André Queiroz. Antonin Artaud, meu próximo. Rio de Janeiro,
Pazulin, 2007, 102 pp.; Bernardo Carneiro Horta. Nise, arqueóloga dos mares. Rio de Janeiro, Edições do Autor, 2008, 400 pp.
Dois livros. Um pequeno, de proximidade arredia,
letras mais miúdas. Um grande com figuras, como dizem as crianças, e largueza nas letras. Dois livros tão diferentes. Um Artaud de André e uma Nise de Bernardo. A explosão inapreensível da frase Eu, Antonin Artaud, em Queiroz vira Antonin Artaud, meu próximo. O hor- ror das biografias nutrido pela senhora das imagens, Nise da Silveira, vira biografemas por Carneiro Horta em Nise, arqueóloga dos mares. Dois livros e uma con- versa possível entre o inapreensível da loucura em re- cusa às tentativas psiquiátricas de realizar a infame anaminese de algum provável biografado.
* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora no De-
partamento de Política da PUC/SP. verve, 15: 293-298, 2009
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E é possível, também, ao leitor atravessar os dois
livros como um escafandrista, não em busca do ocul- to de cada um como pretende a psiquiatria para pro- ferir a atribuída verdade escondida da natureza do ser. Mas apenas se deixando levar por correntes de marés. Próximas e quentes e de repente geladas e revoltas. Como num mergulho em água salgada ou a alguns passos de um retorno ao cheiro do mar. E ninguém volta incólume de um mergulho. Ninguém retorna ileso de seus movimentos. O livro de André Queiroz traz um Artaud de maltas, na definição de Elias Canetti em Massa e poder, malta que provém do latim e designa movimento, revolta, sublevação e partidas de caça. Maltas do corpo em duplos, de Blanchot e Deleuze; de Kafka e Melville; de Joseph K. e Bartleby. A atmosfera que atravessa estas maltas em duplos em “Antonin Artaud, ou como fazer funcionar um corpo sem rastro” provém um tanto da instigante afirmação de Foucault ao dizer que na escrita de Artaud se encontrava a materialidade do pensamento. A arqueóloga dos mares Nise, de Bernardo Horta, chega ao leitor em fragmentos narrados entre acontecimentos provocados por esta pequena mulher, de corpo frágil e de mãos e articulações contorcidas que sacudiram e transtornaram a estabilidade da história da psiquiatria. E é ela quem diz, ecoada na voz do ator Rubens Corrêa — no transtornante vídeo Encontros com Pessoas Notáveis, Nise da Silveira dirigido por Edson Passetti, no começo dos anos 1990: “Estou cada vez menos doutora, cada vez mais Nise.” Nise, esta nordestina de nome minúsculo extraído da poesia de Cláudio Manuel da Costa, este nome mí- nimo da amada pelo poeta, e do amor que brota por uma mulher insubmissa, e mais uma vez inapreensí- vel. Da literatura que habitaria a vida da doutora e da mulher e viria liquidar os compêndios dos médicos psiquiatras. Daí, a admiração inclassificável da se-
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verve Artaud e Nise, a loucura de viés
nhora das imagens por Artaud. “Creio que, antes de
Artaud, nunca alguém conseguiu por meio de pala- vras, exprimir, com tanta força, dilacerantes vivências. Pela imagem, sim, que é a direta forma de expressão de processos inconscientes profundos, muitos o fizeram e fazem todos os dias, usando lápis e pincéis. Pela pala- vra, não” (H, p. 113). E a recusa irredutível de Artaud em se deixar institucionalizar se desdobra quando Nise afirma que a “Carta aos médicos” escrita por ele é ir-respondível. Se Artaud dizia que a única vantagem que os médi- cos têm sobre um louco é a força, ele reverteu a quan- tidade desta mesma força por sua potência de vida inestancável. E mostrou que relações de força não se confundem com relações de governo e submissão. Talvez, André Queiroz fale de outro modo desta po- tência, por intermédio do que ele designa por “corpo sem rastros”, ao colocar na cena do embate a luta do pensar contra o pensamento, a luta do corpo contra a organização. E ele, Queiroz, aqui sim reduplica sua es- colha pelas maltas no rastro de Deleuze, sublinhando a diferença singular entre movimentos e instituições. Deleuze dizia que o surpreendente só pode vir do me- nor em movimento ao passo que as instituições estão sempre ligadas ao direito, à lei, e se segundo ele a lei é um conceito vazio, as leis são noções complacentes. O corpo sem rastros que Queiroz fabrica e faz funcionar deságua no novo duplo de maltas Artaud-Rimbaud, em viagens de acertos, desencontros e descobertas no México da América e nos confins da África. Desta vez, duplo mínimo, literatura com literatura, e na vida jo- vens desacatando a lei e explicitando outros meandros dos tráficos alimentados por proibicionismos e proibi- ções morais que começam no sexo e terminam na arte, que começam no corpo e findam nas experiências de estados alterados livres. Se para Queiroz a questão é se situar na “viagem e no infortúnio de quem fica” para Artaud a ida ao
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encontro dos Tarahumara no México o leva à lida com
esse povo que o próprio nome já diz, “aquele que ca- minha”, desse povo que recusa a esmola e desdenha o comércio, o mercado e que nas altas altitudes lida com a dor que aplaca o corpo de maneira, mais uma vez, inapreensível a quem discorre sobre o sofrimento e a morte e recomenda as maravilhas e benesses da felicidade e da qualidade de vida. Distante da famige- rada lógica dos eletrochoques, da lobotomia e das medi- calizações químicas tão recomendadas atualmente; ins- trumentalizadas pelo discurso psiquiátrico. A Segunda Guerra Mundial havia acabado, e na saída de Artaud de anos de manicômio, infindáveis sessões de eletrochoque os tarahumara e as visões suscitadas no deserto foram uma saúde. Não é fortuito que uma das procedências da psicologia e da psiquiatria no Brasil, situem-se, simultaneamente, sob o nome de licantropia, quando no século XIX expedi- ções européias construíam os índios como doentes men- tais por aquilo que o saber médico rotulava de “delírio no qual o indivíduo se julga transformado em lobo”. E se um dos baixos começos da psicologia e da Psiquiatria emergiu com a construção do Hospício Pedro II no Rio de Janeiro, também chamado por Palácio dos Loucos, e que ficaria mais conhecido como Hospício da Praia Vermelha, seria lá que, segundo Bernardo Horta, Nise viria a se in- surgir contra as novidades de tratamento que chegavam da Europa, sob a forma de eletrochoque, precisamente no momento em que ela saía da cadeia onde esteve presa pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. E ela diante da parafernália da máquina gritou: “eu não aperto o botão!”. Resultado: em 1946, foi rebaixada ao setor de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II. Chegando lá notou que aquilo não era mais do que uma extensão da oficina de farrapos que se es- praiava pelo hospício, explorando o trabalho escravo dos internos, entre remendos e lavagens de roupa. E de novo gritou: “Eu não sou capataz!”
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A construção do esquizofrênico como inafetivo pela
psiquiatria seria liquidada pela surra que a louca Luíza deu na enfermeira que delatou Nise à policia de Vargas e o Museu das Imagens do Inconsciente inciaria sua existência pelos gritos dos loucos e de Nise da Silveira, entre o rebaixamento da doutora e a fundação do mu- seu em 1952. Entre bordados, tintas, pincéis e outros instrumentos a Casa das Palmeiras, também não tardaria a surgir em 1956. A terapia ocupacional foi soterrada pela emergência convulsiva e delicada de outros espaços da emoção de lidar. Mas é preciso estar atento, pois hoje a terapia ocupacional, regularmente, vem assumir o lugar da cela socialmente aceita não só no redimensionamento da rotina manicomial nos hospitais-dia, assim como na avassaladora prática de psiquiatrização da ordem o eletrochoque vem sendo recomendado e aplicado em tratamentos do chamado transtorno depressivo, conectado aos desdobramentos de estudos neurocientíficos, instrumentalizados pela psiquiatria. E eles dizem assim: A questão hoje, com os avanços da medicina psiquiátrica e da neurociência, é apenas de saber combinar a dose certa de anestesia com a voltagem de eletrochoque compatível a cada paciente. Neste caso, o equacionamento preventivo da minimização dos possíveis efeitos colaterais serve de pretexto às liberações de verba para pesquisa de Institutos e Universidades, fomento para proliferações de Ong’s e grupos de auto-ajuda, entre incontáveis outros beneficiados, começando pela indústria farmacológica e pela capacitação técnico-médica de polícias, preten- dendo tornar a tortura um eufemismo. Chega-se, então, à inominável associação entre eletrochoque e qualidade de vida. A abjeta vinculação oportuna dos zeladores da ordem, sob as auspiciosas recomendações medicamentosas. O infortúnio do mau encontro, como diria Pierre Clastres. O infortúnio de quem fica, no livro de Queiroz abre passagem para um penúltimo movimento entre Artaud e Nietzsche, atravessado por um pensar outro que lan-
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ça André ao derradeiro capítulo onde ele próprio e sua
escrita, que neste momento, assume tons absurdos, be- cktianos mesmo, remete-nos ao capítulo anterior onde se destacam estas palavras de Artaud a Van Gogh: “...É preciso um exército de gente amesquinhada para con- duzir o corpo ao gesto contranatura que é privar-se de sua própria vida” (Q, p. 59). Anexações. Antonin Artaud, meu próximo traz no anexo um entrevista imperdível com André Queiroz, na qual sua coragem, de homem, de intelectual, tam- bém, enuncia verdades insuportáveis para o estado das coisas na Universidade e na submissão das pes- quisas acadêmicas aos temas e áreas referendados por agências de fomento. Enquanto em Nise, arqueóloga dos Mares, Bernardo oferece um intricado bordado de referências de trabalhos escritos e imagéticos, tecido por Nise e por pessoas que mergulharam na luta con- tra o encarceramento de gente, seja que palavra isto possa assumir quando está em jogo administrar, gerir e governar vidas. Se a loucura enuncia verdades insuportáveis como explicitou Artaud é preciso ter presente que ele tam- bém insistia na inapreensível afirmação: a vida é de queimar as questões.
o singular maurício tragtenberg lúcia soares*
Antonio Ozaí da Silva. Maurício Tragtenberg: Militância e
Pedagogia Libertária. Ijuí, Unijuí, 2008, 344 pp.
Em 1994, eu estava no último ano da Faculdade de
Ciências Sociais — PUC/SP quando soube que Maurício * Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisadora no Nu-Sol.