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Introdução .........................................................................................................................3
Bibliografia ....................................................................................................................254
Lista de Ilustrações
22. Homem dormindo numa canoa, desenho de William James, 1865 ......................85
1
Thurston, Robert, A History of the Growth of the Steam-Engine. New York, D. Appleaton & Co, 1878,
cap. 5 (http://www.history.rochester.edu/steam/thurston/1878/).
Introdução 4
um sistema de canais no Estado de Nova Iorque– o Erie Canal – ligou o Atlântico aos
Grandes Lagos, transformando a navegação a vapor no primeiro gigantesco
empreendimento comercial. William James de Albany – imigrante irlandês pobre e futuro
avô do famoso William James, que passeou pela Amazônia em meados do XIX - tornou-
se o primeiro milionário de Albany, especulando com terras às margens do Erie. Seu
legado proporcionou uma infância idílica e cosmopolita ao próprio James.2
Apesar do pavor inicial, o navio a vapor não parou de se vulgarizar, engolindo
combustível e distância. Em 1819, por exemplo, o primeiro barco à propulsão, o
“Savannah”, já completava, sem incidentes, a rota Savannah (Georgia)-São Petersburgo
(Rússia), via Grã-Bretanha e norte da Europa, em apenas 7 dias. No mesmo ano já
existiam vapores para a rota New Orleans-Havana (o empreendimento faliu e o governo
brasileiro comprou o navio, sem a máquina a vapor). Em 1825 o primeiro barco a vapor
completou a rota dos EUA-Europa-Índia, em 1843, Inglaterra-Austrália, entre muitas
outras.3 A partir daí as dimensões do que, em quais quantidades e quem podia se fazer
transportar mudou radicalmente.
Certamente não foi mero acaso que um dos pioneiros da idéia de atrelar
engenhocas propulsoras aos barcos tenha sido John Ficht, homem aventureiro e viajante
que tentava ganhar a vida por meio de projetos imaginosos, conforme ele próprio
propagandeava, em 1785, em Filadélfia, EUA, sublinhando que “... John Ficht,
atravessou o território a noroeste de Ohio, tanto na qualidade de cativo, pesquisador,
viajante e etc... como resultado de seus trabalhos, completou e agora vende, um novo
mapa destas terras...” Cansado de viajar a pé e a cavalo, em rotas intermináveis de uma
vida de constantes deslocamentos, o próprio Ficht, numa manhã particularmente
desanimadora, quando ele experimentava dificuldade de se locomover devido a um
reumatismo, teve a idéia de construir uma carruagem de propulsão, mas logo se
desanimou devido a impossibilidade de utilizá-la, dado o mau estado das estradas.
Ocorreu-lhe, então, a genial idéia de atrelar um mecanismo propulsor ao navio, plano este
que passou a obcecá-lo. No entanto, sendo um homem sem meios próprios, a tarefa de
construir uma máquina tão complexa lhe parecia inatingível. Apesar disso, ele não se
2
Feinstein, Howard M., Becoming William James. Ithaca: Cornell University Press, 1999, pp. 39-44.
3
Thurston, R., A History of the Growth of the Steam-Engine, cap. 5.
Introdução 5
sentia capaz de desistir, uma vez que em sua mente a idéia lhe parecia viável e todo o
plano de construção do vapor, ao mesmo tempo, tão simples e maravilhoso, que ele
passou a duvidar de seu próprio discernimento. Desesperançado de encontrar
justificativas razoáveis para sua conduta, Ficht afirmou: “Eu não conheço nada que
provoque mais perplexidade e vexação aos sentimentos de um homem do que uma esposa
turbulenta ou a construção de um navio a vapor ...” Segundo suas próprias suspeitas, ele
poderia estar “....o que eu chamo de Lunático, que é um trem de idéias desarranjadas...”,
segundo ele também, para construir uma navio a vapor “...é preciso um longo trem de
idéias, todas conectadas, e nenhuma parte deslocada...”4
A idéia de um mundo movido por um trem de idéias conectadas, cujos tendões
deslizam por sobre os oceanos e rios, viajando nos vapores, se fazendo transportar em
locomotivas, em forma de projetos gloriosos de desenvolvimento e progresso de todos os
lugares do planeta, mesmo os mais remotos, inspira este trabalho. Seu horizonte é o
universo dos planos de montagem e desenvolvimento de uma infra-estrutura de
transportes mecanizados da segunda metade do XIX, que apoiados nos capitais europeus
e norte-americanos, se materializavam em estradas de ferro, por exemplo, como a
construída na Província do Himalaia indiano, o Darjeeling, em 1880, ou ainda a Madeira-
Mamóre, ambas consideradas como as mais complexas estradas de ferro do mundo
jamais construídas. Mas, sua atenção se volta principalmente para consideração dos
projetos de estabelecimento da navegação a vapor, como a do Araguaia, estabelecida em
1868 e que almejava, como plano maior, transformar florestas e “desertos” em
verdadeiras utopias do capitalismo selvagem do XIX. Como notou Hardman, os
empresários das vias de transportes do XIX eram produto da combinação da imaginação
romântica com o espírito empreendedor e especulação financeira e se guiavam por uma
visão do mundo unificado e homogêneo, ainda mais ambiciosa do que aquela sonhada
pelo Renascimento.5
Apesar disso, as vias de transporte em si mesmas não são objeto de pesquisa
principal. Embora o interesse desta pesquisa pela história da construção de uma primeira
4
Westcott, Thompson. The Life of John Ficht. The Inventor of Steamboat. Philadelphia, J.B. Lippincott
& Co, 1875, cap.X (http://www.history.rochester.edu/steam/westcott/)
Introdução 6
5
Hardman, Francisco Foot. Trem Fantasma. A Modernidade na Selva. São Paulo: Cia das Letras, 1991,
p. 120.
Introdução 7
derrubar a floresta, se livrar dos índios, enforcando-os e povoar a Amazônia com negros
escravos – de preferência com aqueles que já viviam nos estados sulistas dos EUA. Desta
forma, pensava ele, se mataria dois coelhos com uma cajadada só: se livrava os EUA da
“maldição das raças” e se beneficiaria o Brasil, país tropical, com os cidadãos que melhor
se adaptavam às suas circunstâncias. O mentor deste plano visionário era também um
homem dos mares, Matthew Fontaine Maury - inventor do telégrafo submarino e do
torpedo naval – além de sulista ardoroso. Pensando em sua amada Virgínia, ameaçada de
sucumbir ao peso de escravos e abolicionistas, Maury elaborou o plano de transferir os
negros do sul dos EUA para a Amazônia, onde eles poderiam produzir os bens tropicais a
serem transportados pelos vapores norte-americanos (a bem dizer, sulistas), que
singrariam o Amazonas, desembocando no mar do Caribe e de lá seguiriam para o Golfo
do México. Todos estes territórios, nas visões grandiosas do patriota dos mares, seriam
peças do que ele chamou do “nosso lago” (ver Parte I adiante).
Mas Maury não pontificou no deserto – além do amplo apoio que ele carreou nos
EUA na década de 1850 - outros surgiram. No Brasil da década de 1860, Tavares Bastos
se tornou ardoroso admirador de Herndon e defensor obstinado da livre navegação do
Amazonas, posição que ele defendeu, com unhas e dentes, em artigos e livros. Couto de
Magalhães, defensor do progresso e nacionalista, encantou-se igualmente com a miragem
dos transportes, participando da navegação do Amazonas, fundando a Companhia de
Navegação do Araguaia e construindo, com capitais ingleses, a Estrada de Ferro do Rio
Verde – a Minas Railway. Ambos declararam-se nacionalistas ferrenhos; Couto execrava
os estrangeirismos e gostava de alardear que dormia em rede e falava tupi. Na verdade,
suas anotações e diários apontam para um mundo de percepções atravessadas pelas
angústias dos viajantes, que embora tudo vejam e conheçam, nunca estão totalmente lá.
Quem pensa em transporte pensa também na ligação entre lugares e na integração
entre pessoas. No entanto, no mundo dos planos grandiosos de construção das conexões a
vapor - trens ou locomotivas - cabia decidir quais seriam os embarcados e quem seria
deixado às margens do progresso. Neste sentido, um dos principais problemas com os
quais se avizinhavam os homens e as mulheres que planejavam trens e mecanismos ou
6
Pratt, Mary Louise, Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres: Routledge, 1992,
pp. 111-143.
Introdução 8
que, pelo menos, viajavam neles, na primeira classe, sonhando com selvas misteriosas e
rios caudalosos, era o problema da raça e o lugar que caberia aos negros, índios e
mestiços no mundo renovado pela velocidade do vapor. Para estes viajantes e para os
ideólogos do mundo rápido da pós-emancipação parecia caber decidir como rearranjar a
distribuição das cores e tons de pele da humanidade, de forma que se pudesse alcançar
uma nova configuração do mundo, com as “raças” colocadas, novamente, em seu devido
lugar. De certa forma, muitos dos ideólogos e militantes das Abolições pensavam que o
melhor seria fazer o mundo retroceder ao estágio anterior aos deslocamentos maciços de
índios e africanos, reorganizando a distribuição das raças na face da terra de acordo com
os pretensos ditames da Providência. Segundo os criacionistas e defensores das
províncias zoológicas, se Deus havia criado a flora, a fauna e o homem em nichos
ecológicos precisos, com que direito o próprio homem havia afrontado estes desígnios,
misturando climas e raças e ainda fazendo-as interagir? Para alguns dos abolicionistas e
pensadores racialistas do XIX, principalmente os da América do Norte, ao mal dos
deslocamentos de índios e negros, outro erro, ainda pior, apontava no horizonte do
mundo pós-escravidão, e este se chamava hibridismo ou mulatismo (mulattoism). Foi
procurando descrever os horrores da conspurcação do sangue ocasionada pela
mestiçagem que o abolicionista Howard Howe, em 1863 lançou a imagem do lago
cristalino no qual a adição de uma só gota de tinta, embora permanecesse invisível, ainda
assim o contaminava irremediavelmente. Desta forma, pensaram alguns - Herndon,
Maury, Agassiz, entre muitos outros – o melhor seria libertar os brancos, livrando-os dos
negros, que seriam enviados para terras tropicais, onde voltariam a habitar o lugar que
Deus lhe havia designado desde o início dos tempos. Muitos pensaram na Libéria como o
destino dos negros. Segundo alguns, porém, a Amazônia seria este lugar (ver Parte I
adiante).
Embora mais raramente, a viagem aos trópicos podia suscitar mais do que
reflexões pessimistas sobre os destinos de negros, índios e mestiços, sobre os horrores da
miscigenação ou reafirmar a necessidade da tutela das elites capitalistas
internacionalizadas para submeter e controlar os ritmos de trabalho e vida dos libertos.
Viajando pela Amazônia em companhia de Agassiz, William James, que, mais tarde,
fundaria o Pragmatismo, se dispondo a pensar num universo no qual as idéias, de certa
Introdução 9
forma, estavam sempre em seus lugares, uma vez que elas haviam sobrevivido ao
escrutínio do mundo exterior, mostrando a sua adequação explanatória ao mundo que as
cercava, parece ter aproveitado a oportunidade dos trópicos para observar o relativismo
das crenças humanas. Para o jovem estudante James, o deslocamento nos trópicos
significou, também, um deslocamento de perspectiva. Dormindo em redes e viajando de
montaria, James chegou a pensar que o mundo dos ribeirinhos era exatamente aquilo que
parecia ser. Nem pessimista nem otimista, James parece apenas ter viajado apreciando a
descoberta de outras formas de viver e pensar (a respeito ver Parte I).
Quem pensa em transportar pensa também, eventualmente, em integrar. À revelia
das crenças do determinismo geográfico e dos degeneracionistas que destinavam os
trópicos ao fracasso, homens como Couto de Magalhães, ao pensarem em seus planos
grandiosos de desenvolvimento das selvas, propunham a integração. Embora se encontre
nos discursos dos viajantes nacionais da segunda metade do XIX o vocabulário da raça e
da tutela, no fim das contas, sugeriam eles o embarque nas linhas do progresso das
populações não-brancas. Frente ao problema da Abolição, a discussão estratégica da
questão dos braços expandia-se. A campanha abolicionista, os debates parlamentares e os
textos da época indicam que se tratava de delimitar, principalmente, as possibilidades de
integração do chamado elemento nacional – aqui inclusos os desclassificados sociais em
geral – na construção de uma nação que buscava desvencilhar sua imagem das feridas da
instituição servil. As elites burocratizadas do Império e os pioneiros dos planos de
modernização das selvas, embora lessem e se reunissem a homens como Agassiz viam o
mundo com outros olhos (ver Parte II adiante ).
Além de propor novos papéis aos libertos e aos índios e mestiços, aquele de
trabalhadores disciplinados e construtores subalternos de uma civilização dos trópicos, os
intelectuais do Império tiveram que conceber uma origem dignificada para a nação e a
civilização brasileira. Para isto, tornaram-se eles próprios viajantes, delineando os mapas
da viabilidade brasileira, fundando mitos e buscando as origens das raças americanas. No
mundo que pensava nas possibilidades dos deslocamentos a vapor, idéias sobre longas e
misteriosas imigrações, de egípcios, turânios e arianos poderiam explicar os mistérios do
surgimento de uma raça americana. Se os intelectuais brasileiros pensaram nos Tupi
como a raça-mãe, eles a pensaram em relação à outras grandes civilizações indígenas
Introdução 10
americanas que, na segunda metade do XIX, por conta exatamente da vulgarização das
viagens, tornavam-se mais conhecidas (ver, adiante, Parte III).
No entanto, minha constatação de que a montagem de uma rede de transportes de
massa adquiria amplo e rápido impacto sobre vidas das pessoas que a experienciava
nasceu da observação dos distritos cafeeiros de São Paulo nas décadas de 1870-1880. Ao
estudar as revoltas de escravos de Campinas e adjacências, eu não pude deixar de
observar que a construção de estações ferroviárias locais haviam ampliado enormemente
a capacidade de organização dos movimentos de escravos. Os cativos e libertos logo
aprenderam a se utilizar amplamente delas. As quitandeiras e os carregadores, neste
sentido, começavam a reatualizar um poder que embora lhes fosse tradicional ganhava,
nesta conjuntura, aspectos ainda mais estratégicos devido ao fato deles estarem em
constante contato com os viajantes, com as redes de ajuda que se estabeleciam entre
ferroviários e escravos, deles terem acesso às notícias e jornais e estarem aptos a enviar,
pelos trilhos dos trens, mensagem e recados para seus iguais.7 No alvorecer da década de
1880, todo o movimento de escravos, sem dizer do movimento abolicionista, dependia
das estradas de ferro para se organizar.
Porém, na maior parte das vezes, os escravos, mesmo na década de 1880, fugiam
a pé e, apenas eventualmente, conseguiam guarita nas locomotivas que partiam de São
Paulo rumo a Santos. Ainda assim eram os trilhos dos trens os melhores guias dos
fugitivos, que das fazendas cafeeiras do noroeste da Província de São Paulo ou do Vale
do Paraíba pretendiam alcançar a Serra do Cubatão e de lá o Quilombo do Jabaquara. Na
cidade portuária, os libertos, além de mão-de-obra subsidiária e massa de manobra
política, tornaram-se também portuários, sendo expostos à experiência do outro lado da
moeda da navegação a vapor. O movimento portuário com suas lutas e ideologias teve
amplo impacto, para o bem e para o mal, na vida dos recém-libertos.
Tomando como mote a imagem dos grupos de escravos do sudeste cafeeiro que
em suas fugas seguiam os trilhos, porém a pé, buscou-se discutir as maneiras pelas quais
os afrodescendentes, que haviam sido alçados a questão política prioritária dos anos de
1880, foram sendo gradativamente descartados da cena política e alijados dos postos mais
7
Machado, Maria Helena P. T., O Plano e o Pânico. Os Movimentos Sociais na Década da Abolição.
Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Da UFRJ/Edusp, 1994.
Introdução 11
8
Dias, Maria Odila Leite da Silva, “Hermenêutica do Quotidiano na Historiografia Contemporânea”.
Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História da PUC de São Paulo, no. 17, novembro/1998, p.224.
Introdução 12
9
Bhabha, Homi K., O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998, 207.
Introdução 13
especialmente pela generosidade das palestras apresentadas nos meus cursos de pós-
graduação. A Marta Rosa Amoroso, do Departamento de Antropologia da USP, agradeço
também pelo apoio. Colegas de outras instituições, especialmente, Flávio Gomes dos
Santos, da UFRJ tem sido um interlocutor constante. Meus alunos de graduação, pós-
graduação e, especialmente meus orientandos, foram sempre presença constante na minha
vida e tem sido por eles que eu tenho procurado melhorar. Agradeço especialmente a
André Rosemberg – que colaborou na pesquisa – Alexsander Lemos Gebara e Enidelce
Bertin que colaboraram na revisão e formatação do texto.
Quero ainda lembrar minha dívida com os colegas das instituições estrangeiras
nas quais estagiei e que sempre me receberam com extrema hospitalidade. Em primeiro
lugar, Sueann Caulfield e Elizabeth Martins, a Bebete, do Latin American & Caribbean
Studies (LACS) ambas da Universidade de Michigan, são amigas e colegas que estão
sempre na minha lembrança. John Coatsworth (Diretor), Tom Cummins (Diretor
Provisório) e June Carolyn Erlick (Diretora de Publicações) do David Rockefeller Center
for Latin American Studies (DRCLAS) da Universidade de Harvard foram colegas mais
do que atentos. Ellen Sullivan do staff do DRCLAS também foi muito solícita. Bill Fash,
Diretor do Peabody Museum vem sendo um interlocutor compreensivo nas negociações
da Coleção Fotográfica de Agassiz. À Valéria Gauz, bibliotecária da John Carter Brown
Library da Universidade de Brown, agradeço a recepção calorosa em Providence.
Agradeço ainda os comentário apresentados por James Woodard sobre o texto do
Quilombo do Jabaquara na ocasião em que apresentei seminário no Boston Area Latin
American History Workshop em Cambridge em 2004.
Os funcionários dos arquivos e bibliotecas nos quais pesquisei foram sempre
solícitos e interessados. Lembro especialmente Tom Ford do Houghton Library, India
Spartz e Patricia Kervick do Peabody Museum e os funcionários do Arquivo do Estado
de São Paulo.
A José Carlos Sebe Bom Meihy, meu orientador de Mestrado, agradeço a
iniciação na pesquisa acadêmica e os muitos anos de amizade e compreensão. Deixo aqui
empenhada minha gratidão por uma orientação generosa que me ofereceu a oportunidade
de experimentar minhas próprias opções. Com o Zé Carlos compartilho até hoje o gosto
por temas inusuais e a coragem de perseguí-los.
Introdução 14
I well remember at night, as we all swung in our hammocks in the fairy-like moonlight,
on the deck of the steamer that throbbed its way up the Amazon between the forests
guarding the stream on either side, how he turned and whispered, “James, are you
awake?” and continued “I cannot sleep; I am too happy; I keep thinking of these
glorious plans.”
1
O texto a seguir representa um trabalho em andamento. A pesquisa no qual se baseia o texto foi
realizada no decorrer da minha estadia, como Brazilian Visiting Fellow, junto a Harvard University, nos
anos 2003-2004, parcialmente sob os auspícios FAPESP. Uma parte do texto apareceu como artigo
publicado na ReVista, David Rockefeller Center for Latin America Studies, Harvard University, fall-
2004/spring-winter-2005. Agradeço a edição e comentários de June Erlick.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 17
Durante sua estadia no Brasil, William James redigiu um diário pessoal, uma
narrativa de uma expedição de coleta no Rio Solimões, escreveu cartas dirigidas a seus
familiares, endereçadas a seus pais - Henry James Sr. e Mary Walsh James – seu irmão –
Henry James – e sua irmã, Alice James. Os papéis brasileiros de James formam um
conjunto de grande interesse, tanto para os estudiosos de William James, quanto para os
interessados no estudo da literatura de viagem do período, campo ao qual James
colaborou, construindo uma narrativa muito pessoal e independente daquela publicada
pelo casal Agassiz a esta expedição. A análise destes registros mostra que, apesar da
juventude de seu autor e dele se encontrar na expedição numa posição totalmente
dependente das ordens e decisões de Agassiz, o enfoque da viagem e da população com a
qual ele esteve em contato, composta sobretudo por mestiços da região amazônica, era
peculiarmente original. De fato, já neste período o jovem James mostrava os traços que,
mais tarde, foram seguidamente apontados pelos seus biógrafos como fundamentais à sua
forma de ver o mundo, quais sejam a empatia e o relativismo.
O material foi originalmente escrito em inglês em sua maior parte, mas consta do
conjunto um pequeno vocabulário tupi/nhengatu- português/inglês e uma carta escrita em
português. Apesar da fama de seu autor, na verdade os papéis brasileiros de James
continuam, até o momento, pouco conhecidos, com exceção das cartas deste período,
endereçadas a seus familiares. A correspondência de William James, da qual fazem parte
as cartas do Brasil, foram editadas por Ralph Barton Perry, The Thought and Character
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 18
2
Cambridge: Harvard University Press, 1948.
3
11 vols, Charlottesville: University Press of Virginia, 1992 em diante.
4
Cambridge: Harvard University Press, 1988.
5
Nashville: Vanderbilt University Press, 1951.
6
Os papéis de James relativos à sua estadia no Brasil, acrescido de ensaio crítico e anotações, estão
sendo por mim preparados para serem publicados, em edição bilíngue, em uma parceria entre as editoras do
David Rockefeller Center for Latin American Studies (DRCLAS) e o Houghton Library, ambos da Harvard
University.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 19
7
Lurie, Edward. Louis Agassiz. A Life in Science. Baltimore: The Johns Hopkins University Press,
1988, p. 126.
8
O esboço biográfico de Louis Agassiz aqui apresentado baseou-se na principal biografia de Louis
Agassiz, escrita por Edward Lurie, Louis Agassiz... e no livro de Louis Menand, The Metaphysical Club. A
Story of Ideas in America. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2001, capítulos “Agassiz” e “Brazil”.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 20
9
Sobre a corrente religiosa desenvolvida pelo místico sueco Emanuel Swedenborg e a conversão de
Henry James Sr. ver, por exemplo, Feinstein, Howard M. Becoming William James. Ithaca: Cornell
University Press, 1999, cap. 4, “A Conflict of Will”, pp. 58-75.
10
Lurie, E, Louis Agassiz..., op. cit., pp. 132-140.
11
Croce, Paul Jerome, Science and Religion in the Era of William James. Eclipse of Certainty, 1820-
1880. Chapel Hill: The University of Carolina Press, 1995, pp. 85-6.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 21
faltava atingir um lugar profissional mais sólido. Ativo, empreendedor e bem relacionado
não só com os cientistas mas também com a nobreza e alta burguesia que circulava pelos
salões europeus, Agassiz carregava uma aura de celebridade. No entanto, ele continuava
apenas como naturalista do Condado de Neuchâtel, Suíça, posto deveras modesto para
seus horizontes. Foi nos EUA que as habilidades retóricas, charme e habilidade social do
naturalista realmente vicejaram, proporcionando a ele uma carreira universitária e uma
fama pública que superaram todas as expectativas.
De fato, o ambiente da Nova Inglaterra mostrou-se especialmente permeável ao
tipo de discurso de Agassiz, devido a amplo envolvimento desta região com o
pensamento transcedentalista, cuja evocação do divino na natureza da natureza e na
natureza do homem, conferia à apreciação do mundo natural pelo homem um caráter
religioso e cujo escopo era o desvelamento do divino no interior e no exterior da natureza
humana. Conforme notou Barbara Novak, se a trindade Deus, Homem e Natureza
fundamentava as elucubrações do homem do XIX, a natureza estava ela própria
centralizada pela trindade da Arte, Ciência e Religião12. Ancorada numa apreciação
evocativa do sublime, que desvelava a grandiosa mão divina na paisagem natural, a arte e
a ciência surgiam como vocabulários de uma religião, cujos princípios deveriam repousar
tanto no injunção platônica da permanência na aparência das formas, quanto numa visão
romântica consubstanciada nas implicações do grandioso. Evocando o mistério dos
tempos imemoriais nos quais Deus havia inscrito a história do mundo, ciências como a
geologia, em sua tentativa de datação da idade da terra e em seu estudo da miríade de
formas e qualidades assumidas pelas rochas e pedras, e a história natural, que desvelava a
variedade e complexidade dos seres vivos, com suas formas únicas, cada uma
concretizando uma mensagem, surgiam como veredas pertinentes de acesso ao divino.
Assim, a ciência reafirmava sua vocação de teologia natural, colocada a serviço dos
homens. A partir de outra perspectiva, a apreensão do conjunto das maravilhas divinas
era tarefa a ser atingida, igualmente, pela arte, provocando visões grandiosas de
paisagens e cenários naturais, que sugeriam caráter sublime da natureza. Movimentos
como o da Hudson River School, que se desenvolveu a partir de meados do XIX, e que se
12
Novak, Barbara. Nature and Culture. American Landscape and Painting, 1825-1875. New
York/Oxford: Oxford University Press, 1995, 47.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 22
13
Novak, B. Nature and Culture…, sobretudo “Introduction: The Nationalist Garden and the Holy
Book”, pp. 3-17.
14
Novak, B. Nature and Culture …, pp. 113-132.
15
Lurie, E., Louis Agassiz..., p. 146.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 23
mais, Agassiz ambicionava criar uma instituição voltada para a documentação não apenas
do território americano mas do mundo, suplantando assim qualquer defasagem que
existisse entre as matrizes institucionais européias e seu sonhado museu.16 Perseguindo
seus objetivos com perseverança absoluta, Louis Agassiz, no outono de 1860, inaugurou
seu tão sonhado museu, localizado num prédio especialmente construído para tal fim, que
havia custado milhares de dólares, soma esta conseguida maioritariamente por meio de
subscrições privadas de empresários e negociantes da Nova Inglaterra.
No entanto, o sucesso acadêmico e social de Louis Agassiz encontrava-se desde
meados da década de 1850 desafiado por questões cruciais, questões estas que, por sinal,
perpassaram o contexto intelectual da Nova Inglaterra da época, marcando igualmente a
família de James, na figura do seu pai, Henry James Sr., sendo também decisivas na
formação de William James. Os grandes debates intelectuais que mobilizaram estas
décadas nos EUA– a grosso modo, dos anos 40 a 70 do século XIX – alinhavam-se em
torno de dois pólos. Um primeiro grande polo aglutinador das questões candentes destas
décadas opunha o idealismo estático que subjazia ao criacionismo à concepções
dinâmicas das transformações da natureza, que culminaram na teoria da evolução e suas
possíveis implicações religiosas e filosóficas. Um segundo tema aglutinador dos debates
do momento era o problema crucial da raça e de seu estatuto científico e social, cujos
desdobramentos poderiam servir de baliza teórica condutora do movimento abolicionista
e orientadora das decisões políticas relativas ao lugar que deveria caber ao negro numa
sociedade norte-americana livre da instituição escravista. Ambas questões estiveram
fortemente presentes no ambiente da Nova Inglaterra, mais agudamente ainda foram estes
temas debatidos no âmbito das mais importantes instituições acadêmicas norte-
americanas, exatamente sediadas na região. Entre elas destaca-se a Harvard University, à
qual Louis Agassiz pertencia como membro ilustre e William James como estudante
promissor, primeiramente da Lawrence School e, a partir de 1861, como estudante da
Faculdade de Medicina, na qual ele havia de diplomar-se, após inúmeros adiamentos em
1869 e, a partir de 1873, como professor sucessivamente de fisiologia, psicologia e
finalmente, filosofia.
16
Lurie, E., Louis Agassiz..., cap. 6, pp. 212-251, especialmente p. 216.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 24
17
Lisboa, Karen Macknow. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo
Brasil (1817-1820). São Paulo: Editora Hucitec, 1997.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 25
18
Lurie, E., Louis Agassiz..., pp. 31-70; Menand, Louis, The Metaphysical Club..., pp. 97-116 e Kury,
Lorelai. “A Sereia Amazônica dos Agassiz: zoologia e racismo na Viagem ao Brasil (1865-1866)”. Revista
Brasileira de História, vol. 21, no. 41, 2001, pp. 157-172.
19
Gould, Stephen Jay. Time’s Arrow. Time’s Cycle. Cambridge: Harvard University Press, 1987, p.
126.
20
Menand, Louis, The Metaphysical Club…, pp. 97-116 e Lurie, E., Louis Agassiz…, pp. 97-106 sobre
atuação de Agassiz no campo da geologia, especialmente pp. 99-100.
21
Louis Agassiz, Contributions to the Natural History of the United States of America, 1857-62, apud
Menand, L., The Metaphysical Club…, p. 128
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 27
22
Menand, L., Metaphysical Club…, pp. 106, 108, 127-8.
23
Menand, L., Metaphysical Club…, pp. 125-7.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 28
24
Croce, P. J., Science and Religion…, pp.61-65.
25
Menand, L., Metaphysical Club…, p.6.
26
Allen, Gay Wilson. William James: A Biography. NewYork: Viking Press, 1967, p.83.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 29
27
“My coming was a mistake, a mistake as regards what I anticipated, and a pretty expensive one both
for & on dear old Father & for the dear generous old aunt Kate. I find that by staying I shall learn next to
nothing of Natural History as I care about learning it. My whole work will be mechanical, finding objects
& packing them, & working so hard at that & in traveling that no time at all will be found to studying their
structures. The affair reduces itself thus to so many months spent in physical exercise. Can I afford this?”
Carta endereçada a Henry James Sr,. Rio de Janeiro, 3 de junho, 1865, ALS: MH bms Am 1092.9 (2521)
Houghton Library.
28
“I see moreover a chance of learning a good deal of Zoology and botany and now as we shall have a
good deal of spare time; and I am getting a pretty valuable training from the Prof. who pitches into me
right & left and wakes me up to a great many of my imperfections …” Carta endereçada a Mary Robertson
Walsh James, Rio Xingu, 23 de agosto, 1865, ALS: MH bms Am 1092.9 (2521) Houghton Library.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 30
29
“I have profited a great deal by hearing Agassiz talk, not so much by what he says, for never did a
man utter a greater amount of humbug, but by learning the way of feeling of such a vast practical engine as
he is. No one sees farther into a generalization than his own knowledge of details extends, and you have a
greater feeling of weight & solidity about the movement of Agassiz’s mind, owing to the continual presence
of this great background of special facts, than about the mind of any other man.” Carta endereçada a Henry
James, Sr. Rio de Janeiro, 12 de setembro, 1865, ALS: MH bms Am 1092.9 (2515) Houghton Library.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 31
Agassiz está contente demais para fazer qualquer coisa. Eu temo que os
deuses desejem a sua ruína – Desde que nós chegamos ao Pará, 14 dias
atrás, ele localizou 46 novas espécies de peixes, um total de peixes maior
que a coleção feita por Spix e Martius em quatro anos de estadia!30
30
“I know. Agassiz is too happy for anything. I fear the Gods are bent upon his ruin – Since we arrived
at Para 14 days ago he has found 46 new species of fish, and a total number of fishes greater than the
collection wh[ich] Spix & Martius made in the whole 4 years of their sojourn!” Carta endereçada a Mary
Robertson Walsh James, Rio Xingu, 23 de agosto,1865, ALS: MH bms Am 1092.9 (2521) Houghton
Library.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 32
elefante, aparece coroada por um homúnculo que carrega um cartaz com os dizeres
“400000000 new species [of] Fish” – e, finalmente, fazendo alusão ao caráter erotizado e,
as vezes, quase libertino da expedição, James não deixou de registrar, na cauda do
desfile, a presença de “jovens e lindas índias apaixonadas por Dexter” (legenda no.5). À
frente da composição aparece um desenho mais bem acabado, cuja legenda é “retrato de
Mr. D.”, no qual podemos ver Dexter caído ao chão, obviamente bêbado, tendo diante de
si uma garrafa em cujo rótulo se lê, “Old Tom” (legenda no.6).
Nada mais contrastante a esta abordagem do que a posição assumida por Elisabeth
Cary Agassiz em Journey in Brazil, livro que surgiu em 1867 na forma do relato oficial
da viagem. Embora escrito em linguagem coloquial e a partir de uma perspectiva
intimista e compreensiva da sociedade local, o relato de Elisabeth revela, além de um
estudado distanciamento do mundo que ela via, um irretocável respeito ao projeto
ideológico-científico que conduzia a expedição. A contraposição de ambas perspectivas
muito revela a respeito da posição de independência intelectual assumida por James com
relação a viagem como um todo.
As crescentes dificuldades enfrentadas por Louis Agassiz no ambiente acadêmico
norte-americano e sua saúde debilitada estiveram na base de sua tempestuosa decisão de
empreender a viagem ao hemisfério sul. Iniciada como uma mera viagem de férias, esta
primeira viagem de Agassiz ao Brasil acabou se tornando seu último grande
empreendimento “pirotécnico” (a segunda viagem à América do Sul, incluíndo Brasil, a
Expedição Hassler, se deu em 1871-72, à convite de Charles Pierce e não alcançou a
mesma importância que a primeira). No que concerne à pesquisa ictiológica, o objetivo
da expedição era confirmar a teoria criacionista, cujo princípio escorava-se na idéia da
existência de uma distribuição peculiar das espécies por região do globo, distribuição esta
que espelhava os desígnios divinos quanto a vocação de cada região da terra. Já a
comprovação da glaciação das áreas tropicais viria a referendar a hipótese de Agassiz a
respeito da existência de uma série de catástrofes climáticas enfrentadas pela terra, cujas
consequências teriam sido a destruição de todas as espécies e a recriação delas pela
vontade divina. A conclusão precípua desta teoria era a negação da teoria da evolução.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 33
31
Lurie, E., Louis Agassiz..., p. 265.
32
Morton, Samuel George. Crania Americana; or, A comparative view of the skulls of various
aboriginal nations of North and South America. To which is prefixed an essay on the varieties of the human
species. Philadelphia: J.Dobson ; London : Simpkin, Marshall, 1839. Morton, Samuel George, 1799-1851 e
Crania Aegyptiaca; or, Observations on Egyptian ethnography, derived from anatomy, history and the
monuments. Philadelphia: J. Penington, 1844. Nott, Josiah Clark. Types of mankind: or, Ethnological
researches, based upon the ancient monuments, paintings, sculptures, and crania of races, and upon their
natural, geographical, philological and Biblical history; illustrated by selections from the inedited papers
of Samuel George Morton ... and by additional contributions from Prof. L. Agassiz, LL.D., W. Usher, M.D.,
and Prof. H. S. Patterson, ... Philadelphia, Lippincott, Grambo & co., 1854.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 36
33
Menand, L., ., Metaphysical Club …, cap. Agassiz, pp. 97-116.
34
Fredrickson, George M. The Black Image in the White Mind. The Debate on Afro-American
Character and Destiny, 1817-1914. Hanover, NH: Wesleyan University Press, 1987, pp. 86-87.
35
Fredrickson, George M., The Black Image in the White Mind…, pp. 130-164.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 37
36
“ ...contrary to the normal state of the races, as it is contrary to the preservation of species in the
animal kingdom...Far from presenting to me a natural solution of our difficulties, the idea of amalgamation
is the most repugnant to my feelings...” Carta de Louis Agassiz endereçada ao Dr. S. G. Howe, Nahant, 9 de
agosto, 1863 IN: Agassiz, E. C. (ed.). Louis Agassiz. His Life and Correspondence. Boston: Houghton and
Mifflin, c. 1885. (The Project Guttemberg Ebook by Louis Agassiz) [Ebook # 6078, cap. 20].
37
“No man has a right to what he is unfit to use … ...their very existence is likely to be only transient,
and that all the legislation with reference to them should be regulated with this view, and so ordained as to
accelerate their disappearance from the Northern States”. Carta de Louis Agassiz endereçada ao Dr. S.
G. Howe, Nahant, 9 de agosto, 1863 IN: Agassiz, E. C. Louis Agassiz. His Life and Correspondence…, cap.
20.
38
Hill, Lawrence F. Diplomatic Relations Between the United States and Brazil. Durham: Duke
University Press, 1932, pp. 159-162.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 38
províncias zoológicas, advogava fortemente a idéia de que a raça negra havia sido criada
para colonizar especificamente áreas tropicais, áreas estas totalmente inadequadas para a
sobrevivência e o labor do homem branco.39 Nota-se que os projetos que visualizavam a
transferência maciça de afroamericanos para áreas coloniais ou periféricas
corriqueiramente lançavam mão do argumento da compatibilidade da raça negra aos
trópicos para tingir iniciativas de expulsão dos negros do país com tons róseos da
filantropia. Argumentavam os defensores da imigração forçada ou estimulada que a
felicidade da raça negra dependia de seu enraizamento em seu ambiente natural, isto é,
nas áreas de clima quente, pois apenas aí esta poderia prosperar.
Neste sentido, a viagem de Agassiz ao Brasil adquire novos significados. Além da
antiga vinculação ideológica de Agassiz aos projetos expansionistas, que na década de
1850 haviam visualizado a imigração forçada ou voluntária de negros do sul dos EUA
para áreas tropicais da América Latina, especialmente para a Amazônia, como solução
para o problema interno da raça, o Brasil oferecia também oportunidade para que
Agassiz, em sua estadia, recolhesse provas materiais da degeneração, provocada pelo
"mulatismo", tão comuns na população brasileira, fortemente miscigenada. Esta iniciativa
havia de muni-lo de provas materiais a respeito dos perigos da degeneração, de forma que
pudessem ser veiculadas em sua volta aos EUA. De fato, ele assim o fez ao recolher uma
expressiva coleção de fotografias que documentaram as mazelas das raças puras e
híbridas no Rio de Janeiro e Manaus, coleção que permanece até hoje praticamente
inédita, dado o seu caráter francamente racialista. Frente a estas questões, vê-se que a
organização e a partida da Expedição Thayer para o Brasil no ano de 1864-65 não se deu
num clima que poderíamos chamar apropriadamente de inocente. Foi no contexto da
circulação destes tipos de discussão e projetos que James participou da expedição sendo
chamado, se não publicamente, decerto em termos pessoais, a se posicionar frente ao
angustiante problema da raça.
Não que estas questões estivessem ausentes da vida de James anteriormente à
viagem ao Brasil. O jovem James havia sido também chamado a enfrentar as grandes
questões políticas de seu tempo que se atrelavam ao corolário da raça, e giravam em
torno do problema da escravidão, do movimento abolicionista e, principalmente, em
39
Fredrickson, George M., The Black Image in the White Mind…, pp. 138-145.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 39
termos da definição do papel das raças e da miscigenação numa sociedade livre. Aqui
igualmente a influência familiar foi decisiva. Embora, aparentemente, James tenha
passado ao largo da agitação política da década de 1860 e tenha optado, por razões não de
todo esclarecidas, a não se alistar na Guerra de Secessão, sabemos muito bem que a
ebulição do momento esteve presente em seu dia-a-dia. Desde 1860, quando a família
James havia retornado da Europa e se instalado em Newport, Rhode Island, Garth
Wilkinson (Wilky) e Robert (Bob), os dois filhos mais novos da família, haviam sido
enviados, por influência de Emerson, para estudar na Frank Sanborn School, em
Concord, Massachusetts. A Sanborn School, de inspiração transcendentalista e
fortemente comprometida com o abolicionismo, havia, desde a década de 1850, se
alinhado decididamente nas fileiras da luta anti-escravista40. Ao que parece, 1857 havia
sido o ponto de inflexão no envolvimento não só da Sanborn School, como de grande
parte da intelectualidade da região no movimento. Neste ano John Brown peregrinara
pelo estado em busca de adesões e fundos para organizar o que acabou por se tornar o
mais ousado e sangrento episódio da luta abolicionista - a Conspiração da Virginia –
ocasião que permitiu que ele se reunisse com os mais proeminentes pensadores da Nova
Inglaterra, inclusive com Thoreau e Emerson, que se compromissaram de alguma forma
com a colaboração.41
Bob e Wilky certamente mostraram-se bastante permeáveis à influência
abolicionista, tanto que em 1862 ambos se alistaram para lutar na Guerra Civil, embora
nenhum deles tivesse a idade legal requerida. Henry James Sr., que havia se oposto à
adesão dos filhos mais velhos – Wiiliam e Henry – aparentemente concordou com a
decisão dos mais novos. Embora as razões pessoais que justificaram a mudança de
posição de Henry James Sr. – se é que, de fato, houve alguma – mantêm-se ainda
nebulosas, o certo é que a participação dos jovens Jameses na Guerra Civil justificava-se
plenamente devido à posição da família frente ao tema. Como rememorou Wilky em
1888, sua família acreditava “que a escravidão era um erro monstruoso, e para sua
40
Feinstein, Howard M., Becoming William James…,pp. 254-258, Perry, Ralphy Barton, The Thought
and Character of William James…, pp. 18-21 e Lader, Lawrence. The Bold Brahmins. New England War
against Slavery (1831-1863). New York: E. P. Dutton, 1961, cap. XVII, “John Brown and the Boston
Plotters: 1857-1859, sobretudo pp. 233-235.
41
Lader, Lawrence, Bold Brahmins…, pp. 233-254.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 40
42
“that slavery was a monstrous wrong, and its destruction worthy of a man’s best effort, even unto the
laying of life.” Wilkson James, Milwaukee Sentinel, 1888 apud Feinstein H., Becoming William James…,
p. 259.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 41
43
James, Henry Sr., Lectures and Miscellanies, p. 69 apud: Menand, L., Metaphysical Club…, p.87.
44
Fredrickson, George M., The Black Image in the White Mind…, pp.97-129.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 42
Agassiz e James. Nada mais oposto ao estilo elegante e discreto de James, que cativava
aqueles que o cercavam com seus carismáticos dotes da empatia, do que a personalidade
retumbante de Agassiz, seus rasgos de eloquência mesclados com uma determinção
férrea, aliada a uma queda pela auto-promoção. E todo o empreendimento Thayer teve,
desde a origem, o carimbo do estilo de Agassiz.
Como notou o principal biógrafo, Edward Lurie, nos anos de 1860 Agassiz havia
incorporado em si mesmo a idéia de uma ciência norte-americana, que trazida da Europa,
se enraizara no solo prolífico da América do Norte, tornando-se representante de um tipo
de nacionalismo-expansionista característico do XIX. Como tal, Agassiz havia imaginado
a si próprio como alguém que se colocava acima de qualquer restrição ou crítica, agindo
em termos da política acadêmica e científica de forma autoritária e exclusivista. No
entanto, a década de 1860 não o poupou, à medida em que os cientista norte-americanos
passavam a considerar hipóteses derivadas do evolucionismo, levando seus trabalhos a
foros acadêmicos, Agassiz passou a reagir de maneira discricionária, negando-se a
considerar adequadamente aqueles colegas que estavam explorando hipóteses que o
contradiziam. A falta de disponibilidade acadêmica de Agassiz de colocar-se em uma
posição menos arrogante, permitindo-se discutir de forma apropriada trabalhos que
consideravam novas hipótese, havia começado a resultar em críticas do meio acadêmico
em direção a uma figura tão eminente, mas que demonstrava tão pouca disposição de
espírito científico. Além disso, no início da década, Agassiz havia sofrido uma revolta de
alunos-pesquisadores do Museu, desgostosos com a política acadêmica encetada pelo
mestre, que havia resultado em uma disputa a respeito da autoria dos trabalhos científicos
produzidos nos quadros da instituição.
Não obstante a popularidade do naturalista suíço estivesse mais em alta do que
nunca, dissabores no âmbito do reconhecimento acadêmico haviam disposto Agassiz a
abraçar, com a garra que o caracterizava, novas oportunidades. A aventura amazônica,
por um lado, permitia-lhe, momentaneamente, desaparecer da arena acadêmica de
maneira retumbante, proporcionar-lhe-ia a oportunidade de realizar a viagem que todos
os grandes naturalistas – de Humboldt a Spix e Martius e Bates – já haviam completado,
isto é, a exploração da Amazônia, oferecendo-lhe ocasião para adicionar à sua já lendária
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 43
45
Lurie, E, Louis Agassiz..., pp.331-350.
46
Carta de Louis Agassiz à sua mãe, 22 de março de 1865 apud Lurie, E, Louis Agassiz..., op. cit., p.
346.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 44
47
. “If the reader will look on a map of Brazil he will probably find the little town of San Paulo
d’Olivença marked on the right bank of the Solimoens or upper Amazon about [blank] miles from the sea.
At this town my story begins. The good little steamer Icamiaba which runs monthly from Manaos, near the
mouth of Rio Negro, where the Solimões changes into the Amazon up to mosquito populated Tabatinga on
the Peruvian frontier, and back – stopped at São Paolo just after sunset on the 21st. of Sept. 1865 –
bringing with her the most important detachment of a great North American Naturalists Expedition, which
for the past 6 months had been overrunning Brazil and ransacking her living treasures. By a curious
accident the Steamer has taken on board at Tabatinga another party of 4 Spanish Naturalists who had
come down from the mountains & the Rio Napo, and after 3 years of wandering, were at last homeward
bound. They formed part of a commission sent by the Spanish government to collect for the Museum of
Madrid. One of their party had died & the two other had gone to California. They had been through sun &
rain & snow& swamp in their wanderings [they] had been shipwrecked & lost most all their personal
property, were without money, and most grotesque clothes in what had been saved from the wreck. They
had come down the Rio Napo on two rafts of the most picturesque appearance, with a low palm leaf house
built on each a “smudge” burning at each end to keep out the mosquitoes & covered with monkeys, parrots
and other pets. Never I had seen a more shaggy, stained, weather beaten, jaundiced set of men. And I have
seldom felt like honoring men more. Beside their travel our expedition seemed like a picnic.” William
James, “A Month on the Solimoens”, bms: AM 1092.9 (4431), Houghton Library, Harvard University.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 45
E, de fato, se o rótulo de picnic pode parecer um tanto quanto exagerado para uma
expedição que atravessou milhares de quilômetros, percorrendo rios caudalosos,
abrigando-se em remotas localidades onde só se podia encontrar populações parcamente
europeizadas, acampando ainda às margens de igarapés e se alimentando, por longos
períodos, de pirarucu com farinha, é também verdade que a Expedição Thayer esteve,
desde suas origens, marcada por um caráter oficialesco e, por que não dizer, social-
diplomático, cujos desdobramentos não escaparam ao crivo certeiro de James.
Os objetivos da expedição ao Brasil não se esclarecem totalmente se não levamos
em conta os aspectos menos aparentes deste empreendimento. Por traz do discurso
público do cientista-viajante tecia-se um outro discurso que ligava Agassiz aos interesses
norte-americanos na Amazônia, conectado a duas linhas de ação diplomática e de grupos
de interesses. Uma primeira, à política da navegação fluvial e abertura do Amazonas à
navegação internacional e uma segunda, aos projetos de assentamento da população
negra norte-americana, como colonos ou aprendizes, na várzea amazônica. Não que
Agasssiz tenha pessoalmente montado o esquema da viagem para realizar um trabalho
diplomático de proselitismo dos interesses norte-americanos na Amazônia. Mas, bem ao
seu estilo, ele não perdeu a oportunidade de colocar-se em posição de influência,
tornando a viagem ao Brasil, organizada no contexto da Guerra Civil, ocasião para
influenciar positivamente Pedro II, com o qual Agassiz trocava correspondência desde
1863, com relação aos projetos de abertura da Amazônia, aumentando, assim, seu cacife
político.48 De fato, os saraus gozados por Mr. e Mrs. Agassiz no Paço Imperial causavam
comoção a todos os participantes da expedição, além de proporcionar a seu líder o status
de celebridade nacional, tanto nos EUA quanto no Brasil.
Tanto é assim que, tendo a idéia da expedição surgida a partir de um ciclo de
palestras, apresentado no inverno de 1863-64 no Lowell Institute de Boston, desviou-se
logo de seus intentos iniciais.49 Na ocasião Agassiz havia sublinhado a importância de
estudos da glaciação no hemisfério sul, como forma de comprovar a teoria criacionista-
catastrofista. A idéia entusiasmou o empresário Nathaniel Thayer o suficiente para que
48
James, David. “O Imperador do Brasil e seus Amigos da Nova Inglaterra”.Separata do Anuário do
Museu Imperial, vol. XIII, 1952.
49
Lurie, E, Louis Agassiz..., , pp. 344-345.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 46
50
Lurie, E, Louis Agassiz..., p. 346, Allen, Gay Wilson, William James…, pp. 101-103 e Higuchi, H. An
updated list of ichthyological collecting stations of the Thayer Expedition to Brazil. Eletronic version
(1996): http: //www.oeb.harvard.edu/thayer,htm.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 47
Tom na viagem de Agassiz, que surgia então como um simulacro mais controlado e com
época marcada da experiência masculina do oeste.51
Assim como Walter Hunnewell e Edward Copeland, Simon Dexter era outro
estudante voluntário engajado na expedição às próprias custas que pertencia a família que
acumulava prestígio e riqueza. Além disso, Dexter se fazia notar por ser exímio caçador,
projetando a imagem acabada do jovem milionário que se dedicava a viajar para terras
selvagens – como o oeste - como forma de desenvolver seus dotes masculinos de decisão,
coragem e bravura.52 Em seu diário, James não apenas o caricaturou na figura do caçador
beberrão de tesouros exóticos, como descreveu-o nos próprios termos do masculino
agressivo do explorador-caçador: “Está conosco um sujeito queixudo e queimado de sol
chamado Dexter de Providence, que é um atirador certeiro e já caçou por todo os EUA,
não preciso dizer que ele fará um bom serviço, apesar de eu não saber muito dele em
termos pessoais. Ele é rico”.53 Embora James, naquela altura aluno da Faculdade de
Medicina e leitor de Darwin e Spencer, já não nutrisse a mesma admiração iconteste por
Agassiz que ele havia alimentado nos anos anteriores, ao saber da possibilidade de se
engajar na expedição, abraçou a idéia com entusiasmo furioso e a realizou devido aos
fundos oferecidos por sua tia Kate, complementados pela ajuda do pai.54
O furor repentino com que James abraçou a idéia de viajar para Amazônia
colocava-o a par das tendências de seu tempo, que prescrevia, como etapa de formação
aos jovens das famílias de elite, a exposição à viagens para terras selvagens. Nos EUA do
Destino Manifesto, o roteiro da viagem de aprendizagem era, principalmente, o oeste. A
expansão para o oeste não apenas atraiu a energia física e econômica do país como
justificou a produção de um vasto campo de registros textuais e visuais cujos motivos
reatualizavam os antigos temas da conquista e colonização da América do Norte, ligando
a incorporação destes territórios à reatualização da utopia da terra prometida e a
51
Snyder, Margareth, “The Other Side of the River (Thomas Wren Ward, 1844-1940)”. New England
Quarterly, vol. 14, no.3, 1941, pp. 423-436.
52
Allen, Gay Wilson. William James: A Biography…, pp. 101-103.
53
“There is a sun burnt & big jawed devil named Dexter from Providence with us, who is a crack shot
& has hunted all over the U.S. I dare say he will do good service, though I don’t know much of him
personally. He is rich.” Carta endereçada a Mary Robertson Walsh James, Steamer Colorado,
provavelmente 31 de março, 1865, ALS: MH bms AM 1092 (3120).
54
Allen, Gay Wilson, William James: A Biography…, pp. 101-103.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 48
recuperação do Éden perdido.55 Ir para o oeste, parecia então ser o desejo de todos e o
destino de muitos: viajar para os territórios inexplorados, conhecer o mundo sem
restrições da fronteira, experimentar a vida rústica, porém livre dos territórios selvagens e
desertos, usufruindo de seus encantos sedutores para, ao fim e ao cabo, domá-lo e
incorporá-lo à civilização, tornou-se uma missão tanto coletiva quanto individual.
Se em termos coletivos a expansão para oeste respondia às lógicas dos capitais,
dos investimentos e dos deslocamentos populacionais, em termos individuais a
experiência da viagem às fronteiras começou a ser prezada como uma etapa desejável na
construção da masculinidade do jovem norte-americano. Sobretudo os jovens das elites,
que mais e mais eram obrigados a despender suas energias vitais em salas de aula e
bibliotecas, dedicando-se a estudos tão abstratos quanto imateriais das artes liberais e da
filosofia, pareciam necessitar, como parte de sua formação, de uma etapa mais masculina,
na qual suas personalidades pudessem ser temperadas nos confrontos com a vida rústica.
Ao analisar a emergência de uma cultura norte-americana do cavalheirismo a partir da
segunda metade do XIX, centrada especificamente nos valores da masculinidade, Kim
Townsend chama a atenção para a crescente valorização da exposição dos jovens aos
desafios da natureza como forma de acender neles o vigor e o auto-controle necessários
para se vencer na vida. Produzida nos principais centros ideológicos do país,
especialmente na Harvard University, a concepção de masculinidade que então se
articulava buscava preparar os jovens para as pressões do mundo dos negócios e de um
mercado de trabalho, ambos cada vez mais competitivos.56
Esta abordagem, que sublinhava valores masculinos ligados à extroversão auto-
controlada do vigor e da liderança buscava, ao mesmo tempo, proteger os jovens dos
perigos da neurastenia e da fragilização provocada por um sistema de educação visto
como excessivamente reflexivo e abstrato, que podia levá-los a sofrer de ataques de
nervos. Concebida como uma doença de classe e, portanto, muitas vezes valiosa como
55
Sobre o tema ver a análise de Merchant, Carolyn, “Reinventing Eden: Western Culture as a Recovery
Narrative” in: William Cronon (ed.), Uncommon Ground. Rethinking the Human Place in Nature. New
York: W. W. Norton & Company, 1983, pp. 132-170 e Reinventing Eden. The Fate of Nature in Western
Culture. New York: Routledge, 2002, da mesma autora, sobretudo cap. 6, “Eve as Nature”, pp. 117-144
nos quais Merchant mostra como nos quadros da ciência do XIX a natureza aparece associada
características perigosas do feminino selvagem e incontrolado, numa narrativa cujo enredo básico seria a
restauração do Eden, por meio da domesticação e controle.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 49
56
Townsend, Kim. Manhood at Harvard. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
57
John Haller Junior and Robin M. Haller, The Physician and Sexuality in Victorian America. Urbana:
University of Illinois Press, 1974, pp. 6.
58
Kim Townsend, Manhood at Harvard…, p. 261-2.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 50
59
Kim Townsend, Manhood at Harvard…, pp. 256-286.
60
Manthorne, Katherine Emma. Tropical Renaissance. North American Artists Exploring Latin
America, 1839-1879.Washingnton: Smithsonian Institution Press, 1989, ver sobretudo Apêndice I.
61
Herndon, William Lewis. Exploration of the Valley of the Amazon, 1851-1852. Edição fac-similar.
New York: Grove Press, 2000.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 51
62
Hill, Lawrence F., Diplomatic Relations Between the United States and Brazil…, ver cap. IV, “The
Diplomacy of Two New Yorkers”, pp. 146-176.
63
Hill, Lawrence F., Diplomatic Relations Between the United States and Brazil…, pp.237-238.
64
Hill, Lawrence F., Diplomatic Relations Between the United States and Brazil…, cap. VI, “Opening
Brazilian Rivers to World Commerce”, pp. 214-238, Luz, Nícia Vilela. A Amazônia para os Negros
Americanos. Origens de uma Controvérsia Internacional. Rio de Janeiro: Saga, 1968 e Reis, Arthur Cezar
Ferreira. A Amazônia e a Cobiça Internacional. Rio de Janeiro: Limitada, 1965, pp. 60-85.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 52
65
Pratt, Mary L., Imperial Eyes, Travel Writing and transculturation, London: Routledge, 1992, pp.15-
37. Ver também Machado, Maria Helena P. T., “A Construção do Olhar Imperial. Resenha do livro de
Mary Louise Pratt”. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 20, no. 39, 2000, pp. 281-290.
66
Pratt, Mary L., Imperial Eyes …, pp. 38-68.
67
Pratt, Mary L., Imperial Eyes …, pp. 69-85.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 53
68
Hill, Lawrence F., Diplomatic Relations Between the United States and Brazil…, pp. 236-237.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 54
Orleans para o Pará, alcançar a Amazônia, lançando-se numa vida de aventuras exóticas,
fazendo fortuna como negociante de coca nos EUA.
…Então eu comprei uma passagem para Cincinnati e fui para esta cidade.
Lá eu trabalhei por diversos meses na tipografia de Wrightson and
Company. Eu andava lendo a narrativa das explorações do tenente
Herndon na Amazônia e fiquei sumamente atraído pelo o que ele disse
sobre a coca. Decidi que poderia ir para as cabeceiras do Amazonas
para colher coca, negociá-la e fazer fortuna. Viajei para New Orleans no
vapor “Paul Jones” com a cabeça cheia destas idéias ... Quando eu
cheguei em New Orleans, fui me informar sobre os navios que iam para o
Pará e descobri que não estes não existiam e que provavelmente não
existiriam por todo o século. Não havia me ocorrido que eu deveria me
informar sobre estes detalhes antes de sair de Cincinnnati, então, ai
estava eu. Eu não podia ir para a Amazônia. Eu não tinha amigos em New
Orleans, nem dinheiro para fazer qualquer coisa. Fui encontrar Horace
Bixby e pedi para que ele fizesse de mim um piloto...69
69
“… So I bought a ticket for Cincinnati and went to that city. I worked there several months in the
printing-office of Wrightson and Company. I had been reading Lieutenant Herndon’s account of his
explorations of the Amazon and had been mightily attracted by what he said of coca. I made up my mind
that I would go to the head waters of the Amazon and collect coca and trade in it and make a fortune. I left
for New Orleans in the steamer "Paul Jones" with this great idea filling my mind. …When I got to New
Orleans I inquired about ships leaving for Pará and discovered that there weren’t any, and learned that
there probably wouldn’t be any during that century. It had not occurred to me to inquire about these
particulars before leaving Cincinnati, so there I was. I couldn’t get to the Amazon. I had no friends in New
Orleans and no money to speak of. I went to Horace Bixby and asked him to make a pilot out of me...”
Neider, Charles (org.), The Autobiography of Mark Twain. New York: Perennial, 1959, chapter XI.
Agradeço a Warren Monteiro por ter, gentilmente, localizado a passagem citada.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 55
70
“I can imagine the waking up of the people on the event of the establishment of steamboat navigation
on the Amazon. I fancy I can hear the crash of the forest falling to make room for the cultivation of cotton,
cocoa, rice, and sugar, and the sharp shriek of the saw, cutting into boards the beautiful and valuable
woods of the country; that I can see the gatherers of India-rubber and copaiba redoubling their efforts, to
be enabled to purchase the new and convinient things that shall be presented at the door of their huts in the
wilderness…” Herndon, William Lewis, Exploration of the Valley of the Amazon…, p. 197.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 56
pior ainda e (usando um ditado caseiro) ‘o espaço que ele ocupa vale
mais do que a sua compania’ ...”71
Amazônia descrita por Herndon não é apenas o novo Éden, é também o cenário
da mais fantasiosa e agressiva ameaça arquitetada sob os auspícios do Destino Manifesto,
que justificou que, em certo momento, que o vale amazônico fosse visualizado como
válvula de segurança de um Sul dos EUA escravista e expansionista.
71
“The mind of the Indian is exactly like that of the infant, and it must grow rather by example than by
precept. I think that good example, with a wholesome degree of discipline, might do much with this docile
people; though there are not wanting intelligent men, well acquainted with their character, who scruple not
to say that the best use to which an Indian can be put is to hang him, that he makes a bad citizen and a
worse slave, and (to use a homely phrase) “that his room is more worth than his company …” Herndon,
William Lewis, Exploration of the Valley of the Amazon…, pp. 233-234.
72
Cohen, Howard. Matthew Fontaine Maury: Pathfinder of the Sea. Bethesda, MD: NIMA, 2003.
73
Harrison, John P., “Science and Politics: Origins and Objectives of Mid-Nineteenth Century
Government Expeditions to Latin America”. Hispanic American Historical Review, vol. 35, no.2 (may,
1955), pp. 175-202.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 57
74
Lader, Lawrence, Bold Brahmins…, pp. 31-36.
75
Sobre o tema ver: Lader, Lawrence, Bold Brahmins…, pp. 31-37 e Tenzer, Lawrence. The Forgotten
Causes of the Civil War: New Look at the Slavery Issue. New Jersey: Scholar’s Publishing House, 1997,
pp. 44-60.
76
Marty, Percy Alvin, “The Influence of the United States on the Opening of the Amazon to the
World’s Commerce”. Hispanic American Historical Review, vol. 1, no. 2 (May, 1918), p. 153.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 58
México.77 Em carta dirigida a seu cunhado e amigo, William Herndon, cuja expedição ao
Amazonas respondia ao projeto de Maury, então encampado pela marinha norte-
americana, encontramos outra observação do mesmo naipe. Segundo Maury, a Amazônia
se localizava mais perto da Flórida e do Mississipi do que do Rio de Janeiro, devendo
estar, portanto, sob controle dos estados sulistas.78 Este conjunto de argumentos
delinearia o que Maury denominou de “nosso lago interior”, que iria do Golfo do México
à Amazônia, região que naturalmente pertenceria ao sul, cabendo aos sulistas “colonizar,
revolucionar, republicanizar e anglicizar este Vale.”79
A idéia de que o futuro dos interesses do sul se encontravam na Amazônia foi
publicada pela primeira vez em 1842 no Hunt’s Merchants’ Magazine, and Commerce
Review, e foi republicada, sob diversas roupagens, em séries de artigos em jornais e
revistas do sul, sobretudo no Debow’s Review, peródico mais representativo dos
interesses escravistas-racistas da região.80 Já em 1849, num artigo do Debow’s Review,
dedicado ao comércio via Golfo do México, Maury sublinhava a importância do Vale
Amazônico. O mesmo artigo foi submetido ao Secretário Naval, William Ballard
Presyton, em 1850, que aprovou a demanda e a favoreceu, apoiando a organização de
uma expedição de reconhecimento da navegabilidade e condições climáticas da
Amazônia. As propostas de Maury, publicadas numa série de cartas em um jornal de
Washington, sob o pseudônimo de “Inca”, e republicadas sob o título The Amazon and
77
Carta de M.F. Maury para W.G. Sims, maio de 1849 apud, Harrison, John P., “Science and Politics:
Origins and Objectives of Mid-Nineteenth Century Government Expeditions to Latin America...”, pp. 187-
188.
78
Carta de M. F. Maury para W. L. Herndon, 20 de abril de 1850, transcrita na íntegra em Dozer,
Donald Marquand. “Matthew Fontaine Maury’s Letter of Instruction to William Lewis Herndon”. Hispanic
American Historical Review, vol. 28, no.2, may, 1948, passagem citada p. 217.
79
“ … to settle and to revolutionize and republicanize and Anglo Saxonize that Valley”. Carta de M. F.
Maury para W. L. Herndon, 20 de abril de 1850, transcrita na íntegra em Dozer, Donald Marquand,
“Matthew Fontaine Maury’s Letter of Instruction to William Lewis Herndon...”, passagem citada p. 217.
80
Bell Jr., Whitfield J. “The Relation of Herndon and Gibbon’s Exploration of the Amazon to North
American Slavery”. Hispanic American Historical Review, vol. 19, no.4, (Nov., 1939), nota 1, p. 494. A
DeBow’s Review, foi uma revista publicada no sul norte-americano entre os anos de 1846-1880, com
alguns lapsos durante a Guerra Civil. O periódico conhecido pelo nome de seu editor, começou em New
Orleans sob o título de Commercial Review of South and West, mudou-se para Washington (capital), em
1853. A DeBow’s review foi o periódico que mais consistentemente advogou os interesses sulistas,
inclusive a secessão, nas décadas pré-guerra, tendo circulado extensivamente entre os setores interessados.
(http://en.wikipedia.org/wiki/DeBow's_Review#Publication_history) .
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 59
the Atlantic Slopes of South America em 1853, atingiram enorme popularidade.81 Além
disso, a questão se tornou candente com a viagem de Herndon à Amazônia, que partiu em
1851 e retornou em 1852. Neste mesmo ano, ainda antes do retorno da Expedição
Herndon aos EUA, já uma série de senhores sulistas começaram a requerer passaporte
para imigrar para o Brasil. O resultado foi que os EUA passaram a fortemente pressionar
o Brasil, que respondeu resistindo às agressivas solicitações da diplomacia americana.82
Em 1853, dois eventos colaboraram para elevar o interesse amazônico à
importância de segurança nacional norte-americana. Um primeiro foi convocação da
Convenção de Memphis, Tennessee, ocorrida em junho de 1853, na qual a questão
amazônica foi objeto de debates acalorados.83 A resolução da Convenção resultou num
memorial, redigido por Maury e endereçado ao Congresso, que o submeteu à apreciação
em março de 1854, subscrevendo-o. No arrazoado de Maury enviado ao congresso a
Amazônia aparece descrita como o novo Éden e a abertura da sua navegação avaliada
como essencial para o progresso norte-americano. Neste documento a Amazônia é
especialmente importante porque, segundo Maury, seria capaz de sustentar uma
população de pelo menos 600 milhões de pessoas! Um segundo foi o fato do próprio
Presidente Pierce mencionar a questão da abertura da Amazônia em sua mensagem anual
de 1853, sublinhando sua esperança na rápida obtenção da livre navegação deste rio.84
Entretanto, a despeito de todo o alarde, a questão amazônica começou a perder a
relevância em 1854, à medida que o sul passou a lançar seus tentáculos expansionistas
para o oeste norte-americano.
Embora todo o episódio do interesse norte-americano pela Amazônia ainda seja
pouco conhecido tanto nos EUA quanto no Brasil - apesar do definitivo livro de Nícia
81
Maury, Matthew Fontaine. The Amazon and the Atlantic Slopes of South America. Washington: F.
Taylor, 1853.
82
Sobre o tema ver livro clássico de Nícia Vilela, A Amazônia para os Negros Americanos.... Ver
também, Angelis, M. de. De La Navegacion del Amazonas. Respuesta a Una Memoria de M. Maury,
Oficial de la Marina de los Estados Unidos. Caracas: Reimpreso T. Antero, 1857, cujo opúsculo foi escrito
sob os auspícios de Pedro II, com vistas a confrontar os argumentos norte-americanos.
83
Transcrição das Atas deste encontro em: ‘The Memphis Convention”, DeBow’s Review, XV,
September 1853, pp.255-274, especialmente pp. 263-264-268.
84
Marty, Percy Alvin, “The Influence of the United States on the Opening of the Amazon to the
World’s Commerce…”, pp. 150-153.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 60
85
Luz, Nícia Vilela, A Amazônia para os Negros Americanos....
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 61
Então, você vai perceber que meu plano foi adotado exatamente como eu
propus e agora nós temos um esquadrão na Costa da África com o
objetivo de suspender o tráfico de escravos ... Nos últimos dois anos eu
venho pressionando o governo para estabelecer um tratado com o Brasil,
lembrando-o neste tratado que nós somos os maiores consumidores do seu
café; que praticamente tudo que ele produz é consumido nos EUA, onde
ele é admitido sem pagamento de aduana e, obviamente, seu consumo é
86
“No, my dear cousin, I am not seeking to make slave territory out of free, or introduce slavery where
there is none. Brazil is as much of slave country as Virginia, and the valley of the Amazon is Brazilian. . . I
am sure you would rejoice to see the people of Virginia rise up to-morrow and say, from and after a future
day – say 1st of January, 1855 – there shall be neither slavery nor involuntary servitude in Virginia.
Although this would not strike the shackle from off a single arm, nor command a single slave to go free, yet
it would relieve our own loved Virginia of that curse. Such an act on the part of the State would cause
slave-owners generally either to leave the State with their slaves, or send them off to the Southern markets.
But they would be still slaves in your own country. . .” Corbin, Diana Fontaine Maury. A Life of Matthew
Fontaine Maury. London: Sampson Low, Marston, Searle & Rivington, 1888, pp. 130-131.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 62
87
“You will see that my plan was adopted exactly as I proposed it, and we have now a squadron on the
coast of Africa for the suppression of the slave-trade . . . Now for the last two years I have been urging
upon the Government to make a treaty with Brazil, remind her in that treaty that we are her best customers
for coffee; that nearly all she produces is consumed in the United States, where it is admitted duty free, and
of course the consumption is largely increased thereby. I have urged that we should say to Brazil in that
treaty, Stop the African slave-trade, or we will put a duty on that coffee, and thus lessen the demand for the
fruits of slave labour, and so take away from you the interest in the Tariff Act. . . Brazil is a slave country,
and all the travelers who go there, I am told, say that the black man, and he alone, is capable of subduing
the forests there. To make it clear that the people of Amazonia will have slaves – they are very near the
coast of Africa, and if they cannot get them in one way they will in another. The alternative is, shall
Amazonia be supplied with this class from the United States or from Africa? In the former case it will be
the transfer of the place of servitude, but the making of no new slaves. In the latter it will be making slaves
of free men, and adding greatly to the number of slaves in the world. In the former it would be relieving our
country of the slaves, it would be hastening the time of our deliverance, and it would be putting off
indefinitely the horrors of that war of races which, without escape, is surely to come upon us. Therefore, I
see in the slave territory of the Amazon the safety-valve of the Southern States . . .” Corbin, Diana Fontaine
Maury, A Life of Matthew Fontaine Maury…, pp. 130-132.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 63
O fato da carta ter sido escrita em 1851, quando o Brasil já havia proibido o
tráfico de escravos, parece não importar a mínima a Maury. Tampouco parece que o
silêncio sobre este detalhe possa ser reputado à ignorância do mesmo com relação à
política externa brasileira. O mesmo projeto foi rediscutido, com alguma seriedade,
muitas e muitas vezes até pelo menos 1854, quando todos sabiam do efetivo fechamento
do tráfico e proibição estabelecida pelo Brasil contra a entrada de africanos em seu
território. Mas, o mais surpreendente é que na missiva Maury deixava claro que a
repressão ao tráfico brasileiro exercida pelos EUA derivava de seu projeto. Além do
mais, ele afirma que estava pressionando o governo norte-americano já há dois anos,
portanto desde 1849, para implementar a segunda parte do seu plano – a transferência dos
escravos para a Amazônia - junto ao governo brasileiro.
Embora apenas novas pesquisas venham possibilitar aquilatar o impacto destas
pressões, se é que elas realmente se deram, a amplitude que alcançou toda a onda de
interesse norte-americano pela Amazônia nos aconselha a reavaliar a questão da
proibição do tráfico internacional de escravos pelo Brasil, alcançada, após anos e anos de
postergações, em poucos meses e com discussões secretas do parlamento. Até o momento
duas interpretações tem vigorado: uma primeira, mais tradicional, que considera a
crescente pressão inglesa anti-tráfico como motivo direto da proibição do tráfico
alcançada em 1850. Novas interpretações têm sugerido, no entanto, que se considere
também a pressão exercida pelos escravos, em rebeliões e outras formas de resistência
que eclodiram no sudeste em torno de 1848, as quais teriam sinalizado aos senhores, a
existência de um perigo interno bastante eminente, o da rebelião escrava, alimentada
indiretamente pela pressão inglesa. A percepção, por parte dos fazendeiros, da
possibilidade da perda do controle sobre os escravos em regiões de grandes planteis
poderia ter justificado a solução do fechamento do tráfico, como forma de retomar o
controle da situação.88 No entanto, para além de ambas as interpretações, seria
interessante considerar a pressão norte-americana pela ocupação da Amazônia, que se
daria, de alguma forma, vinculada à transferência dos escravos sulistas para o Brasil,
88
Ver discussão historiográfica sobre o tema em: Needell, Jeffrey. “The Abolition of the Brazilian
Slave Trade in 1850: Historiography, Slave Agency, and Statesmanship”. Journal of Latin American
Studies, 33, 2001, pp. 681-711. Sobre a ameaça da rebelião escrava como fator na proibição do tráfico ver:
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 64
ameaça muitíssimo concreta entre finais de 1849 e 1850, como fator importante neste
evento.
Apesar do fato do projeto de abertura-ocupação da Amazônia ter se esvaziado a
partir de 1854, a idéia de que o Brasil – e especificamente a Amazônia – era a terra
prometida dos sulistas, reapareceu mais de uma vez ao longo da década de 1860, tanto
nas considerações geopolíticas de um sul otimista pré-secessão, quanto como destino
imigratório dos confederados derrotados. Escrevendo em um sul pré-guerra civil, o irmão
de Mrs. Blackford, Lucius, buscando amenizar as preocupações de sua irmã com a
possível secessão, delineou o quadro geopolítico que a aristocracia sulista teria que enfiar
goela abaixo logo depois:
Slenes, Robert, “Malungu, Ngoma Vem! A África Coberta e Descoberta do Brasil”. Revista da USP, São
Paulo: no.12, 1991-1992, pp.48-67, sobretudo p.66.
89
“If South Carolina secedes, probably many (or perhaps all) of the Southern States will do the same in
the course of a short time. A Southern Confederacy (with much more limited powers and patronage than
those now exercised by our present Federal Government) will be organized. In the division of the Public
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 65
property the Southern Confederacy will yield the lion's share to the Northern Confederacy, and after a
good deal of wrangling about the use of Mississippi and Ohio, both parties will settle down to a far more
harmonious and prosperous business and social intercourse than ever. . . The Northern Confederacy will
however soon begin to assume features of anti-republicanism character (and wisely too), approaching (if
not reaching) to a monarchical form. The Southern Confederacy will occupy in a short time the immense
empire that lies between the Free States and South America, the Atlantic and the Pacific, including Mexico
and Central America, embracing the Gulf, with Cuba to guard its gate. Through this gate passes (as Mat.
Maury tells us) the whole trade of South America with Europe and the U.S....”. Blackford, L. Minor. Mine
Eyes Haven Seen the Glory. The Story of a Virginian Lady Mary Berkeley Minor Blackford. Cambridge,
MA: Harvard University Press, 1954.
90
“The United States will be blessed by his (negro’s) absence, and the riddance of a curse which has
well nigh destroyed her; Brazil will receive precisely the species of laborers and citizens best calculated to
develop her resources ....” Hill, Lawrence F., Diplomatic Relations Between the United States and
Brazil…, pp. 161-162.
91
Noto que todo o episódio Webb ainda não foi pesquisado sob o ponto de vista do Império brasileiro.
Apenas, Hill, L. Diplomatic Relations Between the United States and Brazil..., pp. 146-176, tratou do tema.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 66
hibridismo. Além disso, o papel que Agassiz provavelmente se prestou em sua volta aos
EUA, de estimular a imigração norte-americana para o Brasil, se refletiu na vinda de
grupos de confederados. Em suas memórias, alguns remarcaram, por exemplo, que as
otimistas idéias divulgadas por Agassiz sobre a colonização da Amazônia haviam sido o
fator determinante da escolha do país e província de destino.92
92
Sobre propaganda feita por Agassiz do país como terra prometida para imigração, ver: Agassiz,
Louis. “La vallée des tropiques au Brésil”. Revue Scientifique 1874 (2) vol.6 pp. 937-943. Sobre imigração
dos confederados, ver: Harter, Eugene C. The Lost Colony of the Confederacy. Texas: A&M University
Press, 2000, p. 49.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 67
93
Sobre Hartt ver: Freitas, Marcus Vinícius de. Hartt, Expedições pelo Brasil Imperial 1865- 1878,
(Expeditions in Imperial Brazil). São Paulo, Metalivros, 2001, pp. 52-117.
94
Higuchi, H., An updated list of ichthyological collecting stations of the Thayer Expedition to Brazil….
95
Boston: Ticknor and Fields, 1868. Ver Kuri, L., “A Sereia Amazônica ...”
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 68
96
Embora o artigo de Santos, F. V. dos. “Brincos de Ouro, Saias de Chita: Mulher e Civilização
segundo Elizabeth Agassiz em Viagem ao Brasil, 1865-1866”. História, Ciência, Saúde – Manguinhos,
v.12, no.1, jan-abril, 2005, pp. 11-32, recupere a abordagem empática de Agassiz com relação à sociedade
e família amazônicas, o artigo não a contextualiza no conjunto da literatura de viagem feminina do
período, a qual prescrevia o estilo pitoresco como adequado às mulheres. Menos ainda o artigo avalia a
intromissão discursiva de Louis Agassiz e como esta conduz o relato, emprestando-lhe uma direção diversa
àquela dada por Elizabeth.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 69
africanos existentes no Rio de Janeiro da época. Uma terceira série de fotografias foi
realizada em Manaus, tendo um dos integrantes da expedição – Walter Hunnewell - como
fotógrafo, e documentou os tipos mistos ou híbridos amazônicos.
De fato, em Manaus a equipe montou uma base, inclusive pondo a funcionar o
famoso Bureau d’Anthropologie, que tanto desgostou James e Tavares Bastos,
produzindo a polêmica coleção fotográfica dos mestiços (sobretudo mestiças)
amazônicos. É esta uma das mais citadas passagens do diário de James pois nesta seu
autor estabelece claramente uma distância crítica com relação aos procedimentos pouco
éticos adotados por Agassiz, que mostrava estar se utilizando de sua autoridade para
convencer os nativos/as a se deixar fotografar despidos. O episódio todo, que aparece
muito bem explicitado no registro de James, não foi jamais comentado, publicamente,
nem por ele nem por qualquer outra pessoa da expedição. Tão constrangedor foi o
episódio que até hoje, o Peabody Museum da Harvard University não permitiu a
publicação de toda a coleção fotográfica reunida por Agassiz no correr da expedição
Thayer.97 Em Journey to Brazil, Elizabeth, lançando mão do seu usual tom distanciado,
comenta numa rápida passagem, a existência do estúdio fotográfico e do interesse
científico do marido em obter uma documentação fisionômica dos híbridos amazônicos,
capaz de proporcionar os dados por meio dos quais Agassiz pudesse elaborar um quadro
da variedade das mestiçagens locais. O único detalhe que capturou a atenção da autora ao
longo de todo o episódio e que mereceu registro foi a suposta crendice dos locais que
relutavam em se deixar fotografar porque acreditavam que a fotografia roubava-lhes a
alma ou a energia vital, podendo produzir a morte do fotografado.98 Não há dúvida que
esta percepção estava correta, as fotografias do Bureau de Anthropologie ainda hoje
testemunham a violenta apropriação de corpos e de almas, intentada em nome da ciência.
No entanto, a leitura de James da experiência fotográfica caminha em outra
direção e se solidariza com o mal estar demonstrado por Tavares Bastos, o qual indo
encontrar-se com Agassiz presenciou uma cenas do estúdio:
97
A redação de um ensaio sobre aspecto específico da expedição ainda está em andamento. Entre outros
projetos relativos a Expedição Thayer, estudo a possibilidade de publicar esta coleção fotográfica, com a
aprovação do Peabody Museum.
98
Agassiz, E. Journey …, pp. 276-278.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 70
99
“I then went to the photographic establishment and was cautiously admitted by Hunnewell with his
black hands. On entering the room found Prof. engaged in cajoling 3 moças whom he called pure Indians
but who, I thought as afterward appeared, had white blood. They were very nicely dressed in white muslin
& jewelry with flowers in their hair & an excellent smell of pripioca. Apparently refined, at all events not
sluttish, they consented in the utmost liberties being taken with them and two without much trouble were
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 71
induced to strip and pose naked. While we were there Sr. Tavares Bastos came in and ask me mocking if I
was attached to the Bureau d’Anthropologie.” Notebook 4, A.Ms.s., 1865 (4498), Houghton Library.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 72
Bruno, foto Augusto Stahl, Rio de Janeiro, Mina Ondo, foto Augusto Stahl, Rio de
c. 1865, Peabody Museum, 2004.1.436.78, Janeiro, c. 1865, Peabody Museum,
Cortesia President & Fellows of Harvard College 2004.1.436.82
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 75
Toda uma outra perspectiva transparece nos registros legados por William James
em sua passagem pelo Brasil. Desde a primeira vez que passei os olhos pelos papéis
escritos no Brasil pelo jovem James senti que ali palpitava um espírito original, alguém
que, apesar de estar inserido numa viagem naturalista, se colocava numa posição de
independência intelectual. Contrariamente do que se espera de alguém que se engajara
numa expedição de coleta de peixes e materiais geológicos na condição de assistente e
coletor voluntário, James, em seus oito meses de estadia no Brasil, passados, como já se
mencionou, principalmente no Rio de Janeiro e na Amazônia, garatujou cartas
endereçadas a seus familiares, redigiu uma curta narrativa de viagem ao Rio Solimões
(esta incompleta), rascunhou um diário e produziu desenhos de qualidade desigual de
cenas e figuras da expedição, que expressam uma consciência crítica e um
distanciamento moral do empreendimento intelectual colonialista que norteava a
expedição. E é por isso que, embora muito bem conhecidos por todos os estudiosos da
figura carismática de William James, que já os esmiuçaram amplamente, sempre do
ponto de vista de sua formação intelectual, de sua geração e da formação da Harvard
University – como Ralph Barton Perry, Gerald Myers, Howard Feinstein, Kim Towsend,
Louis Menand, Paul Jerome Croce, Daniel Bjork entre muitos outros100 - os registros
brasileiros de James ainda merecem um tratamento que os insira no quadro da literatura
de viagem naturalista do XIX, distinguindo-os por sua especial empatia na análise do
ambiente tropical e das populações não-brancas que o habitavam. Noto ainda que entre os
latino-americanistas apenas Nancy Stepan em seu recente livro, Picturing Tropical
Nature,101 dedicou algum espaço aos papéis relativos à viagem de James ao Brasil. Além
disso, acredito que uma análise informada por esta perspectiva pode oferecer novas
vertentes da própria biografia do fundador do Pragmatismo.
100
Perry, Ralphy Barton, The Thought and Character of William James…; Myers, Gerald. William
James, his life and thought. New Haven: Yale University Press, c. 1986; Feinstein, Howard M. Becoming
William James…; Townsend, Kim, Manhood at Harvard…; Menand, Louis, The Metaphysical Club…;
Croce, Paul Jerome, Science and Religion in the Era of William James… e Bjorn, Daniel W. William
James. The Center of His Vision. Washington (DC): American Psychological Association, 1997.
101
Ithaca, Cornell University Press, 2001.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 79
Claro que os papéis brasileiros de James não são sempre, digamos assim,
iluminados por uma aproximação empática e relativista. Neles James expressou muitos
sentimentos e emoções, como sua ambivalência com relação ao próprio sentido da
viagem, narrou seus momentos de tédio e dúvida, sua vontade de ir o mais rápido
possível para casa, seu mal humor com relação à morosidade ou preguiça dos nativos, tal
como se poderia esperar de um jovem que, engajando-se numa viagem de tal
envergadura, que pretendia percorrer áreas poucos conhecidas da América do Sul, se
separava, pela primeira vez, de uma família absorvente, colocando-se sob os desígnios de
um Agassiz, capaz de decisões erráticas e intempestivas, e que, além do mais, mudava o
roteiro da viagem ao sabor dos acontecimentos, mantendo seus dependentes sempre na
expectativa de suas ordens. Acrescente-se a isso o episódio de catapora sofrida por
James, logo nos seus primeiros meses de estadia no Rio de Janeiro, cujas consequências
poderiam ter sido ainda mais funestas e que o indispôs, compreensivelmente, por meses,
contra a viagem e tudo que a cercava. (Por sinal, lendo os registros do episódio da doença
de James, acredito que ele realmente tenha tido catapora e não, como supôs Agassiz, uma
variante mais benigna desta doença). O fato de que James tenha recebido tão pouca
atenção dos Agassiz, que não deixaram de visitar fazendas em paragens distantes e quase
inacessíveis, enquanto um de seus estudantes passava por riscos de vida consideráveis,
pode explicar o motivo deste julgamento.
Em outros momentos, James simplesmente sucumbiu à exotização, como, por
exemplo, na sua muito citada carta a Henry James, endereçada do “Original Seat of the
Garden of Eden”102, e na qual ele lança mão de imagens derivadas de todo um repertório
padrão de descrição da natureza tropical. Segundo ele:
102
Carta endereçada a Henry James, 15 de julho, 1865. AL: MH bms AM 1092.9 (2550) Houghton
Library.
103
“No words but only the savage inarticulate cries can express the gorgeous loveliness of the walk I
have been taking. Hoop la la! The bewildering profusion & confusion of the vegetation, the inexhaustible
variety of its forms & tints (yet they tell us we are in the winter when much of its brilliancy is lost) are
literally such as you have never dreamt of. The brilliancy of the sky & the clouds, the effect of the
atmosphere wh[ich] gives their proportional distance to the diverse planes of the landscape make you
admire the old Gal nature” Carta endereçada a Henry James, Sr. e Mary Robertson Walsh James. Rio, 21
de abril, 1865, AL: MH bms AM 1092.9 (2511) Houghton Library.
104
“On my left up the hill there rises the wonderful, inextricable, impenetrable forest, on my right the
hill plunges down into a carpet of vegetation wh[ich] reaches to the hills beyond, wh[ich] rise further back
into mountains. Down in the valley I see 3 or four of the thatched mud hovels of negroes, embosomed in
their vivid patches of banana trees” Carta endereçada a Henry James, Sr. e Mary Robertson Walsh James.
Rio, 21 de abril, 1865, AL: MH bms AM 1092.9 (2511) Houghton Library.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 81
altura o século, fazer pequenas excursões de recreio e picnics. Além disso, a excursão
liderada por Agassiz, pernoitou no local, hospedando-se no Hotel Bennet, de propriedade
de um inglês, que possuía instalações bastante modernas e agradáveis. Assim, muito
longe estava a Tijuca de proporcionar uma experiência de selva tropical, como, de fato,
James teria em sua estadia nos meses seguintes na Amazônia.
No entanto, quando se espera que James seja convencional e que repita o que dele
se espera, isto é, loas ao exotismo dos nativos e odes a uma natureza misteriosa,
atemporal e associal, na qual o viajante pressentindo os riscos de uma experiência interna
de liberação inconsciente, estabelece um seguro distanciamento emocional, ele arrisca e
se mostra tanto particularmente perspicaz na demolição do mito da natureza tropical
quanto capaz de empatizar com o que vê, sobretudo com as populações nativas. E não
mais que de repente somos convidados a descobrir que o Rio de Janeiro era uma cidade
de ares europeus (As ruas e lojas da cidade te lembram muito da Europa)105, que a
Amazônia é relativamente civilizada (Esta expedição tem sido muito menos aventurosa e
muito mais pitoresca que eu esperava. Eu também não vi ainda nem uma única cobra
selvagem aqui ...106), que o ambiente tropical, ao fim e ao cabo, não é assim tão
misterioso, mas, às vezes, meio tedioso e repetitivo (... aqui tudo é tão monótono, na vida
e na natureza, que você é embalado numa forma de adormecimento....107).
James se revela, sobretudo, quando se mostra capaz de empatizar com os
moradores locais, guias, pescadores e outros, índios, negros e mestiços que
acompanharam suas excursões de coleta, muitas vezes como suas únicas companhias. Em
uma de minhas passagens prediletas, James, obviamente em dia de grande inspiração,
observando a conversação dos seus barqueiros com um grupo de mulheres indígenas ou
mestiças que pilotavam uma montaria rio abaixo, em algum ponto do Rio Solimões, se
pergunta:
105
“The streets in town & shops remind you so much Europe …” Carta endereçada a Henry James, Sr.
e Mary Robertson Walsh James. Rio, 21 de abril, 1865, AL: MH bms AM 1092.9 (2511) Houghton
Library.
106
“This expedition has been far less adventurous & far more picturesque that I expected. I have nor yet
seen a single snake wild here …” Carta endereçada a Henry James, Sr. e Mary Robertson Walsh James.
Teffé ou Ega, 21 de outubro, 1865. ALS: MH bms AM 1092.9 (2517).
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 82
Fico imaginando, como sempre faço, frente ao tom urbano e polido das
conversas entre meus amigos e a velha. Seria a raça ou as circunstâncias
que fazem estas pessoas tão refinadas e bem educadas? Nenhum
cavalheiro da Europa tem mais polidez e, ainda assim, estes são
camponeses.108
107
“…here all is so monotonous, in life and in nature that you are rocked into a kind of sleep . . .”Carta
endereçada a Mary Robertson Walsh James. Óbidos, 9 de dezembro, 1865, ALS: MH bms AM 1092.9
(3123) , Houghton Library.
108
“I marveled, as I always do, at the quiet urbane polite tone of the conversation between my friends
and the old lady. Is it race or is it circumstance that makes these people so refined and well bred? No
gentleman of Europe has better manners and yet these are peasants.” William James Diary 1865-1866,
A.Ms.s., 1865, 4498, Houghton Library.
109
“If there is any thing I hate it is collecting …” Carta endereçada a Henry James, Sr. e Mary
Robertson Walsh James. Teffé ou Ega, 21 de outubro, 1865. ALS: MH bms AM 1092.9 (2517) Houghton
Library.
O Adão Norte-Americano no Éden Amazônico 83
“Sob os auspícios do Sr. D. Pedro II, passou o vapor da bacia do Prata para o
Amazonas, e veio chamar à civilização e ao comércio os esplêndidos sertões do
Araguaia, com mais de vinte tribos selvagens, no ano de 1868”.
1
Texto apresentado ao Congresso Internacional “América 92 Raízes e Trajetórias” (São Paulo, agosto
de 1992), publicado na coletânea Monteiro, John; Azevedo, Francisca (orgs.). Confronto de Culturas. São
Paulo: EDUSP/Expressão e Cultura, 1996, pp. 369-382.
2 Machado Maria Helena P. T. Crime e Escravidão. Trabalho, Luta e Resistência nas lavouras
paulistas. 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987 e O Plano e o Pânico. Os Movimentos Sociais na
Década da Abolição. Rio de Janeiro – São Paulo: Ed. Da UFRJ-Edusp, 1994.
Um País em Busca de Moldura 88
3
Rebouças, André. Agricultura Nacional: Estudos Econômicos; Propaganda Abolicionista e
Democrática 2a edição fac-similar, Recife: Massangana, 1988.
4
Nabuco, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife. Eleições de 1884. 2a edição fac-similar, Recife:
Massangana, 1988.
Um País em Busca de Moldura 89
Ora, através do acesso à pequena propriedade rural, o que buscava Rebouças era o
caminho para não apenas exterminar o regime escravista mas, sobretudo, para erradicá-lo
da mentalidade dominante. A radical reformulação da concepção de trabalho, base para
toda a transformação, seria alcançada através da introdução da pequena propriedade, do
direito à educação básica e técnica, que contemplaria a todos os pequenos proprietários e
da proteção ao direito à propriedade da gleba àqueles que nela permanecessem.
A transformação do liberto em colono proprietário, educado para o trabalho mais
rudimentar, porém racional e produtivo, tutelado por uma elite esclarecida e recebendo
tratamento igual aos homens livres e imigrantes serviria, desta forma, para eliminar os
traços remanescentes da escravidão. Oferecendo ao colono liberto condições de superar
sua condição de inferioridade social e econômica, a via reformista-paternalista proposta
por Rebouças, colocava-se contra toda a corrente de pensamento a qual preocupada em
eliminar do país a instituição nefanda, via na exclusão de suas vítimas a única saída.
Ponto de vista similar era externado nos anos de 1884, por Nabuco, então na sua fase
mais radical. Em discurso proferido no meeting popular ocorrido na Praça de São José do
Riba Mar, no Recife, Nabuco agitava o povo miúdo que ali se reunia, bradando pela
5
Machado, O Plano e o Pânico..., cap. 4, "Cometas , Caifazes e o Movimento Abolicionista", pp. 143-
174.
6
Rebouças, Agricultura Nacional..., p. 126.
Um País em Busca de Moldura 90
7
Nabuco, Campanha Abolicionista..., p. 47.
8
Nabuco, Campanha Abolicionista..., p. 49.
9
Dias, Maria Odila Leite da Silva. O Fardo do Homem Branco. Southey, Historiador do Brasil. São
Paulo: Cia Editora nacional, 1974, pp. 1-19.
Um País em Busca de Moldura 91
historiografia do Império, embora voltada para a afirmação dos valores nacionais, nascia
já sob a influência do pensamento conservador britânico, delimitada pela esfera da
cultura européia e imperialista dos inícios do século XIX.
Interessante notar que, expressando agudamente os dilemas da nacionalidade, a
literatura e a historiografia do Império refletiam de maneira viva a problemática da
delimitação de uma paisagem tanto geográfica quanto humana tipicamente brasileiras. De
um Brasil que não é longe daqui, descrito por Sussekind10, Deitado em berço
esplêndido11, como o vê Rouanet através dos olhos de Ferdinand Denis, e que se expressa
num Estilo Tropical como propôs Ventura12 em relação a geração dos anos de 1870,
muito se pensa e muito se fala, a partir sobretudo do segundo quartel do século, na
construção de uma expressão particular da paisagem brasileira, sempre a-historicizada
pela virgindade e exotismo. Tratava-se então de buscar fixar a alma do Brasil, através da
absorção de todo um conjunto de informações provenientes de estudos e observações de
diferentes tipos, porém predominantemente aqueles calcados nos livros de viagens dos
naturalistas.13
Conforme nota Sussekind em ensaio sobre a constituição da figura de um narrador
na prosa romântica da primeira metade do século XIX, a construção de uma prosa de
ficção dita "nacional" baseava-se na ordenação de uma paisagem naturalizada e
atemporalizada pela visão classificatória do viajante em trânsito.14 Delimitação de
paisagens pitorescas, de acidentes geográficos, de particularidades naturais, de rios, de
serras, de horizontes verdejantes e de selvas tropicais: indicam a tentativa de definir um
perfil original e propor uma unidade para uma entidade chamada Brasil. A obsessão
cartográfica da nascente prosa romântica, a extrema valorização das narrativas de viagens
dos naturalistas estrangeiros, desembocam, em certo sentido, na marcada tendência da
época em projetar o nacional no geográfico, buscando dali retirar os contornos da
10
Sussekind, Flora. O Brasil Não É Longe Daqui: O Narrador, A Viagem. São Paulo: Cia das Letras,
1990.
11
Rouanet, Maria Helena. Eternamente em Berço Esplêndido. A Fundação de uma Literatura Nacional.
São Paulo: Siciliano, 1991.
12
Ventura, Roberto. Estilo Tropical: História Cultural e Polêmicas Literárias no Brasil. São Paulo: Cia
das Letras, 1991.
13
Rouanet, Eternamente…, pp. 102 e 115.
Um País em Busca de Moldura 92
identidade nacional. Ausente nas feições da população, nas quais encontram-se as marcas
e as cores de muitas raças e muitas coerções, a nação acabava reduzida a sua projeção
territorial.15
Porém, nesta paisagem que é, em princípio, própria de uma viagem e na qual os
naturalistas imprimem fundas impressões, trafegam os seres que mal ou bem, devem
compor o perfil humano do homem americano. Assim, aliada à questão da constituição
de uma paisagem brasileira, impunha-se, a definição de uma identidade nacional, a
delimitação de um povo. Positivismo, racismo, evolucionismo e muitos outros ismos, em
diversas modalidades e orientações, buscavam deslindar o nó do problema racial no qual
se fundava as possibilidades de existência de uma nação mestiça. Raça e natureza
tornaram-se, deste modo, pólos definidores da história e da literatura nacional até já bem
adentradas décadas do século XX.16
Ora, tão incomodamente presente no dia-a-dia do século, o homem negro
encontrava-se pouco representado tanto nos projetos de construção de uma historiografia
nacional, que tinham seu epicentro no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado
na Corte, a partir de 1838, quanto na literatura romântica. Ausência bastante significativa
neste contexto, uma vez que se considere que era no âmbito do Instituto que se colocava
a questão da construção de uma historiografia nacional, capaz de sintetizar nação,
civilização e unidade imperial. Baseado na concepção iluminista de uma história que
caminhava, em linha evolutiva, na senda do progresso, uma das mais difíceis tarefas a ser
articulada e resolvida pelo Instituto era a do papel da civilização branca e das culturas
bárbaras na fundação da nacionalidade.17 De forma que, quando se considera que o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se tornara fórum privilegiado na construção de
uma história nacional, entendida esta enquanto meio indispensável na delimitação da
nacionalidade, a história que aí foi forjada expressa uma concepção de nação, delimitada
14
Sussekind, O Brasil não é Longe…, p.46.
15
Moraes, Antonio Carlos Robert. "Notas sobre identidade nacional e institucionalização da geografia
no Brasil". Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, no. 8, 1991, p. 169.
16
Ventura, Estilo Tropical…., pp. 40-45.
17
Guimarães, Manoel Luís Salgado. "Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional". Estudos Históricos, Rio de Janeiro, no. 1,
1988, pp. 5-27.
Um País em Busca de Moldura 93
pela sucessiva exclusão de todos aqueles que não se amoldavam aos padrões da cultura
europeizante e civilizatória.
Neste sentido, a exclusão mais significativa ficava, realmente, por conta do
homem negro. Assunto desagradável, o negro com o qual se topa no vai-e-vem das ruas,
que se entranha na vida diária das famílias e que marca cada etapa da vida cotidiana,
encontra nas páginas da literatura e da história uma exclusão bastante significativa.18
Tratamento radicalmente diferente, porém, parece, à primeira vista, terem
recebido as populações indígenas. A valorização do índio como fonte da personalidade
americana, a idealização do selvagem, o indianismo, foram temas de larga aceitação,
redundando em todo um movimento de valorização das coisas da terra. A divulgação dos
textos dos cronistas coloniais, a elaboração dos primeiros estudos antropológicos e
lingüísticos de caráter "científico" sobre o assunto, as pesquisas sobre o significado dos
nomes e lugares de origem indígena, nas quais se notabilizou Teodoro Sampaio19, que
por sinal, além de ter sido baiano, era mulato. E, mesmo mais prosaicamente, uma certa
moda que atingiu algumas das importantes famílias do Império, que consistia na mudança
dos sobrenomes de origem por outros, mais brasileiros, de raiz indígena, como Tibiriçá,
Piratininga, etc...
Lembro aqui como exemplo das tendências acima descritas, a famosa dissertação
de Martius, "Como se deve escrever a História do Brasil", oferecida ao Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro em resposta ao apelo do mesmo em receber projetos a respeito da
composição de uma História do Brasil.20 Publicada em 1845, a dissertação de Martius,
este primor de projeto historiográfico do século XIX, afirma, já em sua primeira seção de
idéias gerais que
... brancos haverá, que a uma tal ou qual concorrência dessas raças
inferiores [negros e índios] taxem de menoscabo à sua prosápia; mas
18
Guimarães, Manoel L. Salgado, Nação e Civilização…, e Schwarcz, Lilia M. Os Guardiões da Nossa
História Oficial: Os Institutos Históricos e Geográficos brasileiros. São Paulo: IDESP, 1989, pp. 7-28.
19
Sampaio, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional. 5a edição, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1987.
20
Von Martius, Carl F. P. "Como se Deve Escrever a História do Brasil" in: O Estado do Direito Entre
os Autóctones do Brasil. São Paulo/ Belo Horizonte: Itatiaia/ EDUSP, 1982.
Um País em Busca de Moldura 94
também estou certo que eles não serão encontrados onde se elevam vozes
para uma historiografia filosófica do Brasil [grifo no original].21
21
Von Martius, Como se deve escrever…, p. 87-8.
22
Von Martius, Como se deve escrever…, p. 89.
23
Von Martius, Como se deve escrever…, pp. 91-4.
Um País em Busca de Moldura 95
24
Couto de Magalhães, José Vieira. O Selvagem. Trabalho Preparatório para o Aproveitamento do
Selvagem e do Solo por Ele Ocupado no Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1975.
25
Couto de Magalhães, O Selvagem…, p. 21.
Um País em Busca de Moldura 96
26
Veja-se, por exemplo, Rendon, José Arouche de Toledo. "Memória sobre as aldeias de índios da
Província de São Paulo, segundo as observações feitas no ano de 1798." Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 4, 1842, pp. 295-317; Oliveira, José Joaquim Machado. "Notícia Raciocinada sobre
as Aldeias de Indios da Província de São Paulo, desde o seu Começo até a Atualidade." Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, 8, 1846, pp. 204-54; e Pinto Junior, Joaquim Antonio. "Memória sobre a
Catequese e Civilização dos Indígenas na Província de São Paulo," Revista da Sociedade de Etnografia e
Civilização dos Indios, 1, 1901, pp. 59-72.
27
Sobre a biografia suscinta de Couto de Magalhães consultar: Leite, Aureliano. O Brigadeiro Couto de
Magalhães. Rio de Janeiro: Sauer, 1936, e os prefácios à obra O Selvagem, inclusos na edição
comemorativa do centenário da 1a edição, da Itatiaia/EDUSP, de autoria de Vivaldi Moreira e a reprodução
do prefácio à 2a edição de Couto de Magalhães, sobrinho do autor. Ver também os prefácios e nota
existentes em Viagem ao Araguaia de Couto de Magalhães, 7a edição, São Paulo, Cia Editora Nacional,
1975, de autoria de Fernando Sales (nota), pp.7-8, reprodução de notícia biográfica d'O Brasil
Contemporâneo, Semanário sob a direção de J. Navarro de Andrade, ano I, no. 35, São Paulo, 6/11/1887,
Um País em Busca de Moldura 97
pp. 9-13 e reprodução de prefácio à 2a edição desta obra de autoria de Couto de Magalhães Sobrinho e José
Couto de Magalhães Filho, pp. 15-28.
28
Couto de Magalhães, O Selvagem…, p.141.
Um País em Busca de Moldura 98
Da cartilha evolucionista tira Couto, porém, uma lição pessoal pois, se nas
décadas mais avançadas do século as teorias raciais e evolucionistas recobrem todo um
setor do pensamento brasileiro, as leituras e conclusões que delas se tiram são bastante
variadas.30 Caberia, talvez, considerar o evolucionismo mais como um paradigma ao qual
todos se reportam do que um corpo teórico bem delimitado.31
Assim, da lei da perfectibilidade humana retira Couto, ao contrário da maior parte
de seus contemporâneos, a lição do relativismo pois, nota o mesmo que, embora as
sociedades humanas muito divirjam em termos de graus de civilização, disto não se pode
inferir conceitos de superioridade e inferioridade pois, inscritas todas num continuum
evolutivo o que as diferencia é apenas o lugar ou o estágio em que elas se encontram no
caminho inexorável da evolução.32
29
Couto de Magalhães, O Selvagem…, p.27.
30
Ventura, Estilo Tropical..., aborda bem a questão das diferentes correntes e interpretações que
existiram ainda no século XIX e primeiras décadas do XX, a respeito do evolucionismo, determinismo,
ação do meio, fatores raciais e climáticos, etc... que acabam por produzir visões a respeito do Brasil e do
povo brasileiro bastante diferentes.
31
Lima, Antonio Carlos de Souza. "Sobre Indigenismo, Autoritarismo e Nacionalidade: Considerações
sobre a constituição do discurso e da prática da proteção fraternal no Brasil" in: Oliveira Filho, João
Pacheco (org.). Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987, pp. 149-
204.
32
Assim, por exemplo, afirma o autor na seguinte passagem: "As instituições fundamentais dos povos,
qualquer que seja seu grau de civilização ou barbárie, são o resultado necessário das leis eternas de moral
e justiça que Deus criou na consciência humana, leis que em fundo são as mesmas no selvagem ou no
homem civilizado, embora suscetíveis de manifestações diversas, segundo o grau de adiantamento que
cada um tiver chegado." Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 84.
Um País em Busca de Moldura 99
33
Couto de Magalhães, O Selvagem..., pp. 101-102.
34
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 66.
Um País em Busca de Moldura 100
Claro está, que esta incorporação se faria, no ponto de vista de Couto e de muitos
outros seus contemporâneos, pela via conservadora do paternalismo, da tutela, da
absorção e concomitante desaparecimento das raças bárbaras, dada a sua inferioridade
frente à branca. Porém, passando ao largo das simplificações e anacronismos, cabe
delimitar o peso de um pensamento incorporador do elemento nacional frente a um
panorama que, no correr do século, caminhou no sentido de reforçar preconceitos e
reafirmar exclusões, capazes de justificar a marginalização quase completa da mão-de-
obra nacional das atividades econômicas mais rentáveis e integradas da economia de
mercado brasileira.
A originalidade do pensamento de Couto de Magalhães a respeito da realidade
brasileira da segunda metade do século XIX, seus projetos integracionistas e seu
devotamento às causas nacionais, da maneira como elas se colocavam em sua época e da
maneira como elas foram incorporadas mais tarde, já no século XX, tanto por
indigenistas e antropólogos, na constituição da SPI (Serviço de Proteção aos Índios),
quanto pelos políticos nacionalistas, são alguns dos assuntos que aí estão a suscitar um
estudo mais aprofundado.
Em termos historiográficos, a análise do pensamento de Couto de Magalhães, no
contexto da segunda metade do século XIX e de suas releituras no adentrar das primeiras
décadas do XX, muito pode contribuir para o esclarecimento de questões fundamentais
relativas à construção de um perfil nacional pelas elites imperiais, assunto concernente ao
elemento nacional e ao papel a ele dedicado nas páginas de nossa história.
Capítulo 3
A NATUREZA, O SELVAGEM E O PROGRESSO:
Os Projetos Nacionais dos Intelectuais
e dos Burocratas do Segundo Reinado1
Redigido por Tavares Bastos em 1865, a bordo do vapor Icamiaba que descia
lentamente o Solimões, o trecho acima expressa o anseio maior e a esperança mais tenaz
de gerações de intelectuais e políticos a respeito dos destinos do Brasil: a de que o sol
ocidental viesse aquecer as paragens mais remotas do Império nas quais as sombras do
selvagem continuavam a acusar a fragilidade da civilização. Sol ocidental que emanaria
1
Versão deste texto foi publicada como: “O Olhar Imperial sobre a América”, Anais do XX Simpósio da
ANPUH (História: Fronteiras), vol. 1, São Paulo: ANPUH, 1999, pp. 437-454.
2
Bastos, A. C. Tavares. “Carta a uma Comissão de Manaus. A bordo do Ycamiaba, 17 de nov. de
1865”. In: O Vale do Amazonas. Estudo sobre a livre navegação do Amazonas, Estatísticas, Produções,
Comércio, Questões Fiscais no Vale do Amazonas. Rio de Janeiro: Garnier, 1866, p. 317.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 102
3
Tavares Bastos, A. C. Cartas de um Solitário; estudos sobre reforma administrativa, ensino religioso,
africanos livres, liberdade de cabotagem, abertura do Amazonas...Rio de Janeiro: Tip. Atualidade, 1862 e
O Vale do Amazonas...
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 103
4
Pratt, Mary Louise. Olhos do Império. Relatos de Viagem e Transculturação, Bauru, Edusc, 1999. pp.
186-7.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 104
sonhos mais caros à estas facções modernizadoras de nossa elite, nos relatos de viagem
do viajante nacional, em suas propostas de reforma e modernização, encontram-se
descritas as possibilidades de integração modernizadora dos sertões mais ermos e das
paragens mais dilatadas do território brasílico, dos sertões da Amazônia, do Mato Grosso
e Goiás. Nestes sonhos surgem com constância cenas otimistas de progresso material das
regiões mais parcamente civilizadas ou claramente selvagens, com figuras de trens
cortando planícies sem fim, vapores vencendo distâncias incalculáveis, estabelecendo
redes de comércio e troca, dinamizando os ritmos mais acanhados, estimulando as
iniciativas pessoais e, mais que tudo, estabelecendo o universo comum da nacionalidade.
Tudo isso movido pelo trabalho laborioso de selvagens, transformados em operários do
progresso e da disciplinada. Às imagens repletas de cenas risonhas de progresso e
desenvolvimento – imagens estas que nossas consciências de final de século e milênio
registram como o horror dos horrores – de barcos a vapor singrando rios selvagens, de
estradas de ferro rasgando selvas virgens e de índios e bugres diligentemente cortando
árvores colossais para alimentar as fornalhas dos mostrengos modernos, outras se
antepõem, marcadas por sentimentos de perda, de solidão e aniquilação, nas quais a
figura humana encontra-se esmagada pela pujança da natureza. Pois, se na equação do
progresso e modernização a natureza e o selvagem, que surge com ela mimetizado, são os
obstáculos a ser o mais prontamente possível eliminados, a sua destruição acarreta perda
irreparável do modo-de-ser nacional.
E se perguntarmos exatamente qual o prejuízo que causa a destruição de uma
natureza tão selvagem e intratável poderemos, talvez, começar a encontrar a resposta
numa outra série de visões, filiadas agora às imagens positivas da emergência das jovens
nações americanas e o papel que estas teriam a desempenhar no “concerto das nações”.
Nesta operação, a América selvagem se desdobra numa América jovem, possuidora
daquilo que a velha Europa, exaurida por um excesso civilizatório, anti-natural e
corruptor, mais necessita: vitalidade, pureza e simplicidade. Assim, sobrepondo-se às
imagens sombrias, a natureza agora aparece como reservatório de uma pureza intocada
5
Sarmiento, Domingo F. Civilizacion y Barbarie: Vida de Juan Facundo Quiroga. México: Editorial
Porrúa, 1991.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 105
6
Bastos, Tavares, Cartas de um Solitário..., pp. 3-4
7
Haveria aqui alusão intencional às teses de Buffon e sobretudo às do Abade Raynal sobre a
imaturidade da natureza e do homem americanos, associado no caso de Raynal, à degeneração precoce do
homem destas regiões, que da infância passaria diretamente para a decrepitude? Gerbi, Antonello. O Novo
Mundo. História de uma polêmica. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp. 19- 59.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 106
8
Dias, Maria Odila L. da Silva. O Fardo do Homem Branco. Southey, o Historiador do Brasil. São
Paulo: Cia Ed. Nacional, 1974, pp. 1-20 e 255-296 e “Interiorização da Metrópole. (1808- 1853)” in:
Motta, Carlos Guilherme (org.). 1822. Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1986.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 107
9
Mattos, Ilmar Rohloff. O tempo de Saquarema. A Formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec,
1990, sobretudo parte II, pp. 103-192. Uricoechea, Fernando. Minotauro Imperial, Rio de Janeiro/ São
Paulo: Difel, 1978, cap. III, pp. 81-124.
10
. Sussekind, Flora. O Brasil não é longe daqui. O Narrador, a Viagem. São Paulo: Cia das Letras,
1990, parte III, “Figurações de um Narrador”, pp. 156- 276.
11
. Schwarcz, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil. 1870-
1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993, pp. 99- 116 e As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca
nos trópicos. São Paulo: Cia das Letras, 2002, pp. 119- 126.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 108
12
. Sobre a atuação do poder colonial em suas tentativa de ocupar o sertão, sobretudo a partir do sec.
XVIII, ver : Holanda, Sérgio Buarque de. Monções. 30. ed. ampliada, São Paulo: Brasiliense, 1989, pp.240-
316 e Sousa, Laura de Mello. “Formas Provisórias de existência: vida cotidiana nos caminhos, fronteiras e
nas fortificações”, in: História da Vida Privada. Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. Laura
de Mello e Souza (org.), São Paulo: Cia das Letras, 1997, pp. 41- 82. Para o século XIX ver as propostas
de fundação de quartéis e escolas para crianças índias da iniciativa de José Vieira Couto de Magalhães
explicitadas por exemplo no “Prefácio à 2o. edição” do livro O Selvagem. Belo Horizonte/ São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1975, pp. 13- 17.
13
. Dias, Maria Odila Leite da Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, vol. 278, jan/ jun 1968, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, pp. 105- 170.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 109
duas inserções se fazem presentes. Uma primeira remonta a uma formação de cunho
liberal, existente na Academia de Direito de São Paulo, que se responsabilizou por formar
parcela significativa da burocracia do Império.Como notou Adorno, o liberalismo
brasileiro foi, durante muito tempo, monopolizado pelo bacharel que, profissionalizando-
se no mundo da política, abraçou causas nacionais, sempre inspirados por uma ação
civilizatória. Neste sentido, liberalismo de cunho jurídico, veiculado pela Faculdade de
Direito do largo São Francisco, que desde 1828 passara a formar os filhos das elites
plantadoras e os principais contingentes da burocracia do estado imperial, fundamentou a
constituição de uma consciência nacionalista que encontrou sua base em princípios éticos
e jurídicos e que foi abraçada pelos construtores do estado. No entanto, ressalte-se que,
conforme sublinha o autor, a incorporação de um liberalismo de base ética-jurídica deu-
se por meio do descarte do desafio democrático.14 Portanto, no decorrer do II Reinado, o
significativo número de políticos profissionais, ministros, deputados, conselheiros,
estadistas etc que formados pela concepção liberal-bacharelesca, disseminada pela
Faculdade de Direito paulista, se incorporaram à vida política nacional, assim o fizeram
por meio da defesa de uma concepção ao mesmo tempo liberal e nacionalista - não
importando o quanto isto possa parecer estranho.15 Equação que se tornava viável na luta
pela construção de um estado forte e integrador, capaz de assegurar a liberdade e
segurança da parcela da população com direitos à cidadania.16 O envolvimento com a
causa nacional, nos quadros da burocracia do Império, nas presidências de província,
como por exemplo a atuação de Couto de Magalhães enquanto Presidente da província de
Goiás, na defesa da navegação a vapor do Araguaia,17 ou ainda por meio da atuação
política ou na imprensa – como o fez Tavares Bastos que, deputado atuante na Câmara,
encontrou na atividade de publicista, em suas famosas Carta de um Solitário,18 seu
14
Adorno, Sérgio. Os Aprendizes do Poder: O Bacharelismo Liberal na Política Brasileira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 75 a 78.
15
Adorno, Os Aprendizes do Poder..., consultar Quadro I, pp. 121- 131.
16
Vide análise esclarecedora de Mattos, O Tempo de saquarema..., sobretudo Parte II, “Luzias e
Saquaremas”.
17
Vide:Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia, col. Brasiliana, São Paulo: Cia Editora Nacional,
1975 e Couto de Magalhães, Diário Íntimo. Maria Helena Machado (org.), São Paulo: Cia das Letras, 1998.
18
Bastos, Aureliano C. Tavares. Cartas do Solitário ao Redator do Correio Mercantil. Liberdade de
Cabotagem. Abertura do Amazonas. Rio de Janeiro: Tip. Correio Mercantil, 1863.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 110
19
Motta, Jehovah. Formação do Oficial do Exército. Currículos e regimes na academia Militar, 1810-
1944, Rio de Janeiro: Editora Companhia de Artes Gráficas, 1976, cap. 1.
20
Taunay, Alfredo d’Escragnolle. Reminiscências. São Paulo: Melhoramentos, 1923.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 111
dizer, seu meio ambiente natural. Assim, foi por meio da formação militar prático-
científica que uma determinada inserção na questão nacional começa a ser gestada e que
encontrou, por afinidade de interesse e razão social, a figuração de um Brasil que se faz
distante do mundo que da corte que, na segunda metade do XIX, sob o influxo dos ideais
europeizantes, começava a expurgar características coloniais, abraçando os ideais de uma
urbanização disciplinarizadora de extração burguesa. A juventude que formava-se na
Academia Militar, sediada ela própria no Rio de Janeiro, embora participasse da vida da
corte, acompanhando sua vida política e, muitas vezes, participando de seus saraus, tinha
os olhos postos na paragens mais remotas, nos territórios incultos e nos dilatados sertões
que perfaziam a maior parte do território nacional. Acrescente-se que, se desde seus
primórdios a Academia Militar vai possibilitar a educação de jovens menos abastados do
que aqueles que procuravam a Academia de Direito de São Paulo, sobretudo com a
criação do oficial aluno, é também verdade que os cursos de engenharia, que
demandavam longos sete anos de estudos vai funcionar como formador da elite militar.
Embora a instituição do exército se mantivesse relegada a segundo plano e sua formação
carecesse do prestígio da formação em leis, é também, verdade que a Academia formou
uma elite militar que no II Reinado, sobretudo por conta da Guerra do Paraguai e das
crescentes exigências de integração dos territórios mais remotos, vai encontrar um espaço
de atuação.21 E se a formação científico-prática para a qual se voltava a Academia Militar
relegava os estudos da história pátria e militar para segundo plano, é também verdade que
a formação militar valorizava os estudos da geografia – inclusive formando engenheiros-
geógrafos – sensibilizando oficiais e engenheiros para a realidade territorial, para os
estudos da natureza brasílica e para a construção de uma figuração nacionalista que se
realizava por meio da vivência de um Brasil extra-urbano, sertanejo e arredio aos
estrangeirismos e modismos da corte. Neste ambiente intelectual reatualizava-se os feitos
jesuíticos e a atuação dilatadora do território dos exploradores coloniais na figura dos
bandeirantes e dialogava-se com os sábios naturalistas e viajantes estrangeiros que então
dissecavam a natureza da natureza e da raças brasílicas.
21
Ver Carvalho, Maria Alice Rezende de. O Quinto Século. André Rebouças e a Construção do Brasil.
Rio de Janeiro: Revan, 1998, em sua análise sobre a formação de André Rebouças na Academia Militar, pp.
83-88.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 112
22
João Severiano da Fonseca, médico, militar, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Alagoas,
condecorado na Guerra do Paraguai, Comendador da Imperial Ordem da Rosa e autor de Viagem ao Redor
do Brasil (1857-78), Rio de Janeiro: Tip. Pinheiro, 1880.
23
Tavares, Rufino. O Rio Tapajós. Memória onde se estuda semelhante tributário do Amazonas, não só
como elemento de riqueza e uma das melhores vias de comunicação, como também porque todo o
território que banha é o dos mais apropriados para o estabelecimento de colônias agrícolas e industriais.
Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1876.
24
Lago, Antônio Florêncio Pereira. Relatório de Estudos da Comissão Exploradora dos Rios Tocantins
e Araguaia. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1876.
25
Matos, João Wilkens de. Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarca, desde a cidade da Barra do
Rio Negro Capital da província do Amazonas, até a Povoação de Nauta na província do Peru. Rio de
Janeiro: Tipografia Nacional, 1855.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 113
26
Alfredo d’Escragnolle Taunay, 1843-1899, ressalte-se as obras Cenas de Viagem, de 1868,
Narrativas Militares. Cenas e Tipos, 1878, Céus e Terras do Barsil. Cenas e Tipos; Quadros da Natureza;
Fantasias, de 1882, Reminiscências, 1907 e Memórias, de 1948. Sobre o romance Inocência ver, Bosi,
Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994, pp.144-145.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 114
27
Dias, Maria Odila Leite da Silva. A Interiorização da Metrópole...
28
Mattos, Ilmar R. O Tempo de Saquarema...,pp. 193-250.
A Natureza, o Selvagem, o Progresso 115
1
. Este capítulo começou a ser elaborado no decorrer do meu estágio de pós-doutorado, nos anos de
1993-4, contando com financiamento FAPESP e foi finalizado, no ano de 2002, sob os auspícios do CNPQ.
Partes diferentes deste texto foram apresentadas na Reunião Anual da ANPOCS (1993), no Encontro
Regional de História da ANPUH (1996) e no Simpósio Nacional de História da ANPUH (1999). Revista da
USP. Dossiê Brasil Império, no. 58, junho/julho/agosto/2003, pp. 134-147.
A Sensualidade como Caminho 117
leitor deste gênero. O confronto entre os dois gêneros - o livro de viagem e seu diário -
estabelece uma perspectiva complexa para análise das tensões entre a experiência da
viagem e o relato publicado da mesma. Conforme notou J. Fabian ao analisar a literatura
de viagem produzida pelos exploradores e etnólogos europeus na África Central dos
finais do XIX, os relatos de viagem do período são usualmente considerados como frutos
de uma observação racional, baseada em critérios científicos. Porém, por trás desta
aparente racionalidade encontra-se um viajante de moral vitoriana, vulnerável à fome,
fadiga, febres, opiáceos e exposto a contatos e relacionamentos sexuais com homens e
mulheres que agiam segundo padrões totalmente contrários aos do viajante.2 A inclusão
desta perspectiva na análise da literatura de viagem produz novos patamares para a
compreensão do tema, tornando-se o objetivo deste capítulo.
Para tal, aborda-se inicialmente o diário íntimo e privado como gênero literário
próprio à experiência histórica das burguesias européias e norte-americanas do século
vitoriano, estabelecendo os laços entre o surgimento de um noção de individualidade
burguesa e o gênero confessional dos diários. Numa segunda etapa, introduz-se o gênero
da literatura de viagem característica desta época, procurando assinalar suas conexões
com o projeto literário de apropriação das áreas coloniais do globo, concretizado por
meio de um tipo de narrativa, entendendo, portanto, este gênero como tradutor do
processo histórico de conquista colonial, ocorrida entre a segunda metade do XIX até a
Primeira Grande Guerra. Estabelecendo a conexão entre estes dois estilos narrativos, isto
é o do diário íntimo e da literatura de viagem, o capítulo sugere a íntima conexão
existente entre a viagem geográfica, a viagem narrativa e a vivência da viagem como
experiência íntima e confessional, apontando para a presença de profundas inter relações
entre estes dois gêneros de literatura. Ilustrando esta análise, apresenta-se dois diários, de
autorias de Roger Casement e do General Couto de Magalhães, sublinhando um aspecto
que embora seja pouco visível a partir da análise da obra pública do autor-viajante, se
caracteriza como uma área extremamente significativa da experiência do viajante. Trata-
se de enfocar a questão da sexualidade, enquanto território íntimo, no qual a vivência da
viagem cifra uma experiência que é também de dominação e despersonalização do outro
2
Fabian, Johannes. Out Of Our Minds. Reason and Madness in the Exploration of Central Africa.
Berkeley: University of California Press, 2000.
A Sensualidade como Caminho 118
3
Gay, Peter. A Experiência Burguesa. Da Rainha Vitória a Freud. A Educação dos Sentidos. Tradução
Per Salter. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 320.
A Sensualidade como Caminho 119
as tensões acumuladas por uma convivência social estrita e repressiva.4 Por outra parte,
não há dúvida, que a escrita de diários denotava, em termos sociais, um gigantesco
investimento no ser, que o indivíduo alfabetizado e mais ou menos ilustrado passava a
despender a respeito de sua própria individualidade, alçada a entidade preciosa, a ser
perscrutada, ouvida, auscultada, em detrimento de sociabilidades mais expansivas,
relegadas, então, pelas clivagens sociais, às classes inferiores.5 Delimitando todo um
espaço ao exercício da privacidade, a burguesia passava a investir uma quantidade brutal
de sua energia na busca da expressão de uma sensibilidade individualizada, incrustada
nas distâncias que passavam a separar a esfera pública da privada. Aspectos tão diferentes
quanto a arquitetura das casas, os romances, a psicanálise e a escrita dos diários, revelam,
cada qual a sua maneira, o advento da modernidade burguesa e seu investimento no ser
que delimita seu lugar em oposição ao mundo externo percebido como hostil.
Por fim, a escrita dos diários se incorporava a toda uma tradição confessional que,
conforme notou Michel Foucault, aprisionava, no século XIX - tal como nos dias de hoje
- com sua demanda pela verdade, a sexualidade, ou o complexo feixe de saberes
denominados de sexualidade, nas teias do discurso. Saberes estes capazes de refletir as
mais recônditas experiências pessoais, conceituando-as, delimitando-as, traçando seus
campos de ação, propondo normalidades, instituindo as moralidades, ao mesmo tempo
em que distinguia os desvios e as perversões.6 Tudo confessar ao seu diário, não se ater às
superficialidades, encará-lo como "um amigo que oferece e exige a verdade", aparecia
como um prolongamento das prescrições dos médicos, educadores, padres e autoridades
4
"O simbolismo sexual dentro do lar tem possivelmente sua ilustração mais famosa no caso daquelas
senhoras vitorianas que reconheciam a potência sexual das pernas de suas mesas, e por conseguinte as
ocultavam da vista." Smith, Bonnie G. Ladies of the Leisure Class. The Bourgeoises of Northern France in
the Nineteenth Century, apud Gay, A Experiência…, p. 377.
5
.Thompson, E. P. The Making of the English Working Class. Nova Iorque: Vintage, 1963, capítulo
"Community", pp. 401-47, mostra tanto a permanência de uma sociabilidade comunitária tradicional entre
as classes trabalhadoras do século XIX, bem como os esforços de setores determinados em disciplinar o
lazer operário.
6
Foucault, Michel. História da Sexualidade. A Vontade de Saber. Tradução Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 1990, sobretudo cap. I, "Nós, vitorianos", pp.
9-18.
A Sensualidade como Caminho 120
policiais.7 Tal foi como muitas pessoas do século XIX encararam seus diários,
produzindo uma fonte histórica valiosa.
Assim se poderia considerar, por exemplo, os onze volumes da obra My Secret
Life, escrita nos finais do século XIX, por um inglês anônimo, tendo tido apenas uma
edição privada de algumas poucas cópias. Escrita em tom claramente confessional, em
forma de diário, neles estão descritos, com as minúcias e detalhes que raiam a obsessão, a
atribulada vida sexual de seu autor.8 A autenticidade de todos os seus volumes é aspecto
controverso. Gay o considera como fruto da elaboração, a partir de um número limitado
de experiências reais, das fantasias do autor. Ou, caso contrário, na hipótese menos
provável da comprovação da autenticidade de todo o material descrito, considera Gay,
que o autor de My Secret Life tivesse sido um indivíduo profundamente neurótico, bem
como um atleta sexual inigualável. Em ambos os casos, a obra não seria representativa da
sexualidade na era vitoriana, mas sim apenas "um indício da imaginação sexual de um
inglês vitoriano".9
Diferentemente o considera Steven Marcus, em sua detalhada análise da
pornografia e da sexualidade "desviante", prevalecentes na era vitoriana, com seus
bordéis de crianças e homossexuais, com o florescimento da literatura pornográfica e do
controle sanitário e legal do sexo ao arrepio da lei.10 Enfocando-o como um exemplo do
mal estar burguês com relação ao casamento, às ligações afetivas e ao sexo respeitável,
imposto pelo padrão do casal monogâmico e reprodutor, sempre concretizado inter-pares.
Neste raciocínio, a pornografia e a sexualidade desviante, concretizável apenas fora do
círculo das pessoas de bem e respeitáveis da burguesia, alçavam para a cena as classes
populares, a partir das quais seus praticantes podiam retirar seus parceiros nem sempre
espontâneos. O papel das empregadas, amas, guardas e marinheiros, enfim, das moças e
rapazes das classes operárias na concretização da sexualidade "desviante", surge de
maneira bem clara na abundante literatura sobre a vida social e a sexualidade da época.
7
Conforme afirmava Frieda von Kronoff, em 1902, apud. Gay, A Experiência...p. 321.
8
A obra My Secret Life, considerada um clássico da literatura pornográfica vitoriana, foi amplamente
analisada por Marcus, Steven. The Other Victorians. A Study of Sexuality and Pornography in Mid-
Nineteenth-Century England. Nova Iorque, Basic Books, 1966, nos capítulos 3 e 4, pp. 77-196.
9
Gay, A experiência..., p. 360.
10
Marcus, The Other Victorians....
A Sensualidade como Caminho 121
Assim, as classes populares surgiam como uma espécie de parque de diversões da uma
sexualidade burguesa não-conformista, dentro dos estritos limites da reafirmação das
dominações de classe.11
Segundo Foucault, o aspecto mais bizarro da obra em questão não seria, no
entanto, a maneira pela qual o autor havia consagrado sua vida inteiramente a atividade
sexual. Mas, sim, a maneira como que, entranhado nesta dedicação ao sexo, outra surgia,
com uma fidelidade ainda mais exótica, que era submeter-se, com toda a severidade
imaginável, à prescrição confessional, construindo uma narrativa meticulosa de cada
episódio vivido. Conclui o Foucault que dentre todas as práticas do autor a mais estranha
delas consistia em contá-las diariamente e em todos os seus detalhes, demonstrando-se
como um indivíduo totalmente imerso na modernidade.12
Sabemos, no entanto, que nem todos os diários foram escritos em tom tão
confessional, nem receberam materiais tão íntimos. De fato, muitos deles foram escritos,
já sob o crivo da censura, para serem lidos por um determinado círculo de leitores. Um
cônjuge, os filhos, o círculo doméstico ou de amigos - este último sobretudo no caso de
um escritor e seu círculo literário - ou, ainda, a posteridade, tornavam, nestas
circunstâncias, o diário mais uma modalidade de literatura do que um espaço de reflexão
íntima. São os leitores potenciais - reais ou imaginários - os indicadores a partir do qual
se pode julgar o grau de abertura no qual o diário foi escrito.13
Enquanto estilo literário subsidiário o diário acompanhou a produção de inúmeros
escritores, tornando-se eventualmente sua obra principal. Seria este, por exemplo, o caso
dos famosos diários nos quais Anaïs Nin sistematicamente anotou seus casos amorosos e
refletiu sobre seu próprio ser, preenchendo, com seus manuscritos, por volta de 150
cadernos confessionais, que tornaram-se, uma vez publicados, sua principal obra
11
Para a Inglaterra, ver Marcus, The Other Victorians…, bem como Weeks, Jeffrey. "Inverts, Perverts
and Mary-Annes: Male Prostitution and Regulation of Homosexuality in England in the Nineteenth and
Early Twentieth Century" In: Against Nature. Essays on History, Sexuality and Identity. Londres: Rivers
Oram Press, 1991, pp. 46-67. Para a realidade brasileira neste período, veja-se Graham, Sandra Lauderdale.
Proteção e Obediência. Criadas e seus Patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910, trad. Viviana Bosi, São
Paulo: Companhia das Letras, 1992 e Soares, Luiz Carlos. Rameiras, Ilhoas e Polacas. A Prostituição no
Rio de Janeiro do Século XIX. São Paulo: Ática, 1992.
12
Foucault, História da Sexualidade. A vontade de Saber..., p. 25.
13
Resende, Beatriz. Diamantes da Lixeira. Rio de Janeiro: CIEC, Papéis Avulsos, 32, 1991.
A Sensualidade como Caminho 122
14
Nin, Anaïs. The Diary of Anaïs Nin, editados e prefaciados por Gunther Stuhlmann, vol. de 1931-
1934, Nova Iorque/Londres: Harvest Book, 1966 e vol. de 1934-1939, Nova Iorque/Londres: Harvest
Book, 1967, entre outros.
A Sensualidade como Caminho 123
15
Nin, The Diary... ,vol.2, p. IX, tradução minha.
16
Woolf, Virgínia. Os Diários de Virgínia Woolf, Seleção e Tradução de José Antonio Arantes, São
Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 42.
17
Apud Marcus, The Other Victorians…, p.166. Tradução minha.
18
Resende, Diamantes..., p.2.
A Sensualidade como Caminho 124
19
Resende, Diamantes..., tece interessante discussão acerca das relações entre obra e diário no caso de
alguns importantes nomes da literatura tanto nacional quanto estrangeira.
20
As idéias aqui apresentadas se inspiram em: Benjamin, Walter. "O Narrador. Considerações sobre a
Obra de Nikolai Leskov". Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense,
1985, pp. 197-221.
A Sensualidade como Caminho 125
mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana - não
seria ela própria uma relação artesanal".21
O gosto do maravilhoso e do mistério, entranhou-se na literatura de viagem a
partir da era dos Descobrimentos. Colorindo o imaginário europeu com as visões dos
monstros antropomórficos do Mar Oceano, mais tarde pincelando com as narrativas de
fundo geográfico sobre a localização dos Jardins do Éden e pelo encontro de personagens
e locais fabulosos. A república das amazonas, as minas do Vupabussu, a geografia do
fantástico e as visões edênicas dos índios animaram as etapas da conquista e da
colonização, cingindo, então, nas narrativas de viagem, o gosto pela aventura e
enriquecimento dos povos e da Igreja às terras extra-européias.22
As narrativas sobre os povos indígenas e terras coloniais se ajustam, pelo menos a
partir do século XVII, ao nascimento do campo científico da etnologia, sobre noções que
se reportam à cisão e ao distanciamento. Seriam estes princípios formadores da etnologia,
segundo Michel de Certeau, o da oralidade - comunicação própria à sociedade selvagem
ou tradicional - o da espacialidade de um sistema desprovido de história, o da alteridade,
corte cultural proposto pela diferença e o da inconsciência, o saber que organiza se
coloca fora do campo de quem fala.23
O deslocamento para o campo da escrita daquilo que no itinerário do viajante
tradicional se realizava pela narrativa oral, historicamente se fez através da constituição
da atividade científica. Uma instância que corta a fala oral em sua extensão, revelando
diferenças. A partir daí, "a linguagem oral espera, para falar, que uma escrita a percorra e
saiba o que ela diz".24 Assim, entre "eles" que falam e "nós" que recolhemos e revelamos
21
Benjamin, Obras..., p. 221.
22
Holanda, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no Descobrimento e
Colonização do Brasil. São Paulo: José Olímpio, 1959, sobretudo cap. I, "Experiência e Fantasia", pp.3-18.
23
Certeau, Michel de. "A Etno-Grafia. A Oralidade ou o Espaço do Outro: Léry." in A Escrita da
História. Rio de Janeiro: Forense, 1982, pp. 211-242, sobretudo p. 211. Noto que em “Histoire et
Anthropologie Chez Lafitau” in: Claude Blankaert, “Naissance de léthnologie?”. Paris: Les Éditions du
Cerf, 1985, pp. 63-89, Michel Certeau estabelece o século XVIII, mais precisamente a partir da publicação
de “Moeurs des sauvages amériquains comparées aux moeurs de premiers temps” do jesuíta J.-F. Lafitau
em 1724, como marco da instituição do campo etnológico.
24
Certeau, A Escrita..., p.212.
A Sensualidade como Caminho 126
um sentido para esta fala, existe uma relação de poder, numa modalidade própria da
modernidade.25
O viajante moderno, sobretudo aquele que acha enquanto ponto de referência o
cientificismo das teorias raciais e as políticas coloniais do século XIX, é um personagem
no qual vivência e narrativa se encontram profundamente cindidos. Não se espera que
este viajante-naturalista, botânico-geógrafo-filólogo-zoólogo, incorpore, nas suas
viagens, uma experiência ampliada do outro, identificado como uma história de vida. Ao
contrário, é este o viajante-cientista que desde o início, e na própria essência de sua
função, encontra a consciência e a valorização da distância, ele é aquele que vê, ouve,
analisa, entende e transmite os fatos e as paisagens das terras distantes, através da escrita
de uma narrativa de viagem - de um diário de viagem. Neste, o viajante evita o máximo
possível se colocar como partícipe e personagem, pois, perde-se no tempo, o tempo que o
viajante trocava experiências. Este, o viajante moderno, apenas as observa objetivamente,
isto é retirando o seu próprio ser e o espaço de suas experiências pessoais de viagem para
as sombras. Como se viagem pudesse ser conspurcada por uma desastrada entrada em
cena do próprio viajante.
Aqui e ali, uma pequena anotação a respeito de uma experiência singularmente
marcante, de uma paisagem extremamente bela e inspiradora, de uma cena humana
constrangedora, a inspirar algumas reflexões filosóficas ou pessoais. De resto, este
viajante modernizado irrompe na narrativa apenas com o relato bastante tedioso das
dificuldades materiais da viagem, dos desconfortos físicos, dos perigos sobrepujados em
nome do avanço da ciência e dos conhecimentos. Em seu conjunto, depreende-se um
certo odor de estranheza e incompreensão da parte do narrador. É o que se encontra, por
exemplo, em obras tão distintas quanto de Bates, no Amazonas quanto de Serpa Pinto,
em sua travessia da África.26
Mais tarde o viajante-etnólogo, na pele, por exemplo, de Lévi-Strauss, em Tristes
Trópicos, na busca de desmistificar a viagem em direção ao exótico e o viajante como
25
Certeau, A Escrita..., p. 212-213.
26
Bates, Henry Walter. Um Naturalista no Rio Amazonas. São Paulo/Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp,
1979 e Pinto, Serpa. Como Eu Atravessei a África. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. No livro de
Sussekind, Flora, O Brasil não é longe daqui..., encontra-se capítulo sobre o tema da viagem e da
constituição da literatura brasileira, sob o título "A Literatura como Cartografia", pp. 35-154.
A Sensualidade como Caminho 127
27
As observações aqui apresentadas se encontram no artigo de Massi, Fernanda Peixoto. "O Nativo e o
Narrativo. Os Trópicos de Lévi-Strauss e a África de Michel de Leiris". Novos Estudos Cebrap, n. 33, julho
de 1992, pp. 187-198.
28
Sobre o assunto consultar a obra biográfica de Rice, Edward. Sir Richard Francis Burton, São Paulo:
Cia das Letras, 1991e Alexsander Lemos Gebara, “As Representações Populacionais de Richard Francis
Burton. Uma análise do processo de constituição do discurso sobre as populações não européias no século
XIX”. Revista de História, no. 149, 2º. Semestre de 2003, pp. 181-210.
A Sensualidade como Caminho 128
29
Pratt, Mary Louise. Olhos do Império. Relatos de Viagem e Transculturação, Bauru, Edusc, 1999.
A Sensualidade como Caminho 129
30
A controvertida biografia de Roger Casement aparece conjuntamente com a edição de seus diários em
Singleton-Gates, Peter; Girodias, Maurice. The Black Diaries of Roger Casement. With the Account of His
Life and Times. Nova Iorque: Grove Press Inc., 1959.
31
Carta reproduzida em Singleton-Gates e Girodias, The Black Diaries..., p. 93. A carta de Conrad foi
também reproduzida em Taussig, Michael. Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem. Um Estudo
sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1993. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura, p. 35,
tradução da qual nos utilizamos.
A Sensualidade como Caminho 130
uma lei de exceção e por um tribunal tendencioso, Casement foi executado sem que
nenhum movimento mais consistente de solidariedade a isto se opusesse. A divulgação de
sua vida privada o havia comprometido irremediavelmente.32
O segundo personagem a ser aqui introduzido é o do General e, mais tarde - 1889
- também Marechal José Vieira Couto de Magalhães. Embora tenha desenvolvido suas
atividades políticas no âmbito do Império, tendo sido sucessivamente Presidente das
Províncias de Goiás (1862-1863), Pará (1864-1865) e Mato Grosso (1865-1867), Couto
de Magalhães se tornou conhecido por sua ligação com o mundo das viagens, dos sertões
e da navegação fluvial, a partir das quais desenvolveu tanto atividades intelectuais,
políticas e econômicas. Sua identificação com o desconhecido e com o inóspito dos
sertões que no século XIX perfaziam ainda grande parte do território brasileiro, sua
familiaridade com o tupi-nhengatú, no entanto, contrastam com seu perfil de indivíduo
decididamente moderno. Empresário sagaz das vias de comunicação fluviais e
ferroviárias, setor este para onde confluíam os principais interesses econômicos e os mais
ricos simbolismos do século que corria na velocidade dos trens e buscava fundamentar
um mercado mundial, sob os auspícios do imperialismo, demonstrava ele, em seu
escritos, estar consciente dos mecanismos de acumulação que se lhes apresentavam no
contexto do Brasil imperial, em suas ligações com os países capitalistas. Realmente em
seu diário íntimo, escrito durante sua residência em Londres, na entrada do dia 20 de
outubro de 1880, comentando a respeito de seus sucessos nos negócios da Estrada de
Ferro do Rio Verde, rememorava Couto de Magalhães sua trajetória enquanto homem de
negócios:
. . . meu honrado e bom pai deu-me uma excelente educação, e com isso
deu-me o principal instrumento da minha fortuna; eu, porém, a edifiquei
por mim mesmo: economizei dos meus ordenados; formei um pequeno
capital de trinta contos, que era o que eu possuía em 1869 quando faleceu
meu pai; meti-me no negócio, deliberei viagens para o rio da Prata e dali
para o Amazonas em três horas; trabalhei com meu corpo como se fosse
uma máquina de aço; negociei com New York, Paris e Londres, e através
32
O caráter polêmico dos diários e as discussões a respeito de sua autenticidade aparecem em
Singleton-Gates e Girodias, The Black Diaries, pp. 15-35.
A Sensualidade como Caminho 131
33
Couto de Magalhães, José Vieira. Diário Íntimo...., p. 151.
34
Couto de Magalhães foi um estudante ativo e precoce, contribuindo com seus artigos em diversas
publicações acadêmicas e estudantis, tais como: "O Estudante e os Monges", conto de cunho romântico,
publicado na Revista da Academia de São Paulo, no. 1, abril de 1859, "Destino das Letras no Brasil", no. 1
e 2 da mesma revista e com a mesma data, e textos reproduzidos por Castello, José Aderaldo. Textos que
interessam a História do Romantismo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, s/d, sob os títulos:
"Fundação da Academia. Trabalhos da Mocidade", pp. 16-27 e "O que é a Imitação em Literatura (A meu
amigo Alvarenga Pinto)", pp. 216-219, entre outros. Em idade mais madura, Couto de Magalhães começou
a escrever literatura pornográfica. Em seu diário, encontram-se anotações a respeito do andamento de seu
romance pornográfico, "fantasia devassa que se intitula o Dr. Calmiru" (Couto de Magalhães, Diário
Íntimo..., p. 140).
A Sensualidade como Caminho 132
A liberdade dos sertões não se resumia, porém, aos espaços mais livres e as
paisagens mais abertas do que aquelas das cidades. Ligava-se sim a todo um mundo
masculino, dos colégios, das casernas, dos quartéis, das guerras e das viagens, mundo
este que a moralidade do século XIX, baseada no casal monogâmico e na família nuclear,
olhava com desconfiança. Mundo masculino de homens solteiros ou solitários, colocado
às margens da procriação dos filhos legítimos, da sedentarização e construção da família
e da acumulação paulatina de um patrimônio baseado no trabalho sistemático. A tudo isso
se opunha o espaço aventuroso das viagens. Michelle Perrot, descrevendo o mundo dos
celibatários, associa-o ao enclausuramento e a separação em instituições disciplinares.37
Espaços sociais de exclusão que, no entanto, se diluíam nos territórios coloniais, nas
frentes de expansão, nas selvas e nos sertões.
35
Uso aqui o termo deserto na acepção do século XIX, que se referia a ausência da civilização e ao
vazio populacional. Deserto e sertão são, desta forma, quase sinônimos, estando porém o termo deserto
ligado aos territórios mais ermos e recuados do que sertão.
36
Couto de Magalhães, José Vieira. Viagem ao Araguaia, São Paulo, Cia Editora Nacional, 1975, p. 93.
37
Perrot, Michelle. "À Margem: Solteiros e Solitários", in História da Vida Privada. Da Revolução
Francesa à Primeira Guerra, Michelle Perrot (org.). Trad. Denise Bottmann e Bernardo Joffily. São Paulo:
Cia das Letras, 1991, pp. 287-304.
A Sensualidade como Caminho 133
Claro está, que no caso do Brasil, largos estratos das populações mantinham-se às
margens da moralidade burguesa, própria às classes médias européias e norte-americanas.
Da mesma forma, os solteirões e celibatários ainda podiam encontrar, na sociedade
brasileira do século XIX, marcada pelo vinco do tradicionalismo, estratégias familiares
de integração e aceitação à parentela dos solitários. No entanto, a aceitação dos solteirões
pelas famílias das elites condicionava-se à permanência deste em espaços bem restritos -
às solteironas, o papel de beata ou de solteirona, ressequida pela ausência da prole, e aos
homens, o papel de tio rico, para qual os sobrinhos lançavam olhos cobiçosos. E, no
entanto, o mundo dos celibatários, aqui ou nas sociedades européias, era, sim, um espaço
de restrição. Constrangimentos sociais impostos que se desfaziam na viagem - espaço de
uma individualidade excluída.
Se a viagem permite a quebra das barreiras sociais, dos papéis sociais restritos, é
porque esta se remete a um lugar no qual se concebe a existência do diferente e das
normas dos contrários. Pois, a natureza selvagem e indevassada é um deserto, um espaço
vazio que o explorador preenche com os significados dos seus desejos. E a população que
lá se encontra, ligada em simbiose com a natureza, é ela também, selvagem, misteriosa,
livre, mas sobretudo, vazia. Analisando a História de uma Viagem ao Brasil, de Jean de
Léry, Michel de Certeau mostra como a literatura de viagem construiu o selvagem como
o corpo do prazer.39 Contraposto ao trabalho ocidental, com seu tempo e sua razão, o
mundo do Tupi, para Jean de Léry, surgia como o do puro lazer e prazer. A erotização do
corpo e do universo do outro surgem aqui como uma decorrência quase natural. Ele seria,
neste sentido, "o retorno sob a forma estética e erótica, daquilo que a economia de
produção teve que recalcar para se constituir", situando-se, assim, "na junção de um
interdito e de um prazer".40
38
Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia..., p. 85.
39
Certeau, A Escrita..., p.226-236.
40
Certeau, A Escrita..., p.228, grifo no original.
A Sensualidade como Caminho 134
Festa para os olhos e para outros sentidos, duma sexualidade que irrompe as
barreiras e trata de se inscrever no corpo do selvagem. Ora, se por um lado a paisagem
virgem ali está para ser conquistada, dominada e integrada à marcha civilizatória, o corpo
do selvagem, avatar desta natureza e a ela atado simbioticamente, se inscreve numa
sexualidade liberta das travas da repressão. Sexualidade, no entanto, que é, ela própria,
mais uma metáfora da conquista.
Nos diários de Couto de Magalhães, relativos aos anos de 1880 e 1881, quando o
mesmo residia em Londres, encontra-se um movimento de puro rememorar a vivência da
viagem e de sua sensualidade arrebatadora.
Os prazeres de sua vida presente - do momento no qual o diário é escrito - em sua
maior parte consistem em evocar antigas paisagens e rememorar velhos prazeres. A
paisagem do presente só desperta os sentidos à medida em que serve como uma
invocação de outras muito distantes, irremediavelmente perdidas:
41
Black Diaries, p. 235, tradução de minha autoria.
A Sensualidade como Caminho 135
42
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., pp. 115- 116.
43
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., p. 199.
A Sensualidade como Caminho 136
Neste sentido, é que interpretamos a utilização do tupi-nhengatú por Couto, como recurso
para liberação de lembranças reprimidas e desejos inconfessáveis,44 como fica explicitado
na sequência do sonho acima citado:
Eu quero fazer sexo com um mestiço, com um preto; eu falo que o membro
viril do preto foi tirado de dentro.45
E, em sua seqüência o sonho não deixa dúvida da cena idealizada pelo sonhador,
nem de que tipo de desejo ele está aí realizando:46
44
Gay,Peter. Freud. Uma Vida para Nosso Tempo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras,
1989, pp. 25-26.
45
No original, grafado em tupi-nhengatu: Irxe oyuputar om. curiboca, tapayuna; anahen aiko tapayuna
sak., opirariuana i pupé. Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., p.200, Sobre a tradução e suas dificuldades,
consultar a mesma publicação, pp. 42- 44.
46
Nos guiamos aqui pela visão clássica de Freud que interpreta o sonho sempre como realização dos
desejos do sonhador. Freud, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. 2
vols. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
47
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., p. 200.
48
Freud, Interpretação..., sobretudo, caps. II, "O Método de Interpretação dos Sonhos: A Análise de um
Sonho Modelo", pp.119-140, III, "O Sonho é a Realização de um Desejo", pp.141-150, IV, "O Material e
A Sensualidade como Caminho 137
as Fontes dos Sonhos", pp.151-267. Ver também de Freud, S. Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana.
Rio de Janeiro: Imago, 1987.
49
Reconta o sonho: "Fui até o velho cemitério guarani na Reserva e lá vi uma grande cruz. Uns homens
brancos chegaram e me pregaram na cruz de cabeça para baixo. Eles foram embora e eu fiquei desesperado.
Acordei com muito medo". Gambini, Roberto. O Espelho Indio. Os Jesuitas e a Destruição da Alma
Indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988, p. s/n.
50
Couto de Magalhães, José Vieira. O Selvagem. São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1975,
p.100.
A Sensualidade como Caminho 138
Por muito rude e bárbara que, à primeira vista, pareça uma instituição
qualquer de um povo, ela deve ser estudada com respeito. As instituições
fundamentais dos povos, qualquer que seja seu grau de civilização ou
barbárie, são resultado das leis eternas de moral e justiça que Deus criou
na consciência humana, leis que em fundo são as mesmas no selvagem e
no homem civilizado . . .52
51
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 68.
52
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 84.
A Sensualidade como Caminho 139
53
Taussig, Xamanismo..., pp. 39-40, enfoca esta questão.
Parte III
A BUSCA DAS ORIGENS
Entre tantas questões que estiveram em pauta no Brasil no século XIX, sobretudo
a partir de sua segunda metade, ressalta o problema da construção de uma identidade e de
uma história nacionais. De fato, no quadro dos eventos políticos que se colocam entre a
Independência e a Abolição e a República, as elites nacionais, nos marcos da ilustração,
do romantismo e do pensamento racial cientificista, supuseram uma nação, discutindo-a
veementemente, em termos de sua simetria, sempre díspar, com a raça e o povo que a
compunha. Desde a visão orgânica de Robert Southey,2 informada pelo conservadorismo
inglês pré-vitoriano e pelo humanitarismo autoritário, a respeito da transformação da
obscura colônia portuguesa em nação independente,3 à cândida dissertação de C. F. von
Martius, “Como se Deve Escrever a História do Brasil”, oferecida ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro em 1845,4 aos românticos empedernidos e naturalistas
cientificizantes, a questão do caminho da evolução e de seu contraponto da degeneração,
nortearam o debate das elites intelectuais do Império.
Questão paradigmática ao jovem Império transplantado nos trópicos, o vir-a-ser
“natural” da colônia em nação independente, portadora de uma história e geradora de um
povo, marcou as discussões intelectuais e políticas, principalmente da geração de 1870.
Entre os bem-pensantes desta geração, na qual destacam-se nomes como de Sílvio
1
Este texto começou a ser elaborado no decorrer do meu estágio de pós-doutorado, nos anos de 1993-4,
contando com financiamento FAPESP. Diferentes partes deste texto foram apresentadas nos seguintes
congressos: Mini-Simpósio História dos Sonhos, PUC/ USP (1996), Congresso da LASA (1997) e
Encontro Regional da ANPUH (1998). Uma versão deste texto saiu publicada na Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol. 14, no. 25, 2000, pp. 63-80.
2
Southey, Robert. História do Brasil. 3 vols. São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1981.
3
Dias, Maria Odila Leite da Silva, O Fardo do Homem Branco... pp 1-19.
4
Von Martius, C. F., Como se deve escrever..., pp 85-107.
Um Mitógrafo no Império 142
Romero, José Veríssimo, Tavares Bastos, Joaquim Nabuco entre outros, as discussões
raciais e políticas, relativas à constituição do povo/nação, configuravam uma série de
matrizes do pensamento social brasileiro, e a leitura hoje destes “clássicos” ilumina
dilemas profundamente presentes na maneira como o Brasil se concebe ainda na
atualidade.5
No emaranhado dos debates, emoldurados pelos limites da expansão capitalista do
século XIX e inícios do XX, pelo imperialismo inglês e pelo cientificismo naturalizante,
alguns autores e suas obras, transcendendo o conjuntural de suas colocações, tornaram-se
clássicos, sendo até hoje motivo de estudos acadêmicos, teses universitárias e estudos
especializados. Mais uma vez Sílvio Romero, em suas diferentes fases e mais ainda
Euclides da Cunha, nos Sertões,6 são exemplos fortes de uma produção que embora
datada em sua formulação aparente, souberam superar os meros modismos, inscrevendo-
se entre os autores seminais do pensamento social brasileiro.
Nem todos os escritores, intelectuais e pensadores do Império salvaram-se do
descarte imposto pelo tempo. Muito pelo contrário, a maioria deles suportou mal a
passagem do tempo e a superação dos modismos, sendo lidos hoje muito mais como
fontes históricas do que obras de interesse do assunto a que se referem. No entanto, é
muitas vezes no círculo dos autores menos notáveis, ou de menor gabarito que se
encontram idéias e formulações que por um motivo ou outro enraizaram-se no
pensamento popular, abriram espaço no rol das certezas estabelecidas, sobrevivendo
assim num plano diferente daquele em que seu autor as haviam concebido originalmente.
Note-se que foi neste período tão fértil em termos da discussão do perfil da nação, da
nacionalidade e de seu povo, que uma série de concepções bastante oportunísticas virão a
estabelecer as certezas da História Pátria, ufanista e laudatória, como ainda hoje podemos
encontrar nos manuais de história do nosso ensino médio.
Minha terra tem palmeiras, tem sabiás, tem Ceci e Peri, Princesa Isabel com sua
pena de ouro, tem o índio bom — tupi — e índio ruim — tapuia —, tem aquele negro
bondoso, o Pai João, tem suas nhanhás e seus senhores patriarcais, tem paisagens de
5
A respeito, ver Ventura, Roberto, Estilo Tropical..., Sussekind, Flora, O Brasil não é longe daqui..., e
Rouanet, Maria Helena, Eternamente....
Um Mitógrafo no Império 143
6
Cunha, Euclides da. Os Sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Brasiliense,
1985 [1902].
7
Celso, Afonso (Afonso Celso de Assis Figueiredo). Porque Me Ufano de Meu País. Rio de Janeiro: F.
Briguiet e Cia, 12ed, 1943 [1900].
8
Aqui chamo atenção para a análise de Hayden White acerca da meta-história no século XIX, quando
ele afirma que esta última depende da elaboração de um enredo que, em última análise, torna plausível a
narrativa, fazendo surgir uma estória arquetípica, isto é uma história. Assim, a historiografia romântica e
nacionalista seria uma projeção do mythos da individualidade na história ou seja, do motivo do herói.
White, Hayden. Meta-História. A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo: Edusp, 1992, pp. 17-58.
9
Laura de Mello e Souza me chamou atenção tanto para o termo “mitógrafo”, do qual ela se utilizou
para analisar a construção do episódio de Felipe dos Santos na Revolta de 1720, elaborada por Couto de
Magalhães em 1859. Ver seu estudo crítico de um relato setecentista sobre este incidente em Souza, Laura
de Melo e. “Estudo Crítico”. In Anônimo, Discurso Histórico e Político sobre a Sublevação que nas Minas
Houve no Ano de 1720. Belo Horizonte: Sistema Estadual de Planejamento/Fundação João Pinheiro, pp.
21-25 1994.
10
Por exemplo: “Destino das Letras no Brasil”, o conto Os Monges, o romance histórico Os Guaianás,
o ensaio histórico, “A revolta de Felipe dos Santos de 1720”, a obra antropológica O Selvagem, o livro de
viagem Viagem ao Araguaia.
Um Mitógrafo no Império 144
11
Ver, a respeito, Romero. Etnografia Brasileira. Estudos Críticos sobre Couto de Magalhães, Barbosa
Rodrigues, Teófilo Braga e Ladislao Neto. Rio de Janeiro: Liv. Clássica de Alves, 1888, bem como as
introduções em Couto de Magalhães, J. V. Viagem ao Araguaia. São Paulo, Companhia Editora Nacional.
1975 e O Selvagem. São Paulo/Belo Horizonte, Edusp/Itatiaia, 1975.
12
Aqui me utilizo da expressão “paradigma evolucionista” nos termos formulados por Lima Antonio
Carlos de Souza. “Sobre Indigenismo, Autoritarismo e Nacionalidade: considerações sobre a constituição
do discurso e da prática da Proteção Fraternal no Brasil”. In João Pacheco de Oliveira Filho, org.,
Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. UFRJ/Marco Zero, p. 149-
204, 1987.
Um Mitógrafo no Império 145
Esse pequeno conto [Os Guaianás] é, como tudo o que tenho escrito, feito
aos trombalhões e às carreiras. Lembras-te ainda daquele nosso bom
tempo de saudosa memória da Rua da Forca? Formávamos um grupo
engraçado e cômico, sobretudo quando nos reuníamos na sala de jantar.
O Ferreira Dias palpitava de entusiasmo lendo o Lamartine. V. estudava
história pátria como um fanático, gesticulava repetindo os enérgicos
discursos fervorosos da época da independência; eu passeava de um lado
para outro, com uma gravidade tudesca, estudando alemão ...15
13
Couto de Magalhães, J. V. “Um Episódio da História Pátria (1720)”. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo XXV, 1862, p. 515-564.
14
Couto de Magalhães, J. V. Os Guaianás. Conto Histórico sobre a Fundação de São Paulo. São
Paulo, Tipog. Espíndola, Siqueira e Cia, 1902 [1860].
Um Mitógrafo no Império 146
15
Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia..., p. 10.
16
Adorno, Sérgio. Os Aprendizes do Poder. O Bacharelismo Liberal na Política Brasileira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 91-156.
17
Sobre a Revolta de Felipe dos Santos e a construção do mito nativista a partir deste episódio ver
Souza, Laura de Melo e, “Estudo Crítico...”, pp. 21-25.
18
Ver Conde de Assumar. “Cartas do Capitão General a El-Rei, Um Episódio da História Pátria”, anexo
ao citado Couto de Magalhães, Episódio da História Pátria..., pp. 545-564.
Um Mitógrafo no Império 147
hidra de Lerna: por uma cabeça que cortava, renasciam duas, que era
mister combater de novo.19
Se o brasileiro não se dobrava à tirania metropolitana, necessário era forjar seus
heróis e seus mártires, nos quais o destino da rebeldia e do auto-sacrifício estivessem
claramente expressos. Como não há mito sem herói, não sem razão Couto terminou este
texto sublinhando não apenas o caráter heróico de Felipe dos Santos (que nem ao menos
era o líder da pretensa revolta), mas igualmente, sua similitude com Tiradentes. Atente-se
para os recursos a partir do qual o autor transformou Felipe em principal partícipe da
revolta e herói nacional do cunho dos mártires da pátria.
E não importou muito que sua interpretação do episódio tenha sofrido críticas que
acusavam o exagero das tintas com as quais seu autor havia pintado a importância do
episódio e o heroísmo dos participantes, fato este debitado, por alguns críticos, na conta
da juventude de seu autor,21 o fato é que a revolta de 1720 foi alçada ao status de
movimento nativista e popular, fazendo parte, até hoje, dos cânones da nossa história
oficial.
19
Couto de Magalhães, Episódio da História Pátria..., p 515.
20
Couto de Magalhães, Episódio da história Pátria..., p 542.
21
Carvalho, Feu de. Ementário da História Mineira – Filipe dos Santos Freire na Sedição de Vila Rica.
Belo Horizonte: Edições Históricas, s/d. e Neiva, Artur. Estudos de Língua Nacional. São Paulo:
Companhia Editora Nacional. 1940.
Um Mitógrafo no Império 148
22
Couto de Magalhães Sobrinho, “Prefácio”, in Couto de Magalhães, O Guaianás...
23
Levi, Darrell E. A Família Prado. São Paulo: Cultura, 1977, pp. 217-242.
Um Mitógrafo no Império 149
Nós não somos, pois, nem europeus nem africanos. No colossal cadinho
da América do Sul já se fundiram, e continuam a fundir-se, os sangues das
três raças, e produzindo uma americana, a brasileira, que há de ser forte
e poderosa, como a raça yankee da América do Norte; essa também não é
européia nem africana, e sim americana; a nossa há de ser grande e
poderosa, porque é inteligente, forte, sóbria, laboriosa e pacífica, e
porque o território de nosso país, com uma só língua e uma só religião,
pode conter, segundo os cálculos de Elisée Reclus, mais de trezentos
milhões de habitantes.24
Concepção de raça americana, por sinal, que Couto havia começado a construir
ainda nos tempos de estudantes com seu conto histórico a respeito da fundação de São
Paulo. Belos, nobres, civilizáveis, ao mesmo tempo, rudes: os tupi-guaianases que
conformariam a base da “nacionalidade paulista”, apareciam no romance como modelos
do bom selvagem, no qual repousava a identidade do homem americano. Ora, se a
construção da dicotomia entre os índios bons e maus, entre tupis e tapuias remonta o
período colonial e respondia a toda uma estratégia de apresamento e utilização da mão-
de-obra nativa,25 esta mesma percepção, recuperada por Couto em 1859 e, mais tarde, nos
anos finais do século, por diversos intelectuais, servia como base ideológica da
proeminência paulista.26
De fato, nos anos iniciais da República, em São Paulo, uma interessante contenda,
envolvendo por um lado Capistrano de Abreu e outros estudiosos e por outro a
intelectualidade paulista, demonstrava a importância do mito do tupi na construção da
historiografia local. Interessada em justificar a dianteira econômica paulista da virada do
século, a elite do Instituto Histórico Geográfico, do Museu Paulista e de outras
instituições, elaborou a figura do herói bandeirante e do mameluco adaptado, através do
falseamento de assertivas históricas, baseando-se exatamente na matriz explicativa
24
Couto de Magalhães, José Vieira. “Anchieta, as Raças e Línguas Indígenas”. Reproduzido em Couto
de Magalhães, José Vieira, O Selvagem...
25
Monteiro, John. “Tupis, Tapuias e a História de São Paulo. Revisitando a Velha Questão Guaianá”.
Novos Estudos Cebrap. São Paulo, nº 34, novembro/1992, pp. 125-135.
26
Monteiro, John, Tupis, Tapuias, e a História de São Paulo..,.
Um Mitógrafo no Império 150
oferecida por Couto em seu romance. Que, na realidade, os guaianases de Couto fossem
tapuias, parece ser questão fora de dúvida. Os motivos que levaram a que a
intelectualidade paulista se aferrasse veementemente a um erro histórico tão crasso,
expondo-se facilmente às críticas, é questão que deve ser compreendida exatamente no
contexto da constituição de um imaginário a respeito da nacionalidade brasileira. Nesta
interpretação, as relações entre tupis, jesuítas, bravos bandeirantes e o processo de
mestiçagem, davam origem ao mameluco, enquanto personagem do mito sagrado da
nacionalidade paulista. Esta célula-mater serviu, mais tarde, como denota o texto de
Couto de Magalhães sobre Anchieta, para expandir a concepção da origem do paulista,
servindo como matriz explicativa do processo de formação de um povo brasileiro e de
uma raça americana.
Não é outro o objetivo que Couto perseguiu ao escrever sua obra mais famosa, O
Selvagem. Escrita para figurar na Exposição de Filadélfia em 1876, esta obra, de caráter
oficial, uma vez que foi composta a pedido do próprio Imperador, realiza plenamente o
mito do tupi, como raça brasileira, superior em suas qualidades, perfectível em seu devir
e base positiva para a mestiçagem, processo responsável pela viabilização do homem
americano. Otimista em seu conjunto, O Selvagem, não é mais do que um pot-pourri de
idéias então em pauta, como do evolucionismo, do monogenismo e do evolucionismo,
tingido por afirmações pretensamente científicas ou observações diretas de caráter
antropológico. Com uma abordagem extremamente simpática ao índio e a seu papel
histórico na construção da nação, Couto propunha a ocupação do sertão interior do Brasil,
através da civilização pacífica dos índios. A matriz da missão civilizatória dos índios, que
o mesmo considerava fundamental para o progresso do país, surgia, sem dúvida, como
uma releitura modernizada da ação jesuítica, reafirmando o papel da adaptação do
civilizado ao mundo indígena. É neste contexto que Couto construiu a idéia do tupi-
nhengatú, como língua geral de todos os grupos indígenas do Brasil e como meio de
comunicação entre o mundo do selvagem, do branco e caboclo, cimentando uma fictícia
unidade do Brasil, de norte a sul, desde os tempos coloniais até os meados do XIX.
Contestando as teses mais pessimistas a respeito das raças americanas e das
possibilidades de progresso das regiões não europeizadas, como a do sertão interior do
Brasil, Couto de Magalhães desenha um futuro quadro promissor, no qual caboclos
Um Mitógrafo no Império 151
27
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 69.
Um Mitógrafo no Império 152
precedida por outra, que arroste e destrua, por assim dizer, a primeira
braveza de nossos sertões.28
Ou ainda:
Conceda Deus paz ao grande Estado de São Paulo, não permita que a
raça americana dos caboclos continue a ser oprimida e eliminada;
permita Deus que ela seja educada e que enriqueça e, no futuro, quando
falarem dos velhos paulistas, hão de dizer: Foi um dos maiores e mais
notáveis povos da terra.29
28
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 66.
29
Couto de Magalhães, Anchieta, as Raças e Línguas Indígenas...
Um Mitógrafo no Império 153
Goiás, aos vinte e quatro anos de idade, realizou a exploração do complexo Araguaia-
Tocantins-Marajó, passando a advogar o estabelecimento da navegação a vapor
comercial na região.31 Seu livro de viagem, escrito no calor da juventude e decalcado na
figura mitológica do explorador destemido e do herói civilizador, está eivado de
observações nostálgicas a respeito da natureza do sertão, do insondável mistério de sua
geografia. Sua visão mítico-nostálgica da paisagem brasileira surge como fonte de
identidade, como território de construção do ser brasileiro. Escrevia Couto referindo-se a
uma das praias do Araguaia:
30
Jorge, Miguel. Couto de Magalhães. A Vida de um Homem. Goiânia: Departamento Estadual de
Cultura, 1970, p 93.
31
Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia...
32
Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia..., p. 102.
33
Sussekind, Flora, O Brasil não é Longe Daqui...
Um Mitógrafo no Império 154
34
Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia..., p. 132.
35
Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia..., p. 132.
Um Mitógrafo no Império 155
36
Para maiores informações a respeito das atividades econômicas desta personagem consultar
introdução de minha autoria ao Diário Íntimo de Couto de Magalhães.
37
Celso, Afonso (Afonso Celso de Assis Figueiredo). “José Vieira Couto de Magalhães. Subsídios para
uma Biografia”. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto, ano III, 1898, pp. 499-518.
38
Leite, Aureliano. O Brigadeiro Couto de Magalhães. Rio de Janeiro: Sauer, 1936, p. 109.
Um Mitógrafo no Império 156
39
Como, por exemplo, reconhece Joaquim Nabuco (Nabuco, Joaquim. Minha Formação. Brasília: Ed.
da Universidade de Brasília, 1963.) Análise de extremo interesse a respeito da europeização presente no
ideário das elites latino-americanas pós-independência aparece em Pratt, Mary Louise, Os Olhos do
Império...pp. 295-338.
40
Como os já mencionados aqui: Aureliano Leite, José Couto de Magalhães e Couto de Magalhães
Sobrinho, autores dos prefácios e revisões dos livros do pai e tio e Afonso Celso.
41
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., pp. 236-242.
Um Mitógrafo no Império 157
Se por um lado Couto dedicou o melhor da sua vida e de seus esforços para
garantir a perpetuidade da identidade cabocla-indígena-brasileira, escrevendo e
decantando o valor da nacionalidade; encarnando a figura do herói civilizador, pretendia
ele garantir a sobrevivência de seu próprio nome. Fazer a história, como o personagem
romântico de tantos folhetins de aventura em terras exóticas, por meio dos atos
destemidos e verdadeiramente hercúleos próprios ao explorador-aventureiro,
possibilitando a construção da epopéia nacional, gerando a figura do herói nacional. A
perseverança, o destemor e o heroísmo foram qualidades heróicas com as quais se muniu
Couto de Magalhães na fundação da Companhia de Navegação do Araguaia. Entre os
episódios aventurosos muito bem descritos em todas as biografias escritas sobre o
General, onde se incluem cachoeiras perigosas, naufrágios, atos limítrofes de grandeza e
loucura, um se destacou fortemente. Foi aquele em que Couto, superando o descrédito
42
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., pp. 237-238.
43
Couto de Magalhães, Os Guaianás..., p. 7.
Um Mitógrafo no Império 158
geral, fez desmontar nas margens do Rio Paraguai um vapor de guerra, transportando-o
por terra até aquelas do Araguaia, onde foi remontado e lançado à água, inaugurando a
navegação a vapor de tal rio.
A epopéia de tal viagem, que aproxima Couto dos delírios de Fitzcarraldo e seu
sonho de civilização nas selvas, foi assim descrito pelo Jornal do Comércio de agosto de
1868:
44
Apud. Leite, Aureliano. O Brigadeiro Couto de Magalhães..., pp. 105-106.
Um Mitógrafo no Império 159
45
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., pp. 112-113.
46
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., p. 191.
47
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., pp. 194-195.
Um Mitógrafo no Império 160
Um fogo de onde se tiram formigas, cocos que fazem o solo se abrir, mostrando
suas entranhas, galhos que se quebram, imagens onde a segurança do próprio chão perde-
se na voragem das forças naturais. Os personagens destes sonhos, caboclos, índios e
negros, a raça americana imaginada por Couto de Magalhães, também trafega por este
espaço onírico, porém revoltando-se contra a sua apropriação:
48
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., p. 111.
49
Couto de Magalhães, Diário Íntimo..., p. 210.
Capítulo 6
OS TUPIS E A TURÂNIA:
Hipóteses sobre a Origem do Homem e
da Civilização nas Américas na segunda metade do XIX
e primeiras décadas do XX1
Este capítulo tem como ponto central o estudo das teorias a respeito da origem do
homem americano e da antigüidade da civilização nas Américas, no contexto intelectual
do século XIX e primeiras décadas do XX. Seu objetivo é mapear estas teorias no
ambiente intelectual europeu e norte-americano para, em seguida, as vincular às
discussões latino-americanas e brasileiras a respeito do grau de desenvolvimento, de
civilização e de aperfeiçoamento das populações americanas originais (pré-conquista) e o
papel da América no mundo civilizado.
A partir dos finais do século XVIII, assiste-se na Europa interesse crescente a
respeito da origem e evolução do homem e das civilizações, interesse este focado tanto
no território europeu, quanto nas terras coloniais. As primeiras décadas do XIX, neste
sentido, foram marcadas pelo surgimento da arqueologia como disciplina científica e pela
popularização de relatos de viajantes, aventureiros e arqueólogos amadores sobre as
paragens distantes e civilizações perdidas. Episódio extremamente significativo deste
momento foi a “descoberta” dos senhorios maias na década de 1830/40, que alimentou
hipóteses das mais díspares sobre a origem desta civilização. Por exemplo, um dos mais
populares viajantes e pesquisadores das ruínas maias, Auguste de Le Plongeon (1826-
1908), divulgou, com persistência e entusiasmo, sua interpretação sobre a origem destes
povos. Segundo ele, os maias haviam sido povos altamente evoluídos que teriam
construído os grandes monumentos e pirâmides que então estavam sendo encontrados
1
Este capítulo é parte do projeto de pesquisa “Viagens e Viajantes no Brasil e na América, 1840-1900”
e foi publicado na Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE), São Paulo, 12, 2002,
pp.3-16.
Os Tupis e a Turânia 162
pelos viajantes europeus nas florestas tropicais da Guatemala e do Iucatã, e que teriam,
por volta de 11.500 anos atrás, imigrado para o Vale do Nilo, onde teriam fundado a
civilização egípcia.2
Outro ramo do conhecimento que emergiu neste período e tornou-se fundamental
foi o do estudo das línguas, campo composto pela lingüística e pela filologia comparada.
O estudo das línguas, semíticas e jafética, i.e., indo-européias e, mais tarde, a invenção do
tronco turaniano, informavam e muitas vezes conduziam os debates raciais e etnológicos
na Europa, tendo os filólogos, por algumas décadas, apontado os caminhos pelos quais as
discussões raciais se desenvolviam.3
Na segunda metade do século XIX, as teorias a respeito da origem do homem
americano e da antigüidade da civilização nas Américas passaram igualmente a fazer
parte integrante das preocupações dos intelectuais latino-americanos, inclusive dos
brasileiros, interessados na construção de uma identidade americana-brasileira original.
Inúmeros estudos especulavam sobre as mais variadas hipóteses a respeito do tema:
supunha-se, por exemplo, a origem indo-européia tanto do quéchua e quanto do nahuatl,
ao mesmo tempo em que se aventava a possibilidade de ligação das antigas civilizações
americanas às civilizações clássicas do mundo ocidental.4 Estas especulações, ao mesmo
tempo em que abordavam temas presentes nos debates raciais da época, deslocavam a
discussão para os temas da origens e do desenvolvimento das civilizações, buscando
estabelecer padrões de evolução línguísticos-culturais que permitissem estudar as
sociedades erigidas pelo homem nos diferentes períodos e regiões da terra.
De fato, os estudos filológicos se enraizaram como um campo estratégico nos
debates europeus a respeito da origem do homem e das civilizações no globo, dando as
cartas na definição dos termos por meio dos quais as questões da inferioridade/
2
Le Plongeon, Auguste. Maya/Atlantis. Queen Moo and The Sphinx. Nova Iorque: Edição do Autor,
1900, ed. fac-similar, Kila (MT): Kessinger, s/d e Sacred Mysteries among the Mayas and the Quiches,
11.500 Years Ago. Their Relation to the Sacred Mysteries of Egypt, Greece, Chaldea and India. Free
Masonry in Times Anterior to the Temple of Solomon. Nova Iorque: Macoy, 1886.
3
Poliakov, León. The Aryan Myth. Nova Iorque: Barnes and Noble, 1996.
4
Ver por exemplo, Wauchope, Robert. Lost Tribes & Sunken Continents. Myth and Method in the Study
of American Indians. Chicago: The University of Chicago Press, 1962.
Os Tupis e a Turânia 163
superioridade das raças e das civilizações puderam ser pensadas.5 Este capítulo pretende
enfocar alguns destes debates, mostrando como eles se reportavam a um horizonte
intelectual emoldurado pelo comparativismo das línguas e das instituições sociais dos
povos, entendidas como costumes e tradições, produzindo os contextos nos quais os
diferentes axiomas biológicos ou raciais foram discutidos. Da mesma forma, procurar-se-
á apontar as conexões entre as polêmicas hipóteses que alimentavam estes debates e o
processo de construção de uma identidade americana-brasileira no período considerado.
Em primeiro lugar farei uma localização sumária das grandes questões que
animaram o campo da filologia comparada para em seguida discutir os três grandes
ramos lingüísticos canonizados por esta discussão (ariano, semítico e turaniano). Em
seguida, farei algumas considerações sobre esta discussão no âmbito dos intelectuais
brasileiros da segunda metade do XIX e inícios do XX, enfocando os escritos de Couto
de Magalhães no livro O Selvagem, de Gonçalves Dias, no livro Brasil e Oceania, de
Varnhagen em L’Origine tourainienne des Américains Tupi-Caribes et des Anciens
Égyptiens de 1876 e finalmente o folheto de Câmara Cascudo de 1933, “O Homem
Americano e seus temas”.
5
Ver por exemplo, Kuper, Adam. The Invention of Primitive Society. Londres: Routledge, 1988 , parte
I, “The invention of Primitive Society”, a análise de Trautmann, Thomas. Aryans and British India.
Berkeley: University of California Press, 1997 a respeito da constituição do arianismo no contexto do
Império Britânico e a discussão de Poliakov, L, The Aryan Myth..., sobre a história da construção do mito
ariano da superioridade racial na Europa, sobretudo cap. “The Aryan Epoch”. Todos estes livros,
construídos a partir de perspectivas diversas, apontam o papel definidor da filologia comparada e da
lingüística histórica na definição do campo teórico de debates sobre o tema.
6
Poliakov, The Aryan Myth...
Os Tupis e a Turânia 164
7
Poliakov, The Aryan Myth…, pp. 184-5. As traduções deste e dos trechos a seguir retirados do citado
livro de Poliakov são de minha autoria.
Os Tupis e a Turânia 165
8
Poliakov, The Aryan Myth…, p.185.
9
Poliakov, The Aryan Myth…, pp. 185-186.
10
Said, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 discute o surgimento do
orientalismo como campo de saber.
Os Tupis e a Turânia 166
Foi neste sentido que o orientalista Raymond Schwab afirmou ter sido Herder o
iniciador da voga de exaltação do primitivo e do infantil na cultura ocidental, admiração
esta evocada até os dias hoje pelos intelectuais e artistas, quando exauridos pelo
racionalismo ocidental.12
Para o autor de The Aryan Myth, uma das linhas de reflexão derivada destas
conjecturas vinculava a origem da espécie humana à origem da língua, considerando-as
questões distintas, porém relacionadas. O maior debate girava em torno das
possibilidades de determinação da língua falada por Adão ou da língua original da
humanidade. Mais uma vez, esta discussão, atravessada por contendas ideológicas,
antepunha os defensores da interpretação literal da Bíblia aos defensores de uma visão
mais heterodoxa dela, cujo escopo repousava, ao menos na Alemanha, num mal estar
relativo ao parentesco dos germânicos aos semitas-judeus, o que desembocou numa
tentativa encetada pelos intelectuais europeus de desvinculação de ambas as civilizações.
No entanto, vozes dissonantes podiam ser ouvidas neste debate. Johann-David Michaelis
(1717-1791) da Universidade de Göttingen, embora fosse o maior estudioso do hebreu de
sua época e um dos fundadores da Escola Exegese Superior da Bíblia, militava contra a
emancipação dos judeu, se recusando a aceitar a genealogia de Noé como fato histórico
comprovável. Apesar da existência de posições como a acima elencada, persistiram nas
principais academias alemãs defensores ferrenhos da veracidade da Bíblia e do relato de
Noé.13
11
Poliakov, The Aryan Mith…, p. 187.
12
Poliakov, The Aryan Mith..., p. 187 e sobre a conexão criatividade artística e primitivismo no
pensamento ocidental ver, Torgovnick, Marianne. Primitive Passions. Men, Women, and the Quest for
Ecstasy. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, sobretudo pp. 3-22.
13
Poliakov, The Aryan Myth…, p. 189.
Os Tupis e a Turânia 167
14
Poliakov, The Aryan Myth…, pp. 188-189.
15
Trautmann, Aryans and British India…, pp. 28-29.
Os Tupis e a Turânia 168
muitos deles também contratados pela administração inglesa e começaram a traduzir para
o inglês (passando pelo persa) as antigas leis e textos sagrados hinduístas. O poeta e
jurista inglês William Jones foi nomeado em 1783 juiz da Corte Superior de Bengala,
dando início a uma nova fase dos estudos orientalistas. Ele se pôs a estudar diretamente o
sânscrito, tornando-se um dos principais estudiosos do hinduísmo e das línguas arianas.16
Foi a partir destes estudos que Jones se convenceu da possibilidade de traçar analogias
bem próximas entre a mitologia hindu e greco-latina. De acordo com Jones: “Existe uma
similaridade marcante entre os principais objetos de culto na Grécia e Itália antiga e o
país que agora habitamos. . .”17 Estabelecendo as linhas de descendência e a conexão
entre as línguas ele propôs um esquema histórico explicativo da origem e difusão das
línguas e civilizações humanas o qual, por sua vez, confirmava o relato bíblico de Moisés
e seus filhos. Segundo Trautmann, em síntese, as conclusões a que chegou Jones foram:
1. Persas, hindus, romanos, gregos, egípcios e etíopes falavam a mesma língua e
professavam a mesma religião.
2. Judeus, árabes, assírios, os falantes do siríaco e abissínios possuíam uma língua
ancestral comum, diferente das línguas arianas.
3. O terceiro ramo, não conectado aos anteriores, era o tártaro.
4. Na origem Deus havia criado apenas um casal humano, mas a medida em que
eles se reproduziram, a tendência foi a da dispersão, formando novas línguas, governos e
códigos de leis.
5. O lugar original dos primeiros homens havia sido o Irã, local de onde os três
ramos haviam emigrado.
6. Os episódios bíblicos como os do Dilúvio e da Torre de Babel eram verdades
históricas e puderam ser localizados nos textos sagrados hinduístas.
7. A língua original da humanidade, falada por Noé, não pode mais ser
encontrada, apesar dos esforços dos filólogos.
8. Dos filhos de Moisés, o ramo jafético, se espalhou pelo norte da Europa e
lançou-se nos oceanos. Tendo sido pastores nômades, não cultivaram a escrita. Os
descendentes de Ham inventaram o alfabeto, a astronomia e outras artes, povoando a
16
Poliakov, The Aryan Myth…, pp. 189-190 e Trautmann, Aryans and British India..., pp. 40-52.
17
Poliakov, The Aryan Myth…, p. 190.
Os Tupis e a Turânia 169
Índia e a África. Mais tarde passaram para Grécia e Itália, outros atravessando as
montanhas chegaram à China e ainda, parte destes, indo ainda mais além, chegaram ao
México e Peru. Já os descendentes de Shem teriam povoado a península arábica.18
O modelo interpretativo proposto por W. Jones foi reinterpretado por Friederich
Schlegel, o qual, por seu turno, estabeleceu correlações antropológicas às semelhanças
detectadas entre os indo-europeus no âmbito da língua, entendida como monumento
cultural principal, cuja associação a outras características comuns, analisadas em conexão
com a filologia, tais como os mitos, hábitos e costumes, formavam o conjunto analítico
daquilo que se denominava teoricamente como uma civilização. Desta forma, Schlegel
estabeleceu pioneiramente uma relação direta entre língua e raça, abrindo caminho para
construção do mito da raça ariana. Embora Schlegel tenha sido um romântico de primeira
geração, menos comprometido com aspectos irracionalistas e regressivos que
caracterizaram o auge da ideologia romântica na Europa e, além disso, não estivesse ao
menos conscientemente comprometido com o anti-semitismo, ele concebeu e deu forma
ao mito da raça ariana. Note-se, no entanto, que a militância política de Schlegel o havia
levado a envolver-se na campanha a favor da emancipação judaica, e havia inclusive se
casado com uma judia, filha do filósofo Mendelssohn. Embora incensado por sua
concepção da raça germânica, mais tarde ele foi acusado pelos nazistas de carecer de
instinto de raça.19
A visão de Schlegel foi fundamental na Alemanha ligando os arianos do norte da
Índia à idéia de um alto desenvolvimento intelectual, uma civilização de guerreiros e
sacerdotes vegetarianos que por alguma força magnética obscura haviam se tornado
carnívoros e imigrado formando colônias. Embora ele próprio tenha sempre se atido a
aspectos mais gerais desta construção ideológica, seus seguidores deram o passo em
direção a ligar o mito ariano ao nacionalismo germânico, a começar por seu irmão
August-Wilhelm Schlegel, passando por Goethe, Hegel, e se difundindo rapidamente pela
França.20
18
Trautmann, Aryans and British India…, pp. 51-52.
19
Poliakov, The Aryan Myth…, pp. 190-191.
20
Poliakov, The Aryan Myth…, pp. 192-193.
Os Tupis e a Turânia 170
Como notou Trautmann, o pensamento das ciências humanas dos séculos XVIII e
XIX se guiava por dois paradigmas: o da escada e o da árvore. O primeiro, dominante na
antropologia da segunda metade do XIX, orientava suas análises inspirando-se na
estrutura de uma escada a qual, por meio da evolução, conduzia a humanidade a uma
progressiva sucessão de formas hierarquizadas. Já a segunda visão, aquela que via as
nações21 como parte de uma árvore de muitos galhos, conduzia as interpretações dos
lingüistas, marcando igualmente o pensamento etnológico e concebia o desenvolvimento
humano por meio de uma sucessão de ramos aparentados, partindo um tronco comum.
Nesta visão as nações humanas poderiam estar divididas em culturas-tronco ou mães e
culturas derivadas ou filhas, mas elas não estavam hierarquizadas de forma evolutiva. A
visão da árvore, marcou a lingüística histórica do século XIX e foi predominante na
biologia, tendo Darwin deixado claro na Origem das Espécies que o conceito vinha da
lingüística e da etnologia para a biologia, e não ao contrário. Note-se que, em princípio,
tanto o paradigma da escada quanto o da árvore eram monogenistas, sendo que o
segundo, aquele da árvore, servia para asseverar a veracidade da Bíblia e era a chave da
chamada “etnologia mosaica” (derivada de Moisés).22
No livro The Invention of Primitive Society, Adam Kuper mostra que um dos
primeiros modelos explicativos da origem das civilizações americanas, perpassado pelas
discussões que antepunham o monogenismo ao poligenismo, encontra-se no campo das
discussões filológicas e misturava raça e língua, porém dando primazia à língua. Um dos
debates mais significativos a este respeito era aquele que opunha os arianistas aos
defensores da proeminência dos semitas na origem da civilização, debate este que
alcançou grande impacto tanto nos estudos filológicos europeus quanto nos nascentes
estudos arqueológicos e lingüísticos nos EUA. Esta disputa teórica, estabelecendo um
campo de discussões na América do Norte teve, por seu turno, grande ressonância na
América Latina. Samuel Haven, por exemplo, em sua obra Arqueologia dos Estados
Unidos, publicada em 1856 pelo Smithsonian Institution, reviu em detalhe os estudos
lingüísticos das línguas americanas, enfatizando a conclusão de Albert Gallatin
21
O termo nação aqui está sendo utilizado na sua acepção do século XIX, significando povo, grupo
étnico ou tribo.
22
Trautmann, Aryans and British India…, p.9.
Os Tupis e a Turânia 171
asseverava que, tendo estas línguas se desenvolvido isoladamente daquelas faladas nos
outros continentes, estas acabaram por desenvolver apenas entre si mesmas
características comuns. Ainda de acordo com o citado filólogo, o aspecto definidor mais
importante para a análise destas línguas residia naquilo que Wilhelm Von Humboldt
(1769-1859) havia chamado de processo de “aglutinação”, que se definia como um
sistema de colagem que permitia a que as línguas acumulassem um grande número de
significados utilizando-se de uma só palavra.23 Além disso, ao refletir sobre os estudos
fisiológicos poligenistas, Haven rejeitou suas conclusões, optando pela interpretação
filológica monogenista. Escrutinando as novas descobertas da arqueologia este autor
concluia que:
23
Kuper, The Invention of Primitive Society…, p. 50.
24
Samuel Haven, Archeology of United States apud Kuper, The Invention of Primitive Society…, p. 51.
Os Tupis e a Turânia 172
25
Kuper, The Invention of Primitive Society…, pp. 51-52.
26
Kuper, The Invention of Primitive Society…, p. 52.
Os Tupis e a Turânia 173
27
Kuper, The Invention of Primitive Society…, pp. 52-53.
28
Kuper, The Invention of Primitive Society…, pp. 53-54.
29
Kuper, The Invention of Primitive Society…, pp. 49-56.
Os Tupis e a Turânia 174
Conclusão: os tupis formavam uma raça invasora superior que, vinda do norte,
havia conquistado os grupos tapuias de origem mongol inferior e tomado suas mulheres.
O resultado teria sido a decadência dos tupis mais civilizados, devido à sua integração de
uma população mais bárbara e atrasada. A confirmação da proveniência setentrional dos
30
Dias, Gonçalves. Obras Póstumas. O Brazil e A Oceania. Paris: H. Garnier, s/d. Este texto foi
publicado originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
31
Kuper, The Invention of Primitive Society…, pp. 68-70.
32
Dias, Gonçalves. Obras Póstumas..., p. 4.
Os Tupis e a Turânia 175
Temos idéia de haver lido que o uso antigo de chamar-se à gente por tios
procede do tempo dos fenícios e egípcios. Sendo assim teríamos nestes
fatos mais um ponto de contato para a possibilidade de relações outrora
33
Dias, Gonçalves. Obras Póstumas..., p. 5.
34
Dias, Gonçalves. Obras Póstumas..., pp. 1-21.
35
Estas afirmações constam da segunda parte do livro: Dias, Gonçalves. Obras Póstumas..., caps. I a
IV, pp. 243- 355.
36
Varnhagen, F. A. L’Origine Touranienne des Américains Tupi-Caribes et des Anciens Égyptiens,
Montrée Principalement par la Philologie Comparée, et Notice d’une Ancienne Migration en Amérique,
Invasion du Brésil par les Tupis. Viena: Lib. I. et R. de Faesy & Frick, 1876, 158 p.
37
Os argumentos e informações aqui apresentados a respeito de Varnhagen foram retirados da
Dissertação de Mestrado de Oliveira, Laura Nogueira de. “Os Índios Bravos e o Sr. Visconde: Os Indígenas
Brasileiros na Obra de Francisco Adolfo Varnhagen”. Belo Horizonte: FFCH da UFMG, 2000.
Os Tupis e a Turânia 176
38
Varnhagen, F. A. Breves Comentários à Precedente Obra de Gabriel Soares de Souza”. Revista do
Instituto Histórico, Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo XIV, 1851, p. 408. Lord Kingsborough,
Visconde Edward King, (1795-1837),que aparece no texto foi um dos principais estudioso e financiador de
viagens de pesquisa ao México e acreditava serem os mexicanos descendentes de uma das Doze Tribos de
Israel. Ele coligiu e publicou o importante volume “Antiquities of Mexico: comprising fac-similes of
ancient Mexican paintings and hieroglyphics”. Londres:A. Aglio, 1830-48.
39
Síntese da obra de Varnhagen, A., L’Origine ..., apud Oliveira, Laura Nogueira de, “Os Índios e o Sr.
Visconde...”, pp. 90-100.
40
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 28.
Os Tupis e a Turânia 177
Além da extensão geográfica alcançada pelo tupi, que a tornava “uma das maiores
línguas da terra”,41 esta possuía também, nas palavras de Couto de Magalhães, qualidades
superlativas de beleza e elegância:
Note-se que nesta passagem Couto de Magalhães deixou claro que a principal
língua indígena do Brasil, a língua nacional por excelência, projetava-se favoravelmente
no contexto da lingüística histórica, podendo inclusive possibilitar, com seu estudo e
deciframento, a evolução do conhecimento das línguas no âmbito dos debates europeus.
Inspirado pela língua é que Couto vai fazer um estudo das civilizações e da origem do
homem, em especial no Brasil. Em primeiro lugar, argumentava este autor que “esta alta
antiguidade do tronco americano, que o iguala aos mais velhos do mundo”, era uma
verdade arqueológica, embora esta ainda não tivesse sido aceita pelos estudiosos
europeus. Pois, segundo ele, ainda pairavam dúvidas quanto à antiguidade dos vestígios
encontrados em terras brasileiras, que ainda careciam de datação mais precisa. No
entanto, concluía Couto, os vestígios dos povos americanos deveriam ser anteriores à
pedra polida e, portanto, “a antiguidade do homem americano é grande, porque precede
as primeiras imigrações dos Árias na Europa, e remonta até a data do período
paleolítico da parte oriental daquela região”.43 A proposta de Couto é que as pesquisas
arqueológicas deveriam ser desenvolvidas em áreas altas e montanhosas do Brasil, uma
vez que seria aí que se poderia encontrar os vestígios mais antigos.
Em seguida, Couto de Magalhães passa a discutir a questão da filiação lingüística
do tupi, propondo sua localização em termos de desenvolvimento evolutivo no conjunto
das línguas americanas e seu parentesco com as línguas asiáticas, isto é com o ramo
41
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 28.
42
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 28.
43
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 34.
Os Tupis e a Turânia 178
44
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 50.
45
Couto de Magalhães, O Selvagem..., p. 52.
46
Sobre Brasseur de Bourbourg, ver Wauchope, Robert. Lost Tribes & Sunken Continents. Myth and
Method in the Study of American Indians. Chicago: The University of Chicago Press, 1962, pp. 19-21 e 44-
48.
Os Tupis e a Turânia 179
Com relação ao que Couto chama da língua dos incas, para ele o quéchua, a
comprovação de sua filiação ao sânscrito, justificada devido à localização, em sua
gramática de “centenas ou milhares de vocábulos sânscritos”, aparece escorada no
trabalho do estudioso argentino Vicente Fidel López (1815-1903) que havia, em
princípio, comparado positivamente o quéchua com os textos sagrados dos Vedas. Mais
tarde, apoiado no trabalho de um eminente egiptólogo europeu que havia visitado a
Argentina, Fidel López publicou em francês uma obra que buscou comprovar esta
hipótese, intitulada Les Races Aryennes du Pérou, Leur Langue, Leur Religion, Leur
Histoire, figurando na Exposição de Filadélfia de 1876.47
As conclusões de Couto de Magalhães a respeito da origem dos povos e das
línguas americanas dos grandes impérios são muito claras. Segundo ele: “Uma raça
ariana, portanto, esteve largamente em contato com os índios americanos e os incas ou
seus progenitores eram filhos dos plateaux ou araxás da Ásia Central.”48
O enfoque das idéias destes três autores – Gonçalves Dias, F. A. Varnhagen e
Couto de Magalhães – e de suas idéias a respeito da origem dos povos e línguas
americanos e brasileiros permite que, embora sucintamente, se faça um quadro da
importância destas discussões no ambiente intelectual latino-americano e brasileiro.
Contextualizada pelas leituras de estudiosos europeus e, em menor medida, de autores
norte-americanos nos campos filologia, arqueologia, antropologia e etnologia, os
intelectuais latino-americanos no século XIX buscaram estabelecer o lugar e a
contribuição dos povos indígenas e de suas civilizações no conjunto das civilizações
humanas. Reafirmando o monogenismo, conectando os povos americanos ao relato
bíblico, à etnologia mosaica, à diáspora das Doze Tribos de Israel, à Atlântida e aos
contatos nas duas direções com povos egípcios ou arianos antigos, os intelectuais latino-
americanos do XIX pretendiam delimitar o lugar da civilização americana no grande
painel dos povos da humanidade.
Estas idéias, extensamente discutidas na segunda metade do século XIX, vão ser
reavaliadas no contexto intelectual dos anos de 1930, incorporando ao antigo debate,
47
López, Fidel. Les Races Aryennes du Pérou, Leur Langue, Leur Religion, Leur Histoire, Paris: Ed. A.
Frank, s/d. Houve também uma edição do autor, impressa em Montevidéu em 1871.
48
Couto de Magalhães, O Selvagem..., pp. 51-52.
Os Tupis e a Turânia 180
49
Câmara Cascudo, Luís. “O Homem Americano e seus Temas”, ed. fac-similar, Coleção Mossoerense,
Série C, vol. 746, 1992 [1933], 71 pags.
Os Tupis e a Turânia 181
respeito dos insolúveis problemas e mistérios que ainda pesavam sobre a determinação da
origem da vida humana no Novo Mundo.
O partido que toma Câmara Cascudo a respeito da origem do homem nas
Américas o coloca no âmbito das discussões dos cientistas-naturalistas e antropólogos
americanos, que desde pelo menos a segunda metade do século XIX, vinham postulando
a filiação das grandes civilizações americanas – sobretudo maia, asteca e inca – às
civilizações clássicas – principalmente egípcia, cartaginense, grega ou turaniana – e as
línguas americanas – nahuatl, quéchua, aimará, tupi, entre outras – ao então considerado
pelos defensores da tese dos continentes perdidos e pelos teosofistas como o principal
tronco lingüístico civilizado, isto é o ariano/indo-europeu. Portanto, o ponto de vista de
Câmara Cascudo, assim como de diversas gerações de intelectuais e cientista americanos
é, pode-se dizer, difusionista,50 e tem como questão fundante a reflexão sobre o papel das
culturas e do homem americanos no grande conjunto das civilizações.
Para Câmara Cascudo, o problema central na discussão do problema da origem do
homem americano não reside na ausência de pesquisas de caráter arqueológico,
antropológico ou lingüístico interessadas no deslindamento deste importante assunto,
muito menos se encontra escassez de fontes materiais ou culturais que se prestem às
reflexões dos estudiosos. De fato, para o autor, o mais grave problema a ser enfrentado no
deslindamento da questão da origem da civilização na América encontra-se no aspecto
fortemente ideológico do problema. A leitura deste ensaio deixa claro que para Câmara
Cascudo – e, para muitos intelectuais de sua geração - a delimitação da origem do homem
e da cultura americanas se integra fortemente na base da construção de uma identidade
americana e latino-americana. Neste sentido, o autor esclarece desde o início de sua
argumentação que considera os cientistas europeus, que tão freqüentemente têm visitado
e estudado os restos materiais e a fontes culturais americanas, parciais e guiados por
asserções preconcebidas que os torna muito propensos a considerar desde logo a origem
50
A idéia de que alguns artefatos básicos das culturas humanas, como a cerâmica, o arco e flecha, etc,
teriam sido inventados por determinado grupo humano e se difundido pelo mundo, criando blocos culturais
começa a ser colocada em discussão com os livros de Friedrich Ratzel, Anthropogeography (1882-91) e
The History of Mankind (1885-8). Franz Boas (1858-1942) leva esta discussão para a etnologia norte-
americana, acrescentando o relativismo cultural e a interpretação de uma absorção peculiar por cada grupo
dos elementos culturais difundidos. ver: Trigger, Bruce. A History of Archaeological Thought. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989, pp. 150-155. A visão expressa por Câmara Cascudo neste texto parece
estar escorada numa interpretação um tanto quanto vulgarizada do difusionismo.
Os Tupis e a Turânia 182
antiga do mundo e já conhecia a vida humana quando outras partes do globo ainda jaziam
submersas nos oceanos.
A hipótese de Lund, assim como de outros estudiosos americanos (por origem ou
adoção), cujas idéias e hipótese foram entusiasticamente apresentadas por Câmara
Cascudo no decorrer deste ensaio, acabam por levantar o problema fundamental
subjacente à discussão da origem do homem nas Américas, que é o da datação e das
origens étnicas das possíveis levas migratórias que teriam dado origem às civilizações
indígenas no continente. É neste ponto que Câmara Cascudo postula a factibilidade da
existência dos continentes perdidos, o que, segundo ele, viria a explicar cabalmente o
mistério de muitos resquícios e ruínas de civilizações extremamente sofisticadas em
regiões onde o colonizador encontrou apenas selvagens – como seria o caso, lembra o
autor, da Ilha do Marajó, no norte do Brasil - como viria a demonstrar a unidade da
família humana e das civilizações, colocando em pé de igualdade diferentes culturas,
línguas e civilizações, nas quais o homem americano e sua cultura encontrariam o justo
lugar.
Civilizações perdidas e reencontradas nos vestígios deixados por povos e
costumes misteriosos, línguas e escritas desconhecidas e impossíveis de serem decifradas
– todos estes motivos alimentaram a imaginação do homem do século XIX, justificando o
surgimento de teorias imaginativas, baseadas no indecifrável ou no improvável. No
entanto, por trás dos continentes perdidos e das sacerdotisas egípto-maias corria todo um
campo teórico de debates que procurava repensar a origem do homem e das civilizações a
partir dos e em confronto com os parâmetros cientificistas do XIX. Todos sabemos que a
partir de meados do XIX as correntes de pensamento dominantes no campo das ciências
do homem se apressaram por buscar seu lugar no novo panteão das ciências, cujo passe
de entrada parecia exigir que se abjurasse o dogma cristão da origem una da humanidade.
Outras correntes, porém, às vezes percorrendo caminhos pouco ortodoxos, buscaram
reintegrar as grandes questões do humanismo, reafirmando a origem única dos homens e
de suas civilizações sob uma roupagem que reivindicava uma nova ciência, regida por
aquilo que na ascensão inexorável do paradigma cientificista só poderia se manifestar na
forma do esotérico, do misterioso e do intangível. É esta recusa de se submeter aos
princípios científicos do século XIX, baseados no racismo, que parece ter movido a
Os Tupis e a Turânia 184
história da busca das origens perdidas do homem e de suas civilizações. Seria também a
visão humanista que permeava esta busca e suas teorias imaginativas que explicaria
porque, embora derrotadas pela ciência, elas permaneçam tão populares nos dias de hoje.
Parte IV
ROTAS DE FUGA E DESCAMINHOS DA CIDADANIA
Depois de longos dias de penosa marcha por péssimos e intérminos caminhos, homens,
mulheres, velhos e crianças, famintos, cansados, enfraquecidos, esfarrapados, esses
míseros componentes da mísera caravana ... tendo à frente o Adão, qual outro Moisés
caminhavam pela estrada que margeia a linha férrea e se aproximavam da Ponte do
Casqueiro, braço do mar que precisavam atravessar para chegar a Santos, a cidade
abolicionista por excelência, e daí ao Jabaquara, bairro da mesma cidade, refúgio de
fugitivos, onde descansariam para depois cada um tomar seu rumo.
(Castan, Cenas da Abolição e Cenas Várias. Horrores da Escravidão no Brasil)
Capítulo 7
DE REBELDES A FURA-GREVES:
As Duas Faces da Experiência da Liberdade
dos Quilombolas do Jabaquara na Santos Pós-Emancipação1
Este texto tem como proposta enfocar as décadas de 1880 e 1890 na cidade de
Santos sob o ponto de vista da vivência dos escravos fugidos que, atraídos pela
propaganda abolicionista dos anos de 1880, haviam se refugiado nos quilombos do
Jabaquara e subsidiariamente no do Pai Felipe. Embora fossem estes dois quilombos
assistidos ou propriamente organizados por homens livres, em sua maioria brancos,
sobretudo intelectuais, advogados e comissários de café da província de São Paulo que
atuavam na praça de Santos, a entrada de numerosa população negra na cidade– alguns
autores afirmam, sem dúvida com exagero, que o Jabaquara teria albergado até 10.000
escravos fugidos!2 – inviabilizou a manutenção do controle da elite branca sobre esta
população, desenraizada e em processo de politização, situação esta que teve forte
impacto na urbanização santista. Buscando sobreviver a qualquer custo, os quilombolas
do Jabaquara entraram no mercado de trabalho informal da cidade portuária, ocupando
1
Este capítulo não poderia ter sido realizado sem a colaboração de André Rosemberg que, ao tempo em
que este texto estava sendo redigido, finalizava sua dissertação de mestrado, Justiça Imaginada. Processos
Sociais e Justiça em Santos na Década de 1880, Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, 2003. Foi ele
quem, gentilmente, localizou e copiou os autos de justiça aqui utilizados, num momento em que eu estava
impossibilitada de pesquisar em arquivos. No decorrer da redação do texto, período em que eu estava em
Cambridge, EUA, foi André Rosemberg quem, mais uma vez, com toda a boa vontade, copiou e me enviou
os livros que não existiam nas bibliotecas da Harvard University. Finalmente, e mais valiosos ainda, foram
os nossos diálogos em torno do tema, que enriqueceram minha visão do assunto e me ajudaram a enfocar,
sob um ponto de vista renovado, um tema que eu havia deixado para trás há mais de 10 anos. Agradeço
igualmente à paciência de Flávio Gomes dos Santos, a quem eu devia um trabalho sobre o Quilombo do
Jabaquara há pelo menos 5 anos. A versão completa deste texto está em Gomes, Flavio dos Santos; Cunha,
Olívia Maria Gomes da (orgs). Quase-Cidadão. Histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil.
Rio de Janeiro: ed. da Fundação Getúlio Vargas, 2005 ( no prelo). Uma versão resumida aparecerá na
Hispanic American Historical Review, maio de 2006 com o título “From Slave Rebels to Strikebreakers:
The Quilombo of Jabaquara and the Problem of Citizenship in Late-Nineteenth Century Brazil”. Esta
versão foi também apresentada no Boston Area Latin America History Workshop, Harvard University,
novembro de 2003. Agradeço os comentários que James Woodard apresentou nesta ocasião.
2
Santos, Francisco Martins. A História de Santos. 2o. edição, São Vicente: Caudex, 1968, p. 42.
De Rebeldes a Fura-Greves 187
Dois dos bairros mais importantes da história de Santos têm seu passado
esquecido. Entre problemas de segurança (tráfico de drogas), ausência de
escolas públicas, tráfego de veículos pesados e reclamações ao sistema
viário, os moradores do Jabaquara e Morro Jabaquara não encontram
qualquer lembrete do papel de sua região na política da Cidade, em
especial na campanha abolicionista, quando a área se tornou conhecida
como a Canaã dos Cativos.4
3
O termo Krumiro vulgarizou-se nos finais do século XIX, entre os militantes do movimento operário,
com o sentido de fura-greve. Seu uso, rapidamente, se espalhou tanto no Brasil, quanto na Argentina e
Chile. De origem obscura, o termo se refere a um grupo bérbere do oeste da Tunísia, denominado de
Kroumirs pelos franceses, cujas atividades ligadas ao contrabando serviram de pretexto para o
estabelecimento do protetorado francês na Tunísia em 1881. Fazendo um paralelo com a maneira pela qual
os empresários capitalistas usavam uma mão-de-obra de trabalhadores não-especializados ou não-
sindicalizados para furar as greves, os líderes dos nascentes movimentos operários empregavam o termo
para identificar fura-greves que cruzavam a barreira dos piquetes, traindo o interesses da classe
trabalhadora a qual pertenciam. Eric Hobsbawn sublinhou que os operários italianos, na passagem do
século XIX para o XX, denominavam os fura-greves de crumiri, termo cujo sentido derivava de uma visão
negativa dos trabalhadores com relação aos povos do norte da África, que estavam então sendo
incorporados ao mundo imperialista. (Hobsbawn, Eric. The Age of Empire, New York: Vintage, 1987, p.
80)
4
Jornal A Tribuna de Santos de 11 de junho de 2000.
De Rebeldes a Fura-Greves 188
5
Santos, José Maria dos. Os Republicanos Paulistas e a Abolição. São Paulo: Livraria Martins, 1942,
pp. 182-183.
De Rebeldes a Fura-Greves 189
E talvez tenha sido este relativo atraso da entrada das terras do Jabaquara na
especulação imobiliária que acompanhou a primeira fase de construção dos cais do porto
de Santos pela Companhia das Docas, entre 1897-1909,7 juntamente com o
desconhecimento quase completo da complexidade e antigüidade da ocupação do
Jabaquara fatos que justificam que tanto os memorialistas quanto muitos historiadores
contemporâneos, continuassem a descrever as terras do Jabaquara como sítio ermo,
coberto de matas, sugerindo que os escravos fugidos e aí abrigados teriam podido
desenvolver uma comunidade de quilombo como usualmente se entende. Assim, por
exemplo, está descrito o Jabaquara nas páginas de um dos livros mais informativos sobre
o tema: “ Era um sítio de terras altas e férteis, então desabitadas”.8 O mesmo tipo de
descrição do Jabaquara apareceu, por exemplo, no livro História de Santos, obra das mais
citadas da história da cidade, a qual sublinhando o caráter rural da região sugeria que
fosse esta uma área ainda não-integrada, na qual se encontravam ausentes as atividades
econômicas ou interesses fundiários. Assim, o Jabaquara aparece descrito nesta obra:
Esta descrição, assim como a muitas outras, convida o leitor a imaginar esta como
uma região desabitada ou quase, na qual os limites e divisas de terras e sítios estivessem
6
1686. Ação de Interdito Processório em que são: Benjamim Fontana e sua mulher: AA e Walter
Wright: R. Arquivo do Fórum de Santos, fls. 4v e 5.Arquivo Geral do Fórum da Comarca de Santos,
doravante AGFCS.
7
Araújo Filho, José Ribeiro. Santos, O Porto do Café. Rio de Janeiro: Fundação IBGE, 1969, p. 74.
8
Santos, J. M., Os Republicanos Paulistas ..., p. 182.
De Rebeldes a Fura-Greves 190
9
Santos, F. M. dos, História de Santos ..., p.12.
De Rebeldes a Fura-Greves 191
10
Segundo Gitahy, Maria Lúcia C. Ventos do Mar. Trabalhadores do Porto, Movimento Operário e
Cultura Urbana em Santos, 1889-1914. São Paulo/Santos: Unesp/Prefeitura Municipal de Santos, 1992, p.
31, no recenseamento santista de 1872 encontra-se registrada a população de 1606 escravos para 7585
livres. Já em 1886, Santos devia possuir uma população de 15605 habitantes. Segundo Conrad, Robert E.
The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888. Berkeley: The University of California Press, 1972, p.
240, em 1886, após a campanha empreendida pelos abolicionistas em prol da libertação dos escravos da
cidade, Santos contava com menos de 300 escravos de propriedade de senhores recalcitrantes.
11
Santos, J.M., Os Republicanos ..., pp.170-171.
De Rebeldes a Fura-Greves 192
a encontrar mulheres e crianças,12 é verdade também que uma das questões que estiveram
claramente presentes nas discussões que acompanharam esta iniciativa foi a de, nas
palavras de Francisco Martins dos Santos, refrear o comportamento dos escravos,
mantendo-os sob estrito controle. Sem dúvida, desde o princípio, o refúgio do Jabaquara
havia sido organizado sob o signo do paternalismo, com vistas a manter o controle social
de uma população que possuía tais “ímpetos naturais”,13 que tornava-a perigosamente
predisposta a ultrapassar as normas sociais de subordinação e dependência, cuja
sobrevivência era exatamente o cerne da preocupação dos intelectuais abolicionistas
paulistas. Embora o caráter conservador da iniciativa de organização deste refúgio, é
preciso lembrar que apesar de localizado em Santos, a fundação do Jabaquara em 1882
refletia a mudança de rumos que tomava o movimento em São Paulo após a morte de
Luiz Gama, naquele mesmo ano, na capital, seguida da entrada em cena da liderança de
Antônio Bento. Estes eventos foram seguidos pela organização do movimento dos
caifazes, o qual alçou o movimento decididamente popular para a frente da cena política,
tornando, certamente, o movimento abolicionista muito mais complexo do que sugere a
consideração unilateral do discurso condutor das elites militantes.14 Eram nos estratos
sociais e politicamente mais elevados do movimento abolicionista, com os quais se
identificavam políticos, fazendeiros e jornalistas paulistas renomados, tais como o
republicano Bernardino de Campos e seu irmão Américo de Campos, bem como entre os
moços das elites que iniciavam então suas carreiras políticas, bacharelescas e jornalísticas
exatamente com aderência ao abolicionismo humanitário, como Júlio Mesquita, é que se
encontra mais fortemente o discurso europeizante, que, como bem expressou F. M. dos
Santos, buscava na abolição formas de restringir “a forte contribuição do sangue
retrógrado na formação das novas gerações nacionais”.15 Porém, na escala intermediária,
onde segundo José Maria dos Santos militavam os jovens republicanos idealistas,
oradores inflamados, agitadores e poetas, como Raul Pompéia e na base do movimento,
decididamente popular, e da qual participavam operários, artífices, cocheiros, mercadores
12
Santos, J. M., Os Republicanos ..., p. 182.
13
Santos, F. M., História de Santos..., p.12.
14
Machado, Maria Helena, O Plano e o Pânico..., p. 152-153.
15
Santos, F. M., História de Santos ..., p. 1.
De Rebeldes a Fura-Greves 193
16
Santos, J. M., Os Republicanos Paulistas ..., pp. 181-182.
17
Lanna, Ana Lúcia Duarte. Uma Cidade na Transição. Santos:1870-1930. São Paulo/Santos:
Hucitec/Prefeitura Municipal de Santos, 1996, pp. 95-96.
De Rebeldes a Fura-Greves 194
rede de pousos e abrigos ao longo dos caminhos que ligavam o sul mineiro, o oeste
paulista e o Vale do Paraíba paulista a Santos, sempre contando com a colaboração dos
ferroviários da Inglesa, dos cocheiros de São Paulo, dos tropeiros nas estradas, dos
moradores de ranchos e sítios e mesmo de fazendeiros, senhores e senhoras das elites das
cidades cafeeiras e de São Paulo, que recolhiam e acoitavam, em seus quintais, oficinas e
sítios, os escravos em fuga.18
Castan, em seu livro de memórias, no qual constam episódios por ele
testemunhados enquanto caifás do movimento liderado por Antônio Bento, relembra no
episódio “A Ponte do Casqueiro”, a atuação dos agentes do movimento que iniciava-se,
segundo ele, com o proselitismo junto aos escravos nas fazendas, com o qual os caifazes
buscavam convencer os cativos do acerto desta decisão, continuava com a organização da
fuga em massa e apenas terminava com o convencimento dos militares responsáveis pela
vigilância do Casqueiro de fazerem vista grossa à passagem dos retirantes. Assim,
descreveu Castan esta última fase da fuga:
Ora, a ponte estava guardada por uma força de polícia, com ordens
terminantes para não os deixar passar, para os prender mesmo e os
recambiar aos ergástulos dos fazendeiros.
18
Santos, J. M., Os Republicanos Paulistas ..., p. 178-179 e Morais, Evaristo. A Campanha
Abolicionista, 1879-1888. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1986, pp. 217-219.
De Rebeldes a Fura-Greves 196
Façam alto! Por aqui por esta ponte não passa nenhum negro fugido!! As
ordens que tenho serão cumpridas!!... O Adão julgou tudo perdido
...Notou, todavia, que o comandante continuou a falar, de modo estranho,
como quem falava consigo mesmo, mas de maneira a poder ser ouvido
pelos seus comandados e toda a gente, dizendo: “Ali no rio estão muitos
botes e canoas nos quais pode passar todo mundo que quiser”. O resto
não precisa ser narrado. E foi a Lei que fez a Abolição?19
19
Castan. Cenas da Abolição e Cenas Várias. Horrores da Escravidão no Brasil. São Paulo: Imprensa
Metodista, 1924, p. 53.
De Rebeldes a Fura-Greves 197
pontos-de-vista e versões dos fatos registrados por seus pares.20 Mas se trata, sim, de
considerar a existência de muitas outras vivências e versões que não alcançaram o
registro escrito devido a desimportância de seus autores, mas que podem ser
vislumbrados na ações de muitas personagens populares, e cuja recuperação importa ao
historiador das camadas populares. Em relação as fugas dos escravos e atração exercida
por Santos, parece claro que a procura pela cidade portuária como refúgio seguro
precedeu, de todo, a organização dos caifazes que ocorreu após 1882, e intensificou-se a
partir de 1885, parece ainda que a preocupação de Antônio Bento em sistematizar uma
rota de fuga mais segura respondia, na verdade, a uma demanda dos escravos que
espontaneamente, desde os finais da década de 1870, ou talvez ainda antes, já
procurassem pôr-se a salvo na cidade portuária.21
Uma das explicações da procura da cidade portuária como refúgio repousa, sem
dúvida, na crescente fama de Santos como cidade liberal e abolicionista. Mas este fato
deve também refletir as características da própria região litorânea que há muito estava
cercada por quilombos, como o de Cubatão,22 e além do mais, devido a seu caráter
portuário acostumara-se ao trânsito constante pessoas das mais diferentes regiões e
naturalidades, o que diluía a rigidez da sociedade escravista que se observava em outras
partes da província, oferecendo algumas brechas para a inserção dos fugidos.23 É preciso
sublinhar que se é certo que a fama de liberalidade da cidade passou a atrair número
crescente de fugidos, é preciso notar que apenas uma parte destes encontrava abrigo no
Jabaquara, colocando-se sob a esfera de influência mais próxima dos abolicionistas-
humanitários. Pois, apesar da intensidade com que o Jabaquara aparece saudado nesta
historiografia tradicional memorialística do período, como o maior e mais completo
20
Como os depoimentos dos militantes santistas recolhidos por Santos, F.M., História de Santos..., ou o
artigo Andrada, Antônio Manuel Bueno de. “Depoimento de uma Testemunha”, Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. 36, 1939, entre muitos outros.
21
Santos, Ronaldo Marcos dos. Resistência e Superação do Escravismo na Província de São Paulo,
1885-1888. São Paulo: IPE/USP, 1980, p. 78.
22
Santos, F. M., História de Santos.., p. 237, nota 38 apresenta um histórico resumido dos quilombos
em Cubatão, supondo que último chefe do mesmo havia sido Pai Felipe. No entanto, o tema dos quilombos
em Santos ainda está para ser estudado.
23
Fontes, Alice Aguiar de Barros. A Prática Abolicionista em São Paulo: Os Caifazes, 1882-1888.
Dissertação de Mestrado inédito, FFCH/USP, 1976, p. 92- 122 e Machado, M.H., O Plano e o Pânico...,
cap. 4, “Cometas, Caifazes e o Movimento Abolicionista”, pp. 143-174.
De Rebeldes a Fura-Greves 198
24
Santos, F. M., História de Santos..., p. 42.
25
Santos, R. M. Resistência e superação..., pp. 95-100. Ver também: Wissenbach, Maria Cristina C.
Sonhos Africanos, Vivências Ladinas. Escravos e Forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo: Hucitec,
1998 que às pp: 57 e 155 se refere à chácara de Rosa Mina, na qual se acoitavam escravos fugidos e ai se
empregavam e à p. 158 quando se refere à famosa Olaria do Pinto, que também recebia escravos fugidos,
mas explorava a mão-de-obra posta a seu dispor.
De Rebeldes a Fura-Greves 199
afastar os mais afortunados, parece ter sido o primeiro fator a colocar Santos como mais
uma parada na rota destes retirantes, cujo ponto inicial localizava-se nos eitos de café,
mas cujo ponto final não podia ser visualizado nem no mapa da escravidão nem naquele
que estava sendo delineado pelas elites humanitário-paternalistas.27 Estimulando a
migração dos auto-proclamados libertos para Santos, encontramos também o movimento
abolicionista das elites humanitárias paulistas, os chamados adeptos de Antônio Bento,
que a muito custo buscavam se colocar na linha de frente do movimento social, se
tornando fator determinante tanto no controle social desta população volátil e
desenraizada no ambiente das cidades, quanto como instância capaz de garantir e realocar
o “trabalho retribuído” e disciplinado dos paternalmente chamados de “ libertos de
Antônio Bento”.
Um bom representante deste tipo de discurso pode ser encontrado em Silva
Jardim, cuja popularidade política fizera-se exatamente a partir de sua mudança para
Santos em 1885. Militando junto ao movimento abolicionista, e sempre combatendo a
política de isenção frente a questão da escravidão adotada pelo Partido Republicano
Paulista, cujos interesses na manutenção do regime refletiam o peso político da facção
campineira do partido, ao qual, por seu turno, opunha-se o ramo paulistano e santista, do
qual exatamente pertencia o popular tribuno, Silva Jardim, ao avaliar Quintino de
Lacerda, o famoso liberto que tornou-se chefe do Quilombo do Jabaquara, pôs às claras a
moldura ideológica a partir da qual ele podia apreciar a “raça negra”. Utilizando-se de
expressões como “excelente negro”, “modesto”, “humilde” e “garantia da ordem na
cidade”, Silva Jardim deixou claro os limites de sua condescendência com relação aos
negros, o quais, decerto, causavam visível incômodo quando escapavam das rígidas
qualificações de pobres vítimas inermes da ganância de fazendeiros atrasados.28 Em
Paixão e Morte de Silva Jardim, Maurício Vinhas Queiroz chama a atenção para aquilo
que ele considera ter sido o pior erro político cometido pelo seu biografado, cujos
26
Araújo Filho, J. R., Santos, O Porto ..., p. 53.
27
Sobre a insalubridade de Santos na virada do século XIX para o XX, consultar: Andrade, Wilma
Therezinha Fernandes. O Discurso do Progresso: A Evolução Urbana de Santos, 1870-1930. Tese de
Doutoramento inédita. FFLCH/Departamento de História, USP, 1989, pp.70-95.
28
Silva Jardim. Memórias e Viagens. Campanha de um Propagandista. Lisboa: Tip. Cia Nacional,
1891, p. 87-88.
De Rebeldes a Fura-Greves 200
29
Queiroz, Maurício Vinhas. Paixão e Morte de Silva Jardim. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1967, pp. 95-102.
30
Victorino, Carlos. Reminiscências, 1875-1898. São Paulo: Tip. Modelo, 1904, p. 76.
31
Silva Jardim, Memórias ..., p.86.
De Rebeldes a Fura-Greves 201
32
Lanna, A. L., Uma Cidade..., reproduz uma das versões desta canção, p.139, nota 99.
33
Ver Machado, M. H., O Plano..., cp. 4, pp. 143-176 e Andrada, A. M. B. de, “Depoimento de uma
Testemunha”…
34
Machado, M. H., Plano..., pp.159-160.
De Rebeldes a Fura-Greves 202
firma Lacerda & Irmãos, cujos proprietários foram republicanos históricos, Quintino foi
sobejamente descrito pelos memorialistas e pela bibliografia sobre a abolição como o
“bom negro”, pois
Muito ligado aos seus patronos e mentores, como Bernardino de Campos e Silva
Jardim, aos quais demonstrou fidelidade política inabalável, inclusive no alvorecer da
República, mas principalmente ligado a Benjamim Fontana, de quem se tornou
arrendatário nas várzeas do Jabaquara, empregado, porta-voz e testa de ferro, Quintino
manteve-se como elo de ligação entre as elites políticas e a massa de libertos
subempregados cuja presença ameaçava a ordem em Santos.37 De fato, já Evaristo de
Moraes, em seu livro sobre a campanha abolicionista, chamou a atenção para o papel
chave que ocupou Quintino no projeto humanitário-paternalista que estava sendo posto
em prática pelas elites paulistas abolicionistas, que foi o de exprimir “o traço de união
entre a cidade hospitaleira e os fugidos do eito”.38
Tendo desempenhado de forma excepcionalmente eficiente o papel de contenção
e disciplinarização de seus subordinados, alojados nas franjas da cidade e dos quais se
esperava que lá se mantivessem, o mais longe possível das ruas centrais da cidade, onde
poderiam se tornar excessivamente visíveis, causando incômodo às sensibilidades mais
finas. E para tal Quintino desenvolveu uma dupla face, uma primeira marcada pela
humildade e subordinação frente aos brancos, com a qual ele se colocava de acordo com
o papel designado pelas elites humanitárias aos evadidos da senzala no alvorecer da
sociedade pós-emancipação que então estas lideranças se esforçavam por delinear. Uma
35
Githay, Maria Lúcia. “ O Porto de Santos, 1888-1908. In: Antônio Arnoni Prado (org.), Libertários
no Brasil. Memória, Lutas e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp.75-76 e da mesma autora, Ventos do
Mar…, pp. 33-40.
36
Morais, Evaristo, A Campanha Abolicionista..., p.218.
37
Sobre atuação política de Quintino ver Morais, E., A Campanha..., p. 218 e Lanna, A.L.D., Uma
Cidade em Transição, pp. 192-203.
De Rebeldes a Fura-Greves 203
segunda face, aquela que era mostrada aos fugidos, opunha-se radicalmente a anterior,
ganhando um caráter fortemente autoritário por meio da descarada manipulação de
ferramentas e símbolos de poder retirados de um repositório cultural específico que
instrumentalizava as lideranças orgânicas escravas com uma autoridade inconteste de
fundo africano-salvacionista. Lideranças deste naipe podiam ser encontradas, por
exemplo, na Campinas dos anos de 1882, na figura do liberto Santiago, que de cima de
seus poderes mágico-religiosos liderou uma sanguinária revolta escrava, impondo uma
autoridade literalmente inconteste aos seus subordinados.39 É claro que retirando sua
autoridade não da oposição aos brancos mas, exatamente ao contrário, de sua
subordinação, o poder social de Quintino sobre o seu povo estava contaminado por
mensagens de subserviência que subrepticiamente propunham aceitação pelos libertos do
papel subsidiário que o projeto abolicionista-paternalista acreditava que aos negros
deveria caber. Foi agindo em conformidade com o papel que lhe havia sido designado
que Quintino de Lacerda experimentou uma ascensão social e construiu uma carreira
política excepcional. Líder do Jabaquara, tornou-se ele figura popular e respeitada por
toda a população santista nos anos de 1880. Morava ele, até seu falecimento em 1898, nas
terras do Jabaquara, numa casa grande, circundada por um terreiro extenso onde havia
uma venda, que deveria ser uma importante fonte de renda do Major, como comprova o
inventário dos bens de Quintino, na qual constam sortimentos de toda a espécie. Na
biografia escrita por Lanna lê-se que neste terreiro
38
Moraes, E., A Campanha..., p. 218.
39
Machado, M.H., Plano..., pp. 91-142.
40
Lanna, A.L.D., Uma Cidade..., 197-198.
De Rebeldes a Fura-Greves 204
41
Sobre o tema ver Lanna, A.L.D., Uma Cidade ..., p. 193, que mostra Quintino recebendo o título de
Major, devido a sua participação na defesa da cidade no episódio da Revolta da Armada do General
Custódio de Mello.
42
Santos, F. M. dos, História ..., p. 237, nota 38 e Fontes, A. A., A Prática Abolicionista..., p. 70.
De Rebeldes a Fura-Greves 205
Apesar de manter relacionamento amistoso com os brancos, Pai Felipe dirigia seu
“povo” de maneira independente, sem intromissão dos abolicionistas, fato este que
justifica a virtual inexistência de qualquer testemunho sobre o funcionamento interno do
quilombo. No entanto, a descrição feita por Victorino a respeito de Pai Felipe, e repetida
pelos historiadores que dele mais tarde se utilizaram para abordar este quilombo, está
cheia de claras alusões ao caráter autoritário do líder deste quilombo. A descrição do
mesmo como “preto já velho, mas de tino aguçado, comandando com prudência seu
povo”,44 vem a confirmar esta asserção, levando o leitor a classificar Pai Felipe na
mesma categoria que já havia servido para descrever as qualidades de liderança de
Quintino de Lacerda. Governando “seu povo” com mão de ferro, visualizamos
imediatamente um tipo de relação tradicional, baseada no poder inconteste do chefe,
decalcada, talvez, dos moldes da realeza africana. Já J. Muniz Jr. em sua história do
43
Victorino, C., Reminiscências…, pp. 64-65.
44
Esta passagem encontra-se em Lanna, A.L.D., Uma Cidade..., p. 186.
De Rebeldes a Fura-Greves 206
samba paulista se refere a Pai Felipe como o Rei Batuqueiro.45 Francisco Martins dos
Santos também afirma que Pai Felipe era um rei africano escravizado, que, apesar do
contato com os abolicionistas, havia se mantido como chefe de seu quilombo, fora da
alçada de Quintino.46 Poder real, autoritarismo, sabedoria dos mais velhos são qualidades
que, segundo os memorialistas da abolição eram pertinentes aos líderes escravos no
comando do “seu povo”. Embora o tom romântico e tradicionalista destas descrições
possa cativar algumas mentes mais sonhadoras com imagens utópicas e/ou folclóricas,
estas descrições escondem um julgamento a respeito da incapacidade dos escravos se
organizarem em torno de lideranças democráticas e metas de cidadania. As qualidades
valorizadas neste discurso são muito diferentes das encontráveis num tipo de liderança
que poucos anos depois começou a apontar na mesma Santos, produzindo um dos
movimentos operários mais combativos do Brasil, e que se baseava no potencial de
consciência política e social que trazia em si cada um dos trabalhadores do porto. Fica
difícil, entretanto, discernir o vivido pelos quilombolas daquilo que os abolicionistas
humanitário-paternalistas quiseram ver e nos fazer acreditar.
Ocupando as terras de Vila Matias que foram objeto de intensas disputas na
década de 1880, que culminaram com o assassinato do próprio Matias da Costa devido a
uma disputa de limites com proprietários vizinhos, o Quilombo do Pai Felipe desapareceu
da memória santista sem deixar traços perceptíveis, permanecendo apenas o nome de seu
líder como fundador do samba santista. Não foi destino muito diverso aquele que coube
ao Jabaquara, alojado em terrenos há muito tempo retalhados por diferentes proprietários
e que no decorrer da década da abolição, devido a evidente expansão da cidade e de seu
assentamento urbano começaram a se tornar objeto de intensas disputas.
45
Muniz Júnior, J. Do Batuque à Escola de Samba. São Paulo: Símbolo, 1976, p. 100.
46
Santos, F. M. dos, História ..., p. 237, nota 38.
De Rebeldes a Fura-Greves 207
Que além disso, concluída a dita cerca que passa ao lado de uma casa
antiga pertencente aos suplicantes e conhecida pela denominação de
chácara do Teixeirinha, serão destruídos galinheiros e outras benfeitorias
e o prédio diminuído no seu valor e privado o morador do uso duma
cachoeira.47
47
1886. Ação de Interdito Processório em que são: Benjamim Fontana e sua mulher: AA e Walter
Wright: R., fls. 2, 2v. e 3, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 209
Por seu turno, “Rafael Tobias, de trinta e dois anos de idade, solteiro e natural de
São Paulo, residente nesta cidade e de profissão de lavoura,” e arrendatário de Quintino
nas terras do Jabaquara fazia seis meses, ao ser inquirido sobre os itens da petição inicial
declarou que
Nada de muito substancial sabemos a respeito de Rafael Tobias a não ser que ele
havia se ligado a Quintino exatamente no auge das fugas em massa dos escravos das
fazendas cafeeiras e, portanto, fase esta de maior procura do refúgio do Jabaquara. No
entanto, tendo ele deposto em juízo, é provável que fosse ele homem livre. Como mero
camarada, Tobias certamente compartilhava das condições de vida que os “quilombolas”
48
1886. Ação de Interdito Processório em que são: Benjamim Fontana e sua mulher: AA e Walter
Wright: R., fls. 31v. e 32, AGFCS.
49
1886. Ação de Interdito Processório em que são: Benjamim Fontana e sua mulher: AA e Walter
Wright: R., fls. 37 v. e 38, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 210
Disse mais que é verdade terem os ditos camaradas colhido parte dos
frutos das plantações a que já se referiu porque viu-os conduzirem ao
ombro, cachos de bananas e feixes de cana ...Disse mais que os
trabalhadores do réu começaram a construção de uma cerca de varas que
passa ao lado e perto de uma casa antiga pertencente aos autores e
conhecida pela denominação de chácara do Teixeirinha e que concluída a
dita cerca na direção que traz, inutilizaria um galinheiro que fica atrás da
casa ... Disse mais que é empregado de Quintino há seis meses e que
apesar dos ingleses que moram na chácara que se diz do réu fazerem
questão, ele depoente sempre tirou água da referida cachoeira e aí
também se banhara ...50
50
1886. Ação de Interdito Processório em que são: Benjamim Fontana e sua mulher: AA e Walter
Wright: R., fls. 39 e 39v, AGFCS.
51
1886. Ação de Interdito Processório em que são: Benjamim Fontana e sua mulher: AA e Walter
Wright: R., fls. 86 a 89v, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 211
cidade, era advogado no Fórum de Santos, tendo sido, inclusive, autor de diversos autos
interessados na alforria de escravos.52
O fato que nesta, assim como em pelo menos outras três demandas judiciais nas
quais esteve envolvido, Fontana tenha sempre procurado garantir seus direitos sobre as
áreas estratégicas do Jabaquara, em todos eles contando com repetidos depoimentos de
Quintino que, se apresentando como arrendatário de longa data destes terrenos,
asseverava a antigüidade da posse deles por seu patrono, pode sugerir algo. Mais
ilustrativa ainda parece esta situação quando consideramos que, embora evidentes
esforços, tenha Fontana recebido sempre sentenças desfavoráveis ou inconclusivas com
relação a suas demandas, sugerindo um quadro pouco alentador para a existência de
qualquer quilombo. Além disso, o quadro descrito por Rafael Tobias e referendado pelos
outros depoimentos constantes deste auto sugere modos-de-vida e relações sociais muito
distantes do que se esperaria encontrar em um quilombo. Mais ainda torna-se isto patente
quando se considera que esta área poderia, já nos finais da década de 1880, estar
interessando os futuros grandes empreendedores da construção do porto de Santos, os
Gaffré e Guinle. De fato, desde 1882, quando caducara a concessão obtida pelo governo
da província de São Paulo para aterro e construção do cais de Santos, diversos grupos de
investidores começaram a se organizar para abocanhar a nova concessão. Em resposta ao
novo edital de concorrência, aberto em 1886, se inscreveram 6 propostas. Os vencedores,
o grupo de empresários capitaneados por Cândido Gaffré e Eduardo Guinle, os quais,
mais tarde, tornaram-se seus únicos possuidores, fundando a Companhia das Docas de
Santos, assinaram contrato em 1888. Foi a partir deste ano que se iniciaram as obras do
cais, cuja construção mudou a feição de Santos.53
Os depoimentos mais sugestivo a respeito dos modos-de-vida dos moradores
pobres do Jabaquara se encontram num extenso processo que opôs exatamente os
poderosos acionistas da Companhia Docas, os empresários Gaffré e Guinle a Benjamim
Fontana e sua mulher. É este um Auto de Embargo contra um conjunto de casas
52
Pesquisando os autos de Santos, André Rosemberg em “Justiça Imaginada. Processos Socias e
Justiça em Santos na Década de 1880”..., topou com diversos processos de alforria defendidos pelo
mesmo, como às pp. 167-176.
53
Lobo, Hélio. Docas de Santos. Suas Origens, Lutas e Realizações. Rio de Janeiro: Tip. Jornal do
Comércio, 1936, pp. 11-18.
De Rebeldes a Fura-Greves 212
populares, de tipo porta e janela, que estava construindo Fontana em terras do Jabaquara,
as quais os autores/nunciantes declaram ser de sua legítima propriedade. Embora o
processo tenha sido aberto em 1899, já quando, entre as muitas razões, a morte de
Quintino, em 1898, teria levado a desintegração do refúgio do Jabaquara, estes autos
permitem a recuperação da história da ocupação desta área. Como mostra o trecho
abaixo, já em sua petição inicial, colocavam-se Gaffré e Guinle como únicos e exclusivos
proprietários das terras do Jabaquara, desqualificando qualquer pretensão de Fontana.
Dizem Gaffré & Guinle, por seu advogado abaixo assinado, que são
senhores e possuidores do sítio denominado Jabaquara nesta cidade.
Neste sítio há um caminho fraldeando o Morro de São Bento em direção
ao Tanque dos Frades no Saboó. É esse caminho que estabelece a divisa
entre as terras dos Suppls. e as que Benjamim Fontana e sua mulher são
detentores, ficando estas à direita e aquelas à esquerda, sendo que as que
se acham em poder de Fontana estão exclusivamente no Morro de São
Bento.
54
1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são Gaffré e Guinle: AA e Benjamim Fontana e sua
mulher: RR, fls. 1 e 1v, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 213
E também,
E pois,
Ainda mais,
Além disso,
Porque esse mesmo prédio, cuja obra foi embargada pelos nunciantes,
antes de ser ocupado pelo dito José Maria Jr., esteve sempre alugado
pelos nunciados à diversos, bem como muitos outros prédios e terrenos no
De Rebeldes a Fura-Greves 215
55
1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são Gaffré e Guinle: AA e Benjamim Fontana e sua
De Rebeldes a Fura-Greves 216
sido uma olaria, que foi, mais tarde, acompanhada da montagem de outros
empreendimentos baseados na exploração da mão-de-obra barata, como a de uma
pedreira. Acrescente-se que a citada olaria estava dentro da parte do Jabaquara que
passou a ser arrendada, a partir de 1885 ou 1886, a Quintino de Lacerda.57 Claro está, que
todos estes empreendimentos serviam, agora, para consolidar as pretensões de Fontana
com relação a posse da área em litígio. E embora a análise dos diversos autos que tiveram
como motivo as disputas pelo Jabaquara na década de 1890, demonstrem que esta era
uma área ocupada por uma população variada, composta de nacionais e estrangeiros, que
ao deporem nos processos em questão, declararam que aí viviam há muitos anos, isto é,
ao tempo que o Jabaquara estava abrigando os escravos fugidos, não era certamente esta
a população que havia sustentado os empreendimentos de Fontana. De fato, no processo
que opôs Fontana à Companhia Docas, de 1899, testemunhas como Vicente Liga, italiano
e morador no Jabaquara há 16 anos ou Bernardo Hank, alemão e morador do Jabaquara
há 13 anos ou Cazimiro Garcia, espanhol e morador do Jabaquara há 5 anos, declararam
trabalhar para Fontana como capatazes e administradores.58 No entanto, a mão-de-obra
desqualificada que possibilitou a construção das benfeitorias, a exploração das pedreiras,
saibreiras e olarias e plantação da hortas e capinzais que garantiam a posse de Fontana só
pode ter sido a dos escravos refugiados no Jabaquara e capitaneados por Quintino. E se é
que havia algum pagamento de salário envolvido, este certamente refletia a situação de
dependência destes trabalhadores.
A imagem da ocupação do Jabaquara, como de uma colcha de retalhos, na qual
conviviam pequenos empreendimentos, chacrinhas com suas hortas e casa de aluguel,
todos ocupados por moradores variados, dos quais certamente uma parcela era composta
de remanescentes das levas de escravos que haviam aportado no Jabaquara no correr da
década de 1880, aparece na descrição constante do último contrato de arrendamento
estabelecido, em 1893, entre Quintino e Fontana, na qual lê-se que:
57
É o que afirmou a testemunha Vicente Liga, 1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são
Gaffré e Guinle: AA e Benjamim Fontana e sua mulher: RR, fl. 55v, AGFCS.
58
1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são Gaffré e Guinle: AA e Benjamim Fontana e sua
mulher: RR, fls. 55 a 81v, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 218
De tudo isso se depreende uma situação muito sugestiva. De uma parte, Fontana,
possuidor de uma porção pró-indivisa de terras do Jabaquara, procurando não só garantir
De Rebeldes a Fura-Greves 219
59
Cópia de contrato de arrendamento estabelecido entre Quintino de Lacerda e Benjamim Fontana, 2 de
janeiro de 1893, anexado ao auto de 1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são Gaffré e Guinle:
AA e Benjamim Fontana e sua mulher, AGFCS.
60
1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são Gaffré e Guinle: AA e Benjamim Fontana e sua
mulher, fls. 50 v. e 51, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 220
terras do Jabaquara, nas quais, os escravos fugidos parecem ter funcionado como massa
de manobra.61 Neste ponto de vista, restaria especular se Benjamim Fontana não teria se
utilizado dos escravos fugidos para ocupar terras alheias a baixo custo e sem o risco
destas se tornarem usucapião ou posse dos ocupantes, por serem estes obviamente, gente
indefesa, que por seu próprio status, teria dificuldade de reivindicar a posse de terras ou
defender seus interesses junto à justiça. As intensas disputas judiciais que recortaram os
morros santistas, disputas estas nas quais esteve Fontana repetidamente envolvido,
sempre buscando garantir seu quinhão das terras do Jabaquara e áreas limítrofes parecem
ter sido a tônica da urbanização desta região.62 Tão forte foram estas disputas que
Fontana não poupou nem seu principal aliado, Quintino de Lacerda. De fato, em 1898 o
61
Ao final do processo, alegando suspeição, o juiz de direito encarregado do caso abre mão do caso,
enviando-o para ser julgado na Primeira Vara Civil de São Paulo. 1899. Ação de Embargo de Obra Nova
em que são Gaffré e Guinle: AA e Benjamim Fontana e sua mulher, fl. 226v, AGFCS.
62
Sobre o quadro de disputas judiciais que tiveram como móvel as terras do Jabaquara e Vila Matias
ver também, Lanna, A.L.D., Uma Cidade..., pp. 206-215, que apresenta inúmeros autos judiciais que
implicaram Fontana e outros pretensos proprietários em busca da legitimação da posse destas áreas.
63
1898. Ação de Despejo em que são: Benjamim Fontana: Autor e Major Quintino de Lacerda: Réu, fl.
6, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 221
nesta altura, planos mais antenados com a proletarização dos morros, Fontana desejava se
livrar do seu mais antigo aliado e colaborador. De fato, juntamente com o pedido de
integralização dos prédios e aluguéis dos imóveis interditados, consta um pedido de
despejo da casa e terrenos ocupados por Quintino no Jabaquara havia muitas décadas, o
qual não se realizou imediatamente devido ao falecimento súbito do Major no decorrer do
processo.64
Que sentido teria falar em quilombo numa situação destas? A pergunta é, sem
dúvida, muito pertinente, mas tem que ser respondida num quadro político que vem
renovando o próprio conceito de quilombo. Afinal de contas, desde a redação, em 1988,
do artigo 68 das Disposições Constitucionais Provisórias, em cujo texto lê-se que “aos
remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos
respectivos”, as discussões relativas ao estatuto teórico do quilombo ganhou uma
relevância social inesperada, escapando das discussões acadêmicas a que este esteve
sempre confinado. Ora, como questão política estratégica ao movimento negro, como
parte da plataforma do Movimento dos Sem Terra, como peça estratégica para o
reconhecimento e legitimação do papel histórico do que se convencionou chamar de
“comunidades tradicionais”, as quais teriam se formado às margens da economia
afluente (mas não aparte dela), garantindo a existência de padrões sociais e econômicos
peculiares, a cláusula quilombo tem dado motivo para uma discussão muito profícua, que
cada vez mais tem tornado flexível o conceito de quilombo. Hoje, depois de mais de 10
anos de luta política, as instâncias envolvidas com esta questão concordam em definir, a
partir de concepções mais amplas e menos idealizadas, o quilombo como uma
comunidade depositária de “conhecimento tradicional”, cuja sobrevivência vinculou-se à
capacidade de resistência do grupo, e como detentora de um patrimônio cultural e
territorial importante a ser preservado. Além do mais, o fato de que certas comunidades
64
1898. Ação de Despejo em que são: Benjamim Fontana: Autor e Major Quintino de Lacerda: Réu, fls.
1, 2 e 17, AGFCS.
De Rebeldes a Fura-Greves 222
65
Sobre os dispositivos os textos legais que estão hoje regulamentando a cláusula de quilombo, ver o
site da Fundação Palmares: www. palmares.gov.br. Para obter um bom balanço das questões envolvidas no
processo de titulação de comunidades remanescentes de quilombos ou de remanescentes de comunidades
de quilombo, ver: http://www.socioambiental.org/website/parabolicas/edicoes/edicao55/quil1.htm. O artigo
de French, Jan Hoffman. “Dancing for Land: Law-Making and Cultural Performance in Northeastern
Brazil”. Political and Legal Anthropology Review (POLAR), vol. 25, no 1, maio de 2002, pp. 19-36 reflete
sobre os desafios teóricos e práticos que se colocam tanto às comunidades, quanto à outras instâncias
envolvidas, como antropólogos, historiadores, agências políticas e ONGs, envolvidos na luta política pela
aquisição dos títulos legais de terras de comunidades rurais por meio da cláusula quilombo. Sobre
comunidades tituladas e suas origens, sublinho o caso da hoje titulada comunidade de Ivaporunduva, do
Vale do Ribeira paulista. Apesar da Associação dos Moradores de Ivaporonduva, em busca de
financiamento internacional afirmarem que: “The Quilombolas were established in the remote valley as
long as four hundred years ago by escaped Black slaves, and are now fighting for title to their traditional
lands in order to avoid encroachment by outside interests. In Ivaporunduva there is a Church, currently
undergoing restoration, which was built by escaped slaves in 1630” (http://www.greengrants.org/ngo/
quilombos/quilombos.html) o estudo desta mesma comunidade realizado por Renato Queiroz (Queiroz,
Renato S. “Caipiras Negros no Vale do Ribeira:Um Estudo de Antropologia Econômica”. São Paulo:
FFLCH/USP, 1983), mostrou que esta, na época considerada como típica comunidade de caipiras negros,
era originária de uma doação de terras a uma capela e alforria do plantel de escravos, ocorrida nos finais do
século XVIII, numa área de mineração decadente que, paulatinamente, passou ao controle dos libertos.
De Rebeldes a Fura-Greves 223
66
Sobre o assunto ver: http://www.portalafro.com.br/, “Manifesto em prol da garantia das terras do
quilombo urbano – família Silva de 27/2/2003, Fotos e Texto de J. Nicolau Jr.
De Rebeldes a Fura-Greves 224
modernidade são sublinhadas, sempre com relação aos abolicionista que os organizaram,
sustentaram e propagandearam pois, para o autor, quilombo abolicionista seria um
quilombo simbólico.68 Embora, sem dúvida, estes “quilombos” tenham desempenhado
importantes papéis políticos e propagandísticos no correr da década da abolição, à
medida em que impunham aos escravistas e autoridades a realidade da existência de
territórios nos quais a sacrossanta legitimidade da propriedade deixava de ser respeitada,
em flagrante subversão da lei, fica difícil acatar a definição de quilombo de Eduardo
Silva. Pois por meio destes artigos ficamos sabendo uma porção de coisas sobre seus
organizadores, por exemplo, somos informados que o Seixas, sujeito moderno,
humanista, bem-intencionado e famoso produtor das camélias abolicionistas era
proprietário da chácara Leblon e, portanto possuía um quilombo, o quilombo do Seixas.
As camélias, que se tornaram símbolo da abolição eram produzidas em seu quilombo
pelos escravos fugidos e ofertadas aos abolicionistas, que as portavam na lapela, como
símbolo de sua posição política e eram especialmente apreciadas por Isabel, a princesa
abolicionista. No entanto, nos artigos de Eduardo Silva os produtores das camélias, isto é
“os quilombolas” estão praticamente ausentes. Será que o Seixas pagava seus
“quilombolas” para produzir camélias? Em que bases se daria esta produção e como
estaria organizada a vida dos fugitivos no Leblon? Existiria aí algum índice de autonomia
de vida ou teriam os refugiados obrigados a seguir a lei do patrão? Na ausência de dados
sobre os modos-de-vida e de trabalho no refúgio do Seixas fica difícil falar em quilombo.
Afinal de contas, apesar das muitas reviravoltas que o conceito de quilombo tem
experimentado, a questão da autonomia permanece como central, recolocando as
possibilidades de resistência, sempre relativa, é claro, da comunidade aos padrões
impostos, como fator determinante das possibilidades de constituição de modos-de-vida
alternativos e/ou quilombola.
67
A história de vida de D. Maria, remanescente do Quilombo do Jabaquara aparece no artigo: Nunes,
Antônio. “ Ela Viu o Morro Nascer”, <http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0101.htm.>
68
Silva, Eduardo. “Rui Barbosa e o Quilombo do Leblon”. In: Isabel Lustosa et ali (org.). Estudos
Históricos sobre Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Edições Casa Rui Barbosa, 2000 e “As Camélias do Leblon
e a Abolição da Escravatura”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 nov. 1998. Suplemento Idéias.
De Rebeldes a Fura-Greves 225
O mesmo tipo de problemática se defrontou João José Reis em seu artigo sobre o
Quilombo do Oitizeiro na Bahia do início do século XIX.69 Quilombo peculiar, o
Oitizeiro, que aparecia nos documentos coloniais cognominado de quilombo e, portanto,
passível de ser severamente reprimido, mostrou estar, na verdade, localizado em sítios de
proprietários particulares, produtores de mandioca. Acolhendo escravos fugidos e
atribuindo aos refugiados lotes de terra para plantar sob condição de prestação de serviço
na terra do patrão, estes produtores os quais, por sinal, eram pequenos proprietários de
escravos, implementavam sua produção sem, obviamente, despender nenhum tostão na
compra de novos plantéis. No entanto, se os escravos fugidos haviam sido obrigados a se
submeter ao proprietário, disponibilizando a almejada mão-de-obra dependente e de
baixo ou nenhum custo, haviam eles também podido construir, nos lotes de terras que
recebiam como agregados ou meeiros das terras do patrão, modos-de-vida alternativos,
mostrando que os escravos fugidos aí abrigados gozavam de certa autonomia. Estudando
os modos-de-vida, moradia e produção dos “quilombolas”, João José Reis sugere que os
refugiados do Oitizeiros, apesar da flagrante dependência em que viviam em relação aos
fazendeiros e da óbvia vantagem que estes últimos gozavam, beneficiando-se do trabalho
dos seus “quilombolas”, souberam construir modos-de-vida relativamente independentes,
o que lhes garantiu certas margens de autonomia que caracterizam o quilombo. Assim,
entre descartar o que não cabe no conceito ou correr o risco de incorrer na falta de crítica
das limitações vividas por estes escravos, o autor usou das ferramentas da pesquisa
histórica para traçar um quadro nuançado da experiência histórica dos escravos fugidos
da Bahia nos inícios do XIX. Até certo ponto, os refugiados do Jabaquara devem ter
vivido situação semelhante àquela experimentada pelos quilombolas do Oitizeiro. E,
quem sabe, poderíamos pensar em algo assim como uma brecha de quilombo para tentar
descrever a situação vivida pelos refugiados do Jabaquara.
Colocados entre forças sociais poderosas, nas quais remarque-se o papel dos bem-
pensantes e sua ideologia humanitário-paternalista e dos interesses pessoais dos
abolicionistas, que não viam nada de mais em tirar algum proveito do trabalho dos
escravos em troca do muito que ofereciam, como Fontana, interessado em ocupar as
69
Reis, João José. “Escravos e Coiteros no Quilombo do Oitizeiro. Bahia, 1806”. In: João José Reis et.
Ali (org.) Liberdade por um Fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
De Rebeldes a Fura-Greves 226
ali habitava gente que possuía certa independência, tudo isso mediado pelo pequeno
comércio: são todas estas características que já foram descritas tanto para qualificar a
autonomia escrava na escravidão quanto para sublinhar a vida de roceiros negros,
quilombolas ou libertos, em situações nas quais os laços escravistas se faziam ausentes.71
Tão arraigado foi este desejo de constituir modos-de-vida peculiares, diferentes daqueles
que a boêmia abolicionista de Santos, com sua ideologia humanitário-paternalista, havia
planejado para os evadidos da senzala que, apesar de todas as dificuldades, ainda alguns
“quilombolas” conseguiram sobreviver às disputas de terra que atravessaram os morros
santistas, reivindicando na justiça, em 1893, seus direitos de permanecer nas roças que
eles haviam aberto no Jabaquara nos anos anteriores à abolição.
71
Ver, por exemplo, Slenes, Robert W. Na Senzala, Uma Flor: Esperanças e Recordações na
Formação da Família Escrava. Brasil, Sudeste, Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 e
Machado, M.H., Plano e o Pânico..., cap. 1, “Senhores e Escravos na Formação do Sonho da Terra”, pp.
21-66.
72
O documento acima encontra-se no Auto de Ação de Despejo em que são: Dona Cândida de Matos,
por seu marido: Autor e Maria Rosa Siqueira e outros: Réus, documento citado por Lanna, A. L. D., Uma
Cidade..., 212.
De Rebeldes a Fura-Greves 228
73
Santos, J.M., Os Republicanos..., p. 240.
74
Conrad, Robert E., em The Destruction of Brazilian Slavery… p. 255 calcula que em 1888 um terço
das fazendas em São Paulo tivessem como trabalhadores escravos que haviam abandonado outras fazendas.
De Rebeldes a Fura-Greves 229
75
Lobo, H., Docas de Santos ..., p. 32 reproduz o seguinte trecho no qual a Associação Comercial de
Santos reclamava ao Presidente da República as condições do porto afirmando: “Sem cais, sem meios de
descargas, assolado pela febre amarela e pela varíola, com uma alfândega desmantelada...., que não
possui armazéns para receber e acondicionar as mercadorias..., tendo as ruas e praças da cidade
atulhadas de mercadorias de toda a espécie, expostas ao tempo e a rapinagem e vendo morrer diariamente
a tripulação dos navios...”. Segundo Lobo, quadros desta espécie eram relatados na cidade antes da
disciplinarização imposta pela Companhia das Docas que, a partir da década de 1890, tornou-se
virtualmente onipresente nas atividades portuárias da cidade.
76
Ver, por exemplo, cap. 3 de Machado, M.H., O Plano e o Pânico..., pp. 91-142.
77
Machado, M.H. O Plano e o Pânico ..., cap. 5, pp. 174-242.
78
Santos, J.M. Os Republicanos..., pp.264-265.
De Rebeldes a Fura-Greves 230
79
Gitahy, M.L. Ventos ..., pp. 33-40 e Machado, M.H., Plano e o Pânico..., cap. 4, pp. 143-174.
80
Santos, F. M. História de Santos..., 230-231.
81
Sobre as primeiras greves do porto de Santos ver, Gitahy, M.L., Ventos ..., pp. 59-60.
82
Lanna, A.L.D., Uma Cidade..., p. 189.
De Rebeldes a Fura-Greves 231
daí quantias muito consideráveis, tudo isso tocado por uma mão-de-obra barata e,
supostamente grata.83 Da mesma forma, em 1891, quando estourou a primeira das
grandes greves dos portuários, podíamos encontrar Quintino e sua turma de ex-escravos
trabalhando no Jabaquara, também numa pedreira, mas esta de propriedade da
Companhia das Docas, cuja produção amparava as obras do cais do porto.84
Vivendo nas ruas, em busca do pão do dia-a-dia, convivendo com trabalhadores
livres ou libertos do porto e imediações, que já começavam a se organizar,85 tomando
contato com marinheiros de muitas águas, parte deles certamente anarquistas e
socialistas, os refugiados de Santos começavam a incorporar tradições de lutas diferentes
daquelas que eles próprios haviam erigido nas fazendas e que, no fim das contas, tinha
sustentado as arriscadas fugas em grupo e a perigosa retirada para Santos. Depositários de
uma história de resistência na escravidão, o grupo dos “quilombolas” de Santos era
formado pelos ex-escravos que naquela altura estavam levando as suas reivindicações,
protestos, insurreições e fugas ao ápice do intolerável, tanto é que o sistema escravista
colapsou. Ao lado disso, nestes anos de 1880, eles começavam a incorporar também
outras formas de luta que justificavam a presença de homens e mulheres negros nas ruas,
protestando ativamente contra os escravistas, capitães-do-mato e autoridades que
pretendiam penetrar na cidade para reprimir os abolicionistas, caçar escravos fugidos ou
ainda invadir o Jabaquara para reescravizar os “quilombolas” em massa. São famosos os
episódios que antepuseram os escravistas recalcitrantes e seus representantes oficiais à
população santista, na qual a presença negra se fazia relevante. Como aquele de 1886 no
qual o Chefe da Polícia de São Paulo, o Dr. Lopes dos Anjos, a mando do titular da Pasta
da Agricultura, Antônio Prado, enviou forças policial a Santos para recapturar 4 escravos
aí abrigados. No entanto, a força ao tentar embarcar os escravos se viu cercada por uma
multidão populares que impediram que isso acontecesse. Em meio ao tumulto, os praças
83
No já citado processo 1898. Ação de Despejo em que são: Benjamim Fontana: Autor e Major
Quintino de Lacerda: Réu, AGFCS, Fontana calculou em cinco contos de réis o valor mensal dos aluguéis a
ele devidos por seus locatários do Jabaquara.
84
Lanna, A.L.D., Uma Cidade..., p. 214.
85
Segundo Gitahy, M.L.C., Ventos..., p. 59, em 1877, os carregadores de café haviam realizado uma
greve por aumento de salário, em 1888 e em 1889, os trabalhadores da construção civil e do porto e os
cocheiros realizaram greves.
De Rebeldes a Fura-Greves 232
86
Conrad, R. E., The Destruction..., p. 241.
87
Santos, J.M., Os Republicanos ..., p. 183.
88
Telegramas, Ordem 6037 de 1886. Telegrama do Delegado de Polícia de Santos ao Chefe de Polícia
de São Paulo, de 24/11/1886, Arquivo do Estado de São Paulo, doravante AESP.
De Rebeldes a Fura-Greves 233
Chegou a força de linha. Convém que ela volte toda hoje mesmo pelo trem
da tarde; ao contrário correrá sério risco a tranqüilidade pública; não
são precisos outros meios para a sua manutenção além dos que já tive a
honra de indicar hoje à VExcia em meu primeiro telegrama. É urgente
que VExcia dê suas ordens para regressar a força hoje mesmo.91
89
Telegramas, Ordem 6037 de 1886. Telegrama do Delegado de Polícia de Santos ao Chefe de Polícia
de São Paulo, de 24/11/1886, AESP.
90
Telegramas, Ordem 6037 de 1886. Telegrama do Delegado de Polícia de Santos ao Chefe de Polícia
de São Paulo, de 25/11/1886, AESP.
91
Telegramas, Ordem 6037 de 1886. Telegrama do Juiz de Direito de Santos ao Chefe de Polícia de
São Paulo, de 25/11/1886, AESP.
De Rebeldes a Fura-Greves 234
92
Tanto Lanna, A.L.D., Uma Cidade..., quanto André Rosemberg, em Justiça Imaginada...., p, 208
notaram a exclusão dos habitantes do Jabaquara dos registros criminais.
93
Castan, Cenas da Abolição ..., pp. 37-45.
De Rebeldes a Fura-Greves 235
chamado Zanzalá, afim de “receber os negros fugidos através das matas e disputar, se
tanto fosse preciso, aos capitães-do-mato, a posse de seus perseguidos.”95 Além disso,
quando o governo resolveu, em 1886, enviar para Santos uma tropa comandada pelo
Major Joaquim Baltazar da Silveira, para pacificar a cidade e assegurar o respeito à
propriedade – eufemismo, claro, para invasão do Jabaquara – Américo Martins dos
Santos e Ricardo Pinto de Oliveira, ambos abolicionistas históricos da cidade, visitaram o
navio que transportava a tropa imperial e conseguiram convencer o Major da legitimidade
da causa santista. Consta, ainda em Francisco M. dos Santos que, convencido dos
argumentos expostos pelo seu ex-colega da Escola Militar da Praia Vermelha, Américo
Martins dos Santos, o Major desistiu de invadir o reduto do Jabaquara, respondendo
simplesmente que já isso não faria pois o exército brasileiro não poderia servir como
defensor de traficantes e proprietários de escravos.96
De quilombolas a krumiros.
94
Castan, Cenas da Abolição ..., p. 44.
95
Santos, F. M. dos, História de Santos..., p. 221.
96
Santos, F. M. dos, História de Santos..., pp. 226-227.
De Rebeldes a Fura-Greves 236
que assim o fizera por ter recebido, por meio de Quintino, ordens para vingar na pessoa
da vítima, uma afronta sofrida por Américo Martins dos Santos.97 Em 1891, o
empastelamento da tipografia do jornal santista, A Tribuna do Povo, segundo uma das
testemunhas do ocorrido, “cheirava a Quintino”.98 Em 1893, na já citada revolta da
armada, lá estava Quintino com seus negros para, a mando de Bernardino de Campos,
defender a cidade.99 Mas, a intervenção de Quintino e sua gente na greve de 1891 merece
uma análise mais cuidadosa.
Segundo Gitahy, a greve de 1891, teve uma influência decisiva nos rumos do
movimento operário santista, tanto porque foi primeira greve geral da categoria portuária,
quanto porque sua derrota implicou em perdas históricas importantes ao movimento
portuário. Foi esta, por exemplo, a primeira greve que paralisou toda uma categoria, pois
tendo sido detonada pelos carregadores das pranchas do porto, atingiu por volta de 4.000
trabalhadores, entre estes “os estivadores, os trabalhadores da ferrovia, do matadouro, do
cemitério, das obras dos cais (Cia das Docas), das pedreiras, das obras particulares,
levando a paralisação da Alfândega e da Mesa de Rendas, do comércio, de bancos e
armazéns da ferrovia” A greve que havia se iniciado entre os carregadores de prancha,
isto é, aqueles trabalhadores que transportavam as mercadorias da terra para os navios e
que trabalhavam para as casas comissárias e exportadoras, havia se espraiado para outras
categorias de portuários, como a dos estivadores, inclusive atingindo os trabalhadores da
Companhia das Docas, que naquela altura era formado apenas pelos operários envolvidos
na construção do cais do porto.100 O movimento massivo dos trabalhadores portuários de
1891 ligava-se à vitoriosa greve dos carregadores do porto de 1889. De fato, nesta última,
uma série de condições, ligadas à carência de mão-de-obra, produto tanto da mortalidade
decorrente da epidemia que então ceifava a vida dos portuários, quanto das crescentes
necessidades das obras do cais, haviam justificado a concessão do aumento de salários
reivindicado. Embora pouco se saiba deste movimento, a greve de 89 não parece ter sido
97
1889. Inquérito Policial contra Felipe José dos Santos. AGFCS.
98
Lanna, A.L.D., Uma Cidade ..., p. 197, nota 64.
99
Lanna, A.L.D., Uma Cidade ..., p. 193.
100
Gitahy, M.L., Ventos ..., p. 79.
De Rebeldes a Fura-Greves 238
atravessada por disputas entre “raças”, situação que se estabeleceu a partir da greve de
91.101
No dia 17 de maio de 1891, o Correio Paulistano noticiava que, no dia anterior,
pela manhã, no porto de Santos, quatrocentos operários armados de paus e cassetes
haviam feito passeata pelas ruas, obrigando os trabalhadores recalcitrantes a aderir ao
movimento paredista. Pela tarde, no entanto, conforme noticiava o mesmo Correio
Paulistano, os manifestantes já eram em número de 600. Devido às arruaças, tanto o
comércio quanto a alfândega haviam fechado as portas e os grevistas haviam invadido o
cais.102 Nos dias seguintes, a greve ganhou força, mantendo o porto e todas as atividades
a ele correlatas, inativo. Respondendo aos reclamos das autoridades santistas, o governo
federal o enviou três cruzadores, que estacionaram no porto para reprimir o movimento e
os marinheiros aí alocados deveriam garantir o serviço de carregamento e estiva.103
No dia 20 de maio, no auge da greve, o Correio Paulistano noticiava que
Quintino de Lacerda, então chefe dos trabalhadores das pedreiras do Jabaquara – os
quais, por sinal, tinham aderido ao movimento – havia prometido ao Chefe da Polícia de
São Paulo, que estava então em Santos acompanhando o desenrolar dos acontecimentos,
arranjar para o dia seguinte cerca de 80 a 100 homens para realizar o embarque das sacas
de café que estavam empilhadas em torno das pranchas e trapiches. Uma força composta
de 100 praças garantiria o serviço dos krumiros.104 É importante notar, conforme
sublinhou Gitahy, que a Companhia das Docas, nesta altura, apenas iniciava o processo
que a tornaria a instituição mais poderosa da cidade, “o Polvo” como havia de ser
cognominada nos anos seguintes, adotando uma série de estratégias que objetivavam, em
primeiro lugar, monopolizar todas as atividades portuárias, das obras do porto, aos
armazéns para estocagem, ao carregamento dos navio e cobrança das taxas, numa época
que as casas comissárias de café e donos de trapiches ainda lutavam para sobreviver.
Portanto, a luta que se dava nos bastidores da greve, opunha exportadores de café à
Companhia das Docas. Neste sentido, a contenção do movimento operário, que começava
101
Gitahy, M.L., Ventos ..., pp.78-79.
102
Correio Paulistano, São Paulo, 17/05/1891, AESP.
103
Correio Paulistano, São Paulo, 20/05/1891, AESP.
104
Correio Paulistano, São Paulo, 21/05/1891, AESP.
De Rebeldes a Fura-Greves 239
a mostrar sua força tornava-se, entre outras coisas, motivo para a queda de braço entre o
“Polvo” e os outros negociantes e empresários do porto que começavam a soçobrar.
Neste sentido, uma das estratégias da Companhia das Docas havia sido a de criar áreas de
retaguarda, voltadas tanto para o fornecimento de insumos para as obras do porto – como
pedras, areia, saibro – quanto para, nestes primeiros tempos, anteriores à maciça chegada
dos imigrantes, garantir mão-de-obra reserva. Para tal, a Companhia das Docas possuía
pelo menos três áreas, sendo uma delas o Jabaquara.105
Além disso, os trabalhadores das pedreiras estavam colocados sob condições de
trabalho ainda mais deletérias que os da construção dos cais do porto, com salários
rebaixados e irregulares, sistema de vales e endividamento nos armazéns da
Companhia.106 Lembremos que, apesar das constantes reafirmações da fidelidade de
Quintino à Fontana, lê-se no processo de 1899, que opôs Fontana aos Gaffré & Guinle
pelo controle do Jabaquara, que para assentar o refúgio no Jabaquara e para lá
permanecer nos anos que se seguiram, Quintino havia obtido a autorização tanto do
antigo proprietário – Jacob Emmerick - quanto, a partir de 1891, dos empresários da
Companhia Docas, os já citados Gaffré & Guinle, que eram os compradores e, portanto,
supostos detentores legítimos da gleba do Jabaquara.107 Ainda mais porque, como notou
Hélio Lobo, Bernardino de Campos foi um dos principais defensores da concessão do
porto para Gaffré & Guinle e, sabemos, Quintino lhe era fiel, de fato, muito fiel.108
Portanto, morando de favor nas terras de Gaffré e Guinle, trabalhando na pedreira de
propriedade dos mesmos e devendo favores para os seus aliados, Quintino não teve muita
escolha. Enclausurados em relações paternalistas e clientelísticas e sofrendo um descarte
político doloroso, não restaram muitas saídas para os rebeldes do Jabaquara, além
daquela de tornarem-se fura-greves.
Os dias seguintes confirmaram a opção de Quintino e dos “quilombolas” do
Jabaquara. Era com evidente satisfação que o Correio Paulistano anunciava que:
105
Gitahy, M.L., Ventos ..., p. 79-82.
106
Gitahy, M.L., Ventos ..., p. 81.
107
Ver discussão anterior sobre 1899. Ação de Embargo de Obra Nova em que são Gaffré e Guinle:
AA e Benjamim Fontana e sua mulher: RR, fls 17 a 21, AGFCS.
108
Lobo, H., Docas ..., p. 30.
De Rebeldes a Fura-Greves 240
109
Correio Paulistano, São Paulo, 22/05/1891, AESP.
110
Correio Paulistano, São Paulo, 21/05/1891, AESP e Gitahy, M.L., Ventos ..., p. 79.
De Rebeldes a Fura-Greves 241
111
Gitahy, M.L., Ventos ..., p. 81.
112
Gitahy, M.L., Ventos ..., p. 82.
113
Gitahy, M.L., Ventos ..., p. 81.
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