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1.O Novo Mundo entre Deus eo diabo «+ That unripe sire of earth... John Donne, To the Countess of Huntingdon DAS VIAGENS IMAGINARIAS AS VIAGENS REAIS Adescoberta da América talvez tenha sido 0 feito mais espan- f toso da histéria dos homens: abria as Portas de um novo tempo, diferente de todos os outros — a nenhum semelhante, dizia Las Casas —, somava as j4 conhecidas Africa e Asia uma nova Pporgao do globo, conferia aos homens a totalidade de que eram parte.' Entretanto, 0 achado nao foi, de imediato, apreendido na sua novi- dade: nas ilhas caribenhas, Colombo buscava, inquieto, os tragos asidticos que lhe assegurassem ter chegado a terra do Grande Ca, chamando indios aos aborigenes que encontrava, procurando 1.Ver T. Todorov, La conquéte de !’Amérique —La question de autre, Paris, Seuil, 1982, p. 14. 53, associar 0 que via as narrativas de viagem de Montecorvino, Pian del Carpine, Marco Polo e tantos outros exploradores medievais que, do século x até fins do século x1v, percorreram a Asia ea regido do Indico beneficiando-se da “Pax Mongolica”? Todo um universo imaginério acoplava-se ao novo fato, sendo, simultanea- mente, fecmndado porele: as alhos europeus procuravam a confir- magao do que ja sabiam, relutantes ante 0 reconhecimento do outro.’ Numa época em que ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam primeiro 0 que se ouvira dizer, tudo quanto se via era filtrado pelos relatos de viagens fantasticas, de terras longinquas, de homens monstruosos que habitavam os confins do mundo conhecido.* Aos poucos, talvez com traumatismos, as evidéncias da novidade cresceriam sobre o acervo milenar do imagindrio europeu, destruindo sonhos e fantasias, somando-se a outros ele- mentos desencantadores do mundo: em 1820, Leopardi acusou e lamentou este movimento,’ Europeu, como tal se perdia na inca- 2. Jean-Paul Roux, Les explorateurs au Moyen-Age, Paris, Seuil, 1961. 3. Colombo é modelar, neste sentido: “No mar, todos os sinais indicam a proximi- dade da terra, pois este é 0 desejo de Colombo. Em terra, todos os sinais revelam a presenca do ouro; aqui, também, sua conviccao se talhara por antecedéncia”. E mais adiante: “ele pensa que essas terras so ricas, pois deseja firmemente que 0 sejam; sua convic¢ao é sempre anterior & experiéncia”. Todorov, op. cit, pp.27-8. 4. L. Febvre chamou atengao para a primazia dos sentidos menos intelectuais no século xvi em “O homem do século xv’, Revista de Hist6ria, vol. 1, 1950. Ver do mesmo autor Le probldme de ’incroyance au XVF siécle —La religion de Rabelais, Paris, Albin Michel, 1947, pp. 467 ¢ ss. Ainda nesta linha, R. Mandrou mostrou que, entao, a narrativa “alimentava os pensamentos e as imaginages”, o homem preferindo escutar a ver, “com todaa imprecisao inquietante que esta preferéncia duravel comporta’, Introduction la France Moderne — 1500-1640, Paris, Albin Michel, 1974, respectivaménte pp. 76 € 77. 5.“Do descobrimento dessa ‘ignota immensa terra’ (...) s6 nos sabe dizer que tor- nou pequeno 0 mundo, destruindo todo um supramundo de sonhos graciosos e imaginagoes —‘sogni leggiadri, ‘belle immaginazion? —e de ilusbes geograficas ‘sommamente poetiche, e da presenca da América faz assim uma funesta ameaca 2A pacidade de reconhecimento do outro: o universo novo que se constituiu em torno da imagem americana. Haviam se passado trezentos anos, tempo suficiente para que as projegdes mentais dos europeus quinhentistas se espraiassem pelo continente recém- descoberto, somando-se ao universo imagindrio de povos de outras culturas e, finalmente, fundindo-se a eles. Com o processo colonizador, tecer-se-ia um imagindrio colonial americano, do qual outros europeus, além de Leopardi, nao dariam conta. Apesar de especifico — colonial —, 0 Novo Mundo deveria muito aos elementos do imaginério europeu, sob cujo signo se constituiu. Colombo vira a India na América, impregnado da lei- tura de obras como o Livro das maravilhas de Mandeville ea Imago Mundi [Imagem do mundo] do Cardeal @’Ailly; homem preso ao universo medieval, via para escrever narrativas que, por sua vez, seriam ouvidas.* Assim como, nele, 0 pensamento medieval se somou ao aventureiro intrépido de uma nova era—a das navega- g6es e das descobertas —, também 0 habito de ouvir se aliou ao de ver, numa espécie de premonicao do primado do visual caracteris- ticamente barroco.’ Viu-se tomado pela “vertigem da curiosidade” para a poesia’, Antonello Gerbi, La disputa del nuevo mundo — Historia de una polémica — 1750-1900 (1955), trad., México, Buenos Aires, Fondo de Cultura Econémica, 1960, p.350. 6. Todorov diz. que Colombo “tudo empreendeu para poder fazer narrativas iné- ditas como Ulisses”: a narrativa constitufa ponto de partida para novas viagens. Op.cit.,p.21. 7. Sobre a ambigia personalidade de Colombo, diz Michel Lequenne:“Umhomem de estrutura intelectual mais moderna que a de Colombo, detentor dos dados cos- mogréficos mais avangados existentes no fim do século xv, teria julgado a travessia da Europa a Asia muito longa e perigosa; um espirito totalmente medieval a teria julgado demasiadamente cheia de perigos por outras razdes. E precisamente por- que combinava um pensador medieval a um aventureiro intrépido dos novos tem- pos que Colombo péde ser 0 homem necessério”, Introducio a La découverte de Amérique —1. Journal de bord, 1492- 1493, Paris, Maspero, 1980, p.23. 35 que contagiaria tantos depois dele, dos nossos cronistas portugue- ses a Hans Staden, Knivet e Léry. Colocado a servico da descoberta do mundo, o olhar comegava a crescer sobre os outros sentidos, captando e aprisionando o raro, 0 estranho, o singular que, ante- riormente, também haviam cativado a atencao medieval. Reor- questrados, os sentidos davam origem a novas narrativas de via- gem, agora modernas.* Entretanto, antes de Colombo escrever suas cartas e seu di rio, antes mesmo que os exploradores medievais chegassem a Asia mong6lica e contassem suas viagens reais através de uma estrutura narrativa em que o elemento imagindrio ainda ocupava lugar de destaque, tiveram grande voga no Ocidente cristao as viagens ima- gindrias. As complexas narrativas de viagens e visoes do periodo carolingio constituiram um de seus nucleos mais interessantes.’ No século xu, o maravilhoso ganhou forga nova e passou a se mes- clar a descrigées geograficas do mundo desconhecido ou pouco conhecido dos europeus: a lenda de Alexandre, por exemplo, popularizou as maravilhas indianas, as mulheres, flores e outros seres insdlitos que as Cruzadas haviam tornado mais préximos para o homem feudal.'® Nessa mesma época, difundia-se larga- mente a lenda do Preste Joao, soberano cristao do Oriente de que 8.Sobrea“vertigem da curiosidade”e o “olho a servigo da descoberta do mundo’, ver Michel de Certeau, “Etno-graphie; Loralité, ou espace de lautre: Léry”, in Décriture de Histoire, Paris, Gallimard, 1975, p. 242. 9. Ver Giuseppe Gatto, “Le voyage au Paradis —La christianisation des traditions folkloriques au Moyen-Age”, Annales, B.S.C., 34° année, n. 5, set.-out. 1979, pp. 929-42. Jacques Le Goff examina muitas dessas viagens no seu trabalho sobre o Purgatério, onde chama a aten¢ao para a importancia de uma delas, o Purgatorio de sao Patricio, na construcao da imagem do Purgatério cristao. La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard, 1981. 10. Claude Lecouteux, “Paganisme, christianisme et merveilleux”, Annales. ES.C, 37" année,n. 4.jul.-ago. 1982, pp. 700-16. se falaré mais adiante. Viagens fantésticas para além do mundo conhecido, como a Visao de Tundalo, a Navegagiio de sito Brandao, © proprio Purgatério de sto Patricio, o Livro de Alexandre conhe- ceram “notavel difusao na drea ibérica durante todo 0 século xv e em parte, no século xvi”; dentre elas, destacar-se-ia, pela riqueza de invengao, a Vida de santo Amaro, especialmente importante Por tratar-se de aventura maritima na qual sc tocam varias ilhas desertas."" Desde cedo, portanto, as narrativas de viagens aliavam fantasia e realidade, tornando fluidas as fronteiras entre real e imaginério: aventuras ficticias como a de sao Patricio continham elementos extraidos do mundo terreno, aventuras concretas como as de Marco Polo se entremeavam com relatos fantdsticos, com situagoes inverossimeis que, tendo ouvido de alguém, o mercador acreditava ter vivido.” As Viagens de Mandeville sao um bom exemplo da fusao entre imaginério ¢ real. Escritas em francés, provavelmente em Liége, em meados do século xtv, tém por autor um imagindrio sir John de Mandeville. Constituem compilacao baseada em textos geograficos e enciclopédias como a de Vicente de Beauvais, e tive- ram varias edicoes em latim e em diversas linguas européias. Divi- dem-se em duas partes: um itinerério sobrea Terra Santa— “espé- cie de guia turistico para uso de peregrinos’, diz Carlo Ginzburg — ea descri¢ao de uma viagem ao Oriente, que atinge ilhas longin- 11. Giulia Lanciani, Os relatos de naufrdgios na literatura portuguesa dos séculos XVIe XVIL, trad. port., Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, A citagiiv encontra-seap.52. 12.A mais pertinente das observagdes aparece ao lado do inverossimil, como se o maravilhoso fosse inerente a toda descri¢ao do mundo asiatico,” Claude Suto, “Limage du monde la fin du Moyen-Age’, in Guy H. Allard (org.), Aspects dela marginalité au Moyen-Age, Montreal, L’Aurore,s.d., p.63. Ver também Jean Delu- meau, A civilizagao do Renascimento, trad., Lisboa, Imprensa Universitéria, 1984, vol.1,pp.49 ess. 7 quas e chega até a India e ao Catai (China). Termina com a descri- cao do Paraiso terrestre e das ilhas que rodeiam o reino mitico do Preste Joao. As duas partes sao apresentadas como testemunhos diretos, mas entre umae outra hd uma diferenga:“A primeira é rica em observag6es precisas e documentadas, a segunda é largamente imagindria” O que eraa realidade da terra para o homem do século xiv? Acreditava-se na existéncia do Equador, dos trépicos, de cinco zonas climaticas, trés continentes, trés mares, doze ventos. A Europa setentrional e o Atlantico j4 integravam uma geografia imaginaria, sendo descritos quase como fic¢4o: na primeira, os hiperbéreos viviam nas trevas; no segundo, havia uma quanti- dade de ilhas misteriosas. Sobre a Africa, falava-se do Magreb e do Egito, desenvolviam-se hipsteses sobre as fontes do Nilo, que seriam na India — esta, ligada a Africa, fechava 0 Indico ouno curso superior do Niger. A Asia, grande pdlo de fascinio para o imagindrio europeu, encerrava 0 Paraiso terrestre, vedado por altas montanhas, por uma cortina de ferro e por hordas de ani- ! mais monstruosos. Ao norte, ficava o lendario pais de Gog e Magog, composto das tribos israelitas expulsas por Alexandre. No centro, estendia-se 0 reino do Preste Joao, descendente dos reis magos e inimigo ferrenho dos muculmanos. O primeiro registro que se tem deste reino — importantissimo no imaginario euro- peu— € de Otao de Freising (1145), antecedendo em vinte anos a carta que o Preste teria escrito a Alexandre II, Manuel Comneno e Frederico Barba-Ruiva. Ao sul, ficava a India, onde as narrativas lendarias situavam a comunidade crista de Sao Tomas. Para além do Indico, o pais dos antipodas, mundo antinémico por excelén- 13. Carlo Ginzburg, Le fromage et les vers, trad., Paris, Flammarion, 1980, p. 80. 38 assent rtestnpnnmtennttnersmra i : cia, povoado de seres monstruosos: cinocéfalos, ciclopes, troglo- ditas, acéfalos, homens-formiga..."* Durante séculos, 0 oceano Indico constituiu-se em horizonte mental corporificador do exotismo (ou da necessidade dele) do Ocidente medieval, “o lugar de seus sonhos e do fluir de seus ins- tintos’."* Para Le Goff, o temor em desvendé-lo seria como o temor em desvendar os proprios sonhos. Uma das componentes bisicas do sonho indiano seria a riqueza, as ilhus transbordantes de péro- las, madeiras preciosas, especiarias, pecas de seda, atrelando o sonho as necessidades de expansao comercial e obtengao de novos mertados complementares ao europeu. A expansdo comercial seria, assim, o substrato infra-estrutural destas projecées ontricas, ou pelo menos de parte delas." Outro lado do sonho indiano eraa exuberancia fantdstica da natureza, dos homens, dos animais — uns ¢ outros, monstruosos: para os europeus, seria a compensacio de seu mundo pobre e limitado. Do ponto de vista sexual, seria a fascinacao pela diferenga: canibalismo, nudismo, liberdade sexual, erotismo, poligamia, incesto.” Todos esses temas, analisados por Le Goff no tocante ao Indico, acham-se presentes na descoberta da América. Com a 14, Claude Sutto, op. cit. 15. Jacques Le Goff, “L’Occident médiéval et Océan Indien: un horizon oniri- que’; in Pour un autre Moyen-Age — Temps, travail et culture en Occident, Paris, Gallimard, 1977, p.290. 16. “Horizonte meio real, meio fantéstico, meio comercial, meio mental, ligado & prépria estrutura do comércio do Ocidente medieval, importador de produtos preciososlonginquos, com suas ressonancias psicol6gicas”,Le Goff, op.cit., p. 292. 17. Falando das espécies animais que habitavam regides longinquas — aspides, dragoes, basiliscos —, Sérgio Buarque de Holanda diz. que estes prodigios “s6 se preservaram na India, particularmente, e na Eti6pia, que continuaram aseros dois viveiros de todas as maravilhas, sobretudo enquanto nao se descobriu o novo conti- nente”. Visto do Paraiso — Os motivos edénicos no descobrimento e colonizagao do Brasil.2. ed.,Sao Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969, p. 198.0 grifo émeu. 39 familiaridade crescente do europeu em relagao ao Indico — em que tiveram papel importante as viagens dos exploradores medie- vais —, os paises lendarios e as humanidades monstruosas foram sendo empurrados para regides cada vez mais distantes e periféri- cas, ainda indevassadas pelos homens do Ocidente. Sutto mostra que Gog e Magog passaram a habitar o Norte da Russia. Da Asia Central, o Preste Jodo se deslocou para a Etidpia. Esta, num pri- meiro momento, é localizada pelo homem medieval na India Meridiana — simbolizando, para Le Goff, a uniao entre a Rainha de Saba e Alexandre, e nao mais entre aquela e Salomao. No século XY, os portugueses j4 viam a Etiépia como integrando a Africa. Cada vez mais, a Asia aparecia nos relatos com dimensées estrita- mente humanas."* Nesta perspectiva, parece licito considerar que, conhecido 0 Indico e desmistificado o seu universo fantastico, o Atlantico pas- sar4a ocupar papel andlogo no imaginario do europeu quatrocen- tista — reduto derradeiro das humanidades monstruosas, do Paraiso terrestre, do reino do Preste Joao, talvez — como diz frei Vicente do Salvador — do reino do proprio demo, que, aqui, tra- varé combate encarnicado contra a Cruz e seus cavaleiros.” O maravilhoso estaria fadado a ocupar sempre as fimbrias do mundo 18. Itinerdrios de viagens ao Paraiso associam-se freqiientemente a noticias sobre oreino do Preste Joao:“Um frade espanhol andnimo, contemporauey de Fazio, ¢ que pretendia ter visitado todas as partes do mundo, também nos oferece sua visao do Paraiso, mas j4 agora, acompanhando o itinerdrio do misterioso Preste Joao, que, depois de ter sido o grande soberano asiatico, principiaa confundir-se com o potentado cristao da Abissinia, vai situd-lo para os lados da Nibia e da Etiépia’, Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 165. 19. Refiro-mea epigrafe deste livro. Frei Vicente do Salvador, Hist6ria do Brasil— 1500-1627, 3. ed. rev. por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. $a0 Paulo, Melhoramentos, s.d.,p. 15. 40 g s B & conhecido pelos ocidentais: 0 mundo colonial americano seria, pois, a sua ultima fronteira. Alenda do Preste Joao é elucidativa por dois motivos. Primei- ramente, ilustra de forma modelar a idéia de que ocorre migracio geografica no imaginério europeu, decorrente do devassamento de terras desconhecidas. Em segundo lugar, relaciona-se estreitamente com as navegages portuguesas ¢ com us descobrimentos. Sérgio Buarque de Holanda acredita que a duradoura lenda do potentado cristéo do Oriente foi desbotada e simplificada pelos portugueses, pouco dados a devaneios fantasticos, Reconhece, entretanto, que este povo de navegantes teve papel de destaque na “demanda do fabuloso pafs do Preste Joao”. Em 1487, quando deixaram Portugal encarregados de descobrir 0 caminho terrestre para as Indias, Afonso de Paiva ¢ Pero da Covilha levavam i instrugées de d. Joao Ir paraoreconhecimento da terra do Preste. Como diz Sérgio Buarque de Holanda, a lenda era entao j4 velha de mais de 1m século, e nao lucrou muito da imaginagao lusa; no se atém entretanto o nosso historiador maior ao fato de que, incorporando-a, inscreveram-na 0s portugueses na génese da empresa de devassamento do mundo. No imaginario dos marinheiros portugueses que partiram com Vasco da Gama ou com Cabral, quanto teria pesado aexpectativade, afinal, tocar as terras lendarias do rei cristo? Eainda Sérgio Buarque de Holanda quem mostra o deslo- camento do mito do Paraiso terrestre para 0 universo atlantico, vindo dos confins da Asia e da Africa e associado, neste novo habitat, a tradig6es célticas bastante antigas.” Tratou-se de um 20. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit.,p. 140. 21.“A trasladacdo para o Atlantico de téo mirificos cenarios, ja prenunciada com as tradicdes pagis das ilhas Afortunadas ou do Jardim das Hespérides,e por elas de algum modo fertilizadas, jé ganhara lento, porsua vez, quando passaramaengas- tar-se na mitologia céltica, principalmente irlandesa e gaélica..”, op. cit, p. 166. 41 processo lento: no século x, o Paraiso terrestre se situava no meio do oceano; subseqiientemente, foi-se deslocando ora para 0 norte, ora para o oeste, acompanhando o progresso dos co- nhecimentos geogrficos, “até desaparecer j4 em fins do século XVI, embora nAo se dissipe da imaginagao popular antes do século xvir”.” Acumulando lendas, deslocando-as no espago, refundindo- as, o imagindrio europeu englobou também 0 arquipélago das ilhas Brasil, possivel transformagao sofrida pela ilha de Sao Bran- dao. De 1351 a 1508, teria conhecido miltiplas variagdes: Brazi, Bracir, Brasil, Brasill, Brazil, Brazile, Brazille, Brazill, Bracil, Bragil, Bragill, Bersill, Braxil, Braxili, Braxill, Braxyilli, Bresilge.” Em 1367, a carta de Pizigano acusava trés ilhas Bracir, que, a partir de entao, seriam registradas na maioria das cartas maritimas; sua posicao se manteria inalterada: “A mais meridional das ilhas encontramos assinalada no grupo dos Acores, aproximadamente nalatitude do cabo de Sao Vicente; asegunda demoraaNw do cabo de Finisterra, na latitude da Bretanha; a terceira a Ww e nao muito longe da costa da Irlanda”.* Provavelmente, frei Vicente do Salvador nao tinha conheci- mento da presenga do nome Brasil nas cartas medievais, e parece-me ter sido o primeiro a explicar a designa¢ao pela pre- senga da madeira tintorial de cor avermelhada. Entretanto, é curioso notar que, ao fazé-lo, forneceu uma complicadissima explicagao de cunho religioso, alusiva ao embate entre o Bem e 22, Sérgio Buarque de Holanda, op. cit. p. 167. 23. Capistrano de Abreu, O descobrimento do Brasil pelos portugueses, Rio de Janeiro, Laemmert & Cia, 1900, p.48. 24.K. Kretschmer, Die Entdeckung Amerikas in ihrer Bedeutung fuer die Geschichte des Weltbildes, Berlim, 1892. Apud Capistrano de Abreu, op. cit., p. 49. Na cidade de Angra, na ilha Terceira, existe um monte Brasil; na Irlanda, encontra-se um baixio designado Brasil Rock. Capistrano, op. cit,, p.50. 0 Mal, o Céu — reino de Deus — e 0 Inferno — reino do dem6- nio. Mais do que isso, associou “esta por¢do imatura da Terra” ao Ambito das possessdes demonfacas: sobre a colénia nascente, despejou toda a carga do imaginario europeu, no qual, desde pelo menos o século x1, o deménio ocupava papel de destaque. Se a identificagao com as regides infernais é transparente no texto de frei Vicente, a associacao entre o fruto de uma viagem concreta — o descobrimento do Brasil — as tantas viagens imagindrias que os europeus vinham empreendendo havia séculos o é menos, apesar de tao legitima quanto aquela. O Bra- sil, colonia portuguesa, nascia assim sob o signo do Demo e das projecdes do imagindrio do homem ocidental. Mas 0 dominio infernal nao era a tinica possibilidade, neste trecho de frei Vicente. O primeiro movimento — o de Pedro Alvares — se fez no sentido do Céu: a este acoplar-se-ia a colénia, nao fossem os esforcos bem-sucedidos de Lucifer, pondo tudo a perder. O texto de nosso primeiro historiador é extraordindrio justamente por dar conta da complexidade subjacente as duas possibilida- des: enxergar-se a colonia como dominio de Deus — como Paraiso — ou do diabo — como Inferno. Para frei Vicente, 0 deménio levoua melhor: Brasil foi o nome que vingou, € 0 frade lamenta que se tenha esquecido a outra designacao, muito mais virtuosa e conforme aos propésitos salvacionistas da brava gente lusa. Em posic¢ao bastante diversa, Jaboatéo — outro frade — enxergou o descobrimento do Brasil como sobrenatural e miracu- loso: por muitos anos Deus mantivera oculta a existéncia desta dilatada regio, desvendando-a por fim aos olhos dos homens e permitindo que deste tesouro colhesse o Céu “multiplicados lucros”. Prodigioso nao é apenas o que ocorre de forma sobrenatu- ralemilagrosa, mas também “o que naturalmente acontece fora da ordem comum das coisas’, tal como se deu com o descobrimento 43 do Brasil, por isso miraculoso e sobrenatural.* Para Jaboatao, o sobrenatural intervém positivamente no caso do descobrimento: este é uma a¢io divina, foi Deus quem, através de seus designios insondaveis, conduziu os homens até aqui. O descobrimento revela e reforgaa existéncia de Deus: milagre divino, eis 0 que foio achamento da colénia portugnesa na América. Separadas do evento que interpretam por um nimero menor ou maior de anos — no caso de Jaboatio, dois séculos e meio —, as formulagdes dos dois religiosos fazem pensar nas persisténcias do universo mental, menos permedvel as mudangas que as estruturas econdémicas e sociais. A época das descobertas caracterizara-se por religiosidade exacerbada, 0 préprio descobridor da América, como se sabe, pensando seriamente na possibilidade de usar 0 ouro americano numa Cruzada contra o Infiel. Para Colombo, poder-se-ia dizer que foram trés os motivos das navega¢ées: 0 humano,o divino eo natural ** Componentes do universo mental, nunca estiveram isolados uns dos outros, mantendo entre si uma relacdo constante e contraditéria: na esfera divina, nao existe Deus sem o diabo; no mundo da natureza, nao existe Paraiso terrestre sem Inferno; entre os homens, alternam-se virtude e pecado. Aaventura maritima desenrolou-se, pois, sob forteinfluéncia do imaginério europeu tanto na vertente positiva quanto na nega- tiva. A idade de ouro das utopias européias vinculou-se estreita- mente as grandes descobertas, os relatos de viagem, “embelezados pela imaginagao’, agindo como choque cultural e provocando cotejos e questionamentos das estruturas sociais de entao.” Thevet 25. Antonio de Santa Maria Jaboatao, Novo Orbe Serafico Brasflico ou Cronica dos frades menores da Provincia do Brasil (1761), vol. 11, Rio, Tipografia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1858, pp. 8-9. 26. Todorov, op. cit., p.22. 27. J. Servier, Histoire de 'utopie, Paris, Gallimard, 1967. Apud Jean Delumeau, Le 44 e sobretudo Léry tiveram influéncia na constru¢ao do mito do bom selvagem, e as tendéncias edenizadoras tém ressonancia em muitas das crénicas e tratados escritos sobre o Brasil, Gandavo sendo considerado, entre outros, propagandista da colonizacéo Portuguesa nos Trdpicos.* Mas mesmo nas formulagdes mais r6seas, embutia-se o risco, o perigo, a morte. O préprio Thevet aponta 0 outro lado da expansao, o medo do mar oceano, dos sor- vedouros, dos Gigantes Adamastores: “Abandonado ao talante ¢ mercé do elemento mais inconstante, menos piedoso, e menos seguro entre todos, com pequenos navios de madeira, frégeisedes- conjuntados (dos quais se pode quase sempre esperar mais a morte quea vida) para navegar no rumo do pélo Antartico, que nunca foi descoberto nem conhecido pelos antigos...”” Léry e os compa- nheiros chegaram a pensar que seriam eternos prisioneiros do mar:“E de fato, porque havia perto de ‘quatro meses que estavamos sacudindo e flutuando sobre o mar sem tocar nenhum porto, e nos acudia freqiientemente que ali est4vamos como exilados, parecia- nos que nunca haveriamos de dali sair”." As promessas tentadoras de Gandavo tiveram um reverso tragico nos relatos de naufrégios péché et la peur — La culpabilisation en Occident — XVI-XVIF siécles. Paris, Fayard, 1983, p. 141 28. Se os autores sdo undnimes em destacar a importancia de Léry neste assunto, ‘mesmo no acontece com Thevet; Charles-André Julfen, entretanto, considera- © “seguramente o pai do bom selvagem, pois foi nas Singutaritez... que Ronsard encontrou a idade de ouro com que sonhava’, Introducao a Les francais en Amé- rique pendant la deuxiéme moitié du XVF siécle. Paris, pir, 1953, p. v.Sobre Gan- davo, diz Capistrano: “.. seu projeto se reduz a mostrar as riquezas da terra, 0s recursos naturais e sociais nela existentes para excitar as pessoas pobres a virem povoé-la:seuslivros sao uma propaganda da imigragio” Nota bibliografica a Tra- tado da terra do Brasil, Rio, Edi¢ao Anuério do Brasil, s.d., p. 18. 29. André Thevet, Les singutaritez de la France Antarctique, Paul Gaffarel (ed.), Paris, Maisonneuve & Cie., 1878, p. Lv. O grifo émeu. 30. Jean de Léry, Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, vol.1, introd. enotas as portugueses, género literario curioso que floresceu nos séculos xvi € XVII, € nos quais “nao temos senao naus engolidas pelas ondas, equipagens dizimadas pelas doengas, sofrimentos inauditos de mulheres, velhos, criangas, magros ganhos para os mais afortuna- dos, que conseguirao por vezes sobreviver auma viagem mas mor- rerdo na seguinte”." Vendo a expansio ultramarina como “mes- quinha ansia de cobiga e opressao”, os autores desses relatos acusaram a instrumentalizagao ideolégica que se fazia dos ele- mentos do imaginario, fundidos na justificativa da “dilatacao da fé edo império”. Descoberto, o Brasil ocuparé no imagindrio europeu posi¢ao andloga a ocupada anteriormente por terras longinquas e miste- riosas que, uma vez conhecidas e devassadas, se desencantaram. Com 0 escravismo, este acervo imagindrio seria refundido e rees- truturado, mantendo, entretanto, profundas raizes européias. Prolongamento modificado do imaginario europeu, o Brasil pas sava também a ser prolongamento da metrépole, conforme avan- avao processo colonizat6rio. Tudo o que li existe, existe aqui, mas de forma especffica, colonial. Mais uma vez, é 0 argutissimo frei Vicente quem percebe a semelhanga na diferenga: “De Portugal vem farinha de trigo? ada terra basta. Vinho? deagticar se faz muito suave e, para quem o quer rijo, com o deixar ferver dois dias embe- beda como o de uvas. Azeite? faz-se de cocos de palmeiras. Pano? de Paul Gaffarel, Paris, Alphonse Lemerre, 1880, p.73.Seo medo do maréomedo do desconhecido, os seres que vém do mundo em que se navega podem trazer perigo: é 0 que parece dizer a tradigao dos tempestérios medievais. Na Alta Idade Média, as populagées rurais da Europa tinham pavor dos maleficios acarretados pela acao dos tempestérios, seres que, no meio das tormentas, navegavam os ares em barcos e roubavam colheitas. Dos camponeses, dizia Agobardo:“Créem esus- tentam que existe um pais chamado Magonia, de onde vém naves através das nuvens”, Agobardo chama-os “marinheiros do ar”. Oronzo Giordano, Religiosi- dad popular en la Alta Edad Media, trad., Madrid, Gredos, pp. 142 e278. 31. Giulia Lanciani, op. cit., pp. 130-1. 46 faz-se de algodao com menos trabalho do que ld se faz o de linho edela... Améndoas? também se excusam coma castanha-de-caju, et sic de ceteris”. “Este Brasil € j4 outro Portugal”, diria Fernao Cardim, acrescentando, logo em seguida, as diferengas: 0 clima muito mais temperado, as doengas muito mais raras, mas meno- tes as comodidades no morar e no vestir.** Percep¢ao precoce do ser-e-no-ser; no século xvui, cla se agugaria. A Auérica era muito mais filha da Europa do que jamais o foram a Asia ea Africa: mas “era Europa, ¢ ao mesmo tempo a nao-Europa; era a antitese geografica, fisica e muito logo politica da Europa...2* O bom eo ruim, 0 Céueo Inferno que acabavam se harmonizando na Europa — na metrépole — podiam, aqui — colénia — mais do que em nenhum lugar, tender a polarizacao. No tocanteanatu- teza, a idéia de prolongamento da Europa—e portanto lugar de concretizagio dos mitos de um Paraiso terrestre — tendeu a triunfar: quase sempre, edenizou-se a natureza. Mas no que disse respeito a humanidade diversa, pintada de negro pelo escravo africano e de amarelo pelo indigena, venceu a diferenca: inferna- lizou-se o mundo dos homens em proporg¢ées jamais sonhadas portodaa teratologia européia—lugar imagindrio das visoes oci- dentais de uma humanidade invidvel. Houve perplexidade ante as nuvens de insetos, as cobras enormes, o calor intenso; mas ante 0 canibalismo e a lassidao do indigena, a feiticaria ea musica rui- dosa dos negros, a mesticagem e, por fim, o desejo de autonomia dos colonos, houve reptidio. 32. Frei Vicente do Salvador, op. cit.,p.51. 33, Padre Fernao Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil. 3. ed., Sao Paulo, Companhia Editora Nacional/mec, 1978, p. 66. 34. Gerbi, op. cit., p. 143. 7 NATUREZA: PREDOMINANCIA DO EDENICO A expansao ocidental caracterizou-se pela bifrontalidade: por um lado, incorporavam-se novas terras, sujeitando-as ao poder temporal dos monarcas europeus; por outro, ganhavam-se novas ovelhas paraa religido ¢ para o papa.“ De todos us frutus que poderia dar a terra recém-descoberta, pareceu a Caminha que 0 melhor seria salvar a gente indigena. “E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve langar’”, permitia-se aconse- thar, com grande naturalidade, o escrivao de Calicute. A propaga- sao da fé catélica aparece, no texto de Caminha, como forte desejo do monarca: “Fazer 0 que Vossa Alteza tanto deseja, a saber acres- centamento de nossa santa fél”.* Quase cinqiienta anos depois, d. Joao 11 reiterava os propésitos cristianizadores da monarquia por- tuguesa: “A principal cousa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse a nossa santa fé catdlica’, escrevia, em 1548, a Tomé de Souza.” Tornou-se lugar-comum afirmar que a religido forneceu os mecanismos ideoldgicos justificatorios da conquista e colonizagao da América, encobrindo e escamoteando as atrocidades cometidas em nome da fé. E incontestvel que assim foi. Mas, se tanto foi dito acerca das rela¢Ges entre infra-estrutura e superestrutura, quase nao se pro- curou esmiugar 0 mundo complexo da religiosidade. Nunca é demais lembrar que o fim da Idade Média e os inicios da Epoca 35. Sobre o carter bifronte da expansao, ver Luis Filipe Baeta Neves, O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios —Colonialismo e repressao cultural. Rio, Forense-Universitéria, 1978, p.28. 36. Carta de Pero Vaz de Caminha, in Carlos Malheiro Dias (org.), Histéria da colonizagao portuguesa do Brasil, vol. i, Porto, Litografia Nacional, 1923, p. 99. Grifo no original. 37. Regimento de Tomé de Souza— 17-12-1548, in Malheiro Dias. op. cit., vol. p.347. 48 Moderna caracterizaram-se por uma religiosidade funda, exacer- bada, cheia de anguistia.” Portanto, sem que os propositos mate- tiais fossem acanhados, cristianizar era, de fato, parte integrante do programa colonizador dos portugueses diante do Novo Mundo. Mais do que isso: parte importante, dado o destaque que tinha a religiao na vida do homem quinhentista. Os portuguescs se imbuitam sinceramente de seu papel mis- sionario. “Os outros homens, por instituicao divina, tém s6 obri- gacao de ser catdlicos: 0 portugués tem obrigacao de ser catélico e de ser apostélico. Os outros cristdios tém obrigacao de crer a fé: 0 Portugués tem obrigacao de a crer e mais de a propagar”, dizia Vieira, um século e meio apés a descoberta. Para 0 zelo missiona- rio, o exemplo vinha de cima: do rei —“Todos os reis sao de Deus feitos pelos homens: o rei de Portugal é de Deus e feito por Deus ¢ Por isso mais propriamente seu” — edo préprio Deus, que elegera 0s portugueses dentre os demais povos, numa espécie de repeticao da hist6ria de Israel.” A féno se apresentava isolada da empresa ultramarina: pro- Pagava-se a fé, mas colonizava-se também. As caravelas portugue- sas eram de Deus, nelas navegavam juntos missiondriose soldados, Pois “nao s6 sao apéstolos os missiondrios senao também os solda- dos e capitaes, porque todos vao buscar gentios e trazé-los ao lume da fé e ao grémio da Igreja” No primeiro quartel do século XxvIn, Rocha Pita continuaria explicando teologicamente o descobri- mento do Brasil. Aqui, a terra era inculta ebarbaros os seus habitan- tes “quando a descobriu o gencral Pedro Alvares Cabral’, [...] “ale- 38.Ver,entre outros trabalhos de Jean Delumeau, as belissimas paginas iniciais de Naissance et affirmation de la Réforme, Paris, Pur, 1968, pp. 47-57. 39. Eduardo Hoornaert, A igreja no Brasil colénia— 1550-1800, Sao Paulo, Brasi- liense, 1982, p. 40. 5 40, Hoornaert, op. cit... 41. O autor diz que o messianismo teol6gico, centrado no rei de Portugal, seria a chaye interpretativa dos discursos de Vieira. 49 gre deser o primeiro que achou uma inc6gnita regiao de tanto gen- tilismo (em que os nossos monarcas tinham o quesuspiravam, para dilatara nossa catélica fé, que era o intento com que mandavam sul- car os mares com tao repetidas armadas)...”. Dilatacao da fé, coloni- zacao e fortalecimento do poder mondrquico sempre aparecem associados: d. Jodo m1 “empenhou o scu catélico zclo na empresa, assim das terras como das almas do Brasil, e conseguiu ambos os triunfos, trazendo tantas ovelhas ao rebanho do universal pastor, como stiditos ao jugo do seu dominio”. Em formulagao quase idén- tica 4 de Vieira, dizia Rocha Pita que, para as colénias portuguesas, o monarca enviava “juntos capitaes e missiondrios”."” Frei Vicente justificava a lide colonizadora através da religiao: dentre os produtos cultivados na colénia, figuravam 0 pao eo vinho, necessdrios ao sacramento da missa. “Se me disserem que nao pode sustentar-se a terra que nao tem pao de trigo e vinho de uvas para as missas, concedo, pois este divino sacramento é nosso verdadeiro sustento; mas para isso basta o que se da no mesmo Brasil em Sao Vicente e campo de Sao Paulo...”.” Incorporava-se assim a natureza colonial a esfera do sagrado. Gandavo propunhaentreter os colonos naexploragao derique- zas maritimas enquanto nao se descobriam minas de metal precioso no interior; dizia que, além de explorar estas riquezas, importava muito trazer indios do sertao, pois “postas ao lume e conhecimento da nossa Santa Fé Catélica’, suas almas seriam salvas.* Cabia ao colono descobrir riquezas na terra e ainda enriquecer os céus, con- 411 Sebastido da Rocha Pita, Histéria da América portuguesa desde o ano de mile quinhentos do seu descobrimento até o de mile setecentos e vinte e quatro (1730). Lisboa, Francisco Artur da Silva, 1880, respectivamente pp. 27 ¢29. 42, Frei Vicente do Salvador, op. cit., p.51. 43, Pero de Magalhaes Gandavo, Histéria da Provincia de Santa Cruz(1576), Rio de Janeiro, Anuario do Brasil, s.d., pp. 119-20. 50 vertendo almas. Parece mesmo haver um movimento de reciproci- dade, uma espécie de contabilidade: os bons cuidados da Providén- cia, propiciando 0 achado de prata e ouro, deveriam ser pagos com almas; em contrapartida, quanto mais almas se enviassem aos céus, melhores seriam as disposigdes do Criador para com os colonos, Segundo o padre Simao de Vasconcellos, a atengao divina se voltou primeiro para a Europa, Asia e Africa: 14 colocouo homem, 0 Paraiso terrestre, os patriarcas. A outra parte do mundo, “nao menos aprazivel’, deixou-a sem paraiso, sem patriarcas, sem pre- senga divina, luz da fé e salvagao durante 6691 anos. Findo este prazo, “deu ordem como aparecesse este novo e encoberto mundo’; fazendo seu o braco dos Portugueses e encarregando-os de difundir a fé nas novas paragens."* Mais uma ver, a idéia de que Deus proveu a tudo, determinando que os portugueses descobris- sem terras para colonizé-las, cristianizando-as; mais uma vez, a idéia de um “teino de Deus por Portugal”. Era pois generalizada, sobretudo entre eclesidsticos,aidéiade que o descobrimento do Brasil fora ago divina; de que, dentre os Povos, Deus escolhera os portugueses; de que estes, uma vez senhores da nova colénia, tinham por dever nela produzir rique- zas materiais — explorando a natureza — e espirituais — resga- tando almas para o patriménio divino. Agao divina, o descobrimento do Brasil desvendou aos por- tugueses a natureza paradisiaca que tantos aproximariam do Paraiso terrestre: uscavam, assim, no acervo imaginério, os ele- mentos de identificacao da nova terra. Associar a fertilidade, a vegetacdo luxuriante, a amenidade do climaasdescricdes tradicio- nais do Paraiso terrestre tornava mais proxima e familiar para os europeus a terra tao distante e desconhecida. A presenga divina 44. Hoornaert, op. cit., pp. 68-9. Os trechos de Simao de Vasconcellos pertencem 4 Cronica da Companhia de Jesus no Brasil (1663). 51 fazia-se sentir também na natureza; esta, elevada a esfera divina, mais uma vez reiterava a presenca de Deus no universo. Eoquedizem entre outros Rocha Pita, Thevete Léry.O primeiro, em passagem célebre, descreve a flor do maracujé associando-aa pai- xdio de Cristo: “Misterioso parto da natureza, que das mesmas partes que compdsa flos, Ihe formou 0s instrumentos da sagrada paixtia”.* ‘Thevet, deslumbrado com a beleza de um passaro, possivelmente da familia das araras, constata: “Vés nao saberfeis deixar de louvar aquele que é o artesao de tao bela obra’Léry, autor de maior folego, procura, numa passagem admiravel, mostrar que a diversificacéio do mundo natural éprova da grandeza da obra divina. Durante o ano em que per- maneceu na Franga Antartica, Léry diz ter observado érvores, frutos € animaistotalmente diferentes dos encontrados na Europa; cada vez que Ihevinhaalembrancaaimagem daquele mundo novo, ‘aserenidadedo aradiversidadedosanimais,avariedade dos passatos,abelezadasarvo- rese das plantas,a exceléncia dos frutos,[..] as riquezas que ornam esta terra do Brasil”, lembrava-se da exclamacao do Profetano salmo 104: O Seigneur Dieu que tes oeuvres divers Sont merveilleux par le monde univers O que tu as tout fait par grand sagesse! Bref, la terre est pleine de la largesse. Felizes os povos que lé habitam, concluis mas faz a ressalva: “Se conhecessem 0 autor e criador de todas estas coisas”.” ‘A posicdo de Thevet é mais singela: a beleza e perfeicao do 45. Rocha Pita, op. cit.,p.15. 46. A. Thevet, Les francais en Amérique, p. 166. 47. Jean de Léry, Histoire d’un voyage... Vol. tl, pp. 27-8.“Quao numerosas s40 tuas obras laweh, /e todas fizeste com sabedoria! /A terra est repleta das tuas criaturas.” (Tradugao em portugués, A Biblia de Jerusalém, Sto Paulo, Paulinas, 1981.) 52 ndo natural remetem a Deus, Provam mais uma vez que Ele ‘existe: que outro artesao poderia fazer obra tao perfeita? Léry vai "Mais adiante: a beleza do Novo Mundo reforca a existéncia de Deus;mas nao sé por ser bela, e sim Por ser diferente. O especifico, _msste contexto, comprova o variado eo miltiplo contidos na von- tadeenaacao divinas. Deus existe, pois, por fazer o belo € por fazer - odiferente.O caso deLéry reflete, evidentemente,a concepeao cal- vinista de que o mundo foi criado para a gléria de Deus: como se sabe, Léry participou da tentativa francesa e calvinista de estabele- cer uma col6nia religiosa no Brasil. Incorporando esta concepao, Jeu o mundo colonial sob prisma religioso, Nesta leitura, cat6licos €protestantes acabaram convergindo. Separao Novo Mundo deslocaram-se ProjegSes do imagind- tio europeu, se expansao da fé e colonizagao caminharam juntas, nada mais natural que o descobridor da América fosse também o seu primeiro “edenizador” Soldado de Cristo, considerava a sal- vaso das almas. Ora, para justificar a necessidade de cristianiza- sao, havia que denegrir os homens autéctones. Denegrindo-os, estava justificada a escravizacao. Colombo inaugurou assim 0 movimento duplo que iria perdurar por séculos em terras ameri- canas:a edenizagao da natureza,a desconsideracao doshomens— barbaros, animais, deménios. Esta tendéncia — associar os homens da coldnia a animais ou a diabos — se agudizaria poste- Hormente; mas em Colombo ¢ incontestavel o interesse sempre tenovado pelo exame da natureza e o desinteresse pelos homens 48."O processo de transposicao teve infcio no exato momento em que Colombo Pousou os olhos pela primeira vez nas ilhas do Caribe. As varias conotagées do Parafso ¢ da Idade de Ouro estiveram presentes desde o inicio, Inocéncia, simpli- cidade, fertilidade eabundancia—qualidades pelas quais a Europa renascentista ansiava, ¢ que pareciam tao inatingiveis — faziam-se presentes nos relatos de Colombo e de Vespticio... J. H. Elliot, The Old World and the New — 1492-1650, London, Cambridge University Press, 1972, p. 25, | { | | | | \ que dela usufruem. “Aqui, e por toda a ilha, as arvores sao verdes e as ervas também, como no més de abril na Andaluzia. O canto dos passarinhos ¢ tal que pareceria homem nenhum daqui quisesse partir. Os bandos de papagaios obscurecem 0 sol, Passaros e passa- rinhos sao de tantas espécies e tao diferentes dos nossos que éuma maravilha” diria o descobridor.® Desde sua primeira viagem, com base em analogias entre o que tinha diante de sie o que Jera em autores como Mandeville, Colombo procuraria provar que chegara as imediag6es do Paraiso , terrestre.” Como ele, inimeros autores aludiriam exaustivamente Apresenga do Paraiso em terras: americanas—no sentido literal ou no figurado.” Frei Vicente do Salvador nao chegou a expressar a idéia de que o Paraiso era aqui, mas afirmou sem pudor que “é 0 Brasil mais abastado de mantimentos que quantas terras ha no mundo, porque nele se dao os mantimentos de todas as outras”.* Nisso, repetia aquele que primeiro escreveu sobre o Brasil: Pero Vaz de Caminha. Sem qualquer referéncia a0 Paraiso terrestre, preocupando-se muito mais em descrever homens do que paisa- gens, dizia este sera nova terra “em tal maneira graciosa que, que- rendo-a aproveitar, dar-se-4 nela tudo; por causa das aguas que tem”, A utilidade potencial do achado importava mais do que des- varios fantasistas: contraste com Colombo, incapacidade lusa de 49.“Da terra vinha um perfume tao bom e tao suave, das flores ou dasarvores, que ‘era.a coisa mais doce do mundo,” Ambas as citagdes em Todorov, op. cit. p- SLA .39, este autor nota em Colombo a “preferéncia pelas terras mais do que pelos homens” Estes seriam vistos como parte da paisagem (p. 40). A p. 33, alusdes a Colombo colonizador e evangelizador. 50. Ver Claude Kappler, Monstres, démons et merveilles a la fin du Moyen-Age, Paris, Payot, 1980, pp-92.ess. 51. £ mais uma vez Sérgio Buarque de Holanda, a quem estas reflexdesdevem | tanto, que analisa com propriedade a recuperacéo da idéia de Parafso terrestre | @ encetada pela Epoca Moderna. Visio do Paraiso, pp. 181-3. 52, Frei Vicente do Salvador, op. cit., p.37. 54 a G diria Sérgio Buarque de Holanda. O aspecto da terra? > cha, muito formosa’, “muito grande”, “muitos bons ares, etemperados.”” Jé para Rocha Pita, o Brasil nao era apenas elhor porcao do Novo Mundo, “vastissima regido, felicissimo errenoem cuja superficie tudo sio frutos, em cujo centro tudo sto sours, em cujas montanhas e costas tudo sao aromas”, pais mirdvel cm que a natureza profusa desentranha férteis produ- “gbes para “opuléncia da monarquia e beneficio do mundo”: é 0 . proprio Paraiso terrestre.* Vale a pena citar o trecho em que defende esta posi¢ao, pois apresenta todos os atributos paradisia- cos que, depois dele, repetiu-se a exaustdo (inclusive no nosso Hino Nacional): Em nenhuma outra regiao se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; 0 sol em nenhum outro hemisfério tem 0s raios tao dourados, nem os reflexos noturnos tao brilhantes; as estrelas sao as mais benignas, e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasca o sol, ou se sepulte, estéo sempre claros; as Aguas, ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoa- Ges nos aquedutos, sao as mais puras: é enfim o Brasil terreal, | paraiso descoberto, onde tem nascimento e curso os maiores trios; domina salutifero clima; influem benignos astros,e respiram auras suavissi- mas, posto que por ficar debaixo da térrida zona o desacreditassem e dessem por inabitavel Aristételes, Plinio e Cicero...° Jabualao repetiria muitos dos atributos edenizadores enun- ciados por Rocha Pita. O Brasil, “porcao notavel, deliciosae rica da grande América’, ficou muito tempo “oculta a noticia dos huma- 53. Carta de Pero Vaz.de Caminha, in Malheiro Dias, op. cit, p.99. 54, Rocha Pita, op. cit., pp. 1¢2. 55. Idem, p.2. Grifo meu. nos discursos”. Levou por isso 0 nome de quarta parte do mundo, sem entretanto desmerecer o titulo de primeira. Ares sauddveis, frescas viragoes, clima benigno, terreno fértil, 0 conjunto todo sendo recluso por duas preciosas chaves: uma de prata, demar- cando-lhe a porsao sul; outra de ouro, delimitando-Ihe o norte. autor procurava desta forma uma aproximagao com o Paraiso ter- restre, chamando a aten¢io para os rios da Prata e Amazonas, que fechavam as terras brasileiras. A beleza da perspectiva—o mundo natural — reforcava a idéia de Parafso terrestre: “montes empina- dos” e“vales estendidos” cheios de arvoredos frondosos, incorrup- tiveis, frutiferos, cobertos de “pomos a qualquer estagéo do ano”; flores alegres e matizadas, crescendo “sem mais cuidado parao seu cultivo, que o da natureza, e do tempo”, distraindo a vista e exci- tando o olfato; aves que tanto “recreiam a vista com o vario e lus- troso das penas” como “satisfazem 0 gosto com 0 saboroso e desen- fastiado das carnes”,além de encantarem os homens com seu canto suave, Em suma, um mundo novo, no qual o Criador procurava emendar algumas imperfeigses do mundo antigo: “Um novo mundo enfim, e uma tao bem disposta estagdo para viver 0 homem, que nao merecia muita censura, quem quisesse plantar nela o Paraiso Terreal, ouao menos descrevé-la com as exceléncias, e prerrogativas de um terreal Paraiso”. Como se vé, Jaboatao nao chega a afirmar que o Paraiso ter- restre se encontrava no Brasil, temeroso, talvez, de que sua obra tivesse o destino da do padre Simao de Vasconcellos.” Entretanto, 56. Jaboatao, op. cit., vol. 11, pp. 3-6. 57.O padre Simao de Vasconcelos, nas “Noticias curiosas e necessarias das coisas do Brasil” que abrem a Cronica da Companhia de Jesus,afirmou que o Paraiso terrestre se encontrava na América, mais precisamente no Brasil. Com isso, teve confiscados os exemplares de sua obra, que, apés discussao de varios doutores, “undnimes em sustentar que nada havia neles em contrério a Santa Fé Catélica’, acabou sendo expurgada da tal passagem. Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.,pp.0a1 e:0a, 56 mesmo que meio timidamente, insinua a analogiaem mais de uma Passagem: citando autor que nao nomeia, exalta as qualidades de Pernambuco —a mais “florente, fértil e opulenta” das capitanias. “O seu clima é um segundo Paraiso”, acrescentava, deixando de lado, e para outros, a questiio do Paraiso inicial.* Homem do século xv1, 0 inglés Knivet, marinheiro de Cayen- dish, deixou algumas imagens interessantes sobre o Eldorado, acu sadoras da forga que teve o imaginério europeu na maneira de se enxergar 0 Novo Mundo. Como Gandavo e Gabriel Soares, avistou as Serras Resplandecentes: “Arribamos a seguir a uma vasta regio divisando a nossa frente imensa e resplandecente montanha, dez dias antes de poder atingi-la, pois quando chegados a regio plana, fora das serras, com o solem seu auge, nao era suportavel avancar na direcao deste monte, em razo do seu brilho que nos ofuscava os olhos”. Knivet tinha entao certeza de que se avizinhava o Potosi, como acontecia todas as vezes que se achavam ouro e pedras pre- ciosas: “... alcangamos numerosas montanhas, nelas encontrando boa c6pia de ouro e muitas pedras preciosas; quando chegamos a esta regiao, cuidavamos estar na provincia do Peru”. Pero de Magalhaes Gandavo e Ambrosio Fernandes Brando _ constituem expoentes da vertente edenizadora; seu interesse 58.Jaboatio, op. cit., vol. 1, p. 149. O grifo é meu. No titubeio e na timidez de um ~ Jaboatio, talvez se pudesse detectar aquilo que Sérgio Buarque de Holanda viu ‘como uma quase incapacidade lusa de edenizar. Em posicdo semelhante, Silva Dias reconhece a contribuigio dos portugueses a revivescéncia do mito da idade do ouro, masa atenua: .. ndo Thes cahem as responsabilidades fundamentais do prestigio reconquistado pelo mito. Essas responsabilidades cabem aos espanhdis da época de Carlos v e, sobretudo, aos franceses que escreveram depois do pri- meiro quartel do século’, J. S. da Silva Dias, “A revolugdo dos mitos ¢ dos concei- tosin Os descobrimentos ea problemdtica cultural do século XVI, Coimbra, Publi- cages do Seminério de Cultura Portuguesa, 1973, p. 189, 59. Anthony Knivet, Varia fortuna e estranhos fados, Sao Paulo, Brasiliense, 1947, Tespectivamente pp. 82 145. O grifo é meu. 57 decorre, entretanto, do fato de matizarem a edenizacao, reiterando aidéia de que 0 carater edénico se reelabora, transformando-se, com 0 processo de colonizagao. A natureza € prédiga, generosa, amiga: mas desde que transformada pelo homem. Este pode, inclusive, ser o pobre expropriado na metrépole, ou 0 degredado indesejavel: a natureza, plena de atributos positivos, é maior quea mesquinhez humana. Com estes dois autores, que escrevem res- pectivamente em 1576 1618, a colonizagao se torna condi¢ao indispensdvel a edenizagao da natureza. Asimagens que Gandavo utiliza para qualificar a provincia de Santa Cruz so as comumente empregadas nas descrigoes euro- péias dos paraisos terrestres. A terra é“mui deliciosa e fresca’, toda “vestida de mui alto e espesso arvoredo, regada com as aguas de muitas e mui preciosas ribeiras de que abundantemente participa todaa terra, onde permanece semprea verdura com aquela tempe- ranca da primavera que c4 nos oferece Abril Maio”. Inversamente ao que acontece na Europa, as plantas nao sofrem no inverno: a Providéncia proveu a uma natureza perfeita, rica ainda em gemas e metais preciosos.“ Mas sao poucos os trechos em que a natureza é dissociada dos homens: a provincia é“a melhor para a vida do homem que cada uma das outras de América”."' Em Gandavo, as potencialida- des edénicas da colénia revertem em favor do trabalho humano, facilitando-o. Por isso, devem acorrer 4 nova terra todos os que 60. Gandavo, Histéria da provincia de Santa Cruz, p. 82 pp. 148-50. Sobrea tem- peranca dos ares — tema constante nas formulagdes acerca do Paraiso terres- tre—, ver o notavel capitulo “non ibi aestus” Sérgio Buarque de Holanda, op.cit. pp. 277-303. Para este historiador, do acervo europe sobre o Paraiso terrestre Gandavo incorpora basicamente as consideragoes climaticas, lembrando Isidro de Sevilha na verso medieval do Orto do Esposo: a visio edénica de Gandavo € “corrigida e atenuada até os limites do plausivel” (p. 295). 61.Gandavo, op. cit.,p. 81. a0 encontram oportunidades em Portugal: acolénia tem fungao retiva sobre as mazelas da metropole. Naquela, “nenhum re anda pelas portas a pedir como neste Reino”; “todos aque- jue nestes reinos vivem em pobreza nao duvidem escolhé-la seu amparo”.® ” Ressaltando ainda as qualidades climaticas, os ventos frescos, imetriana duracao de diasenoites, Brandénio também seatrels Avertente edénica: “Nao faltam autores que querem afirmar estar Resta parte situado o Paraiso terreal”, diz ele. Mas os Campos Eli- €05, tio celebrados pelos europeus, ficavam devendo muito a terra brasileira; como “o fabuloso paraiso do torpe Mafamede”, ‘estes campos nao passavam de “fingimentos”. Aqui, ao contrério, corriam de fato rios de leite e mel: o mel silvestre que abundava nos Matos, a manteiga excelente que se extraia de vacas, cabras e ove- dhas.“Brand6nio incorpora Pois a edeniza¢ao— elemento impor- tante do imaginario europeu—, mas faz dela uma leitura nova.O Paraiso é aqui, onde a natureza exuberante — o mel nativo, jor- tando aos borbotdes—sealiaao trabalho sistematico—a criacdo, oleite, a manteiga. O feliz casamento entre natureza e trabalho, encetado pela colonizacao, tornava o Brasil superior A Europa, "Asia ou Africa:“A terra é disposta para se haver de fazer nela todas as agriculturas do mundo pela sua muita fertilidade, excelente - clima, bons céus, disposigao do seu temperamento, salutiferos "ares, ¢ outros mil atributos que se Ihe ajuntam”. Abundavam aqui __ aS aves mansas, 0 pescado excelentissimo, mariscos e caranguejos ~aoalcauce da mao, “ovos sem conta, frutas maravilhosas”, “legu- 62. Gandavo, Tratado da terra do Brasil, p. 41, e Hist6ria da provincia de Santa Cruz, p.75, respectivamente. 63. Ambr6sio Fernandes Brandio, Didlogos das grandezas do Brasil (1618), Rio, Dois Mundos, s.d.,p.96. 64. Idem, p.200. 59 mes de diversas castas”, mantimentos. e“outras infinidades de cou- sas salutiferas”.* Tratava-se de natureza prodiga, mas jé transformada pelo esforco colonizador. Como em Gandavo, este aparece atenuado pela presenga dos escravos (recurso propagandistico?); mas, mais do que para o autor do Tratado da terra do Brasil, o trabalho do europeu nos trépicos é, em Brandao, suavizado ainda pelas facili- dades de uma natureza selvagem (cacae pesca abundantes). ‘Assim, a natureza ja edénica da terra descoberta, que revive no imagindrio europeu as imagens do Paraiso terrestre, superpoe- se 0 processo colonizatério, reedenizador. Ao arrolar as seis rique- zas fundamentais do Brasil, das nativas Brandao sé tomaas madei- ras eo pau-brasil (que aparecem assim: diferenciados). Todas as outras —a lavoura do agicar, a mercancia, os algodoes, a lavoura de mantimentos, a criagio de gado — pressupdem a atividade colonizadora.“De todas estas cousas, 0 principal nervo e substan- cia da riqueza da terra é a lavoura dos agucares”, concluiria Bran- dénio, privilegiando o mais tipicamente colonial dos produtos coloniais.* Ha diivida posstvel? Num texto enigmitico, 0 ja citado Jaboatéo — que, como se viu, abracava também a idéia do Paraiso terrestre — mostra 0 outro lado da medalha. Rica pelos infinitos tesouros de metais, pedras preciosas, drogas de alto prego, 0 Brasil, “desentranhando- sea si’, enriquecia as demais partes com os frutos de seu ventre. Mas como a vibora, que alimenta o filho ingrato ¢ colhe morte ¢ destruicdo, a colonia viria a padecer: as riquezas coloniais, “quem nado sabe foram, so e serao sempre, a causa motiva da mesma ruina, ea de seus proprios naturais”.” Visto no conjunto de sua 65. Idem, p.45. 66, Ambrosio Fernandes Brandao, op. cit.,p. 158. 67. Jaboatao, op. cit., vol. 11, p.4- 60 } esse trecho parece até um deslize, um desabafo pessimista do riador da Ordem Seréfica. O sentido é claro: 0s colonos nao hem os beneficios advindos da colonizacao, que frutificam na Europa. Ora, primeiramente o tom negativo destoa das ais formulagoes, positivas, onde o Brasil aparecesemprecomo ido cumprir um grande destino, bafejado que é pela genero- apontar mazelas do sistema colonial, entusiasta que demons- wa ser de Pombal, a quem chegou mesmo a dedicar décimas atorias?* _ Mesmo que nao se decifre 0 mistério, podem ser feitas infe- éncias a partir desta passagem. Nos escritos sobre o Novo Mundo ) ‘tanto nos de autores europeus quanto nos de autores coloniais, e, pertencendo a elite, ou partilhando sua cultura, se deixaram | luenciar pelas projecdes do imagindrio europeu— dificilmente | ‘edenizagao impera soberana, absoluta. A sombra que a ameaca ora mais timida, ora mais decidida — é a da visio detratora day mérica, a que Ihe procura reforcar os aspectos negativos. a As leituras negativas do Novo Mundo —as obras dos “detra- _ tores do Novo Mundo” — se intensificaram sobretudo no século ; evi . Num livro admiravel, o historiador italiano Antonello Gerbi _Percorreu caminho oposto ao de Sérgio Buarque de Holanda: de tilveda a Hegel, estudou as polémicas sobre a América, vol- \do-se entretanto mais para a vertente negativa do que para a sitiva. Na segunda metade do século xvii — época em que .“Jaboatio foi membro da Academia Brasilica dos Renascidos, na qual reyelou carater bajulatrio escrevendo umas décimas em homenagem 20 todo-pode- TsO Marqués de Pombal, o Mecenas da Academia” José Honério Rodrigues, His- ada Histéria do Brasil, * parte — historiografia colonial, Sao Paulo, Compa- | Editora Nacional, 1979, p. 303. 61 Jaboatao escreveria o Novo Orbe—,a polémica atravessava um de seus momentos mais intensos.° ‘As formulagées edénicas projetaram-se sobre a Amé criando uma ponte que aproximava o Novo Mundo do Velho, i Tica, inte- grando-o ao seu imagindrio, preenchendo 0 lugar antes ocupado pelas terras longinquas que, aos poucos, foram sendo devassadas. Decerta forma, edenizar a América significava estabelecer com ela uma camaradagem, uma cumplicidade que repousava no mundo imagindrio. Encontrava-se aqui algo que, de certa forma, ja estava concebido: via-se 0 que se queria ver, 0 que se ouvira dizer. Entretanto, conforme o novo continente comegou a emergir nasuaespecificidade,a edenizacao ficou ameagada. Novas plantas, yentos fortes, chuvaradas, mas sobretudo homens e bichos e: nhissimos, outros que os europeus.” stra- E preciso deixar claro que nao houve uma seqiiéncia orde- nada entre um e outro movimento, entre edenizagao e detracao. Mesmo os grandes edenizadores da natureza nao pouparam observacées, pejorativas em maior ou menor grau acerca do Novo Mundo. Houve, portanto, tendéncia a edenizacao da natureza, predominio dela: mas nao exclusividade. Para entender melhor esta outra face da edenizagao, detratora mesmo infernalizada — conforme se vera depois —, parece-me interessante fazer uma pequena digressao e lembrar a andlise de Erwin Panofsky sobre a pintura de Piero di Cosimo, artista floren- tino nascido em meados do século xv. Homem estranho, que vivia 69.A.Gerbi, op. cit. 70."A América nao era como tinham imaginado; e até os mais entusiastas (den- tre os humanists) tiveram desde cedo que aceitar 0 fato de que os habitantes desse mundo idilico podiam ser também viciosos € belicosos, € as vezes se comiam uns aos outros” J.H. Elliott, The Old World and the New — 1492-1650, p. 27. Elliott fala do “impacto incerto” da América sobre a Europa, pp. 1-27. afastado do convivio social, recusando Pratos quentes e alimen- tando-se de ovos cozidos, Piero di Cosimo dedicou uma série de quadros a motivos mitolégicos. Panofsky os entende como mani- festacao do “primitivismo duro”, de origem classica.” Idealizando a condi¢ao primeira do mundo, o primitivismo doce se harmoni- zaria com uma concep¢ao religiosa da vida—a época em que Eva fiava e Adao tecia. Por sua ver, 0 primitivismo duro se associaria a0 materialismo. Da licao de Panofsky, depreende-se que o Renascimento ita- liano supunha duas possibilidades: a revivescéncia do mito da Idade de Ouro e, ao mesmo tempo, a negacao dele. Nao haveria, portanto, idealizaao pura e simples da natureza: desde a época classica, considerar-se-ia também, sempre, 0 seu contrario. De certa forma, Jean Delumeau retomou esta problematica em seu ultimo livro, O pecado eo medo. Na perspectiva do autor, o Renascimento seria mais pessimista do que otimista: “Os Pico della Mirandola e os Guilherme Postel foram minoria’, diz Delu- meau. Eem outra passagem: “Tristeza e Renascimento: os dois ter- Mos parecem se excluir, e no entanto foram freqiientemente com- panheiros de estrada”” Para reforcar sua posicao, utiliza passagem de Eugénio Garin, que diz nao ser dificil encontrar, reunidos as 71.“Desdeas origens do pensamento clissico,existiam duas opiniGes opostasacerca davida do homem naspriscas eras:o primitivismo ‘doce,ou positivo, formulado por Hesiodo, descrevia a forma primitiva da existéncia como uma ‘idade de ouro,em ‘comparacao com a qual as fases posteriores nao foram sendo estagins sncessivos de ‘uma longa desgraca;o primitivismo ‘duro} ou negativo,representavaa forma primi tivadaexisténcia como um estado verdadeiramente bestial, quea humanidade teria ultrapassado gracasao progresso técnico eintelectual.” A segunda tendéncia remon- taria sobretudo a Vitravio. E. Panofsky, “Les origines de histoire humaine: deux cycles de tableaux par Piero di Cosimo”, Essais @’iconologie. Les thémes humanistes dans Vart de la Renaissance (. 1939), trad., Paris, PUP, 1967, p.59. 72. Delumeau, op. cit., respectivamente pp. 138 € 189, 63 vezes num s6 autor, “de um lado, os sinais do Anticristo e do cata- clismo iminente; de outro, a Idade de Ouro”? O Renascimento teria sido enigmatico e contraditério. Seus contemporaneos tiveram consciéncia dessa ambigiiidade: “Tudo foi misturado, o mais alto com o mais baixo, 0 inferno com o céu, 0 melhor com 0 pior”, lamentaria 0 contemporaneo Guillaume Budé.” Sendo assim, nao é de admirar que Céue Inferno se mistu- rassem também nas crénicas sobre a América, e que o mais edeni- zador dos autores se visse também as voltas coma detracao.” Gandavo, edenizador por exceléncia, propagandista da nova terra, considerou-a deleitosa e temperada mas sujeita a ventos mortiferos: “Este vento da terra é mui perigoso e doentio” diria,“e seacerta de permanecer alguns dias, morre muita gente assim por- tugueses como indios da terra”. Qualidades positivas e negativas chegam a se alternar num mesmo pardgrafo: “A terra em si é lassa e desleixada; acham-se nela os homens algum tanto fracos e min- guados das forcas que possuem cé neste reino por respeito da quentura e dos mantimentos que nela usam, isto é, enquanto as Pessoas sao novas na terra, mas depois que por tempo se acostu- 73. B. Garin, “Lattesa dell’et’ nuova e la ‘renovatio”, in L’attesa dell’eta nuova nella spiritualita della fine del Medievo. Convegni del Centro di Studi sulla spici- tualita medievale, out. 1960. Todi, 1962, 1n, pp. 16-9. Apud Delumeau, op -cit., p. 140. 74. Apud Delumeau, op. cit., p. 157. Grifo meu. 75.“Em alguns casos, e sobretudo a propésito daquele Nava Mundo, parece mesmo perfilar-se, desde cedo, excitado talvez pelas noticias de experiéncias negativas de muitos colonizadores, um movimento adverso aessa mitificacao das terras descobertas. Movimento que, iniciando-se talvez com a tese tio debatida entre os pensadores ¢ tedlogos quinhentistas, de que os indios so meio bichos — contraposta a sua idealizacao por um Las Casas ou um Montaigne — ira desem- bocar, dois séculos depois, na polémica antiamericana dos que sustentam (...) a decrepitude e degenerescéncia da natureza neste hemisfério” Sérgio Buarque de Holanda, op.cit., p.274. 64 | mam, ficam tao rijos e bem dispostos como se aquela terra fora sua mesma patria””® Osaspectos negativos do climae da terra acabariam influindo nos bichos. Gandavo se esquivou deliberadamente de discorrer sobre eles, masacabou fazendo-o num pardgrafo, procurando jus- tificar sua existéncia, conferindo-lhe cardter de inevitabilidad Outros muitos animais e bichos venenosos ha nesta Provincia, de que nao trato, os quais sao tantos em tantaabundancia, que seria his- toria mui comprida nomeé-los aqui todos, tratar particularmente da natureza de cada um, havendo, como digo, infinidade deles nes- tas partes, aonde pela disposigdo da terra, e dos climas que a senho- reiam,ndo pode deixar de os haver. Porque como os ventos que pro- cedem da mesma terra se tornem inficionados das podridées das ervas, matos ealagadigos geram-se coma influéncia do sol que nisto concorre, muitos e mui peconhentos, que por toda a terra est’io esparzidos, e a esta causa se criam e acham nas partes maritimas, ¢ pelo sertéo dentro infinitos da maneira que digo.” Escrevendo 0 seu Tratado por volta de 1584 — e sendo, por- tanto, um de nossos primeiros cronistas —; o padre Fernao Car- dim percebeu que o mesmo clima que propiciao desenvolvimento de belos animais acarreta a proliferagéo de seres repulsivos: “Parece que este clima influi peconha, assim pelas infinitas cobras que ha, como pelos muitos Alacrs, aranhas, e outros animais 76. Gandavo, Tratado da terra do Brasil, p. 42. A idéia de chuvas e ventos veneno- sosdeveria ser comum no século xv1. Ao tratar dos perigos da navegacao nosarre- doresdallinha equinocial, Léryaludea este tipo dechuva:“Além disso,achuva que cai nos arredores desta linha ndo apenas fede e cheira mal, mas é tao contagiosa, ques cai sobre carne faz aparecer nela pstulas e bolhas grandes;eaté mancha eestraga as roupas” Léry, op. cit., vol. 1, p. 67. 77. Gandavo, Hist6ria da provincia de Santa Cruz, p. 109. Grifo meu, 65 imundos, e as lagartixas sao tantas que cobrem as paredes das casas, e agulheiros delas”. Ea contrapartida: “Assim como este climainflui peconha, assim parece influir formosuras nos passaros eassim como toda terra é cheia de bosques, e arvoredos, assim éde formosissimos passaros, de todo género de cores.” Ao contrario de outros autores, Cardim constatoua existéncia de pulgase piolhosapenas entre os indigenase negros;em compen- sacao, “nao faltam baratas, tracas, vesperas, Moscas, € mosquitos de tantas castas e tao cruéis, e peconhentos, que mordendo em uma pessoa fica a mao inchada por trés ou quatro dias” Este flagelo ata- cava sobretudo osreinéis, osinsetos sendo sequiosos do sangue tra zido “fresco e mimoso” gracas aos mantimentos de Portugal.” De carrapatos, deu-nos noticia Knivet; teria ele andado por serras tao cheias de carrapatos que, para fazé-los soltar a pele e afugenta-los, havia que pegar palha seca no cho e chamuscar-se como se cos- tuma fazer com suinos.” Grande admirador dos passaros brasilei- ros, Léry se mostraria mais moderado quanto aos quadrupedes. Mas, etnélogo avant la lettre, apresenta-los-ia como diferentes, especificos: geral e sem exce¢ao, nao se encontra um 86, nessa terra do Brasil na ‘América, que sejaem tudo e por tudo semelhante aos nossos...."" Na Histéria natural do Chile, dois séculos depois, o padre Molina afir- mava que a natureza americana nao era inferior, e sim diferente." no tocante aos animais de quatro pés,ndoapenasem 78, Padre Fernao Cardim, Tratado da terra e gente do Brasil (c. 1584), 3. ed., S40 Paulo, Companhia Editora Nacional, MEc, 1978, pp.33-4,Cardim éautor de uma deliciosa descri¢ao do bicho-preguiga:“E animal para ver, parece-se com cies fel- pudos, 0s perdigueiros; sAo muito feios,e0 rosto parece de mulher mal toucada’, op.cit., pp.30-1. 79. Idem, p. 68. 80.A.Knivet, op.cit.,p. 132. 81. Léry, op. cit., vol. 1, p. 157. 82. Gerbi, op. cit., p. 197. 66, A preocupacao com a especificidade do Novo Mundo foi totalmente alheia aos jesuitas que estiveram no Brasil, entre o final do século xvre o inicio do século xvii, Entre nés, sdo os represen- tantes maximos da incompreensio do universo colonial. Mais do que o mundo vegetal e animal, foram os homens 0 alvo privile- giado da mé vontade jesuitica. Entretanto, bichos, plantas e para- gens também tiveram sua cota na detracao. Aterra da colonia é muito pobre e miseravel, “nada se ganha com ela” por serem também muito pobresos seus habitantes, escre- via Nobrega ao geral da Companhia, padre Diogo Lainez. “Aqui néo ha trigo, nem vinho, nem azeite, nem vinagre, nem carnes, senao por milagre”, continuava, decepcionado;“o que ha pela terra, que é pescado, e mantimento de raizes, por muito que se tenha, nao dei- xaremos de ser pobres, e mesmo isto nao 0 temos”, Além da escas- sez de alimentos, os que existiam eram “muito fracos”, sendo “muito maiores” os trabalhos a realizar em terra colonial. Além de pobre e pouco fértil — os alimentos naturais eram fracos —, a terra se achava infestada por “grandissimo mimero de imundicies, scilicet, bichos dos pés e muito mais pequenos que os de lé, de que todos andam cheios”. “Pulgas nao se pode crer, se se nao experimentar, como nés experimentamos estes dous anos, assim no verao, como no inverno, porque grande parte do dia, se nos ia em matar pulgas.”" Ainda segundo o padre Jeronimo Rodri- gues, as pulgas foram “a perdi¢do” das ceroulas e camisas dos padres, que ficaram inteirinhas pintadas desangue. Numa noite,as apalpadelas, diz o padre Jeronimo que chegou a matar 450 pulgas 83. Carta de Sao Vicente, 12-6-1561, in Serafim Leite, 5. I. (org.), Novas cartas Jesutticas — De Nobrega a Vieira, Séo Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940, p.112. ' 84.“A missio dos carijés — 1605-1607 —Relagao do padre Jerénimo Rodrigues” in Serafim Leite. op. cit, p.237. 7 em sua cama, sem falar nas que fugiram. “E daqui vinha a dizer 0 Padre, que ndo haviamos de adoecer, pelas muitas sangrias que as pulgas nos davam’, prossegue nosso narrador; “mas eu, pelo con- trario, dizia que elas tiravam o sangue bom, deixando o mau.” As legides de pulgas se deviam ao fato de haver “infinidade de caes” e por urinarem 0s indivs em qualquer lugar onde estivessem. i Nao bastassemas pulgas, havia praga de grilos que destruiam livros e vestidos. Mesmo “matando cada dia grandissima multi- i dao”, com facilidade se pegavam, ao acaso, de quarenta a cin- giienta: nao acabavam nunca. Fiel ao hébito de contar insetos, 0 padre Jeronimo contou, de certa feita, quinhentos grilos." : j / Eas baratas? As “que havia, nao se pode crer, porque o altar, a mesa, a comida, e tudo, era cheia delas. E 0 padre todos os dias tomava na sua carapuga um monte delas e com armadilhas todos os dias tomavamos milhares e parece que sempre cresciam...** . Delineavam-se, pois, j4 no século xv1, os tragos caracteristicos da polémica sobre a América: um continente timido, inferior, coa- Thado de animais inferiores como insetos e répteis. Em meados do século xvi, diria Buffon: “Vejamos entdo porque existem répteis tao grandes, insetos tao gordos, quadrtipedes tao pequenos, € homens tao frios nesse novo mundo. O motivo é a qualidade da 85. Idem, p. 239. 86.Idem, p.238. Nao ha como sefurtara analogia com orelato de Manuel de Mes- quita Perestrelo sobre 0 naufrégio da nau So Bento, ocorrido na costa africana ‘em 1553. Grassou entio entre os ndufragos uma peste de piolhos “que a alguns tirouas vidas, ea todos [...] pds em risco de as perderem”. Com as roupas em far- rapos,ficavao corpo doshomens expostoaos bichos:“Ealise criavam tantos, que visivelmente nos comiam sem lhe podermos valer, ¢ conquanto escaldévamos 0 fato muito amitide, eo catévamos cada dia trés e quatro vezes por ordenanga [..] quando cuidavamos que os tinhamos todos mortos, dali a pouco espago eram outra vez tantos, que com um cavaco o ajuntévamos pelo fato, ¢ os levavamos a queimar ou soterrar..”. Cerca de quatro homens “fizeram tais gaivas pelas costas ecabecas, que disso claramente faleceram’, Apud Giulia Lanciani, op. cit. p. 141. MM 68 terra,a condi¢ao do céu, o grau de calor eumidade,a situagao eele- va¢ao das montanhas, a quantidade das aguas correntes ou para- das, a extensao das florestas, e sobretudo 0 estado bruto em quea natureza se encontra’.” No momento em que era descoberto o Novo Mundo, Isabel de Castela se mostrava aflita e preocupada ante as informagées do almirante do Mar Oceano: este Ihe explicava que, dada a quanti- dade de chuvas, a terra ficava podre e impedia as raizes das arvores de penetrarem fundo no solo. “Nesta terra onde as arvores nao se enraizam’, dizia a rainha, “pouca verdade e menos constancia havera nos homens”. Clima timido, animais inferiores, homens fracos e sem vontade: estava feita a relacdo que os cronistas lusos nao chegaram a fazer no século xv1. E mais uma vez Buffon quem sistematiza os dados negativos da América, preocupado em expli- car os motivos da inferioridade das espécies animais neste conti- nente. Era ele escassamente povoado, e a maior parte dos homens vivia como animais, “deixando bruta a natureza e negligenciando aterra”. Inculta, esta se tornou fria e incapaz de reproduzir princi- pios ativos, tais como os germes dos grandes quadriipedes, que para crescerem e se multiplicarem precisam de“todo o calor, toda aatividade que o sol pode dar a terra amorosa” Pela razao contra- ria, proliferaram répteis, insetos“etodas as espécies de animais que searrastam na lama, cujo sangue é de 4gua, e que se multiplicam na podridao...”.” Na bela frase de Gerbi, achava-se a América fadadaa ser “timida mae prolifica de diminutos e malvados animaizinhos, estéril de magnanimas feras”." O leav u1ajestoso do antigo conti- nente seria na América reduzido a dimensoes ridiculas: 0 rei dos 87. Apud Gerbi, op. cit, p. 1, nota 15. 88. Apud Gerbi, op. cit.,p. 37. 89, Apud Gerbi, op. cit,,p.8, nota 20, 90. Gerbi, op. cit.,p. 11. 69 animais era, aqui, um animal poltrao ¢ sem juba2: De Pauw, em 1768, levariaas consideracoes de Buffon as tiltimas conseqiténcias: a natureza americana, como 0S homens, era decadente € decaida; “ésem davida um espetaculo grandee terrivel”, diria ele, “o de ver uma metade deste globo tao desprotegida pela natureza, que tudo nela era degenerado, ou monstruoso”.” HUMANIDADE: PREDOMINANCIA DA DEMONIZAGAO Os habitantes das terras Jonginquas que os europeus acredita- vam serem fantésticas constituiam uma outrahumanidade, fantas- ticatambém, & monstruosa.” Conforme: ocorreramas grandes des- cobertas, foram elas migr ando da indiaa Ftiépia,a Escandinavia,e finalmente a América. No mundo precério do homem medieval, curgia a necessidade demomear eencarnar 9 desconhecido afim de manter o medo nos limites do suportavel: monstros descritos pela yeligiao (Sata), monstros descritos pelo bestidrio (unicérnio, dra- gfo, formiga-ledo, sereias etc.), monstros humanos individuais (aleijados, tarados) e monstros que habitavam oS confins da Terra, 91.0 leso poltrdo é uma imagem de Voltaire: “O México 0 Peru possufam ledes, mas pequenos ¢ sem crinaj eo que é mais estranho, 0 edo desses climas era um animal poltrdo’, apud Gerbi, op. cit. p.42,n01@ 38. 92. Apud Gerbi, p-51, nota 12. 93, Seriam os marginais geogrdficos de que fala Bruno Roy. “En marge du monde coamuzlesracesdemonstres?in Aspects dela marginalitéau Moyen-Age,pp.71-81. No que diz respeito aos aspectos gerais da teratologia européia, utilizo este artigo, muito interessante. Sobre 0s monstros, ver 0 Tivro j8 citado de Claude Kappler Monstres, démons et merveiles la fi du Moyer Age-Para ss relagdes entreatera- tologiaeaciéncia,analisando também as relagoes ene cultura popular e erudita, yer Katharine Park e Loraine J. Daston, “Unnatural Concept ont: the Study of Monsters in France and England’, Past &Present,92»280- 1981,pp.20-54. parecendo-se com homens normais (ou seja, europeus do Oeste) mas trazendo tra¢os monstruosos hereditérios. Autores classicos como Ctésias de Cnido e Plinio serviram de referéncia aos terat6logos latinos (Solino, Macrébio, santo Agosti- nho, Isidoro de Sevilha, Rabao, o Mouro), todos sendo incorpora- dos por autores da Baixa Idade Média. Fora santo Agostinho, ainda na Alta Idade Média, o responsével pela fixacao de determinados conceitos acerca dos monstros: 9 monstro tinha algo a mostrar. Isi- doro de Sevilha retomaria santo Agostinho, classificando os mons- tros em quatro grandes familias: dos monstros individuais, a das ra¢as monstruosas,a dos monstros ficticios ea dos homens-bestas. Esse esforco classificat6rio representaria o desejo eo empenho do homem ocidental de “se confirmar na sua normalidade, confron- tando-a ponto por ponto com a deformidade das racas imagina- tias”™ No século xtt, Tomas de Cantimpré elaborou uma lista de monstros inspirada em varios escritos anteriores, e que a maior enciclopédia medieval, o Speculum de Vicente de Beauvais, assimi- lariana integra. Os moralistas medievais utilizaram-se largamente dos monstros, dando-se conta de sua riqueza didatica e Ihes con- ferindo significado moral e dimensio social; a monstruosidade dos monstros foi de certa forma esvaziada pela sua interiorizagao.” Colombo acreditava em monstros, leitor da Imago Mundi do cardeal D’Ailly Este falava de povos “cujos costumes decafram da 94. Bruno Roy, op.cit.,p.76.Solino, Plinio e sobretudo Isidoro de Sevilha tiveram boa difusto na peninsula Ibérica. Vet Silva Dias,“A revolugao dos mitose doscon- ceitos”, op. cit., p. 195. 95.O medo do desconhecido geogréfico, do qual os monstros séo a materializa- ‘40, nao € senao um reflexo dos numerosos medos que estao no interior dos homens:medo de perdera integridade corporal, medo de uma puni¢do imanente a certos comportamentos, medo do desmoronamento do fragil edificio social. Suaanormalidade definea norma, confirma-a ecoloca fim ao medo” Bruno Roy, op.cit. p.79. Sr natureza humana’, de“homens selvagens antrop6fagos, com feicao disforme e horrivel, nas duas regides extremas da Terra [...]: trata- sede seres acerca dos quais ¢ dificil precisar se sio homens ou bes- tas”2° Colombo pensava que, mais para 0 interior da terra que des- cobrira, depararia com homens de um s6 olho, e outros com focinhos decachorro. Em 8 de janeiro de 1492, viu trés sereias pula- rem fora do mar, decepcionando-se com seu rosto: nao eram tao belas como pensara. Na direcao do poente, escrevia a Santangel, as pessoas nasciam com rabo.” Talvez assinasse a formulagao de Bel- leforest:“O tempo presente é mais monstruoso do que natural”. Em duas das formas mais populares de “literatura escapista’, os monstros tinham papel de destaque: livros de viagens ¢ roman- ces de cavalaria. “Ragas monstruosas — homens com um pé s6, gigantesco, ou orelhas enormes, ou com o rosto no peito — ocu- param lugar nas descrigies da Africa e Asia desde a antigitidade, « ainda figuravam na cosmografia renascentista.”” No século xvil, 0 relato de Francisco Correia acerca do naufragio da nau Nossa Senhora da Candelaria (“o qual vindo da costa da Guiné no ano de 1693, uma rigorosa tempestade o fez varar na ilha Incégnita”) dava conta de monstros e animais exéticos. Na ilha havia monos com “oito palmos de altura e com dentes de quatro dedos”; cobras da “grossura de um pipote de oito almudes”; mulheres marinhas que saiam ligeiras da 4gua e subiam morro acima, senhoras de “todas as perfeigGes até a cinta, que se discorrem na mais fermosa” ¢ enfeiadas por grandes orelhas que “Ihe chegavam abaixo dos ombros”, subindo, quando levantadas, meio palmo acima da cabeca. Da cintura para baixo, eram cobertas por escamas, eos pes 96. Silva Dias, op. cit.p. 193. 97. Todorov, op. cit.,p. 23. 98. Delumeau. Le péché et la peur, p. 155. 99. Katharine Park e Lorraine J. Daston, op. cit,p. 37. eram do feitio de cabra, com barbatana pelas pernas”, Perto de Tenerife, viu ainda o autor “um homem marinho de tao horrendo feitio que parecia o mesmo deménio”” Dentre os cronistas que escreveram sobre o Brasil no século XVI, muitos se referiram aos monstros marinhos. Knivet viu emer- gir da 4gua “uma enorme coisa”, “com grandes escamas no dorso, garras medonhas e canda comprida”, avancando para ele, abrindo a boca, “langando fora a lingua longa, como um arpio”""' Gabriel Soares aludiu aos muitoshomens marinhos existentes na regiao do Recéncavo e chamados de upupiara pelos indios; estes homens car- tegavam jangadas e pessoas para o fundo das 4guas, afogando-as: a maré as devolvia depois “mordidos na boca, narizes e na sua natura” préprio autor diz ter perdido varios escravos desta forma. J4 Gandavo é rico em detalhes: o monstro fora morto na capitania de Sao Vicente no ano de 1564, ¢ 0 autor se propéea fazer um relato fiel do ocorrido, “ainda que por muitas partes do mundo se tenha jé noticia dele” Noite alta, uma india avistou o monstro“movendo-se de uma Parte para outra com passos e meneios desusados e dando alguns urros de quando em quando” ia ele por uma varzea junto ao mar, eera tio feio “que nao podia ser senao o deménio”:“era quinze pal- mos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, ¢ no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes”. O rapaz que o 100. Giulia Lanciani, op. cit. pp. 23, 56-7,"Tinha somentea aparéncia dehomem. nna cara, na cabega ndo tinha cabelos mas uma armago, como de carneiro, revi- radacom duas voltas;as orelhaseram maiores queasdeum burro,acor era parda, onariz com quatro ventas, um s6 olho no meio da testa, a boca rasgada de orelha aorelha e duas ordens de dentes, as mos como de bugio, os pés como de boi eo corpo coberto de escamas, mais duras que conchas” p.57. 101. Anthony Knivet, op.cit., pp.37-8. 102. Gabriel Soares de Souza, Noticia do Brasil (15872). vol. 11, S40 Paulo, Mar- tins,s.d.,p. 190. O upupiara pertence, provavelmente, 20 folclore indigena. 2B matou, chamado Baltazar Ferreira, andou “como assombrado sem falar cousa alguma por um grande espaco”. Na lingua da terra, aquele ser se chamava hipupiara."” No século xvii, ainda perdurava o temorao monstro do mar, agora na forma de menino “de trés para quatro anos”, da cor dos gentios, de feigdes disformes e grosseiras, “a cabega pouco povoada de cabelos”, agilimo na arte de se esquivar dos tiros que se hes davam. Jaboatao conta um episédio em que aparecem estes meninos marinhos, sendo canoeiro da embarcacao um indio: este, “com a primeira vista que teve do animalejo, se deixou cair, com um grande grito, no fundo da embarcagao, cerrando os olhos, e os dentes, de sorte que por mais remédios, que na vila se Ihe aplicaram, 0 nao houve para a vida, que s6 lhe durou, no pr6- prio estado em que caiu, 24 horas” Os outros companheiros da embarcacao, sendo negros da Guiné, nao tiveram medo nem se abalaram com a visdu... Difundida por todo o mundo — como diz o préprio Gan- davo —, a lenda do homem marinho tem cores indigenas em Gandavo e em Gabriel Soares, somando suas caracteristicas as européias, presentes, por exemplo, na narrativa de Knivet. A semelhanga do ocorrido com o Paraiso Terreal, migraram para a América as projegdes imagindrias européias acerca das humani- dades e dos animais monstruosos. Parente talvez do milenar dra- gao europeu seriam as serpentes de “asas mui grandes e espanto- sas” de que Gandavo ouvira falar." Similares europeus teria também, sem dtivida, o enorme lagarto “coberto de escamas esbranquicadas, asperas e grosseiras como conchas de ostras” que, de olhos faiscantes, se aproximou de Léry e dos companhei- 103. Gandavo, op. cit., pp. 120-3. 104. Jaboatio, op. cit., vol. 1, pp. 118-9. 105. Gandavo, op. cit. p. 57. 74 f i E t E ros para contemplé-los. “Mais tarde pensei, segundo a opiniao dos que dizem que o lagarto acha agradavel a face do homem, que este tivera tanto prazer em nos olhar quanto nés medo ao con- templa-lo”, diria Léry." Na Europa, os monstros continuaram em voga até o século xvi. Pregadores protestantes como Lutero e Melanchton utiliza- ram-nos fartamente em suas pregacées, seguinda o exemplo dos moralistas medievais; em tempo de reforma religiosa, associavam a heresia ao monstruoso."” Nas baladas populares, cantava-se 0 monstro; multidées acorriam as pracas puiblicas para ver os xif6- pagos Lazaro e Joao Batista Coloredo, que entre 1637 ¢ 1642 se exi- biram por toda a Europa." Discutia-se se hermafroditas podiam casar, se as duas cabecas de irmaos siameses deveriam ser igual- mente batizadas, dai por diante."” Até Ronsard escreveu versos sobre monstros.'’Apesar de disseminado no cotidiano, o monstro tenderia, a partir do século xv, a se demonizar, instalando-se de um s6 lado do mundo, pactuando com o diabo, desarmonizando-se:a desarmonia do mundo no fim da Idade Média acarretava assim a desarmonia do monstro.” Entretanto, esse fascinio da Europa quinhentista e seiscen- tista pelo monstro circunscreveu-se a um tipo especifico: o dos monstros humanos individuais. Aos outros, os do bestidrio, os “geograficos” — que habitavam os confins da Terra—, 0s descri- tos pela religiao — Sata—, os europeus somaram a concepgao do 106. Léry, op. cit.. vol. 1. pp. 164-5. 107. Ver Delumeau, op. cit.,p. 156. 108, Katharine Park e Lorraine J. Daston, op. cit. p.20. 109. Idem, p.22. 110."... Tant de sectes nouvelles/ Tant de monstres difformes,/ Les pieds a haut, la teste contre-bas,/ Enfants; morts-nez, chiens, veaux, aigneaux et chats/ A double corps, trois yeux et cing oreilles.” Apud Delumeau, op. cit. pp. 156-7. 111, Claude Kappler, op. cit., p.294. 75 | homem selvagem. Através dos descobrimentos, pois, os mons- tros nao cederam lugar aos homens selvagens, mas acrescenta- , Tam-sea eles.” Os cosmégrafos quatrocentistas julgavam que as novas terras seriam habitadas por monstros, mas Colombo nelas encontrou apenas homens selvagens — para sua admiragao, homens bem feitos e bem constitufdos, de “cardter ineludivelmente humano”, desmentindo velhas lendas e apontando para a “unidade essencial do género humano”: Como os monstros, o homem selvagem nao era tema novo, tendo raizes no mundo antigo. Era a antitese do cavalheiro, e opu- nha, ao ideal cristao, a vida instintiva em estado puro. Na Idade Média, vigorou ante ele uma atitude ambivalente de medo e de inveja: ameacava a sociedade, mas era exuberante, sexualmente ativo e levava uma existéncia livre nos bosques.' Seus atributos espirituais eram vistos como negativos, enquanto os dotes fisicos 112.A idéia de quecom os descobrimentos os monstros cederam lugaraohomem selvagem € defendida por Francois Gagnon no artigo “Le théme médiéval de Vhomme sauvage dans les premieres représentations des Indiens d’Amérique’in Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, pp. 83-9. Sacudida por movimentos milenaristas que pregavam a volta 4 Idade de Ouro e convicta de queo progresso historico se fazia por renascimentos (voltas a um primitivismo inocente),a Idade Média preparara o ambiente necessério recepco do bom selvagem; entretanto, foi a descoberta da América que deu contetido ao mito. J. Le Goff, “Lhistorien et Phomme quotidien’, in L’Historien entre l’Ethnologue et le Futurologue, Paris, Mouton, 1972, p.240, 113. Silva Dias, A revolugio dos mitos e dos conceitos”, op. cit., p.202. 114. Em relacao a sexualidade do indigena, asatitudes européias ou europeizadas sdo extremamente contradit6rias. Fontes coevas, como as cartas jesuiticas, escan- dalizam-se com a exuberancia sexual dos indios. Com base nelas e nas visitagbes do Santo Oficio, Paulo Prado construiu toda uma teoria da luxtria brasileira em Retrato do Brasil. Por outro lado, a impoténcia sexual ea pouca virilidade do indi- gena americano foram pedras de toque na polémica detratora dos séculos xvii e XVII. Gerbi, op.cit. 76 eram considerados positivos.'"* O homem selvagem medieval emprestou muitas de suas caracteristicas aos homens do Novo Mundo. Nos cortejos, nas festas, nas mascaradas assim como nas Tepresentagoes solenes, figuravam, até meados do século xv1, fun- didos a auténticos aborigenes das selvas americanas. Para Gerbi, 0 Caliban de Shakespeare seria “a mais alta representa¢ao poética de um desses brutos luxurientos”." Mas, antes dele, os naturmens chen figuraram nas lendas, teatro e literatura medievais, sobretudo na Europa setentrional."” Para Gagnon, a humanidade monstruosa exprimia margina- lidade geogrdfica, constituindo representacao concéntrica do mundo; jo homem selvagem exprimia marginalidade sociolé- gica, constituindo representacao hierérquica do mundo. "*O ame- rindio poderia pertencer a uma e outra representacao: quanto ao afastamento geografico, é monstro; no que diz respeito a nudez ea vida natural, é selvagem. As duas representag6es coexistiram, mostra Gagnon. Com o tempo, entretanto, a do homem selvagem acabou prevalecendo, sem contudo abandonar de todo a sua carga monstruosa. A mons- truosidade achava-se muito ligada ao desconhecido geogréfico, que a experiéncia das navegacées e dos descobrimentos acabaram langando por terra. J o homem selvagem nao dependia do desco- nhecido, mas da representagao hierdrquica da sociedade crista. 115. Gerbi, op. cit., p.67. 116. Idem. Em fins do século xv, o Papageno da Flauta mdgica ilnstraria a con- vergéncia e contaminagao das figuras simbélicas do homem selvagem e do ame- rindio: o corpo coberto de penas substituira o corpo coberto de pélos. Gerbi, op. cit., p.67. 117.*...eram seres ferozes, robustos e peludos, faunescamente hibricos que habi- tavam os bosques mais fechados e os antros cavernosos; eram certamente criatu- ras subumanas, mas bem distintas dos macacos e demais feras”, Gerbi, p. 67. 118. Gagnon, op. cit, p. 86. Justificava a empresa colonial como tentativa de dar cultura e reli- gido aos que naoa tinham, durando, portanto, tanto quanto 0 sis- tema colonial. No século xvii jasesentiaa necessidade de inserir 0 indiobra- sileiro no universo mental do Velho Mundo. O curioso é que isso fosse feito justamente no que tocava a sua iuarginalidade geogra- fica. Frei Vicente, citando d. Diogo de Avalos, fornece para a ori- gem dos indios interpretagao que em seguida descarta, mas que vale a pena mencionar por inserir-se perfeitamente na concepgao das humanidades geograficamente marginais. D. Diogo, na Mis- cellanea Austral, dizia que: _Jemas serzas de Altamira em Espanha havia uma gente bdrbara, que tinha ordindria guerra com os espanhéis ¢ que contiam carne humana,do que enfadados os espanhéis juntaram suas forcas elhes deram batalha na Andaluzia, em que os desbarataram e mataram muitos. Os poucos que ficaram, nao se podendo sustentar em terra, a desempararam ese embarcaram para ondea fortuna os gutiasse,¢ assim deram consigo nas ilhas Fortunadas, que agora se chamam Canérias, tocaram as de Cabo Verde aportaram no Brasil. Sairam dois irmaos por cabos desta gente, um chamado Tupi outro Gua- ranijeste tiltimo, deixando 0 Tupi povoando o Brasil, passou a Para~ guai com sua gente e povoou o Peru." Ora, neste trecho admirével cruzam-se no imagindrio euro- peu a migracao do Parajso terrestre para 0 Atlantico —as ilhas ‘Afortunadas — ¢ a migracao das marginalidades geograficas — homens selvagens e canibais — para a mesma regiao! Tudo parece indicar portanto que, para 0 Brasil, conflufram, desde o fim do 119. Frei Vicente do Salvador, op. cit. p.52.Grifos meus. 7 século xv1, as formulacdes do imaginério europeu acerca de terras desconhecidas e humanidades monstruosas. Frei Vicente diz que a opiniao de d. Diogo de Avalos nao era certa, porque nao tinha fundamento:“O certo é que esta gente veio de outra parte, porém donde nao se sabe, Porque nem entre eles ha escrituras, nem houve algum autor antigo que deles escrevesse”"™ Em passagem rapida, Rocha Pita d4o testemunhao de que, no inicio do século xvi, eram jabem conhecidas as teorias acerca da origem oriental dos indigenas — mais uma vez, a necessidade de atrelar esta outra humanidadea tantas que tinham povoadooima- gindrio europeu no perfodo em que a comunicacao Ocidente — Oriente se interrompera. “Deixo a controvérsia sobrea origem dos primeiros habitadores quea esta regio passaram,e donde vieram, se de Tréia, da Fenicia, de Cartago, de Judéia, dos fabricadores da Torre de Babel, ou se de Ofir Indo, porque sobre este ponto nao tém mais forgas que algumas débeis conjeturas os argumentos dos autores...”, diz ele." A percepsao dos indios como uma outra humanidade, como animais e como deménios corresponde a trés niveis possiveis atra- vés dos quais se expressaram as consideragdes européias acerca dos homens americanos. Nao seguem uma ordenacao cronolégica— 0s indios nao foram primeiramentepercebidos como outrahuma- nidade e depois como animais —, mas se alternam no mesmo tempo. Em relacao ao Brasil, o imaginério de raizes européias se reestruturou ante a constatacio da diferenca americana. No tocante aos homens, a constatacao foi, quase sempre, depreciativa Fundidos ao homem selvagem, os quase simpaticos monstros europeus se animalizaram e se diabolizaram na colonia muito mais do que nos centros hegem@nicos. 120. Frei Vicente, op. cit., p. 52. 121. Rocha Pita, op. cit, pp. 26-7. 79 Para efeito de andlise, pode-se dizer que, num primeiro nivel, oeuropeu vé no amerindio uma outra humanidade. Um dos prin- cipais edenizadores da colénia no século xv, Gandavo, fala demo- radamente sobre a “multidao de barbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil”, enfatizando seus caracteres negativos: ameacam a seguranca dos colonos, combatem com armas na mio “todasas nagdes humanas” (dentreas quais,eviden- temente, nao seincluem), nao pronunciamo Ro Leo Re,porcon- seguinte, nao tém Fé, Lei ou Rei, “vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida’. “Gente é esta muito atrevida’, diria mais adiante, incapaz de amizade, sem crenga na alma, vingativa. “Mui desumanos e cruéis”, desapiedados, “mui desonestos € dados a sensualidade”, entregavam-se aos vicios “como se neles nao hou- vera razao de humanos”” Ora, como colonizar terra tao paradi- sfaca com homens que agiam como irracionais, ou, em outras palavras, agiam como se nfo fossem homens? O Brasil s6 ndo flo- rescia mais por causa dos escravos indios “que se alevantaram e fugiram para suas terras e fogem cada dia: e se estes indios nao foram tio fugitivose mutaveis, nao tivera comparagaoariqueza do Brasil”, diria Gandavo.™ Edenizando a natureza € fazendo propa- ganda da colonizacao, nao parece excessivo afirmar que Gandavo se visse obrigado a reduzir 0 natural da terra 4 condigao infima, chegando mesmo a questionar a sua humanidade. Por outro lado, esbosava justificativa a escravidao: “Ha também muitos escravos de Guiné: estes so mais seguros que os indios da terra porque 122, Gandavo, Tratado da terra do Brasil, pp. 48-53. A passagem sobre a falta de F, Le Rentre os indios, ea conseqiiente explicacao, repete-se em intimeros cronis~ tase historiadores dos primeiros tempos da colonia. Trés séculos depois, Schopen- hhaver ditia que“a vontade de vida, a0 se objetivar no Hemisfério Ocidental, sen- tiu-se muito serpentina e muito volétil, pouco mamifera e absolutamente nada humana’, Gerbi, op. cit. p.422. Grifo meu. 123. Gandavo, op.cit., p-38 80 nunca fogem nem tém para onde”"*Na Histéria da provincia de Santa Cruz, tornaria a indagar acerca da condi¢ao humana dos Indios, acrescentando consideracdes sobre seu descaso paracomo trabalho: “Vivem todos mui descansados sem terem outros pensa- mentos senao de comer, beber e matar gente, e por isso engordam muito... S40 mui inconstantes e mutdveis. "Dificil, senao im- Possivel, levar adiantea empresa colonizadora com gente tao des- qualificada para o trabalho sistematico, Barléu e Thevet— um eoutro, europeus envolvidos em expe- riéncias colonizadoras diversas da Portuguesa — diferem bastante na percepgao que tém do indio. Descrevendo a maneira de ador- nar-se do amerindio, Barléu fulminacomum julgamento de valor: “Enfim, comprazem-se admiravelmente em s6rdida e fétida bar- barie””* A diferenca é assim percebida e imediatamente conde- nada. Jé Thevet oscila mais, indeciso, Os indios sao uma “cana- Iha’,'” e sao “grosseiros”; mas, crédulos, manipulados por seus Profetas, sav uns coitados— “cespauvresgens’, diz, compungido.! Nao tém fé, lei ou religido, nem civilidade, vivendo como “bestas irracionais’, da maneira que os fez a natureza; mas séo“maravilho- samente estranhos’.™ Em Thevet,a percep¢ao da diferenca remete ao imagindrio medieval: 0 homem americano é diferente daquilo que os europeus, com base na concepgao medieval de homem sel- vagem, imaginavam que ele fosse: “Entretanto, muitos témalouca 124, Idem, p.39, 125. Idem, Histéria da provincia de Santa Cruz, p. 125. 126. Gaspar Barléu, Historia dos feitos recentemente praticados durante oito anos 1no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustrissimo Jodo Mauricio Conde de Nas- sau etc. trad. Cléudio Brandao, Rio, Ministério da Educacdo, 1940, p. 64, 127. Thevet, Les singularitez....p. 140. 128. Thevet, Les francais en Amérique... p.67. 129. Thevet, Les singularitez, p.233. 130. Thevet, idem, pp. 134-5. 81 opiniao que essa gente que chamamos Selvagens, por viverem nos Matos € nos campos quase ao modo de animais brutos, sao tam- bém peludos por todo 0 corpo, como um urso, um cervo, um leao, e chegam a pinté-los assim nos seus quadros opulentos: em resumo, para descrever um homem selvagem eles Ihe atribuem abundancia de pélo, dos pés a cabeca, como um atributo insepard- vel, ao modo do negrume no corvo; 0 que é totalmente falso”, diz ‘Thevet, escorado na experiéncia: aqueles que afirmaram tal coisa o fizeram sem nunca terem visto um indio americano. “Quanto a mim’, prossegue, “sei e afirmo com seguranga porque foi o que vi” Ea realidade é outra: pelo contrario, os Selvagens tanto da India Oriental, quanto da nossa América, saem do ventre de sua mae tao bonitos e lisos quanto os meninos da nossa Europa”. O indio nao tem pélos: € imberbe; é inferior, diriam no século seguinte os detratores da América, ignorando 0 hébito da depilacao do homem adulto, comum entre os Selvagens e relatado, entre outros, pelo préprio Thevet. Knivet é um dos pouquissimos europeus a tecer considera- gGes desfavoraveis acerca do comportamento dos europeus na América, e 0 faz, evidentemente, j4 no contexto de disputa entre paises hegeménicos pelo controle das colénias ultramarinas."* Fala da desumanidade dos portugueses ¢ incita os indiosa se posi- cionarem contra estes. Da, assim, a outra face da anti-humanidade amerindia: a anti-humanidade européia. “Nao obstante todos estes inconvenientes tremendos (leopardos, ledes, crocodilos, surucucus), preferfamos cair sob as garras duma fera, ou de uma 131. Thevet, Les singularitez.... pp. 151-2. 132. A respeito da questao da disputa pela hegemonia na Europa e pelo controle das coldnias, ver Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial — 1777-1808, Si Paulo, Hucitec, 1979, sobretudo cap. 1, Politica de neutralidade”, 82 vibora, do que as maos sanguinarias dos portugueses.” Knivetatica os indios contra os portugueses, mostrando-lhes que estes nao reconhecem neles seres humanos: escravizam-nos, marcam-nos “a ferro como a cies”, acoitam-os e infligem-lhes “suplicios como sendo fossem eles de carne esangue”*O inglés dizia preferir“ficar amercé dos selvagens pagios e carniceiros do quea mercé dacruel- dade sanguinaria dos cristaos portugueses” Avioléncia cotidiana era uma das faces com que se pintavaa humanidadeanti-humana dosamerindios, Humanidade ameaca- dora, que colocava os europeus entre o risco de ser flechado eo de ser comido. Jaboatio tem descrigdes notaveis, cinematograficas, de mas- sacres promovidos por indigenas. Em IIhéus, conta, os tapuias gueréns trespassaram de setas toda a familia do sargento-mor Bartolomeu Lopes da Franca, composta dele, da mulher e de cinco filhos, “que todos se acharam mortos ao redor de uma mesa, em que jantavam” Pelas lavouras, cafram mortos os escra vos, e sobreviveu apenas o quinto filho, que estudava na Vilae que nada péde herdar a nao ser a magoa, pois a fazenda se perdeu na chacina."* Contra 0 engenho do cavaleiro do Habito de Cristo e capitao-mor Antonio de Couros Carneiro também se voltou a “tirania” do indigena, apesar de ser bem guardado por gente e armas. Cairam sobre o engenho antes do meio-dia dando “seu espantoso urro’, batendo os arcos e “empregando as frechas na descuidada e desprevenida familia”. De dentro das casas, os empregados gritavam, espavoridos: “Gentio, Gentio!”, Uma das filhas do capitao, d. Isabel de Géis, rezava por umas contas quando foi surpreendida pela balbtirdia; correu para os cOmodos 133. Knivet, Varia fortuna... pp. 55-67. 134, Knivet, op. cit., pp. 58-9, 135. Jaboatao, op.cit., vol.1, pp. 105-6, 83 de um seu irmao, mas colheram-na “nuvens de setas” e caiu sob as vistas de toda a familia, invocando o nome de Jesus, pedindo confissio, ajeitando “com as maos as saias, para compostura dos pés”, cobrindo 0 rosto com um lenco, levantando as maos para 0 Céu e se oferecendo em martirio — vitima involuntaria sacrifi- cada em odio da Santa Fé Catélica. Marren trespassada por mais de vinte flechas. A mae se escondeu nas aguas de levada do enge- who, e apesar de “quasi regelada e morta’ foi achada com vida. Pelos aposentos interiores, pelos campos, pot toda parte esten- diam-se os mortos. Luiz de Freitas, um outro filho, foi achado “crivado desde a cabeca até os pés com mais de setenta setas”: tinha saido para cagar porcos monteses.'* No assalto a casa de Francisco de $4 Menezes, que estava enfermo na cama, 0s indios mataram no patio um seu filhinho que a ama trazia nos bragos, “ficando ambos trespassados, e cobertos de setas”.” Foi também na Bahia que ocorreu o ataque indigena a casa de Francisco de Aratijo de Brum, “homem solteiro, que havia pouco tinha con- cluido na cidade os Estudos de Filosofia”. Numa manha, despa- chara a gente de armas e os escravos para os servicos de fora, € ficara em casa s6 com os empregados domésticos. Passeava pelo seu terreiro quando uma tropa de gentio rodeou toda a casa, impedindo-o de entrar nela. O licenciado “partiu & carreira” em direcdo ao rio, que ficava perto, pensando que, uma vez na dgua, se esquivaria das flechadas do inimigo. “Mas quis a sua fortuna que achou a maré vazia, c grandes lamagais, que Ihe impediram ‘0s passos; como que fugindo da morte em terra, a foi beber entre lodos, e nuvens de setas, de que ficou coberto...”"* Orisco de ser comido esta presente em muitas das paginas 136. aboatio, op. cit, vol.1, pp. 106-8. 137. Idem, p.110. 138. Idem, p. 114. | 84 escritas por jesuitas. “Para 0 ano, se no nos comerem os negros (leia-se indios), vos escreverei mais largamente de tudo, se Deus for servido’, dizia em 1553 o padre Azpilcueta Navarro em carta aos irmaos de Coimbra.” Preparando-se para entrar nos sertdes — “tesouros de almas” —, Nébrega expressava ao provincial de Portugal o medo do canibalismo indigena: antes de partir, queria deixar “bem comegadas” a obra das casas de meninos, “em que fique fundamento da Companhia, se porventura nos matarem e nos comerem a todos os que formos”" Knivet deixou um relato impressionante da execugao e ingestao de portugueses Por parte dos indios. Primeiramente, matava-se o homema golpes na nuca: €m seguida, tirava-se-lhe a pele com um dente de capivara, aju- dando com 0 fogo até que, com as maos, toda a pele do corpo pudesse ser destacada. A cabeca, cortada, era entregue ao “car- asco”; as entranhas, as mulheres. O corpo era retalhado junta por junta, distribuindo-se as partes; no dia seguinte, as mulheres “fer- veram cada junta numa vasilha de gua”, e assim o grupo todo fez uma enorme sopa."" Jaboatao explica as continuadas guerras indigenas pelo ape- tite por carne humana, e transmite o depoimento prazeroso de uma velha india potiguar que, moribunda, sonhava com o manjar preferido, ja havia recebido “toda a medicina da alma” e parecia bem-disposta espiritualmente, ¢ inclinada a fé catélica. Compade- cido com a fraqueza da velha, o padre que a assistia resolveu lhe “aplicar também algum alento para 0 corpo”, indagando-lhe se no queria comer um pouco de agticar ou outra coisa gostosa do 189. Carta do Pe Jodo de Azpilcueta Navarro aos irmaos de Coimbra; Porto Seguro, 19desetembro de 1553, in Serafim Leite (org.), Novas cartasjesuiticas,p. 158. 140. "Ao padre Simio Rodrigues, Provincial de Portugal”, Bafa, 10-7-1552, in Serafim Leite, op. cit., p.26. 85 3) além-mar. “Ai, meu neto”, respondeu a velha, “nenhuma coisa da vida desejo, tudo me aborrece j4, sé uma coisa me poderia tirar agora este fastio. Se eu tivera agora uma maozinha de um rapaz tapuia, de pouca idade, e tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, entao me parece tomara algum alento: porém eu, coitada de mim, j&nao tenho quem me vé frechar um destes!”“* A humanidade anti-humana se manifestava ainda no estado de pecado em que, para 0 europeu catélico, viviam os naturais da terra. Evidentemente, uma das principais fontes a registrar a vida pecaminosa dos homens da América portuguesa sao as cartas jesutticas. Nelas,a colOniaéo lugar por exceléncia do pecado, e este se generalizava de tal forma que muitos dos padres chegavam a descrer no poder regenerador da fé.“Fiquei aqui somente por falta de padres e pela necessidade que haviana terra de despertara gente que estavam e esto no sono do pecado somente com nome de cris- taos embebidos em malquerengas, metidos em demandas, envol- tos em torpezas e sujidades publicamente, o que tudo me causava uma tibieza e pouca fé e esperanga de poder-se fazer fruto”, escre- via da Bahia o padre Azpilcueta Navarro.'’® Quiais os pecados? Vicios da carne — 0 incesto com lugar de destaque, além da poligamia e dos concubinatos —, nudez, pre- guica, cobica, paganismo, canibalismo. “No vicio da carne, sao sujissimos”, escrevia dos carijés 0 padre Jeronimo Rodrigues. Havia muitas mulheres para um s6 homem: sobrinhas, enteadas, netas, “e alguns tem por mulheres as proprias filhas”. E ainda mais espantoso: muitos homens para uma s6 mulher, e maridos dei- xando “andar as mulheres por onde e com quem elas querem”* 142. Jaboatio, op. cit., vol.1, pp. 13-4. 143, Carta de 19-9-1553, in Serafim Leite, op. cit., p. 156. 144. Relacao do padre Jeronimo Rodrigues, in Serafim Leite, op. cit., p.232. Um 86 No dizer de um historiador conservador, uma sociedade“informe etumultudria”'* A preguica, outro pilar da explicacao de Paulo Prado (leitor assfduo dos jesuitas e das visitagoes do Santo Oficio):“A mais pre- guicosa gente que se pode achar, porque desde pela manhi até a noite, e toda a vida, nao tem ocupacao alguma: tudo é buscar de comer, estarem deitados nas redes”; gente “afeminada, fora de todo ogénero de trabalho”;'* “gente indolente, que nao se importacom nada, deitando o dia todo, preguigosamente, nas suas moradias, e nunca saindo para outras regides, exceto para procurar viveres”, diria o inglés Knivet,"” A cobica também entraria no rol dos pecados, envolvendo, desta vez, antes os homens brancos; mostrava ainda como, de fato, a colonia incitava & transgressao, Muito elucidativo, neste sentido, €0 relato do irmao Antonio Rodrigues, que como santo Indcio, primeiro fora soldado. Deixara Sevilha em 1523 junto com 1800 homens ein busca de metal precioso. Atingira o rio da Pratae vira muitos dos companheiros perecerem nos dentes de oncas bravas; depois, sobreveio a fome, sobrevieram os indios: “Prouve a Nossa Senhora castigar a nossa cobica e pecados, que soldados comu- mente fazemy”. A fome surge pois como flagelo e castigo contra as atrocidades cometidas: antropofagia, ingestdo de fezes, desman- dos de varios tipos, blasfémias, falsos testemunhos, “injustas justi- dos mais famosos incestuosos dos tempos coloniais foi Joao Ramalho, Ver p.46, carta de Nobrega, 145. Paulo Prado, Retrato do Brasil — Ensaio sobre a tristeza brasileira, 7.ed.,in Provincia e nagao. Rio, José Olympio, 1972, p. 166. 146. Relagao do padre Jeronimo Rodrigues, pp. 230 ¢ 239. As pp. 226-7, trecho antol6gico sobre mé educagao das criangas indigenas e sobre preguica, 147.Knivet, op. cit. p. 142. No século xvi, De Pauw diria serem os selvagens, por no trabalharem, menos fortes que os povos civilizados, jé que o trabalho fortifi- caria os nervos. Gerbi, op. cit., p. 62, nota 54. yf t 1 \ | \ as”, “ali os oficiais da ordem da guerra diziam: ‘Bem € que mor- ram, porque nao haveré ouro para tantos” Um relato curioso em que os europeus sao ferozes, e bondosos os indios: (...) achamos uns gentios que chamam “Timbos’; os quais so mui- tos. Nao comem carne humana, antes se afastam disso. Sao muito piedosos, porque indo nds muito sumidos e os dentes e beigos negros, levando figura mais de homens mortos que vivos,nos leva- ram nos bragos e nos deram de comer e curaram-nos com tanto amor e caridade, que era para louvar a Nosso Senhor ver, em gente apartada da fé, tanta piedade natural, que com tanta mansidao e amor tratavam a gente estrangeira, que nao conheciam,'* Humanidade esquisita, anti-humana, meio monstruosa, diferente, pecadora. Seriam homens mesmo? Poderiam ser con- vertidos, receber a palavra divina?'” Continuador da tradigao de | Vico, o abade Galiani acreditava que o indio californiano nao che- gavaaser um homem, mas“o mais desperto,o maisastuto €o mais habil dos macacos”:® Mesmo reconhecendo atributos de humani- 148.“Antonio Rodrigues, soldado, viajante e jesuita portugués na Américado Sul, no século xvr’ introd. e notas de padre Serafim Leite, S. J., Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, n. 49, Rio, 1927, pp. 55-73. 149.“A proximidade com aanimalidade ou coma desordem faz.com que nao haja uma permanente unanimidade de opiniao quanto A possibilidade da conversio. Seria o indigena capaz de compreender a sneusayem crista? Teria ele uma Razao? Seria Homem?”, Luis Felipe Baeta Neves, op. cit., p.58. Questionando a condigao humana dos indios, os jesuftas questionavam a catequese: “Estariam os jesuitas caindo no pecado do orgulho ao se proporem uma tarefa a qual o proprio Deus nao se teria proposto? ou Este teria reservado tal missao para testar o valor deseus Fillo incontester?” op, cit, p. 61. rectal teu p- 114, Dizin ainda que,como osselvagens,os gatos tam- ei rain esentiae requerendo apenas tempo. Os gatos ace a anos para aprenderem o que sabem hoje.“E justo, 8H dade para o indigena americano, William Robertson nao consegue evitar de qualifica-lo, na Histéria da América, de“animal melancé- lico”.* Para Kant, algumas das ragas americanas representariam 0 escaldo mais baixo da humanidade,'* AfirmagSes como éssas trazematras desi uma longa histériade detracao. Lembrou Sérgio Buarque de Holanda que, durante o pri- meiro século de conquista, os espanhois que estiveram nas Indias “tenderama ver os indios sob o aspecto, ora de nobres salvajes, orade perros cochinos”. No Brasil, mostraram o§ documentos que a segunda vertente levou a melhor, os antigos missionarios do Brasil aproximando-se mais de um Septilveda do que de um Las Casas," Jéna carta de Caminha surge a comparacao com os animais: 0s indios seriam “gente bestial e de pouco saber”, incapazes de com- preender o gesto cortés de Cabral. Mas, apesar disso, impos e bem curados. Portanto, bons animais: “Sdo como as aves, ou animais montesinhos,aos quais o ar faz melhores penase melhor cabelo que as mansas”. Dai o asseio, gordura, formosura de seus corpos." Em 1555, Anchieta, 0 “suave evangelizador de nossas selvas”, comparava-se praticamente a um veterindrio. Ao tratar da doenga dos indios, servindo de médico ede sangrador, descreve suas ativi- dades: “Deitar imprastos, alevantar espinhelas, ¢ outros oficios de pois, que os alifornianose australianos, que tém trés ou quatro milanosdeidade, sejam ainda umas feras”, apud Gerbi, op. cit.,p. 113, nota 209. 151.“A pensive melancholy animal’; “a serious melancholy anima? apud Gerbi, op. cit., p. 152, nota 44. 152, Gerbi, op. cit, p. 303. 153. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., pp. 298-9 e 303.“O reptidio ao indigena —Asuaanimalidade—centraliza-se em trés formas de comportamento qualifi- cadas de repugnantes e que seriam comuns a todos os ‘nativos. Sao o incesto, 0 canibalismo ea nudez.” Luts Felipe Baeta Neves, op. cit., p.56. 154.Cartade Pero Vaz de Caminha, apud CarlosMalheiro Dias, op.cit., vol.1,p.94, 89 albeitar, que eram necessdrios para aqueles cavalos, isto é aos indios’\* . Mas foi Nobrega quem mais se debateu com aanimalidadedo indigena brasileiro. Nas cartas ou no Didlogo, suas idéias se repe- tem, “o jesuita bate sempre nas mesmas teclas [...] ¢ tanto mais abertamente quanto mais 0s anos passam”* Os indios “sfio cies em se comerem ematarem, e sao porcos nos vicios ena maneira de se tratarem”: esta passagem famosa segue dizendo que os padres chegavam do reino achando que converteriam “a todo o Brasil em uma hora”, sendo entretanto necessario mais de um ano para con- verter um sé indio, tal a“sua rudeza e bestialidade”.” ‘Aexperiéncia com o indigena solapara desde cedo as esperan- as de Nobrega acerca das dimens6es da conversao, levando-o a considerar “o pouco que se podia fazer” por “ela ser uma maneira de gente de condicao mais de feras bravas que de gente racional”. Indiscutivelmente racionais, os colonos cristaos avizinhavam-se lavam “pouca ajuda” e “muitos estor- também da animalidad vos” aos jesuitas, oferecendo com seu modo de viver “escindalo” e \/\“mau exemplo” aos indios."* Paulatinamente, a idéia de humani- ' dade inviavel, de inicio atribuida ao indio, impregnaria toda a populagao da colénia, associando-se a propria condicao colonial. A mestigagem seria um dos responsaveis por este contdgio."” Ao 155. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit,, p. 303. José de Anchieta, Cartas, infor- magées, fragmentos hist6ricos esermdes, Rio, 1933, p. 186. Grifo meu. 156. Silva Dias, “Os portugueses ¢ 0 mito do‘bom selvagem’”, in op. cit.,p. 296. 157, Manuel da Nébrega, Didlogo sobre a conversao do gentio (1556-592), introd. e notas de padre Serafim Leite, Lisboa, Edic¢do Comemorativa do tv Centenario de Sao Paulo, 1954, p. 54. 158. Nobrega, “Ao P. Miguel de Torres, Provincial de Portugal” — 2-9-1557, in Serafim Leite, Novas cartas jesuiticas,p. 68. 159. Sobre o comtdgio da animalidade:“O mal veio primeiramente de outra colo- nia vizinha, em a qual o sangue portugués se tinha misturado muito com o dos indios. O contagio deste mau exemplo chegou bem depressa a Sao Paulo, e desta 90 tratar dela, Barléu comparou-a a semiferocidade: “Mesclando-se entre si brancos e negros, nascem os trigueiros, corrigidaa negrura por uma coloraciio mais clara”; a este tipo, os espanhis chamavam demulatos, e 0s romanos, de hibridos, “isto é, gerados de pais desi- guais, como os semiferozes, nascidos de ferozes e de mansos”!® Voltando a Nobrega, tem-se na carta de 8 de maio de 1558 uma espécie de resumo de suas idéias acerca dos indigenas: desde 0 descobrimento, os indios tinham prejudicado muitos cristaos, tomando-lhes navios e fazendas, maltratando indistintamente os que eram cruéis com eles ¢ os que eram bondosos.“E sao tao cruéis ¢ bestiais, que assim matam aos que nunca lhes fizeram mal, cléri- g0s, frades, mulheres de tal parecer, que os brutos animais se con- tentariam delas e lhes nao fariam mal.” A brava gente portuguesa, amais temida entre todas as nagoes, era nesta colonia vilipendiada pelo indio, sofria e sujeitava-se “ao mais vil e triste gentio do mundo”. Havia, pois, que se enquadrar os indios numa ordem politica de estrutura autoritdria, na qual cabia até a escravidao. “Sujeitando-se o gentio, cessardio muitas maneiras de haver escra- vos mal havidos e muitos escrdipulos, porque terao os homens escravos legitimos, tomados em guerra justa:”'" $6 assim cessaria mistura saiu uma gera¢do perversa..”. Charlevaix, apud frei Gaspar da Madre de Deus, Memérias para a historia da capitania de Sao Vicente, 3.ed.,introd. e notas de Affonso E. Taunay, Sao Paulo /Rio, Weizflog Irmaos, 1920, p. 230. 160. Gaspar Barléu, op. cit., p. 64, Grifo meu. 161. Nobrega, “Apontamento de coisas do Brasil’, in Serafim Leite, S.J, op. cit, Pp.76-7. Grifo meu. “Aanlise do jesufta ¢ estranha, como se vé, a legenda da bondade paradisiaca do indio,ecarece de incitamentos que sugiram a superioridade moral ou ‘cultural’ dos seus costumes” Silva Dias, “Os portugueses ¢ 0 mito do‘bom selvagem”,in op, cits pp. 297-8. Este autor defende a tese de que o mito do bom selvagem foi margi- nnalna cultura portuguesa. Nas cartasjesufticas, os tracos do mau selvagem seriam “mais vincados e delonge maisabundantes” que os do bom selvagem, p. 294. Sobre oprincipio da sujeigao e obediéncia em Nébrega, ver pp.328-9. ou “a boca infernal de comer a tantos cristéos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa’, diria ainda Nébrega, apontando jd terceiro nivel de expressa0 das consideragdes européias acerca dos homens americanos: 0 dos indios como deménios. Outros jesuitas seguiriam os passos de Nobrega e Anchieta na percep¢ao do indio como animal: “No comer carne humana { sio piores que cfies”, diria o padre Jeronimo Rodrigues.” Mas no foram os inacianos os unicosa verem o gentio mais proximo das sociedades animais do que das humanas. A excessiva cruel- dade do indigena repugna a condicao humana, dizia Gandavo na Histéria da provincia de Santa Cruz: nao apenas matam todos aqueles que nao séo de seu rebanho como também os comem, “usando nesta parte de cruezas tao diabélicas, que ainda nelas excedem aos brutos animais que nao tém uso da razao”."* Os Aimoré, dos quais um punhado sao bastantes para destruir mui- tas terras, nado tém casa ou lugar certo onde possam ser encontra- dos, “mas andam como leées e tigres pelos matos’, dizia frei Vicente do Salvador." “Tigres humanos” é ainda a designagao usada por frei Gaspar para os Guaitacd da regido do Rio de Janeiro.'* Animal melancélico, como o de Robertson, é 0 indio de Barléu:“O gentio do sertao e todo aquele que conserva os cos- tumes patrios aproximam-se, na crueldade, mais das feras que dos homens. Sao avidissimos de vinganga e de sangue humano, temerdrios e pressurosos para os combates singulares e para as batalhas”, diria ainda o historiador do Brasil holandés.' Cabelos 162.“A missdo dos Carijés”— Relagao do padre Jerdnimo Rodrigues, in Serafim \ Leite, Novas cartas jesuiticas, p. 236. I 163. Gandavo, op. cit., p. 137.0 grifo € meu. i 164, Frei Vicente do Salvador, op. cit.,p.377. i 165. Frei Gaspar da Madre de Deus, op. cit., p. 147. 166.“Propensos a melancolia, procuram dissip4-la com cantilenas e instrumen- tos miisicos, que tém préprios”,Barléu, op.cit, p.24. 1 92 Pretos, minazes no semblante, ferozes no olhar, os Tapuia, “na velocidade da carreira dificilmente cedem as feras.” Antropéfa- 08 todos, aterrorizavam “aos outros barbaros e aos portugueses pela sua fama de crueldade”. Também nas inimizades eram ani- malescos: mostravam-nas “encarnigadas, acima do que permite ahumanidadeouo é6dio”” Uma gente “notavel pela barbaridade de seus costumes e pela fereza do seu natural”, diria Jaboatao, associando, um pouco mais adiante, os homens aos animais: “Uma regiao (0 Brasil) tao habitada de individuos humanos, como de animais ferozes, tio nocivos muitos destes, como inu- manos aqueles; indios selvagens, tao brutos como os mesmos ir- \ racionais, e ainda ao parecer mais irracionais que os mesmos | brutos”. Jaboatao justificaria esta afirmativa de serem os indios } mais irracionais que os préprios bichos com base na antropofa- | gia: nenhum animal come o seu semelhante, ou seja, um outro | animal da mesma espécie, e 0 indio nao sé come outro indio como também os que Ihe sao proximos, parentes e amigos.*O | contraponto positivo ao mau selvagem, animalesco, foi dado nos tempos coloniais sobretudo pelos escritos de Thevet e de Léry. O) primeiro,na Cosmografia universal, afirma que os selvagens “nao sao assim tao brutos, quea natureza nao lhes haja dado luzes para falar das causas naturais”, sendo assim capazes de discorrer sobre a 4gua salgada do mar, sobre a composi¢ao da terra.'® Teriam ainda idéia do bem e do mal, afirma duas paginas adiante. Léry avanga mais na percep¢ao do outro. Mesmo sendo barbaras e crugis com os inimigos, a selvageria nao impede estas nacdes de considerarem bem “tudo o que se diz a eles com sensatez”” Ao 167. Barléu, op. cit. pp.260-1. 168. Jaboatio, op. cit. vol.1t, espectivamente pp. 4¢7. 169. Thevet, Les francais en Amérique, p.40. 170. Léry, op. cit., vol. i, p.81. 93 contrario do que se pensava na Europa, os indios Tupinambé nao tinham o corpo “nem monstruoso nem prodigioso” em relagao ao dos europeus."”" Masas formulagées simpaticas nao vicejaram entre os portu- gueses, que, como viram Silva Dias e Sérgio Buarque de Holanda, passaram ao largo do mito do bom selvayem € tenderam antes & idéia do “perro cochino”.” Ao tratar do escravo negro no século xvii, o jesuita Antonil o enxergaria como animal: “Ha anos em que, pela muita mortandade dos escravos, cavalos, éguas e bois, ou pelo pouco rendimento da cana, nao podem os senhores de enge- nho chegar a dar satisfacao inteira do que prometeram’, diria, sem distinguir o homem dos bichos de tragio.'” ‘A terceira face da percep¢ao européia do homem americano como humanidade invidvel era a demonizacao. Dizia frei Vicente que o deménio perdera o controle sobre a Europa— cristianizada durante toda a Alta Idade Média — e se instalara, vitorioso, na outra banda da terra — a América e, no texto da epigrafe, mais especificamente o Brasil. A infernalidade do demo chegara até a colorir o nome da colénia: Brasil, para nosso religioso, lembra as chamas infernais, vermelhas. E, aqui, ele foi vitorioso, pelo menos na primeira etapa da luta: esqueceu-se 0 nome de Santa Cruz, ea designagao apadrinhada por Satands acabou levando a melhor. Cristianizando, os portugueses procuravam diminuirashordasde 171. Léry, op. cit., vol.1, p. 122. 172.“Osventos dialéticos dos Padres de Jesus, por qualquerlado que os tomemos, sopram a0 revés de Montaigne e de Rousseau. Longe de afagarem as nocoes de moral natural,de religito natural, de sociedade natural, abonam os ideais da civi- i rista implantada na Europa’, in Silva Dias, “Os portugueses ¢ 0 mito do bom selvagem’; op. cit., p. 339. 173. Antonil, Cultura e opuléncia do Brasil por suas drogas e minas,introducao e notas de Alice P. Canabrava, 2. ed., Sdo Paulo, Companhia Editora Nacional, s.d., p- 169. Grifo meu. 94 seguidores do diabo: afinal, o Inferno era aqui." Conforme se ini- ciou a agao dos soldados de Cristo, passaram a existir “indios indios” e“indios conversos”, sujeitando-se estes a Deus eaquelesao diabo.* Mas a colénia continuou Brasil, trazendo sempre no nome o estigma infernal que lhe havia selado o nascimento, Os indios so povo do diabo, afirmam repetidas vezes os jesuitas. “Nem sei outra melhor ‘traca do inferno que ver uma mul- tidao deles, quando bebem, porque para isso convidam de muito longe, eisto principalmente quando témde mataralgum ou comer alguma carne que eles trazem de moquém” dizia a santo Indcio de Loyola 0 padre Luis da Gra." Deménios nos habitos alimentares, sdo-no também nos de morar e vestir: Cada casa destas tem dois ou trés buracos sem portas nem fecho: dentro delasvivemlogo centoow duzentas pessoas, cada casalem seu rancho, sem repartimento nenhum, e moram duma Parte e outra, ficando grande largura pelo mio, ¢ todos ficam wuino em comuni- dade, ¢ entrando na casa se vé quanto nela est, porque estao todos 3 vista uns dos outros, sem repartimento nem divisao. E comoa genteh émuita, costumam ter fogo de dia e noite, vero e inverno, porque o ‘fogo é sua roupa, e eles sio mui coitados sem fogo. Parece a casa wm 174. A demonizasao do homem americano avangou junto com a expanstio: “O confronto da realidade e da legenda avangou com aprecivel rapidez; ea medida que a penetra¢ao se aprofundou nos tertitérios, as revelagdes dos missionarios ¢ exploradores puseram em evidéncia niveis nao paradistacos, por vezes até julga- dos diabélicos, na humanidade ‘primitiva’ do americano”, in Silva Dias, “A revo- Iugao dos muitos e dos conceitos”, op. cit., pp. 190-1. 175. Luis Felipe Baeta Neves, op. cit., p. 63. As pp. 30-3, o autor faz uma bela ané- lise do descobrimento como o reencontro de regides secretas, dominadas pelo demdnio: “Néo seriam abismos, monstros, mares, apenas obstaculos, provas que seria necessario vencet —para que se pudesse reconquistar as regides ‘cafdas’?”. 176.*Carta do padre Lufs da Gra a santo Inécio” — 27-12-1553, in Serafim Leite, S.J,,op.cit.,p. 163. 95 infernoou labirinto, unscantam, outros choram, outros comem, outros fazem farinhas e vinhos, etc. e toda a casa arde em fogos...”” Senhor das terras coloniais — como diz frei Vicente na epi- grafe —, 0 diabo nao entregaria o seu povo de mao beijada ao ini- migos a cada avanco da evangelizacao, ele esbravejaria, demoni- zando a natureza e se inscrevendo no cotidiano. Um rio caudaloso podia estar habitado por diabos: é 0 padre Jeronimo Rodrigues quem tece esta consideragao. Viajando de Paranagud para 0 Porto de Dom Rodrigo, deparou com um rio Sao Francisco “tao pertur- bado, que parecia andarem ali visivelmente os deménios, que ali fervia em pulos para o céu, que punha espanto”.”* Por todo o tra- jeto, procurou o deménio atrapalhar a viagem; nao tendo sucesso, “se meteu em uma baleia, ¢ tao bravamente nos seguiu pela esteira da canoa, que nos enfadou assaz”. Ora se aproximando, ora se afas- tando, a baleia endemoninhada apavorou os padres. “Eu, contudo, quando a vi tao perto e que trazia diante de si uma serra de 4gua, Jancei-lhe um pequeno Agnus Dei” $6 assim a baleia (deménio) se afastou.’” Quando, na missao dos Carijé, se preparavam os inacia- dos para celebrar as primeiras missas “e tomar posse, de parte de Deus, de gente que ele tantos mil anos tinha em seu poder’, Satands fez sentir sua forga. O dia estava trangiiilo, claro,“bonancoso”; mas quando, consertando o altar, os padres comegaram os preparativos para a missa que se realizaria no dia seguinte, “nao pode sofrer 0 177, Padre Fernao Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil, pp. 185-6. Luts Felipe Baeta Neves mais uma vez é feliz ao analisar esta passagem, que caracteriza como sendo de “uma sucessio de espantos” ante a desproporgao indigena, A norma e 0 equilibrio seriam, para os europeus, introduzidos com o aldeamento jesuitico. Op. cit., pp. 124-30, 178.“A missdo dos carij6s°, padre Jeronimo Rodrigues, in Serafim Leite, op. cits p.123, 179, Idem, pp.214-5. 96 “0s desaventurado, e ordenando uma tempestade de relampagos, tro- Voes, vento e chuva, parece que visivelmente que andavam os deménios, e que bem mostravam 0 sentimento que tinham com nossa vinda, e foi tao grande que, com estar a igreja mui bem coberta e de boa cobertura, nos molhou o ornamento, e frontal, e deu coma imagem de Nossa Senhora, do altar no chao, parece para ver se lhe podia quebrar a vidraga e nem bastou cobrir o padre 0 altar com peles”. Nao cessou af, entretanto, a malicia do deménio: no dia seguinte, milhares de moscas cobriram o altar eo padre — “foi cousa pasmosa” — durante a missa. Indubitavelmente, nas duas ocorréncias havia o dedo do diabo:“E passado aquele dia, em dois anos queali estivemos, nunca mais houve aquelas moscas nem aquelas tempestades...”" Por toda a colonia travava-se a peleja: “Neste lugar tivemos muitos combates do deménio e ainda agora temos', escrevia anos antes, de Sao Vicente, o padre Pero Correia," E basicamente na relagao com o sobrenatural que o homem da colénia paga tributo ao diabo e confirma seu cardter de huma- nidade diabélica. Assaltados por ilusées fantdsticas, os pobres indios — diz Thevet — vivem aterrorizados, temendo 0 escuro e levando consigo um fogo quando saem a noite. As ilusoes nao podem ser explicadas pelo raciocinio, pois os indios sao destitus- dos da verdadeira razao: explicam-se pela incansdvel perseguicao que move o Maligno contra aqueles que nao conhecem Deus,"* Induzidos ao erro pelo Maligno, incapazes de discernimento por 180. Idem, p. 220. 181, Carta de Pero Correia — 18-7-1554, in Serafim Leite, op. cit, p.174, 182."E coisa deespantar que,apesar dendo serem racionais, esses pobreshomens, Pelo fato de estarem privados do uso da verdadeira razao e do conhecimento de Deus, estdo sujeitos a viriasilusGes fantésticas, e perseguices do espitito maligno. Dissemos que por aqui acontecia coisa semelhante antes do adventa de Nosso Senhor: pois oespirito maligno s6 seesforga para seduziredepravaractia. {tra que esté fora do conhecimento de Deus.” Thevet, Les singularitez.,p. 168, 97 serem privados de razdo, os indigenas atolam-se mais e mais no engano da idolatria: adoram o diabo através de seus ministros, os pajés, “pessoas de mé vida, que se dedi¢aram a servir 0 diabo para receber seus vizinhos”” Ao descrever uma ceriménia indigena comandada pelos pajés — e com a qual confessa ter ficado encan- tado — Lérya relaciona Aquilo que mais assombrava o imaginario das populacées européias seiscentista: 0 sab das feiticeiras.'* Fes- tivo, condenado, ameagador — nas palavras de Certeau —, 0 mundo do além “reaparece, exilado, no fim do universo, nas bor- das extremas da empresa colonial”. No Novo Mundo, o explora- dor-missiondrio funcionaria como funcionava, do outro lado do Atlantico, o seu colega exorcista: “Infelizmente, ainda nao se estu- dou de forma sistematica a literatura de viagens como um imenso complemento e deslocamento da demonologia. E entretanto, nelas se encontram as mesmas estruturas”."* Constatada nos habitos e na vida cotidiana, contirmada nas préticas magicas e na feitigaria, a demonizacaio do homem colonial expandiu-se da figura do indio— seu primeiro objeto — para ado escravo, ganhando, por fim, os demais colonos. Para se esquivarem dos castigos rigorosos, os escravos negros recorriam a “artes diabé- licas”* No inicio do século xvi, temendo revoltas escravase enxer- gando sublevacGes por toda a parte, Assumar via nas Minas — nervo da economia colonial portuguesa setecentista — a propria natureza sendo insuflada pelo clima de rebeliao. Tudo era frio naquela capitania,exceto 0 vicio, semprea arder:“A terra parece que evapora tumultos; a 4gua exala motins; 0 ouro toca desaforos; des- 183. Thevet, op. cit, p. 172. 184. Léry, op. cit., p. 71. 185. Michel de Certeau, “Ethno-graphie—l’oralité, ou espace de autre: Léry’, in op. cit., pp. 243-4. 186. Antonil, op. cit., pp. 163-4. 98 filam liberdade os ares; vomitam insoléncias as nuvens; influem desordens os astros; 0 clima é tumba da paz e berco da rebelifio; a natureza anda inquieta consigo e, amotinadal4 por dentro, é como no inferno,” diria o governador. Inquietos, rebeldes, os colonos das Minas e os escravos excessivamente numerosos punham em revoltaa prépria natureza, A possibilidade da tomada de conscién- cia da condigao colonial reiterava no Brasil sua condi¢ao de um grande inferno, nao se salvando nem a natureza que, em si, isolada- mente, era edénica, A catequese e as medidas “normalizadoras” das autoridades coloniais e dos dignatérios da Igreja, a aga do Santo Oficio soma- ram esforcos no sentido de homogeneizar a humanidade inviavel, animalesca, demonjiaca do Brasil colonial. Cumpria “corrigir 0 corpo do Brasil’, afastar as populagdes do deménio caproximé-las de Cristo,'*amansando-as."” Em 1535, antes mesmo que viessem os jesuitas, na Carta de Doacaio a Pero Lopes, d. Joao mestabelecia que se deveria trazer a fé catélica os idélatras e infigis da colénia a fim de se povoar e aproveitar a dita terra, punindo hereges, sodo- mitas, falsdrios com pena de morte, dando-se a sentenca e execu- 40 “sem apelacao, nem agravo”. O proprio poder real se anteci- pava a Igreja na tarefa de conter as hostes do demo e converter 0 inferno em paraiso, mesmo que terrestre. Seria o inferno um destino? Em 23 de julho de 1763, Domin- gos Marinho, natural de Vila Rica, confessava junto a Inquisicao que, por padecer de “algumas enfermidades”, chamara a curan- deira Maria Cardosa e seu afilhado Antonio, de dezesseis anos, 187. Apud Sylvio de Vasconcellos, Mineiridade — Ensaio de caracterizagio, Belo Horizonte, 1968, p. 25. Grifo meu, 188. Luis Felipe Baeta Neves, op. cit., pp. 134 e 58, respectivamente, 189. Gandavo, Histéria da provincia de Santa Cruz, p. 131. 190. Carta ded. Jodo m, Evora, 21-1-1535,apud frei Gaspar da Madre de Deus, op. cit., pp. 258-72. 99 ambos pretos forros. Estes fizeram varias oragbes, correndo-lhe 0 corpo com uma pedrinha branca, depois com uma navalha amar- rada com novelo de algodao. Rezaram ainda para a Santissima ‘Trindade, para So Domingos, para Sao Francisco, falando “na sua \ingua’. Domingos Marinho estava arrependido, ou pelo menos dizia estar. No final da confissao, declarou: “Estas Minas estao bas- tante infectadas do Deménio”.* Atemorizado, Domingos falava com a voz da Inquisigao, dos poderes estabelecidos. Morava nas Minas Gerais, que, indubitavelmente, sintetizaram a colonia no século xvul. Vinte e seis anos depois, a Inconfidéncia mostraria com sangue —sempre ele— como 0 indio-bicho ¢ 0 indio-diabo haviam se fundido no corpo danado do colono em. busca da cons- ciéncia da condigao colonial. Ea colénia continuaria inferno pelos deménios interiores que, felizmente, continha. COLONIA, COLONIZAGAO: O PURGATORIO POSSIVEL Em A divina comédia, Dante Alighieri fixou definitiva- mente a imagem do Purgatério, dando-lhe inclusive existéncia geogréfica: era uma montanha onde as almas pagavam seus peca- dos, purgando-se deles e esperando a salvagao possivel que viria com 0 Juizo Final. Mas até se corporificar namontanha de Dante, o Purgatério atravessou um longo percurso, construindo-se a partir de elaboragdes mentais, sonhos, projegdes do imagindrio europeu fundidas a tradigdes milenares originarias do mundo 191. 1ANTT, Inquisicao de Lisboa, Caderno do Promotor, n. 126, fl. 413. Foi o his- toriador Luis Mott quem encontrou esta passagem, “uma perolazinha’,conforme me escreveu. A ele, pois, devo a gentileza desta indicagao. 192. Ver aeste respeito o meu capitulo “Minas Gerais, a sintese da colénia’, Laura Vergueiro, Opuléncia e miséria das Minas Gerais, 2. ed., Sao Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 75-9. 100 antigo. Para tecer o Purgatério, entremearam-se os elementos da cultura erudita e os da popular. Entre 1150 e 1250, afloraram com vigor as crengas populares, ganhando os serm@es eruditos, colo- rindo as hagiografias, emprestando tradi¢Ses a propria formula- 40 erudita do Purgatério. Mesmo atuando nesse processo, a ima- ginacdo popular nunca deixou de ser vista como ameacadora, como algo a que se devia resistir: os concilios que institucionali- zaram o Purgatério — Liao (1274), Florenga (1438) e Trento (1563) — tenderam a manter todo o rico imagindrio do Purgat6- tio fora dos dogmas e das verdades da fé, acentuando 0 fosso entre cultura popular e cultura erudita."” O Purgat6rio atenuava a tensao terrivel de ter 0 destino inexo- ravelmente amarrado as duas possibilidades extremas representadas Pelo Inferno e pelo Parafso, Era uma chance que se abria para cris- ‘Go, possibilitando a corregao do desvio, o perdao do pecado come- tido, Passou a ocupar papel tio importante namentalidade crista que uma santa especial foi escalada para atender aos apelos e oracGes encaminhados as almas que nele se encontravam: santa Lutgarda. A Idade Moderna nascente viu-se as voltas com formulagoes de um mundo ds avessas, indicativas da vertente pessimista do Renascimento de que se falou acima. A loucitra foi um dos objetos privilegiados desses discursos, conforme mostrou Michel Fou- cault; imimeros ensaios criticos celebraram-na: 0 Elogio a loucura, deErasmo; Dom Quixote, de Cervantes: La horade todos...,de Que- vedo; 0 Criticén, de Gracin; LOspidale de’ pazziincurabili [Ohos- Pital dos loucos incuraveis], de Garzoni; a Nave dos loucos, de Sebastian Brant. 193. Esta €a posicaio de Jacques Le Goff em La naissance du Purgatoire. As pp. 404-5 autor deixa claro que as penas de préticas magicas sero purgadas no Purgatério, este novo espaco geogréfico que nascia garantindo as massas um lugar no Além, 194, Jean Delumeau, Le péché et la peur, p. 143, 101 Como objeto do imaginério, a nau dos insensatos emergiu no Renascimento, “estranho barco bébado que navega ao longo dos calmos rios da Renania e dos canais flamengos”."* Tratar-se- ia de composigao literdria inspirada no velho ciclo dos argonau- tas e vivificada naquela época através de sucessivas criagdes, dentre as quais a Narrenschiffde Brant: “Estava na moda a com- posicdo destas naves, cuja tripulagéo de heréis imaginérios, de modelos éticos ou tipos sociais era embarcada para uma grande | viagem simbélica que Ihes trazia fortuna ou, pelo menos, @ figura de seu destino ou de sua verdade”.® Ao contrario de tan- tos outros barcos imagindrios, a Narrenschiff teve existéncia real, levando sua carga de insensatos de um lugar a outro. Era comum, na Alemanha, confiarem-se loucos aos barqueiros, para que os levassem. Oslocais de peregrinagio, 0s locais de passagem (encruzilha- das) eas feiras eram também lugares para os quais se levavam lou- cos: talvez estes navios de insensatos fossem barcos de peregrina~ gao."” Largados nestas paragens, “perdidos’, os loucos purificavam com suaauséncia os locais donde eram originarios. Mas sua expul- sao nao significava apenas medida de utilidade social ou de segu- ranga dos cidadaos; ela se aproximava do rito, inscrevendo-se entre outros exilios rituais. O papel dadgua esua relacao com aloucura éfundamental no universo onirico do homem europeu. Enquanto o leva para longe, 4 dua purifica o louco; além disso, a navegago abandona © homemaincerteza de sua sorte:“Cada um € confiadoa seu proprio destino, todo embarque é, potencialmente, o ultimo. E para o 195. Michel Foucault, Histoire de la folie a l’Age Classique, Paris, Gallimard, 1972, p.18. 196. Idem, p. 19. 197. Idem, p. 20. 102 ra wa no ge, 10 tio 20 72, outro mundo que parte o louco, no seu louco bote; é do outro mundo que vem quando desembarca”.* Preso num navio, “o louco € confiado ao rio dos mil bracos, ao mar dos mil caminhos, a esta grande incerteza exterior a tudo. E prisioneiro no seio do mais livre e aberto dos caminhos, solidamente acorrentado a infi- nita encruzilhada. E 0 passageiro por exceléncia, ou seja, 0 prisio- neiro da passagem. |...] Sua verdade e sua patria sfo essa extensao entre duas terras que nao lhe podem pertencer”” Em fins do século xv1, quando jé iam cem anos do descobri- mento da América, De Lancre, 0 juiz-demonélogo, via no mar a origem da vocagao demoniaca de todo um povo:“O labor incerto dos navios, a confianga apenas nos astros, os segredos transmiti- dos, o afastamento das mulheres, a imagem, enfim, desta grande planicie convulsionada fazem com que o homem perca a fé em Deus eas sdlidas amarras da patria; livram-se entio ao diabo e ao oceano de suas incertezas”” Como De Lancre, Camées oporia a faina produtiva dos tra- balhos agricolas ao aleatério e imprevidente da aventura mart- tima: é este o tom da fala do Velho do Restelo, que um historiador liberal do inicio do século repensaria na forma de duas politicas 198, Foucault, op. cit.,p.22. 199.Idem, p. 22. Léry tem uma passagem modelar, neste sentido:“E de fato, como havia quase quatro meses que, sem aportar, nés sacudiamos e boiévamos no mar, tendo-nos vindo a mente por varias vezes que estavamos como que exilados, pare- ceu-nos que dali nunca mais sairfamos”. Op. cit., vol. 1, p.73. Grifo meu. 200. Idem, p. 23. Um outro comentério sobre as idéias de De Lancre: “Nao é de espantar que os marinheiros sejam traidores, inconstantes, imprevidentes, Maus agricultores, piores artesaos, os laburdanos nao amam sua patria, nem suas mulheres, nem seus filhos; no so nem franceses, nem espanhéis, ¢ seus costu- ‘mes ndo podem pois serem definidos’, Baroja, Les sorciéres et leur monde, p. 185. Sobreapersegui¢ao no Labourd, ver RolandVilleneuve, Le léau dessorciers, Paris, Flammarion, 1983. 103 nacionais: ade fixacio (d. Dinis) ea de transporte (d. Henrique), esta, infelizmente— diz —, tendo levado a melhor." A aproximagio entre De Lancre e Camoes nao é gratuita. De Lancre julgava crimes de feiticaria, infragdo enorme nos séculos xvte xvil. Camées cantava as proezas da expansao ultramarina e meditava sobre os destinos do povo luso, temendo pela inconstan- cia da atividade colonial. O mar, inconstante, levava para longe marinheiros temerosos, que se tornavam “prisioneiros da passa- gem’, ou passageiros por exceléncia, como viu Foucault. Levava também os filhos malditos de Portugal, aqueles que, em menor ou maior grau, haviam atentado contra a lei do Reino ou contra a lei de Deus: purgava, pois, a metropole de suas mazelas; era 0 “ergas- tulo de seus delingitentes”” Nos fins do século xv, a expansdo ultramarina levou assim a cabo uma fusao importantissima para a historia da cultura euro- péia: articulou, recombinando, as formulagGes européias acerca do Purgatorio, da funcao purificadora da travessia maritima e do degredo como purificagio — desdobramentos varios de um \ grande rito de passagem. |” Uma ver descoberto, o mundo colonial catalisava o proprio acesso ao Purgatério: com o ouro da América, Colombo pensava em resgataralmas pecadoras e Jeva-las ao Paraiso.” Desdeo inicio, pois,o mundo ultramarino associou-se, no imaginario europe, a 201. Antonio Sérgio,‘As duas politicas nacionais’,in Ensaios 1, Lisboa, 1972,p.63. 202, A.de Souza Silva Costa Lobo, Hist6ria da ociedade em Portugal no século XV, Lisboa, 1904, p.49. Dizo historiador:“As possess6es ultramarinas foram sempre para Portugal o ergastulo de seus delingiientes’. 203,“O ouro € 0 tesouro, ¢ aquele que o possui tem tudo o que necessita neste mundo, como tem também o modo de resgatar as almas do Purgatorio ¢ chamé- las ao Parafso”,apud Delumeau, Naissance etaffirmation de la Reforme, Paris, UE, 1965, p.54. ds Tegido em quese pagavam os pecados,o “terceiro lugar” de que,cri- tico, falaria Martinho Lutero, No ano de 1602, Manuel Godinho Cardoso escrevia o relato do naufragio da nau Santiago, ocorrido cerca de vinte anos antes. Trata-se de descri¢ao impressionante na qual os néufragos,amon- toados uns sobre os outros, apertam-se sobre um arrecife, espe- tando barcos ¢ jangadas que os viriam salvar. Conforme a maré Subia, iam se afogando os que nao sabiam nadar,“e os que sabiam também se afogavam, dilatando contudo um pouco maisa morte” Buscando o batel salvador, a 4gua pelo peito, muitos passaram a noite “em um perpétuo grito por razdo da frieza da gua e incom- Pativeis dores. Nao se ouviam outras vozes que de ais, gemidos ¢ grandes lastimas”™ Sem duivida, a descri¢do evoca os padecimen- tos das almas na montanha do Purgatorio. Este podia comecar coma propria travessia que levavaao mundo das colénias dealém- mar, assombrada sempre pelo pavor de monstros, de acidentes extraordinérios, da morte por doengas. Passando por atrozes sofrimentos, impregnando as embarcagées com um odor fétido, um quarto eaté um terco dos navegantes morria nas travessias viti- mados pelo escorbuto, verdadeira peste do mar, a “doenca crua e feia” de que fala o autor de Os lusiadas.* Discorrendo sobre a trégua que se acabara de firmar entre espanhdis e holandeses, frei Vicente acusava seu carter efémero e, mais uma ve7, desnudava com sagacidade as estruturas profundas do sistema colonial: esperavam-se “novas guerras nestas partes 204. Relagam do naufrdgio da nao Santiago ¢ itinerério da gente que dele e salvou, Escrita por Manoel Godinho Cardoso. Com licenca da Santa Inquisicao, em Lis- boa, impresso por Pedro Crasbeeck, ano mpctl. Apud Giulia Lanciani, op. cit. p. 137. A p. 18, diz a autora que existe outro relato do mesmo nauftagio devido a outro passageiro, ojesufta padre Pedro Martins, datado de Goa,9 de dezembro de 1586 —o queacusa, portanto,a data anterior do naufrdgio. 205. Ver Sérgio Buarque de Holanda, Visio do Parafso, pp.253-4, 105 transmarinas, que estas sao sempre as que pagam por nossos pecados eainda pelos alheios’, dizia.™ Estavam, pois, fadadas as colénias a servirem de imenso Purgatério aos pecados do Velho Mundo. Os detratores da América enxergaram-na quase sempre como Purgatério. Knivet nao foi propriamente um detrator, mas também nao edenizou a natureza. Longe da terra natal, nu, viven- do em desconforto, o companheiro de Cavendish cismava sobre os motivos que o tinham levado a deixar o certo pelo incerto:“Sentei- me e pus-mea pensar no estado a que estava reduzido; lembrando o que eu tinha sido, comeceia amaldicoar o dia em que ouvio nome do mar;custava-me conceber como me aprouveabandonar minha terra natal, onde nada me faltava. Agora, via~me de todo desespe- rangado de rever jamais meu pats, ou algum cristao”.”” Faltavam mantimentos, e, quando se achava algum, os homens comiam até se atirarem pelo chao, vomitando, largados.™ No extremo sul da ‘América, 0 inglés padeceu com o frio: “Nossos homens se regela- vam; muitos deles perdiam os dedos do pé, como eu mesmo, pois numa noite em que me deitei com os pés molhados, perdi trés de meus artelhos num pé e quatro pontas no outro”.” Homens per- diam os pés inteiros, outros 0 nariz, como 0 ferreiro Harris. Reali- dade ou imaginacao, aquele era um lugar terrivel onde aconteciam coisas terriveis pelas quais, freqiientemente, eram responsaveis os homens com seus pecados. Na regio do Prata, 0 soldado Antonio Rodrigues e seus companheiros entregaram-sea toda sorte de des- mandos, desencadeando a célera divina: “Claramente sc vé ter Nosso Senhor permitido tantos males por nossos pecados’, diria 0 soldado-jesuita; “agora tenho desejos deser de vinteanoseterlonga 206. Frei Vicente do Salvador, op. cit., p.496. Grifos meus. 207. Knivet, op. cit., p. 86. Grifo meu. 208. Idem, p.72. 209. Knivet, op.cit., p. 153. 106 vida para ir com alguns padres da nossa Companhia, por eu ter mais experiéncia da terra e gastar as minhas forcas e vida em ensinar esta gente”? A terra conclamava ao pecado, e, simultaneamente, era o lugar em que este se purgava. - O Novo Mundo era inferno sobretudo por sua humanidade diferente, animalesca, demoniaca, e era purgatério sobretudo por sua condi¢ao colonial.A ele, opunha-sea Europa: metrépole, lugar da cultura, terra de cristéos. Na Europa, pois, o Céu era mais pré- ximo, mais clara ¢ inteligivel a palavra divina. Na colénia, tudo se esfumacava e se confundia: “A letra, que por essas partes me pare- cia clara, cd se me torna obscura, nao sei se sera de andar entre gentes que continuamente se comem uns aos outros e andarem envoltos em sangue humano”, diria o padre Azpilcueta Navarro, distribuindo assima verdade da féeasua negacao de ume de outro lado do sistema colonial." Cabia a Europa-metropole resgatar os americanos do mundo de perdi¢ao e pecado em que viviam, cor- tigindo o. A catequese era u veiculo da funcao salvacionista metropolitana, mas, caso se mostrasse insuficiente, os naturais da terra deveriam ser afastados do espaco pecaminoso em que esta- vam submersos: a col6nia era sempre um perigo, e,encravado nela, 0 colégio jesuitico aparecia como oisis de salvacao. Nébrega é 0 formulador genial desta posi¢ao: Nesta terra, Padre, temos por diante muito ntimero de gentios, e grande falta de operdrios. Devem-se abracar todos os modos poss{- veis de os buscar, perpetuara Companhia nestas partes, para reme 210.“Antonio Rodrigues, soldado, viajante ejesuita portugués na América do Sul no século xv1”, pp. 64 e 69, respectivamente. 211. “Carta do padre Joao de Azpilcueta Navarro aos irmaos de Coimbra”, Porto Seguro, 19-9-1553, in Serafim Leite, S. J., Novas. cartas jesuiticas, p. 155. Sao noté- veis os trés primeiros pardgrafos desta carta. 107 diar tanta perdigao de alas. B se aqui € perigoso crid-los, porque tém mais ocasides, para nao guardar a castidade, depois que se fazem grandes, mandem-se antes deste tempo a Europa, assim dos mesticos, como dos filhos dos gentios, ¢ de ld nos enviem quantos estudantes moos puderem para cd estudar em nossos Colégios, por- que nestes nia hé tanto perigo...” Para tanto pecado, nao ha caminho certo sendo o da durezae 0 do castigo. Nébrega acusava o bispo da Bahia de excessiva tran- “O Bispo leva outros modos de proceder com os quais creio que nao se sigéncia, inadequada ao grande Purgatério que era a colonii tirarao pecados e se roubard a gente de quanto dinheiro puderem ganhar, e se destruird a terra. Seus clérigos absolvem quantos amancebados h4e dao-lhes o Senhor eo seu pregador, que € 0 visi- tador, prega que pequem ese levantem fazendo-lhes o caminho do céu mui largo e Cristo Nosso Senhor diz que é estreito...”?" £ mais uma vezo genial jesuita quem percebea dupla fungao dacolénia como Purgatério: extirpar pecados, purificando almas; garantir a continuidade da producao de riqueza através de uma populagdo purificada, isto é normalizada. Sem ganhar dinheiro, se destréia terra: a coldnia perde o sentido se nao produz riqueza, pois éestaasua fun¢ao primordial. Hé que padecer, produzir o pao com o suor do rosto: este € 0 papel do homem no vale de lagrimas da vida terrena, Nada se alcanca sem esforgo, pois éestreito o cami- nho do céu. Um século e meio depois, outro jesuita genial completaria 0 pensamento de Nobrega. Ao tratar do processo de limpeza e puri- 212.“Ao Pe. Geral, Diogo Léinez” — Sao Vicente, 12-6-1561, in Serafim Leite, S. J.,0p.cit., p. 109. Grifos meus. 213.“AoPe. Mestre Simao Rodrigues” —Sao Vicente, 12-2-1553,in Serafim Leite, $.Joop.cit. p.35. 108 ficagao do caldo de cana, Antonil dizia que o objetivo méximo era aproveitar cada gota do liquido: “Desta sorte,nem umass6 pinga se perde daquele doce licor, que com bastante suor, sanguee lagrimas Custa para se ajuntar”* Purgar o agticar — género mais nobre da colonia seiscentista — era trabalho condizente com o purgatério colonial; purgando-se o produto, purgavam-se almas, Mas a purgacao nao ¢ indistinta, nem incondicional. Melhor agticar € 0 que demora mais tempo purgando: “Se purgar apressa- damente, render pouco”. Quanto melhor a cana, menor o tempo de purgacao. Do processo depuratério nao sai apenas 0 agucar limpo, puro, alvo: sai também o mascavado, moreno. E, contradi- sao das contradigoes, é 0 barro escuro e sujo que propicia a feitura do agticar branco elimpo:“Nem carecede admiragao o ser o barro, que de sua natureza é imundo, instrumento de purgar o acticar com suas lavagens, assim como coma lembranga do nosso barro, €comas lagrimas se purificam e branqueiam as almas, que antes eram imundas”*” A transparéncia da analogia entre o purgatério de almas e 0 purgatério do agticar nao deixa sombra de divida: homogeneizar a populacao através da catequese e produzir géne- os rentaveis no mercado externo eram as duas grandes modalida- des purgatérias do purgat6rio colonial, deviam ser levadasacabo aferro ¢ fogo, misturando sangue, suor e lagrimas, dispensando — paradoxalmente — a dogura e nao medindo o rigor necessdrio & consecucao desta tarefa maior. Na justificacao teol6gica do sistema colonial, mais uma vez 0 Brasil é colonia-purgatério, Nela, portugueses cristaos se viram as voltas com a escravizacao do seu semelhante, c, nesta coutradigao maxima, teve grande peso o papel da Igreja como formuladora e veiculo de uma teologia justificativa. Eduardo Hoornaertanalisou 214. Antonil, op. cit., p.203, 215. Idem, pp. 217-9. 109 com brilho o papel de Vieira neste sentido: o jesuta “comparava a Africa ao inferno, onde o negro era escravo de corpo e de alma, 0 Brasil ao purgatério, onde o negro era liberto naalma pelo batismo, ea morte entrada no céu”. O Brasil seria uma espécie de transi¢ao entre a terra da escravidao e do pecado (a Africa) e 0 céu, lugar da libertagao definitiva: parao escravo,asa(da parao céu eraasolusao, aescravidao sendo interpretada por Vieira como uma pedagogia."* Explicagao possivel, a leitura de Hoornaert me parece, entre- tanto, incompleta. Talvez a melhor formulagao esteja ainda em Antonil, que escreveu alguns anos depois. Dotado de mentalidade mais moderna, afeita ao capitalismo nascente, atenta ao papel do trabalho produtivo, o jesuita italiano veria com maior corregao a estrutura do sistema colonial. “O Brasil ¢ inferno dos negros, pur- gatério dos brancos e paraiso dos mulatos e das mulatas”, diria numa sintese lapidar.” Contrariamente a explicagao de Vieira — onde ha saida para o escravo, através da morte —, o escravo nao tem saida possivel no universo do sistema colonial. Inferno nao é apenas 0 continente africano, imerso no pecado; inferno é o lugar do qual nao se sai nunca, nem coma morte:a fogueira infernal arde eternamente. Para tentar resolver o impasse desta irreversibili- dade, o homem europeu concebeu a idéia de um terceiro lugar: a montanha do Purgatério, ondeasalmas penavam até 0 Juizo Final, podendo, entao, ganhar os Céus. No século xv1, o Purgatério era uma realidade, uma esperanca para o cristo. Escravidao era, pois, o inferno necessdrio da metrépole na 216. Eduardo Hoornaert, A Igreja no Brasil-colénia, pp.75-6.O autor cita Vieira, explicando-o entre parénteses: “Jé me persuado sem diivida que o cativeiro da primeira transmigragao (da Africa para o Brasil) 6 ordenado por Sua Misericér- dia paraaliberdade da segunda (do Brasil para o...céu)”,p. 76. Trata-se desermao de Vieira pregado para os imaos de uma irmandade do Rosétio dos Pretos no Recbncavo Baiano, em 1663. 217. Antonil, op.cit., p. 160. uo colénia. Nao havia resgate possivel: sem escravos, o mundo colo- nial sogobraria. A saida do escravo através da salvacao era poisarti- ficio ideolégico abracado, entre outros, por Vieira. Num autor mais moderno e mais vincado por préocupacées econdmicas, este artificio desaparecia, cedendo lugar a uma transparéncia, A cold- nia era mesmo o inferno dos negros. Para os brancos, o sistema conferia miltiplas possibilidades. Camada dominante, dava as cartas no sistema colonial, estabelecia a ligagao entre a terra danada da colonia e a metrépole — que, se nao era o parafso (e as vezes chegava a sé-lo), tinha pelo menos 0 Céu mais proximo de si." Quando oneroso, inadaptado ou indese- jado na metrépole, tinha a possibilidade do purgatério colonial. Mesmo quando excessivamente penoso, o viver em colénias dei- xava aberta a possibilidade de retorno a condi¢ao de habitante da metrépole. O degredo foi o mecanismo maximo pelo qual os bran- Cos portugueses purgaram seus pecados na colénia-purgatério, Eo paraiso? Este excluia o sistema colonial, cra a negagau a evitar. Paraiso sé para mulatos: homens que nao viviam inferna- dos em cativeiro, que haviam safdo dele e contra ele se voltavam, negando muitas vezes o trabalho sistematico, inventando na mes- tigagem e na especificidade do seu viver uma nova condic¢ao. Sua existéncia era o grande ensaio paraa supressao do sistema, e Anto- nil vislumbrou que deles seria o paraiso, mesmo que, no inicio do século xviii, isso fosse apenas uma possibilidade. Purgatério de brancos através do degredo foi a colonia desde 218. A metr6pole podia parecer Paraiso, mas nao era. Dizia o autor de A nova gazeta alema: “Sob a coberta do navio esta carregado de pau-brasil, ena coberta cheio de escravos, rapariguinhas e rapazinhos. Pouco custaram aos portugueses, Poisna maior parte foram dados por livre vontade, porque o povo dellé pensa que seus filhos vo para a Terra da Promissao”, A nova gazeta alema — O valor etno- grafico da Newen Zeytung Auss Presillo Landt, Joaquim Ribeiro (ed.), Rio, Record, sd. tiragem limitada, p. 50. m1 seu nascimento, e mesmo antes dele. Antes de se descobrir 0 Bra~ sil, reza a tradicao — real ou imaginaria, pouco importa — que nele ja vivia pelo menos um degredado: 0 lendario Joao Ramalho, 3 aqui chegado por volta de 1490.”” Em varias passagens, Caminha | menciona os degredados que vieram na esquadra de Cabral: Afonso Ribeiro, criado ded. Joau Telo, uzandado pelo capitao para junto dos indios “para l4 andar com eles e saber de seu viver e [das suas] maneiras”;” outros dois, que nado nomeia (seria um deles 0 proprio Afonso Ribeiro?), e que deveriam ser deixados na terra descoberta para entenderem a fala dos indigenas, tornando-se _ assim linguas.” Compenetrados de seu papel, i percurso da purga¢ao, comungando junto com os companheiros iaram o longo que partiam.”* A 2 de maio, conforme se afastava a esquadra para Calicute, ficaram na praia chorando.” Assunto pouco estudado, o degredo propiciou interpretacdes equivocadas.” Contribuiu inclusive para a formagao de andlises deterministas, pessimistas e veladamente racistas como a de Paulo Prado, que procura explicar uma infeliz trajetéria nacional pelo fato de ter convergido para o Brasil “toda a escuma turva das velhas goes". Colonizada por um povo “jé gafado do germe da decadéncia”, a colonia brasileira acentuou o desfibramento dos 219. Frei Gaspar da Madre de Deus, op. cit., p.361.“Se pois naerade 1580 contava Joao Ramalho alguns noventa anos de residéncia no Brasil, segue-se que aqui entrou em 1490, pouco mais oumenos” 4 220. Carta de Pero Vaz de Caminha, in Carlos Malheiro Dias, op.cit., vol 1, p.90 As pp. 94-5, nova referéncia a Afonso Ribeiro. 4 221. Idem, p.97. | 222. Idem, p.99. } 223. Capistrano de Abreu, O descobrimento do Brasil, p.29, Paulo Prado, Retrato 1 do Brasil, p.159, ‘ 224. Um estudo sério delineia-se em “Primeiros povoadores do Brasil’ deEmilia. | Viotti da Costa, in Revista de Histéria, xin, n, 17, S40 Paulo, 1956, pp. 3-22. 225. Paulo Prado, Retrato do Brasil, p. 155. m2 homens: da “degenerescéncia do além-mar” s6 escaparam “os gru- Pos étnicos segregados e apurados por uma mesticagem apro- Priada” (sic).”* Numa leitura literal dos cronistas coloniais, Paulo Prado perpetuou assim a imagem da humanidade colonial invig- velo degredo sendo um dos principais elementos desqualificado- Tes nesta explicacio. Mesmo viciada, sua percepcao vislumbrou, entretanto, o complexo Inferno-Purgatério-Paraiso que o sistema colonial cimentava: “O Portugués transplantado sé pensava na Patria d’além-mar: o Brasil era um degredo ou um purgatorio”” Como exilio ritual, 0 degredo se inscrevia em tradices mile- nares Presentes no imaginério europeu; na Epoca Moderna, o sis- tema colonial imprimiu-lIhe novo significado. O ato purificador continuava sendo o cerne da questao, mas agora em novo con- texto, articulando metrépole e mundo colonial. Passageiros medievais da nau dos insensatos, os leprosos portugueses passa- ramaser deportados para Cabo Verde, onde se curariam comendo tartarugas e se lavando com seu sangue.”* Durante todo 0 periodo colonial, a tendéncia foi a de se fazer Purgarem os pecados ¢ as penas mais graves em partes outras do queaquelasem que se cometeram asinfracdes. Os descaminhos de tabaco realizados no Brasil eram punidos com 0 degredo em Angola.” Réus incursos nos crimes processados ¢ punidos pelo Tribunal da Inquisicao vinham freqiientemente cumprir suas Penas no Brasil, ou iam para Angola ¢ outros pontos da Africa, A relagdo entre os crimes e 0 local da purgacao variou durante ° 226, Idem, p. 194, 227. Idem, p. 198. 228. Todorov, La conquéte de Amérique, pp.25-6, 229,"Qualquer descaminho do tabaco, por qualquer destas partes do Brasil, fora do registro e guias, debaixo do que tudo vai despachado, tem or pena a perda do tabaco eda embarcagdo em que seachare mais cincoanosdedegredo para Angola a0 autor desta culpa’, Antonil, op. cit, p, 252, 13 periodo colonial. Uma primeira abordagem permite constatar que, no decorrer do século xvii, réus de feiticaria eram preferen- cialmente enviados para o Brasil; no século seguinte, os feiticeiros portugueses passarama cumprir suas penas nas ilhasatlanticas ou, com maior freqiiéncia, nos coutos existentes em territério metro- politanu. Coincidentemente, no século Xvi, repensava-se © sis- tema colonial.” Definido na sua relagao com o sistema colonial, o purgatério. tinha ainda existéncia geografica, espacial. “Desterrados da mais vile perversa gente do Reino” vinham para o Brasil, e era necess4- rio que assim fosse. Mas para evitar que tudo descambasse numa humanidade invidvel, seria preciso procurar “povoar de melhor gente, do que até agora tem vindo a ela’. Jaboatao da noticia da desordem imperante no Espirito Santo nos primeiros tempos da coloniza¢ao, e& qual concorriam tanto 0 mau governo como “a demazia dos costumes”: “vinham para estas partes naqueles principios, menos algumas pessoas nobres, e de distingao, gentes mal domadas, uns por crimes, outros por degre- dos, e assim viviam, como homens irregulares, dados a todo género de vicios..”. Nao tardou a purgagao:“As desordens da natu- reza sempre acarretam castigos do Céu’, e estes chegaram na forma da guerra movida pelo gentio contra os colonos brancos.”” Toda a argumentacao de Gandavo est centrada na idéia de que é necessério purgar a metrépole de suas mazelas através da colonizacao, que deve funcionar como atrativo —daiaedenizacao da natureza —a gente desclassificada. Respondendo a alegacao de 230.Comoeste assunto sera objeto de outro capitulo, deixo para depois o seuapro- fundamento, e também a citagdo dos processos que fundamentam a hipotese. 231.“A Santo Indcio de Loiola” — carta de Nébrega de So Vicente, 25-3-1555, apud Serafim Leite, op. cit.,p. 60. 232. Jaboatdo, op. cit., vol, p.75. m4 Alviano de que “o Brasil se povoou primeiramente por degreda- dos’, Brandénio avanga um pouco mais: no purgatério colonial, corrige-se a md natureza do homem metropolitano: “Deveis de saber que esses povoadores, que primeiramente vieram a povoar 0 Brasil, a poucos langos, pela largueza da terra deram em ser ricos, €com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pohrezas que padeciam no Reino os faziam usar. E 05 filhos dos tais, j4 entronizados com a mesma riquezae governo da terra, despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradissimos termos...” diria.™ Lugar da purgacio,a coldniaate- nuava os pecados conforme avangava 0 processo colonizatério; quanto maior a harmonia entre a atividade desenvolvida e 0 inte- Tesse metropolitano, mais rapida seria a purgacao: o esforco ope- toso dos bons colonos alargava-lhes assim 0 caminho dos Céus, bloqueado para o escravo negro. Filho de nacao capitalista, Jodo Mauricio de Nassau percebia com nitidez nem sempre encontrada nos portugueses 0 papel da colénia como purgatério e ergdstulo de delingiientes. Caracteri- zava o Brasil como “uma terra fértil e um pais venturoso”; mas ajuntava: “Sem colonos nem podem as terras ser titeis 8 Compa- nhia, nem aptas para impediras irrupcées dos inimigos. Se por este modo nao se puder realizar a sugestio, desejaria eu que se abrissem as prisdes de Amsterda e se mandassem para cd os galés, para que, tevolvendo a terra com a enxada, corrijam a sua improbidade, lavem com o suor honesto a anterior infamia e nao se tornem molestos a Republica, mas titeis”” Purgando pecados, limpandoa Europa,a coldnia viabilizava a metamorfosedo onusem utilidade. Areversao sé era possivel, entretanto, através de grande esforco: 0 233, Ambrésio Fernandes Brandao, op. cit.,p. 155. 234. Carta do conde ao principe de Orange, apud Barléu, op. cit., pp. 45-6. us suor honesto— o qualificativo servindo, ao lado da visao ed de atenuante a aspereza do trabalho. Paraiso terrestre pela natureza, inferno pela humanidade peculiar que abrigava, o Brasil era purgatério pela sua relagao coma metrépole. Homens danados podiam alcangar os céus através do ) esforco honesto, do trabalho diario, da: sujeicao a vontade metropo- / litana. O sistema colonial perpetuava a purgacio: lanava sobre a | coldnia os elementos indesejaveis, prometendo-Ihes 0 Eden (como | no discurso propagandistico de Gandavo) e iniciando sua purifica- \ ao através do exilio ritual representado pela travessia atlantica. Uma vez em terras brasileiras, o colono sonhava com a metrépole distante e enxergava como passageira sua permanéncia no Novo Mundo: 0 paraiso prometido se transformava em Ppurgatério. { O céu do colono branco era o regresso a metrépole; 0 do escravo negro era a salvagao pela fé. Na vigéncia do estatuto colo- nial, 0 purgatorio de ambos podia se metamorfosear em inferno: Para 0 branco, caso recusasse o trabalho sistematico e abracasse 0 confronto com a metrépole, a rebeliao; para o negro, caso se fechasse no seu universo cultural, se aquilombando, voltando as costas a cristianizagao e ao endosso dos valores culturais e politi- cosdo colonizador, matando senhores, almejando aliberdade. Sair do inferno, ou mesmo do purgatério, implicava romper com a condicao colonial. Seria, para o branco, nao mais se consumir na faina didria queengrandeciaa metrépole, purgando agticare peca- dos. Para o negro, deixar de ser escravo e se tornar cidadao. No sis 235.0 dnus ea utilidade das camadas socialmente desclassificadas so tratados Por mim em “As metamorfoses do dnus e da utilidade”, Laura de Mello e Souza, Deselassificados do ouro—A pobreza mineira no século XVII, Rio, Graal, 1982, pp. 215-9. Ent outro artigo, avango um pouco na anilise da relacdo entre percep¢ao desta metamorfose e consciéncia capitalista. “Notas sobre os vadios na literatura colonial do século xv’, in Roberto Schwarz (org.), Os pobres na literatura brasi- leira, Sao Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 9-12. 6 tema colonial, negros viveriam sempre no inferno, e brancos em Purgatorio. Antonil foi cristalino na sua formulagao. Inferno e purgatério podiam se confundir, como acontecia na Europa. Descrevendo as intimeras torturas que consumiam as almas do purgatério, Le Goff definiu o “terceiro lugar” como um inferno com duragao determinada. O colono branco, através do “esforco honesto”, poderia, de certa forma, controlar a duragao do seu padecer. O escravo, cativo até a morte, se via fadado a eterni- dade dos suplicios: para ele, nao era possivel nem o purgatério. Neste ser e nao ser, nada definia melhor a condi¢ao de grande Purgatério do que o préprio estatuto de coldnia. Por isso, enquanto este perdurasse, haveria sempre um Purgatério no seio do sistema colonial. Natureza edénica, humanidade demonizada e col6nia vista como purgatério foram as formulacées mentais com que os homens do Velho Mundo vestiram o Brasil nos seus trés primeiros séculos de existéncia. Nelas, fiindiram-se mitos, tradi¢des euro- péias seculares e 0 universo cultural dos amerindios e africanos, Monstro, homem selvagem, indigena, escravo negro, degredado, colono que trazia em si as mil faces do desconsiderado homem americano, 0 habitante do Brasil colonial assustava Os europeus, incapazes de captar sua especificidade. Ser hibrido, multifacetado, moderno, nao poderia se relacionar com 0 sobrenatural senao de forma sincrética. 7

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