casa e
naquele quarto tão pequeno, algo além daquela senhora me acolhia e
me levava para casa. Tica era uma mini poodle cheia de energia que há
pouco tinha chegado naquela casa, me abraçou, deixou meu coração
mais tranquilo e ali eu fiquei até o final de dezembro.

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A casa da minha mãe

No período que estive no Rio, minha mãe passou pelo processo


de mudança daquele apartamento que havia sido vendido para incor-
poradora. Essa nova casa ficava bem perto de onde morávamos antes.
Quando cheguei, meu quarto já estava montado, apenas caixas com
livros e outras pequenas coisas para serem arrumadas. Era bom, mas
estranho estar em casa. Era bom e estranho estar naquela casa. A expe-
riência de morar sem meus pais, mesmo que não tenha sido em uma
casa que fosse minha, havia me mudado. Apesar de eu conviver bem
com eles, os ritmos dentro de mim já eram outros.

Essa casa também era um assobradado, mas, dessa vez, com uma entrada
independente e, possivelmente, também havia sido um imóvel comercial.
No número 415 da Rua Mesquita, abria-se uma porta de vidro e logo em
seguida uma porta de madeira dando para uma escada. Subindo, à esquerda,
um quarto com sacada, que dava para a rua. À direita, um corredor, do
lado esquerdo dele, vitrôs que davam para a rua e, do lado direito, logo
no começo, outro quarto, o meu quarto. Seguindo o corredor, uma sala,
em seguida, um banheiro e, mais à frente, a cozinha e a área de serviço.
Ali, vivíamos nós quatro, eu, meus pais e Jujuba e Amora.

No meu quarto, uma janela que dava de frente para um dos vitrôs
da sala e para a parte externa da área de serviços da casa de baixo. Se
via alguns pombos a observar meu quarto do telhado da casa e se ouvia
sabiás em plena madrugada.

Em algum momento, mudei de quarto com meus pais, o quarto


maior com a sacada que dava para a rua e tinha uma iluminação melhor.
Trabalhava em casa e minhas dinâmicas ali dentro iam aumentando.

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A busca por um outro modelo de vida, apesar de trazer uma leveza
de ser o que se acredita, vem com o peso de sustentar tudo isso. A
ansiedade ainda estava ali todos os dias.

Em 2013, em uma conversa durante a terapia, falei sobre a necessi-


dade de se viver esse outro tempo, de buscar um outro ritmo. Um ritmo
que se perdeu quando saí do papel e passei a frequentar mais a frente do
computador. Trabalhava com design gráfico, diagramava livros, e amava
isso. Mas o ritmo das empresas para as quais trabalhava me acelerava e
me deixava estressada, mesmo trabalhando em um espaço que era meu.
Entrei em uma oficina de tecelagem, as manualidades sempre me atraí-
ram. Entrei duvidando que iria até o fim, mas estava disposta a essa nova
experiência com o tempo do fazer. Terminei o curso encantada com a
possibilidade de se viver o tempo de outra forma. Isso me inspirou na
busca por mais experiências como aquela. Foi nessa época que eu redes-
cobri o crochê e que, no meu quarto, além do computador, livros, tintas
e papéis, passaram a habitar os fios.

Em algum tempo, o crochê foi ganhando um outro lugar na minha vida e


se transformando na possibilidade de um trabalho remunerado. Mais e mais
a ideia de habitar a casa e viver minhas atividades dentro dela me encantava.
Mas as dinâmicas daqueles que moravam comigo eram outras. Meus pais,
muito agitados, estavam em outro tempo, tinham outra velocidade.

Em 2015, comecei um trabalho alocada em uma editora no centro da


cidade. Depois de muito tempo, estava voltando à rotina de se trabalhar
fora de casa. Apesar de não ser muito grande a distância entre minha casa e
a editora, depois de um tempo, esse deslocamento voltou a me afetar. Foi,
então, que a ideia de sair da casa dos meus pais começou a fazer mais sentido
dentro de mim. Viver junto sempre fez mais sentido economicamente, mas
era preciso viver outras experiências e eu estava na minha busca por elas.

Em 2016, comecei a procura de um lugar no centro, que fosse possível


ir a pé trabalhar, visitei muitos apartamentos. A ideia de morar sozinha me

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assombrava e me encantava, tudo junto ao mesmo tempo. No meio disso
tudo, uma crise! No país, em mim, na vida. Fui dispensada do trabalho
alocada na editora, passei a prestar serviços em casa novamente. Era o que
eu queria, mas não ali, não naquela casa. Já que eu não iria mais precisar
trabalhar dentro da empresa, podia escolher morar em outro lugar que
não São Paulo. Fui atrás de outro sonho na vida, viver perto do mar...

Visitei e procurei muitos lugares, mas uma crise acontecia. No país,


em mim, na vida. Não seria dessa vez.

No meio do ano, uma outra possibilidade de morar e viver-casa


se abriu. Foi então que eu saí da casa dos meus pais para morar com
amigos em uma casa coletiva em Osasco.

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Enquanto escrevo memórias,
a vida continua a acontecer...

Enquanto escrevo sobre essa casa, uma nova experiência está a caminho.

Na casa da minha mãe, enquanto busco fotos para compor essas


memórias, meus pais arrumam uma mudança. A casa da minha mãe
vai pra longe. A casa de minha mãe vai ser na praia, em Fortaleza, no
Ceará, onde hoje moram algumas tias e minha avó. Mas casa de mãe
não importa onde está, né? Tem sempre cheiro e colo de mãe.

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Uma casa com histórias

Essa é a casa onde eu moro hoje e, quando eu começo a pensar


nela, logo me vem na memória o tanto de histórias que aconteceram
aqui antes de eu chegar. Sabe aquelas cenas de filme em que um
corretor vai mostrando a casa e vai contando sobre quem viveu e
todas as curiosidades que já aconteceram ali? É mais ou menos isso.
Quando eu cheguei aqui já conhecia muito do que era esse lugar,
do que havia sido e do que estava buscando ser.

O “Predinho” já era a casa do Marcel, um dos amigos com quem


moro hoje. Sim, um predinho, uma construção de três andares, que
fica nos fundos de uma casa no km18 em Osasco.

Com uma entrada lateral, o predinho foi construído há alguns anos


para ser uma fábrica de costura da família dona daquele terreno. A
fábrica durou alguns anos e precisou ser desativada, pois a construção
não possuía uma saída de emergência. Depois disso, o Predinho, aban-
donado, acabou servindo de depósito para a família, tudo que alguém
não precisava mais, mas não queria jogar fora, ia parar no Predinho.
Na casa da frente, morava um casal, Seu Maurício e dona Rosangela
(carinhosamente chamados pelo Marcel de tio e tia) e seus dois filhos
o Bi (que na verdade também se chama Mauricio) e a Marcela, amigos
de colégio do Marcel, que, um dia, em uma festa junina nesta casa,
olhou para cima e lá estava ele, o Predinho.

Foi depois desse dia que aquele prédio de três andares, que havia
sido uma fábrica de costura, e virou um depósito de coisas inutilizadas,
se transformou no Canto Único. Marcel, Marcela, Bi e mais outros
amigos do colégio passaram a frequentar o predinho, escolheram o

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segundo andar, onde tinha um banheiro. Limparam, pintaram, come-
çaram a ocupar as paredes daquele andar com desenhos e pinturas e a
habitar aquele espaço. Virou um lugar de encontro, de troca, de festas
para aqueles meninos que estavam prestes a sair do colégio. Com o
tempo, veio a faculdade, as dinâmicas foram se transformando e, em
algum momento, os fluxos diminuíram. O Marcel era um dos amigos
que vez ou outro ainda aparecia no Predinho, o Bi foi fazer faculdade
em Piracicaba, mas a família continuava morando na casa da frente.

Em 2012, o Marcel, que morava no centro de São Paulo, começou


a dar aula em Carapicuíba, cidade que fica ao lado de Osasco. Depois
de alguns meses no percurso São Paulo-Carapicuíba, Marcel propôs
para aquela família de amigos a possibilidade de morar no Predinho e,
por um valor que cobriria os custos de água e luz, ele iria arrumando
aquele espaço. Nessa época, já fazia alguns anos que nos conhecíamos,
eu já tinha ido ao Predinho umas duas vezes.

Em setembro de 2012, enquanto eu estava indo trabalhar no Rio,


o Marcel se mudava para o Predinho.

Muitas mudanças ocorreram nesse lugar depois que o Marcel se mu-


dou, ao longo dos últimos quatro anos, muitas coisas se transformaram
ali, mais espaços foram ganhando cuidado e, em 2016, os três andares
do Predinho já estavam sendo habitados de diversas formas. Eu mesma
estava por aqui toda semana, tinha virado segunda casa.

Nessa época, na casa da frente, ainda moravam Seu Maurício, dona


Rosangela e o Bi, que havia a pouco terminado a faculdade em Piracicaba
e voltado para Osasco. Marcela morava na Vila Mariana com o marido
e com a Olívia, que estava prestes a chegar. Aquela família querida ia
ganhar mais um membro e todo mundo queria estar perto. Foi então
que Seu Maurício, que havia nascido naquela casa, e viu o Predinho ser
construído, se mudou com a família para perto da netinha. E é nessa
casa cheia de história que, em agosto de 2016, eu vim morar.

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A Casa do Predinho

Mudamos para a casa da frente, Agna e Marcus Vinícius, um casal


de amigos que conheci pelo Marcel, Bauman, o gato deles, e eu. O
Predinho se expandiu e nasceu a Casa do Predinho.

Logo que me mudei para cá, vim sozinha. O casal estava em outro
processo de mudança e, apesar de já habitarem a casa alguns dias da sema-
na, só se mudaram de fato para cá, meses depois. Amora e Jujuba ficaram
na casa de meus pais, pois aqui já tínhamos ilustres presenças caninas.

O Olívio veio junto com a casa, a família havia se mudado para um


apartamento e um cão como o Olívio, nascido no campus da Esalq em
Piracicaba, crescido em uma república, não poderia terminar indo morar
em um apartamento, então ficou! Além dele, uma salsichinha pretinha
e melancólica, que veio do sítio da família do Marcel, estava morando
com ele na casa, Luna e eu, que já éramos parceiras, estreitamos ainda
mais os laços.

A casa, que é grande, parecia ainda maior com apenas uma pessoa
morando nela. Ao entrar pelo portão, duas ou três palmeiras, um pi-
nheiro, várias orquídeas junto às árvores, um jardim. Sim! Eu tenho um
jardim! Que além de plantas, possui um laguinho pequenininho onde
mora Frederico, uma tartaruga, também herança da casa.

Quem olha a casa do lado de fora, vê, ao lado do portão, uma outra
porta de ferro. Essa é a entrada lateral de um corredor que dá direto
nas escadas do Predinho. É complicado tentar explicar todos os espaços
da casa. Temos três quartos, um banheiro, sala, copa, cozinha, quintal,
terraço, jardim, lavanderia e um predinho!

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O Predinho tem três andares, no primeiro andar, onde já foi o “de-
pósito das coisas que ninguém queria”, temos um espaço aberto que se
divide entre aulas de yoga, estúdio de fotografia, filmes no telão e o que
mais quiser ser. O segundo andar é o “quarto do Marcel”, o primeiro
lugar a ser habitado pelos amigos quando começaram a frequentar o
predinho, com suas paredes cheias de desenhos e memórias. No terceiro
andar, um possível laboratório fotográfico, que começou a ser usado
para queimar telas para serigrafia, uma cozinha e uma caixa d’agua para
captar água da chuva, onde moram peixes e um vaso de papiro.

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Uma casa é uma vida que acontece

Até aqui escrevi memórias dessas casas e toda vida que aconteceu.
É mais fácil contar sobre o que a gente olha de longe, tentar entender,
perceber o que cada pedaço de vida quis dizer, ou simplesmente lembrar
com calorzinho no coração. Difícil é contar vivendo essa casa que está,
agora mesmo, acontecendo. Mesmo já fazendo um pouco mais de um
ano, assimilar esse novo eu-casa é complexo e delicado.

Viver coletivamente sempre fez muito sentido para mim e, então,


dividir esse espaço com pessoas que buscam dinâmicas parecidas era
uma ótima ideia. Assim como poder trabalhar em casa e passar mais
tempo habitando e vivendo o lugar onde eu escolhi morar.

Fazer a casa se sustentar como casa é ressignificar muitas coisas,


afinal, o trabalho sempre esteve associado ao fora de casa. Como res-
significar o tempo-casa-vida-cotidiano quando não se tem um horário
fixo de trabalho para cumprir? No meio dessas possibilidades de se viver
como acreditamos ser melhor, bagunça! Será que esse viver é como
imaginávamos?

Todo dia aqui é uma descoberta, uma casa é feita de muitas coisas.
Seguimos aprendendo...

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Entrei na graduação em Artes Plásticas em busca de modos
de existir, trabalhar e comunicar diferentes do lugar comum. Por
meio das artes visuais, comecei a trabalhar com design editorial e
nunca mais parei...

Em algum momento, o fluxo da vida parecia não fazer sentido,


encontrei nas manualidades uma maneira de resgatar um tempo
e um modo diferentes do que estava ao meu redor. Me encontrei.

Entrei para a pós-graduação em Artes-Manuais para Educação


em busca do que fazer com toda essa novidade, descobri um
mundo de possibilidades, me perdi em todas elas.

Hoje, me divido entre o computador e as agulhas de crochê.


Às vezes, desenho, às vezes, planto, às vezes, cozinho, às vezes,
desmonto coisas. Sonho com uma vida onde tudo é uma coisa
só: trabalho-casa-obrigação-brincadeira-férias-reunião. Sigo entre
achados e perdidos...

suzana.massini@gmail.com @smassini
Artes-manuais para a educação
aprendizagens e processos de singularização
organização Ana Lygia Vieira Schil da Veiga

NARRATIVAS EM ARTES-MANUAIS VIDA EDUCADORA E AS ARTES-MANUAIS


1) Artes-manuais e seus encontros 12) Rejeição e a arte-manual:
Karla Santori uma experiência na escola pública
Debora Garcia Fogli da Silva
2) Modos de habitar: uma cartografia
pessoal sobre o viver-casa 13) Memórias que costuram uma vida educadora
Suzana Massini Eliana Chiavone Delchiaro

3) De ponto em ponto, um conto: 14) Entrelinhas, sinais e sentidos


o saber que nasce das experiências em Elizabeth Renata Gladcheff Fonseca
artes-manuais e das histórias
15) O olhar das artes-manuais:
Elis Stela Mello de Oliveira
uma leitura do mundo através das mãos
4) Objetos transicionais: Rosana Bernardo
memórias afetivas e as artes-manuais
Eliana Mello 16) A sintonia dos gestos: um olhar humano
sobre educação e artes-manuais
5) Costuras da alma: a arte-manual como Deidmar Porto
disparadora de processos curativos
da psique humana EXPERIMENTAÇÕES EM ARTES-MANUAIS
Daniela de Oliveira Maia 17) Escrita viva
Fabiana Paula Assumpção Reis
PRIMEIRA INFÂNCIA E AS ARTES-MANUAIS
6) “Ô de casa!” um chamado 18) Artes-manuais e eu
Dayse Cristina Santiago Vera Souza

7) O jardim de infância 19) Artes-manuais, experimentação artística


como a casa dentro da escola para uma escrita poética
Gabriela Nakamura Lara Arce

8) Feltragem molhada como arte-manual 20) Encarnação: pistas para livr_


da educação infantil: a narrativa Carlos Vinicius Bressan
da experiência em sala de aula
21) Psicólogo-artífice: a arte-manual como
Vanessa Fonseca Jakowatz
recurso terapêutico. Uma escrita de si
VIVÊNCIAS DO FEMININO NAS ARTES-MANUAIS Cristina Tomé
9) Tecendo a pele POTÊNCIAS DAS ARTES-MANUAIS NO FAZER BRINQUEDO
Haline Gomes de Campos
22) O bicho de brinquedo brasileiro: o processo
10) Meu avesso: arte-manual, de construção do tamanduá-bandeira
organização do pensar e do sentir Patrícia de Araújo Caldeira Brito
Luciana Aguilar
23) “Bonequeiras sem fronteiras”: inaugurando
11) Corpo-narradora: contos, o fazer manual como um modo de resistência
mulheres, artes-manuais ou Sentir é mais que saber
Sofia Amorim Paula Martins Costa

24) O canto das mãos


Helena Gomes
Volume musical. Contém 11 faixas que incluem composições e interpretações
das autoras da coleção. O processo foi proposto e coordenado, entre 2016
e 2017, por Helena Gomes. Para ouvir, leia o QR CODE com seu celular.

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