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Sobre a natureza do fanatismo – Jaime Pinsky

5 DE AGOSTO DE 2016 EDITORA CONTEXTO

A verdade do fanático religioso foi determinada por deus, o seu deus, por meio da
revelação. Não se trata de uma grande verdade a que se chega após uma longa trajetória
racional, nem de uma pequena verdade, fruto de um achado, um palpite, uma opinião.
Trata-se da Verdade (assim, com V maiúsculo), e como tal, não é passível de discussão.
Afinal, como simples mortais poderiam questionar verdades com origem divina?

O detentor da verdade religiosa não apenas acredita nela com toda intensidade, como
acha que deve impô-la aos outros, aos incréus, aos céticos. No limite, impor uma
verdade é uma obrigação do crente, já que ele estará salvando aquele que não acreditava
e passa a crer. Ou, se o outro não tiver salvação, punindo-o. Obrigar o outro a acreditar
em sua verdade não lhe parece uma atitude autoritária, mas uma obrigação moral.
Mesmo que o outro não tenha vontade de receber a sua verdade. Mesmo que seja
necessário matar o outro para que não peque mais.

Crimes em nome da religião, de religiões, ocupam muito espaço na história. O próprio


mundo ocidental e cristão, que hoje é vítima de fanáticos islâmicos,  não tem muitos
motivos para se orgulhar das Cruzadas (que sob o pretexto de salvar a Terra Santa dos
infiéis matava toda espécie de vida que passava à frente de suas tropas), ou da
Inquisição (que em nome da fé mandou para a fogueira um sem número de praticantes
de outras crenças, além de dificultar o crescimento das forças produtivas na Espanha e
em Portugal).

Alguém poderá argumentar, com aparente razão, que o fanatismo racista de Hitler, ou o
fanatismo ideológico de Stalin também provocaram milhões de sacrifícios humanos.
Vejo, contudo, muito do fanatismo religioso entre os seguidores desses lideres, que os
tinham como verdadeiros deuses. A verdade dos nazistas era dogmática, não racional.
Do contrário, como entender que um povo tão evoluído culturalmente como o alemão
pudesse ter aceitado nas ideias nazistas que ensinavam que o mais idiota dos loiros de
olhos azuis, só por ser ariano (seja lá o que isto possa significar) era de uma “raça”
superior a, por exemplo, Albert Einstein, um judeu? O mesmo pode-se dizer dos
seguidores de Stalin, que duvidaram durante décadas da imensidão dos seus crimes em
nome de um socialismo altamente discutível.

Negar a existência de fanáticos religiosos dentre os autodenominados soldados de Alá é


ingênuo. Lá estão eles, matando de forma indiscriminada e contando com uma vida
futura plena de alegria para si. Não fosse o seu fanatismo não matariam e morreriam em
nome de uma suposta verdade indiscutível: a deles.

Contudo, há um outro tipo social que tem participado dos atentados terroristas
perpetrados particularmente na França. Podemos observar que fazem parte da tropa de
choque dos agrupamentos de fanáticos de inspiração islâmica grupos ressentidos com o
ocidente, não tanto por negarem valores desse mesmo ocidente (apesar de seu discurso
nessa direção), mas por não terem tanto acesso quanto gostariam aos produtos e serviços
que os cidadãos dos países mais desenvolvidos usufruem. Quando afirmam não serem
bem aceitos em sociedades como a francesa não estão clamando pela filosofia de
Descartes, poemas de Baudelaire, ou peças de Molière, mas por roupas de grife,
automóveis modernos e celulares do ano. “Se não me dão vida boa, também eles não
terão vida boa”, parece ser o seu lema. Antigamente a presença de árabes e islâmicos na
cultura francesa era importante, mas parece que isto já não ocorre mais e não se pode
atribuir apenas à xenofobia essa dificuldade. A tão propalada incorporação dos
imigrantes mais recentes à cultura francesa tem se resumido, na maioria dos casos, ao
esforço para mudar de patamar de consumo, de preferencia mantendo algumas
características do grupo como a discriminação das mulheres. Os que não conseguem se
tornar bons consumidores se tornam fortes candidatos a terroristas.

É importante lembrar que desde o começo Hitler foi bastante apoiado pela camada
“lumpen” da população alemã, marginalizados, desempregados, desajustados,
ressentidos. Gente que saiu batendo em adversários políticos, pichando vitrines de lojas,
incendiando templos religiosos, sentindo-se poderosos por fazer parte de um grupo, eles
que antes não se sentiam pertencentes a nada.

Fanáticos e ressentidos fazem uma mistura explosiva. Literalmente.

http://blog.editoracontexto.com.br/sobre-natureza-do-fanatismo-jaime-pinsky/

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