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Das informações às narrativas do cotidiano: um ensaio

reflexivo sobre Jueves, de La Oreja de Van Gogh – Por


João Paulo Lopes de Meira Hergesel

O mundo vive de narrativas. Desde que o homem desenvolveu a habilidade


de se comunicar, as histórias ganharam um grande destaque nas relações sociais.
Tanto o viajante, que se aventurava em caminhos desconhecidos ou nos oceanos,
quanto o camponês tradicionalista, que conhecia minuciosamente a cultura de seu
povo, narravam suas experiências aos demais. (BENJAMIN, 1994).

As narrativas, portanto, tiveram início na oralidade, por meio das contações de


histórias. Mesmo assim, elas já apresentavam uma estrutura básica, composta pela
exposição (breve apresentação dos seres, da ambientação e da temporalidade), pela
complicação (conflito entre os personagens, resultando numa tensão e no caminho
para sua resolução), pelo clímax (ponto mais impactante do conto, quando a ação
ganha maior destaque) e pelo desfecho (consequências geradas ou solução
encontrada, a conclusão do conflito).

Além da estrutura textual, a narrativa ainda possui elementos essenciais para


sua composição. São eles: enredo (a versão irredutível da história), personagens (os
seres que atuam entre si para realização da narrativa), tempo (seguimento cronológico
ou psicológico, podendo ter flashbaks ou flashforwards, centrado em uma época ou
período), espaço (o ambiente em que as ações ocorrem) e foco narrativo (primeira ou
terceira pessoa, com narrador-personagem, narrador-observador ou narrador-
onisciente).

Com o tempo, as narrativas deixaram de pertencer apenas à comunicação oral


para serem representadas pela escrita, pelo visual, pelo audiovisual. Ao contrário do
que se pensava, com o aprimoramento dos mecanismos comunicativos e o
surgimento de novas tecnologias, as narrativas não deixaram de existir; passaram a
fazer parte de todos os momentos cotidianos. Basta olhar em volta que percebemos
como o próprio dia a dia deriva de uma espécie de teatro prosaico. (BRETAS, 2006).

Embora as narrativas cotidianas possam estar presentes nos gêneros textuais


mais tradicionais (conto, novela ou romance), são nos veículos de comunicação que
elas se configuram com mais especificidade: nos jornais (em que as reportagens são
relatos da vida diária), no rádio (que marca o tempo entre acordar e ir ao trabalho, por
exemplo), na televisão (cuja grade de programação é ajustada à organização do tempo
doméstico) e nas novelas (que propiciam experiências substitutas da realidade).

Benjamin (1994) apresenta a ideia de que as narrativas são o oposto da


informação e justifica esse ponto de vista, levando em consideração que a informação
é passageira, enquanto a narrativa é perene. No entanto, defendemos que toda
informação pode se transferir em narrativa. No texto escrito, um gênero muito
representativo da transição da informação para a narrativa é a crônica, que literatiza
uma cena do dia a dia.
Outra forma encontrada para perenizar um acontecimento é a música. A banda
espanhola La Oreja de Van Gogh, por exemplo, utilizou-se da informação de que os
metrôs de Madri haviam sofrido um atentado terrorista para compor a canção Jueves,
na qual traduz o fatídico dia para a linguagem poética. Comprovando isso, temos a
superficialidade da informação “Houve um atentado terrorista ao metrô de Madrid
em 11/03/2004” em contraste com a consistência da narrativa presente em:

Si fuera más guapa y un poco más lista

Si fuera especial, si fuera de revista

Tendría el valor de cruzar el vagón

Y preguntarte quién eres.

Te sientas en frente y ni te imaginas

Que llevo por ti mi falda más bonita.

Y al verte lanzar un bostezo al cristal

Se inundan mis pupilas.

De pronto me miras, te miro y suspiras

Yo cierro los ojos, tú apartas la vista

Apenas respiro me hago pequeñita

Y me pongo a temblar

Y así pasan los días, de lunes a viernes

Como las golondrinas del poema de Bécquer


De estación a estación enfrente tú y yo

Va y viene el silencio.

De pronto me miras, te miro y suspiras

Yo cierro los ojos, tú apartas la vista

Apenas respiro, me hago pequeñita

Y me pongo a temblar.

Y entonces ocurre, despiertan mis labios

Pronuncian tu nombre tartamudeando.

Supongo que piensas que chica más tonta

Y me quiero morir.

Pero el tiempo se para y te acercas diciendo

Yo no te conozco y ya te echaba de menos.

Cada mañana rechazo el directo

Y elijo este tren.

Y ya estamos llegando, mi vida ha cambiado

Un día especial este once de marzo.

Me tomas la mano, llegamos a un túnel

Que apaga la luz.

Te encuentro la cara, gracias a mis manos.


Me vuelvo valiente y te beso en los labios.

Dices que me quieres y yo te regalo

El último soplo de mi corazón.

(LA OREJA DE VAN GOGH, 2008)

Vemos que esta obra possui exposição: ela é uma garota tímida e apaixonada
dentro do metrô; conflito: ela não tem coragem de se declarar para o rapaz que se
senta bem em frente a ela; clímax: o momento em que lhe vem a coragem e, mesmo
gaguejando, vai falar com o rapaz que, por sua vez, corresponde ao sentimento; e
desfecho: a morte (o atentado terrorista em si) sendo caracteriza pelo escuro do túnel
e pelo “ultimo sopro do coração”.

Jueves também possui os elementos essenciais de uma boa narrativa, ou seja,


enredo: a paixão que a garota sente pelo rapaz; personagens: a garota protagonista e
o rapaz por quem ela está apaixonada; tempo: cronológico, abrangendo poucos dias,
subentendo o ano de 2004; espaço: o metrô localizado na cidade de Madri; foco
narrativo: primeira pessoa, com narrador-participante, sendo a garota protagonista a
narradora da história.

Por fim, conforme Leal (2006, p. 20), “narrar significa buscar e estabelecer um
encadeamento e uma direção, investir o sujeito de papéis e criar personagens, indicar
uma solução”. Portanto, ao narrar — seja por meio da contação de histórias, do texto
escrito ou até mesmo da música — uma informação que nos é fornecida,
transformamos o que deveria ser prosaico em poético e imortalizamos a situação.

Referências
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

BRETAS, Beatriz. Interações cotidianas. In: FRANÇA, Vera; GUIMARÃES,


César. Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica,
2006, p. 29.42.

LEAL, Bruno. Saber das narrativas: narrar. In: FRANÇA, Vera; GUIMARÃES,
César. Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica,
2006, p. 19-27.

LA OREJA DE VAN GOGH. Jueves. In: __________. A las cinco en el


Astoria.[Espanha]: Sony Music, p2008. 1 CD. Disponível em:
<http://www.laorejadevangogh.com/music/las-cinco-en-el-astoria>. Acesso em:
09 jul. 2013.

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João Paulo Lopes de Meira Hergesel é mestrando em Comunicação e Cultura


e licenciado em Letras pela Universidade de Sorocaba. Docente do Colégio
Objetivo São Roque e administrador da Editora Jogo de Palavras. Dedica-se à
produção literária e à pesquisa na área de Narrativas Midiáticas, com foco nos
estudos estilísticos.

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