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Universidade de Évora

Escola de Artes
Departamento de Música

João Pedro Schwingel Carada, l42295

Etnomusicologia II
2019/2020

Teste Escrito

1.

"Ethnomusicology is the study of why, and how, human


beings are musical" (Rice, 2013, p.1)

Desde a história antiga documentada até os dias atuais, o pensamento sobre a


música é uma indagação que permeia e intriga os estudiosos das mais diversas áreas,
sejam as ciências humanas – no seu pensamento sobre racionalidade e existência humana
-, ciências exatas – como já procurava Aristóteles nas suas teorias matemáticas sobre a
música – ou nas ciências da natureza – como as respostas biológicas e psicológicas do
corpo à música. A etnomusicologia é um campo que se cria, se expande e se reinventa
todos os dias em razão do seu próprio objeto de estudo que também é dinâmico e inerente
as relações sociais e culturais: a música.
Os primeiros relatos sobre pensar a música surgem nas culturas da China e Grécia
antigas, que, desde lá, percebiam como o comportamento musical era inerente ao ser
humano e cumpria papel importante na vida social. Muito dos estudos feitos no mundo
medieval e antigo recaíam sobre suas próprias culturas musicais. Contudo, a descoberta
do “Novo Mundo” inverte a situação e os musicólogos começam a indagar sobre as
músicas dos povos nativos da américa, bem como os da África colonial. Os jesuítas, por
exemplo, estudaram as culturas musicais dos povos da américa latina para que pudessem-
nas utilizar como ferramenta de dominação católica. Assim, o imperialismo e o
colonialismo antecipam o que seriam os cernes da primeira fase dos estudos
etnomusicologicos. Também, o Iluminismo francês estimulou a ideia de construção de
conhecimento sobre as outras culturas:
European interest in the music of others was also stimulated in
eighteenth-century France by the Enlightenment, which was about,
among other things, the acquisition of universal knowledge
unfettered by dogma and tradition. (Rice, 2013, p. 14)

Pode-se citar Charles Burney como um dos primeiros a fazer o que seria chamado
hoje de etnografia, ao viajar pelo novo continente e escrever sobre estas culturas musicais.
Apesar disso, no final do século XVIII e início do XIX há uma ascensão do
nacionalismo romântico, o que leve os pensadores ocidentais a, novamente, tornarem-se
para suas próprias culturas. A edificação das nações pré-primeira guerra mundial levam
os países a buscarem suas raízes nas expressões dos campos, na música folclórica [hoje
chamada tradicional] que identificaria a cultura do seu povo. Esta busca por uma
identificação nacional leva as primeiras coletas de música no meio rural, transcrições e
etnografias (impulsionadas também pela invenção do fonógrafo em 1877, possibilitando
a gravação do som).
Each nation had its indefatigable collectors and activists, among
the most famous of whom were Cecil Sharp (1859 1924), Ralph
Vaughan Williams (1872–1958), and Percy Grainger (1882–1961)
in England; Nikolay Rimsky-Korsakov (1844–1908) in Russia;
and Béla Bartók (1881–1945) and Zoltán Kodály (1882–1967) in
Hungary. (Rice, 2013, p. 15)

Neste contexto, surge o que seria a precursora da etnomusicologia, a musicologia


comparada. Com a ideia nacionalista das “nações mais desenvolvidas” europeias, há a
necessidade de utilizar seus sistemas musicais “mais evoluídos” como objeto de
comparação em relação aos sistemas dos povos considerados “primitivos”. As principais
indagações destes musicólogos eram, como coloca Rice:
the origins of music; (2) musical evolution1 (3) understanding the
distribution of musical styles and artifacts around the world; (4)
musical style analysis and comparison; and (5) the classification
and measurement of musical phenomena such as pitch, scales, and
musical instruments. (Rice, 2013, p. 17)

Alguns dos métodos comparativos ainda são utilizados até hoje, como a
classificação dos instrumentos musicais (no sistema alemão Sachs-Hornbostel). Neste
caso, a classificação se dá nos diferentes tipos de materiais que produzem as vibrações.
Ainda há a classificação de intervalos, baseado na frequência ou, mais tarde, na escala
aritimetica de cents criada por Ellis para tornar a medida mais fácil de ser trabalhada.
Apesar de ter criado este sistema, Ellis, ao analisar as diferentes escalas, percebe que elas
não poderiam ser explicadas por uma teoria matemática, e dá os primeiros passos para a
entrada da etnologia na música.
Although Ellis did not employ a theory of culture, he demonstrated
that musical scales are “very diverse, very artificial, and very
capricious". They must result from human intervention and choice
rather than from nature, a position modern ethnomusicologists
share. (Rice, 2013, p. 19)

Na entrada da segunda metade do século XX, a musicologia comparada começa a


se desgastar quando os musicólogos enfrentam problemas ao analisar as diferentes
culturas musicais. É Jaap Kunst um dos primeiros musicólogos a cunhar o termo etno-
musicologia, e define que “Our science, therefore, investigates all tribal and folk music
and every kind of non-European art music” (Kunst, 1950, apud Rice, 2013, p. 7). Uma
perspectiva um pouco comparatista e eurocêntrica, como corrobora Rice, porém que
expõe os grupos culturais nos quais a maior parte dos estudos etnomusicologicos vão se
debruçar – ou seja, nas artes não performativas (em sua maioria afastadas da cultura
ocidental). A partir daí, outros musicólogos apropriam-se desta perspectiva, em especial
John Blacking, para uma questão mais ampla e que intitula o trabalho do autor: “How
Musical is Man?”. Esta ideia de musicalidade permeia a maior parte dos estudos, que se
tentam afastar do substantivo “música” – pois há o conflito nas diferentes culturas, que
nem sempre definem ou tem um termo equivalente. Christopher Sall, para cumprir esse
afastamento do substantivo, nos seus estudos, transforma “música” em verbo – “to music”

1
Condicionada pela ideia de evolucionismo de Darwin
– de modo a aproximar o termo ao comportamento humano e a ideia de que o ser humano
tem tendência a organizar sons. Assim, o verbo dá espaço para que o comportamento
musical posso ser visto das mais diversas perspectivas. A metodologia usada para esta
área é descrita em detalhes por Alan Merriam, quando publica seu estudo The
Antropology of Music, em 1964, um dos marcos mais importantes para o que conhecemos
hoje por etnomusicologia. Ele introduz os pormenores de como estudar a música na
cultura e o seu modelo tripartido ainda é utilizado atualmente e configura quais processos
definem os produtos de uma sociedade:

som musical ↔ comportamentos (físicos, verbais, sociais) ↔ conceitos (valores,


estruturas)

Desta maneira, podemos observar que apenas uma definição não pode abranger
tudo o que é etnomusicologia, cabendo aos diferentes autores/investigadores, nas suas
mais variadas perspectivas, tentar delimitar seus subcampos de estudos, apropriando-se
dos diferentes métodos como etnografia, estudos comparativos, fieldwork, observação
participante e outras ferramentas para desbravar a complexidade que é “o porquê e como
o homem é musical”.

2.

A invenção da tradição implica um conjunto de práticas,


normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas,
de natureza ritual ou simbólica, que visam incutir certos valores e
normas de comportamento através da repetição, e estabelecer uma
continuidade com um passado histórico apropriado” (Hobsbawm,
Eric & Ranger, Terence (eds.). 1983. The Invention of Tradition.
Cambridge: Cambridge University Press apud Simões, 2017).

.
As culturas musicais dos diferentes grupos na região onde hoje é Portugal sempre
existiram e foram permeados pelos mais diversos acontecimentos socio-históricos.
Porém, a ideia de uma identidade cultural do país só surge com a ascensão do
nacionalismo romântico e nos períodos pré, entre, e pós-guerras, quando há uma
necessidade dos estados europeus de criar o sentimento de nação nos seus povos.
A primeira recolha de relevância no país acontece no final da década de 1930:
“Armando Leça foi convidado em 1939 para efectuar uma recolha nacional de cantares e
danças populares, pela Comissão Executiva dos Centenários, que o Estado Novo nomeara
para celebrar o oitavo centenário da Nacionalidade e o terceiro da Restauração”
(Sardinha, 1992, p. 345). Pode-se perceber que estas ações de recolha são impulsionadas
pela necessidade do estado de criar a identidade nacional, como já referido. Deste modo,
já no período pré-ditatorial e como ocorre intensamente durante o Estado Novo, a busca
pelas raízes culturais portuguesas se fortifica. Contudo, esta não é uma questão simples
de responder, pois em um meio cultural tão diverso, quais seriam as autênticas músicas
tradicionais?
Pensando nisto, há três problemáticas a serem indagadas. A ascensão deste
nacionalismo durante a ditadura, o condicionamento de uma autenticidade baseada nos
estudos e coletas já realizados e a transformação dos detentores desta tradição ao
participar do contexto de êxodo rural e movimentos migratórios. O líder do Grupo do
Coral dos Ceifeiros de Cuba afirma que o uso da lentidão nas suas práticas musicais é um
indício da autenticidade, na medida que tenta reafirmar a tradição a partir das memórias
performativas do grupo. Mas a autenticidade não é um conceito estático se considerarmos
que a música tradicional é criada coletivamente, deste modo sendo influenciado por todos
aqueles que detém aquela tradição e possuem sua carga ideológica e cultural consigo.
Este coral influenciou outros grupos a tomaram esta memória de que lentidão a
autenticidade, porém ao pensarmos nas trocas culturais das festividades e rituais que estas
pessoas participam, podemos perceber que as escolhas de interpretação podem mudar
com o tempo e que outros contextos podem exigir uma interpretação ou outra (se
considerarmos a lentidão, alguns corais podem escolher cantar as músicas mais lentas ou
menos, sendo que lentidão também é um conceito volátil), neste caso, a autenticidade é
criada coletivamente e através do tempo. Agora, se pensarmos a unidade regional que os
etnomusicólogos do século XX buscavam, podemos considerar autenticidade como o que
mais se aproxima dos registros e estudos já feitos durante a primeira metade do século
(mesmo que condicionados) e que remetam a antiguidade da tradição. A própria ideia de
tradição é um objetificação de uma cultura pertencente ao povo. E como objeto, pode ser
utilizado como ferramenta para diversos usos. Desde a criação da identidade nacional até
um instrumento de dominação. Por exemplo, o cante alentejano, que desde sempre foi
uma expressão compartilhado no campo entre homens, mulheres e crianças e que, durante
o Estado Novo foi edificado como uma tradição de homens, e assim condicionando os
estudos e coletas etnográficos realizados durante este período. Com o fim do Estado de
Novo e a Revolução de Abril, as mulheres podem reconquistar seus lugares nesta prática.
Entretanto, o mundo moderno cria outras problemáticas com as tradições. Se antes
havia uma sensação de identidade nacional, com o avanço das tecnologias, da
industrialização e da globalização, os seres humanos têm acesso a todos os tipos de
culturas diferentes. Como coloca Bo-Wah Leung “Music lovers in the modern world are
fortunate, since technology has made it possible to enjoy numerous traditional genres
from different cultures and countries” (Leung, 2018, p. 1). Isto pode leva-los ao
afastamento de sua cultura local, bem como fusões, criações e reinvenções de rapidez
jamais vistas. Outros modos de dominação através da tradição se criam ao mesmo tempo.
Com a indústria da cultura e uma classe dominante ideologicamente reafirmando algumas
tradições e relevando outras, há um desafio imposto aos etnomusicólogos para ajudar na
manutenção das mais diversas culturas tanto portuguesas quanto no mundo. Ainda assim,
os processos de patrimonialização, mesmo que condicionantes, tem papel importante ao
fomentar estudos e recolha de dados destas culturas para que não sejam esquecidas ou
dominadas por outras no futuro.
O cante alentejano hoje é considerado pela UNESCO como patrimônio da
humanidade, e desta maneira, há fomento para estudos que ajudam esta cultura musical a
retomar práticas apagadas pela dominação e apropriação cultural histórica e se reinventar
como produto de uma nova sociedade que dialoga com suas raízes e sua
contemporaneidade. Deste modo, abrimos novas perspectivas para o seguimento da
etnomusicologia em Portugal e no mundo.

Referências utilizadas nas duas questões:


Castelo-Branco, S. (2010). Etnomusicologia em Portugal. Em Enciclopéida da Música
em Portugal no século XX. Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates.
Landa, E. C. (s.d.). CAPÍTULO VIII: ANTROPOLOGÍA DE LA MÚSICA. Em
Etnomusicologia. Madrid: Ediciones del Instituto Complutense de.
Leung, B.-W. (2018). Traditional Musics in the Modern World. Springer International
Publishing AG.
Rice, T. (2013). Chapter 1: Defining ethnomusicology . Em Ethnomusicology: A Very
Short Intro. Oxford University Press.
Rice, T. (2013). Chapter 2: A bit of history. Em Ethnomusicology: A Very Short Intro.
Oxford University Press.
Sardinha, J. A. (1992). Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular
relaizado em Portugal. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa.
Simões, D. (14 de julho de 2017). Usos e abusos da tradição: Folclorismo e objectificação.
Lisboa: FCSH-NOVA.

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