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moderna de humanidade.
Por Luc Ferry (in Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. 2ª ed. Tradução de Vera Lucia dos
Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, págs. 72/79).
O cristianismo vai trazer até ela a noção de que a humanidade é fundamentalmente uma e
que os homens são iguais em dignidade – ideia incrível na época, e da qual nosso universo
democrático será em parte herdeiro. Mas essa ideia de igualdade veio de algum lugar e é
importante compreender bem como a teoria que acabamos de ver em ação trazia em
germe o nascimento desse novo mundo de igual dignidade dos homens.
Mais uma vez, para lhe apresentar as coisas do modo mais simples, vou me limitar a
apontar três traços característicos da ética cristã, decisivos para sua boa compreensão.
Vimos em que sentido os grandes cosmólogos gregos tomavam a natureza como norma.
Ora, a natureza é profundamente hierarquizada, quer dizer, desigual: para cada categoria
de seres ela desenvolve gradações que vão desde a excelência mais sublime até a maior
mediocridade. Com efeito, é evidente que somos, se nos colocarmos apenas sob o ponto
de vista do natural, muito desigualmente dotados: mais ou menos fortes, rápidos, grandes,
belos, inteligentes, etc. Todos os dons naturais são suscetíveis de uma distribuição desigual.
No vocabulário moral dos gregos, a noção de virtude está diretamente ligada às de talento
ou dom naturais. A virtude é, antes de tudo, excelência de uma natureza bem-dotada. Eis
por que – para lhe dar um exemplo bem típico do pensamento grego – Aristóteles pode
tranquilamente falar, num de seus livros dedicados à ética, de “olho virtuoso”. Para ele,
isso significa apenas olho “excelente”, um olho que vê perfeitamente, que não é nem
hipermetrope, nem míope.
Em outras palavras, o mundo grego é um mundo aristocrático, quer dizer, um universo que
repousa inteiramente sobre a convicção de que existe uma hierarquia natural dos seres.
Olhos, plantas ou animais, certamente, mas também homens: alguns são feitos para
comandar, outros, para obedecer – e é por isso, aliás, que a vida política grega se adapta,
sem dificuldade, à escravidão.
Para os cristãos, e nisso eles anunciam as morais modernas das quais falarei no próximo
capítulo, essa convicção é ilegítima, e falar de um “olho virtuoso” não tem nenhum sentido.
Porque o importante não são os talentos naturais em si, os dons recebidos no nascimento.
É claro, e quanto a isso não há dúvida, que eles são muito desigualmente repartidos entre
os homens, e alguns, com certeza, são mais fortes e inteligentes do que outros,
exatamente como existem, por natureza, olhos mais ou menos bons.
Mas, no plano moral, essas desigualdades não têm nenhuma importância. Porque importa
apenas o uso que fazemos das qualidades recebidas no início, não as qualidades em si. O
que é moral ou imoral é a liberdade de escolha, o que os filósofos vão chamar de “livre-
arbítrio”, e, de modo algum, os talentos da natureza enquanto tais. Esse ponto pode lhe
parecer secundário ou evidente. Na verdade, é literalmente extraordinário na época, pois
com ele, é todo um mundo que oscila. Para falar com clareza: com o cristianismo, saímos
do universo aristocrático parta entrar no da “meritocracia”, quer dizer, num mundo que
vai, inicialmente e antes de tudo, valorizar não as qualidades naturais da origem, mas o
mérito que cada um desenvolve ao usá-las. Assim, saímos do mundo natural das
desigualdades para entrar no mundo artificial, no sentido em que é construído por nós, da
desigualdade. Pois a dignidade dos seres humanos é a mesma para todos, quaisquer que
sejam as desigualdades de fato, já que ela repousa, desde então, na liberdade e não mais
nos talentos naturais.
A argumentação cristã – que será retomada pelas morais modernas, inclusive as mais laicas
– é, ao mesmo tempo, simples e forte.
Substancialmente, ela nos diz o seguinte: existe uma prova indiscutível de que os talentos
herdados naturalmente não são intrinsecamente virtuosos, que não têm nada de moral em
si mesmos, e que todos, sem exceção, podem ser utilizados tanto para o bem como para o
mal. A força, a beleza, a inteligência, a memória, etc., em resumo, todos os dons naturais,
herdados no nascimento, são, com certeza, qualidades, mas não no plano moral, pois todos
podem ser postos a serviço do pior ou do melhor. Se você utiliza sua força, inteligência ou
beleza para realizar o crime mais abjeto, você demonstra por esse fato mesmo que os
talentos naturais não têm absolutamente nada de virtuoso em si!
Porque apenas o uso que se faz deles pode ser chamado de virtuoso, como, aliás, indica
uma das mais célebres parábolas do Evangelho, a parábola dos talentos. Você pode fazer
dos seus dons naturais o uso que quiser, bom ou mau. Mas é o uso que é moral ou imoral,
não os dons em si! Falar de um olho virtuoso se torna, portanto, um absurdo. Apenas uma
ação livre pode ser chamada de virtuosa, não uma coisa da natureza. Assim é que a partir
de então o “livre-arbítrio” é posto no princípio de todo julgamento sobre a moralidade de
um ato.
No plano moral, o cristianismo opera, portanto, uma verdadeira revolução na história do
pensamento, uma revolução que ainda se fará sentir até na grande Declaração dos Direitos
do Homem, de 1789, cuja herança cristã, nesse aspecto, é indubitável. Pois, talvez, pela
primeira vez na história da humanidade, é a liberdade e não mais a natureza que se torna o
fundamento da moral.
Ao mesmo tempo, como eu dizia há pouco, a ideia de igual dignidade de todos os seres
humanos faz sua primeira aparição: então, o cristianismo estará mais ou menos
secretamente na origem da democracia moderna. Paradoxalmente, embora a Revolução
Francesa seja por vezes fortemente hostil à Igreja, ela não deixa de dever ao cristianismo
uma parte essencial da mensagem igualitária que vai contrapor ao Antigo Regime. Aliás,
constatamos ainda hoje o quanto as civilizações que não conheceram o cristianismo têm
dificuldade em dar à luz regimes democráticos, porque a ideia de igualdade, em especial,
não é evidente para elas.
Por aí talvez você possa avaliar tudo o que o cristianismo possui de inovador, não apenas
em relação ao mundo grego, porém mais ainda em relação ao mundo judaico. É porque o
cristianismo concede esse enorme lugar à consciência, ao espírito, mais do que à letra, que
ele não vai impor praticamente nenhuma juridicidade à vida cotidiana.
Com o cristianismo, porém, a ideia de humanidade adquire uma dimensão nova. Fundada
na igual dignidade de todos os seres humanos, ela vai assumir uma conotação ética que
não possuía antes. E isso pela razão profunda que acabamos de ver juntos: uma vez que o
livre-arbítrio é posto como fundamento da ação moral, uma vez que a virtude reside não
nos talentos naturais que são distribuídos desigualmente, mas no uso que se decide fazer
deles, numa liberdade em face da qual estamos todos em igualdade, então, é óbvio que
todos os homens se equivalem. Pelo menos, é certo que de um ponto de vista moral – pois
é evidente que os dons naturais continuam tão desigualmente distribuídos quanto antes.
Mas, no plano ético, isso não tem nenhuma importância.
Fica transparente que, a partir daí, a humanidade não poderia ser dividida, segundo uma
hierarquia natural e aristocrática, entre melhores e menos bons, entre superdotados e
ineptos, entre senhores e escravos. Eis por que, segundo os cristãos, é preciso que se diga
que somos todos “irmãos”, tidos situados no mesmo patamar enquanto criaturas de Deus,
dotadas de mesmas capacidades de escolher livremente o sentido de suas ações.
Que os homens sejam ricos ou pobres, inteligentes ou néscios, bem nascidos ou não,
dotados ou não, não importa mais. A ideia de uma igual dignidade dos seres humanos vai
levar a fazer da humanidade um conceito ético de importância primordial. Com ela, a
noção grega de “bárbaro” – sinônimo de estrangeiro – tende a desaparecer em benefício
da convicção de que a humanidade é UNA, ou não existe. No jargão filosófico, e aqui ele
ganha todo o sentido, pode-se dizer que i cristianismo é a primeira moral universalista.
Apesar de tudo, a questão da salvação, como sempre, não segue a da moral, com qual ela
não se confunde. Ora, é justamente nesse campo, mais anda talvez do que no da ética, que
a religião cristã vai inovar de modo extraordinário, desferindo, assim, um golpe mortal na
filosofia. É preciso dizer que em relação aos termos da questão inicial – grosso modo: como
vencer as inquietações que a consciência da finitude suscita no homem – o cristianismo
vem com força total. Enquanto os estoicos nos apresentavam a morte como a passagem de
um estado pessoal a um estado impessoal, como uma transição do estado de indivíduo
consciente para o de fragmento cósmico inconsciente, o pensamento cristão da salvação
não hesita em nos prometer categoricamente a imortalidade pessoal.
Como resistir? Além do mais, essa promessa, como você vai ver, não é feita
irrefletidamente, de modo superficial. Ao contrário, está integrada num dispositivo
intelectual de imensa profundidade, no pensamento do amor e da ressurreição dos corpos,
que, como se diz, é nota dez. De resto, se não fosse o caso, não se compreenderia por que
a religião cristã teve um sucesso colossal, sempre confirmado até os dias de hoje.