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Educação na Cidade:

Conceitos, Reflexões e Diálogos


Organizadores:
Dilza Côco
Nelson Martinelli Filho
Priscila de Souza Chisté
Sandra Soares Della Fonte

ACADÊMICO
Educação na cidade:
conceitos, reflexões e diálogos
Organizadores:
Dilza Côco
Nelson Martinelli Filho
Priscila de Souza Chisté
Sandra Soares Della Fonte

Educação na cidade:
conceitos, reflexões e diálogos

Vitória, 2018
Editora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Espírito Santo
R. Barão de Mauá, nº 30 – Jucutuquara
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Humanidades – PPGEH
Av. Vitória, nº 1729 – Jucutuquara, Revisão textual: André Luiz Neves Jacintho,
29040-780 – Vitória – ES Nelson Martinelli Filho
(27) 3331-2277 Diagramação: Gabriela Maciel de Almeida
Coordenador: Antônio Donizetti Sgarbi Imagem da capa: SAMÚ, Raphael. Sem título,
1986. Serigrafia sobre papel. Acervo pessoal do
Campus Vitória artista.
Diretor Geral: Hudson Luiz Cogo

Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo

E24 Educação na cidade : conceitos, reflexões e diálogos / organizadores Dilza Côco…


[et al.]. - Vitória: Edifes, 2018.
356p. : il. ; 22 cm.

ISBN: 978-85-8263-292-5 (Broch.)


978-85-8263-293-2 (E-book)

1. Educação - Filosofia. 2. Educação e Estado. 3. Educação – Vitória (ES). I.


Martinelli Filho, Nelson. II. Côco, Dilza . III. Chisté, Priscila. IV. Della Fonte, Sandra
Gomes. V. Título.

CDD: 370.1

© 2018 Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades – PPGEH


Todos os direitos reservados.
É permitida a reprodução parcial desta obra, desde que citada a fonte.
O conteúdo dos textos é de inteira responsabilidade dos autores
Sumário

Prefácio....................................................................................................11

Apresentação...........................................................................................17

Considerações iniciais: proposta de constituição do grupo de estudos e


pesquisas sobre a educação na cidade e humanidades (GEPECH)..........25
Dilza Côco
Priscila de Souza Chisté
Sandra Soares Della Fonte

Capítulo I - Educação na cidade: conceitos e reflexões...........................33


Reflexões sobre cidade educativa, cidade educadora,
município que educa e educação na cidade................................................35
Simone Oliveira Thompson de Vasconcelos
Priscila de Souza Chisté

Cidade e educação: breve ensaio sobre a questão


polissêmica e conceitual................................................................................61
Swami Cordeiro Bérgamo
Sandra Soares Della Fonte

A educação na cidade como atividade teleológica:


paradigmas científicos de análise e suas intencionalidades....................78
Adriano de Souza Viana
Antonio Donizetti Sgarbi

Contribuições de Henri Lefebvre para a leitura da cidade.......................92


Priscila de Souza Chisté
Capítulo II - Educação na cidade de Vitória - Espírito Santo................123
A modernização da cidade de Vitória:
reflexões sobre a história capixaba......................................................................125
Patrícia Guimarães Pinto
Priscila de Souza Chisté

Vitória (ES) nos cartões-postais:


a cidade em exposição e suas potencialidades educativas.....................156
Dilza Côco
Priscila de Souza Chisté

O Parque Moscoso como espaço educativo da cidade de Vitória - ES..198


Larissa Franco de Mello Aquino Pinheiro
Priscila de Souza Chisté

O direito à cidade e as questões ecológicas:


o problema capixaba do pó preto...............................................................223
Israel David de Oliveira Frois
Sandra Soares Della Fonte

A criança e a educação na cidade:


pensamentos inquietantes na educação infantil de Vitória..................240
Dina Lúcia Fraga
Dilza Côco

Capítulo III - Educação na cidade e suas interfaces com a literatura...261


O outro e a cidade na literatura brasileira:
um diálogo entre Rubem Fonseca e as relações
de alteridade no espaço urbano..................................................................263
Letícia Queiroz de Carvalho
Lirismo e cidade – uma voz entre muitas vozes.......................................286
André Luiz Neves Jacintho
Letícia Queiroz de Carvalho

Miradas sobre las ciudades..........................................................................312


Gabino Cárdenas Olivares
María Estela Martínez Castro
Prefácio

O escritor Ítalo Calvino nos ensina que “jamais se deve con-


fundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma
ligação entre eles” (1999, p. 59). Munidos dessa advertência é que
vislumbramos a possibilidade de iniciar a leitura de Educação
na cidade: conceitos, reflexões e diálogos. Uma coletânea de
escritos que tratam da cidade a partir de um de seus aspectos
mais interessantes: a sua relação com a educação.
Tentar apreender a cidade por meio de pesquisas diversas asse-
melha-se um pouco à conhecida fábula dos cegos e do elefante: cada
homem que se aproximava do animal tateava uma de suas partes e
imaginava que ali se encontrava o todo de sua forma. Da mesma ma-
neira, cada um de nós, pesquisadores que nos aproximamos do ur-
bano na tentativa de apreendê-lo, o compreendemos por meio das
nossas possibilidades, com nossa percepção filtrada pelos teóricos
nos quais nos apoiamos, pela ideia de cidade através da qual nos mo-
vemos em nossas investigações, e pela abrangência que permitimos
ao nosso olhar. As cidades, dessa maneira, tornam-se, para cada um
de nós, um constructo engendrado pelos nossos interesses de pesqui-
sa, bem como pelas amplitudes e limitações de nosso conhecimento.
12

Podemos entender a alcunha “cidade” em uma concepção


morfológica, um espaço físico composto de prédios e avenidas,
pontes e túneis. Nessa perspectiva, vemos muitas vezes a cida-
de tomada como um problema espacial, quebra-cabeças ao qual
o urbanismo tenta fornecer respostas. Podemos, ainda, ter nos-
so interesse voltado para as redes associativas que compõem a
vida urbana, as suas dinâmicas e conflitos. Em outras palavras,
aquilo que, de forma invisível, molda a configuração que esco-
lhemos para viver. A essa compreensão é a sociologia urbana que
procura atender e providenciar contorno e abrangência. Temos
aqueles que preferem entender a cidade como arena de dispu-
tas de poder, locus privilegiado no qual se corporificam os jogos
de mercado e capital. O urbano, para estes, se torna sinônimo
de negócio e as suas possibilidades são aquelas que podem ser
quantificadas, transformando-se em oportunidades de lucro. É
admissível, ainda, tentarmos vislumbrar a urbanidade por meio
de suas representações, sejam as da literatura, da arte, da publici-
dade, do cinema. Para estes, as representações funcionam como
uma forma de estender o olhar e a percepção até limites que não
seriam atingidos apenas com a observação direta da dinâmica ci-
tadina. E há, ainda, os que se alimentam da vida urbana, vendo a
cidade como musa, inspiração ou palco para as suas ideias. São
os adeptos daquilo que é defendido por Baudelaire quando afir-
ma que “jouir de la foule est un art” (“apreciar a multidão é uma
arte”). Esses criam. Sua arte, seus discursos ou suas pesquisas são
alimentados pela energia proveniente dessa reunião de pessoas
diferentes ocupando o mesmo espaço, da tensão que tal convívio
produz, dos embates e das interações que brotam do chão das
metrópoles. Cidade, nessa concepção, é um poderoso catalisador
de forças e energias.
Assim, se são múltiplas as formas através das quais pode-
mos olhar para qualquer objeto de pesquisa, quando esse objeto
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 13

é tão diverso quanto uma cidade, essas possibilidades chegam


ao infinito. Talvez seja essa riqueza de pontos de vista que a
torne tão interessante como depositária de nossos interesses
e esforços. Cidades são ilimitadas, cidades são desafiadoras.
Na confluência de algumas perspectivas de olhares para a di-
nâmica citadina é que podemos situar os textos que compõem
esse livro. Os pesquisadores aqui reunidos olham, cada um a
seu modo, para o mesmo objeto e nos mostram o que veem. Tal
como Calvino, que faz com que o seu personagem Marco Pólo
descreva ao imperador Kublai Kahn múltiplas cidades através
daquela que mora em seu coração – e que, ao final de Cidades
Invisíveis ficamos sabendo tratar-se de Veneza –, os textos que
compõem esta coletânea nos apresentam pontos de vista que
se alternam, complementam, contrapõem, para que, ao findar
a leitura, possamos nós, leitores, formar o nosso panorama pes-
soal sobre o tema.
Oriundos das discussões e investigações do Grupo de Es-
tudos e Pesquisas sobre Educação na Cidade e Humanidades
(GEPECH), ligado ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Humanidades (PPGEH) do Ifes, os textos que aqui se reúnem são
divididos em três capítulos: Educação na cidade: conceitos e
reflexões; Educação na cidade de Vitória - Espírito Santo
e Educação na cidade e suas interfaces com a literatura.
Sob esses temas, vários artigos se desenvolvem. Em cada um
deles temos a oportunidade de acompanhar um dos fenôme-
nos mais interessantes para um pesquisador: o desabrochar do
pensamento sobre um tema. Assim, através de Simone Olivei-
ra Thompson de Vasconcelos, Priscila de Souza Chisté, Swami
Cordeiro Bérgamo, Sandra Soares Della Fonte, Adriano de Souza
Viana e Antonio Donizetti Sgarbi temos a chance de seguir as
considerações sobre o papel da cidade na educação e os concei-
tos que devem ser priorizados nesse percurso. No capítulo se-
14

guinte, Patrícia Guimarães Pinto, Priscila de Souza Chisté, Dilza


Côco, Larissa Franco de Mello Aquino Pinheiro, Israel David de
Oliveira Frois, Sandra Soares Della Fonte e Dina Lúcia Fraga tra-
tam especificamente da cidade de Vitória, abordando diversos
aspectos que podem ser considerados na educação citadina na
referida cidade. Finalmente, no terceiro capítulo, Letícia Queiroz
de Carvalho, André Luiz Neves Jacintho, Gabino Cárdenas Oliva-
res e María Estela Martínez Castro nos trazem a literatura como
espelho através do qual podemos ver o urbano e suas dinâmicas.
Saímos deste livro – como acontece com as melhores leitu-
ras – com mais questões do que respostas. As perspectivas apre-
sentadas nos instigam, provocam, esclarecem, estimulam. Tal
como a cidade que lhes deu origem, são plurais e desafiadoras.
Ao findar, junto com as inquietações originárias da leitura, nos
vêm também o desejo de que as pesquisas prossigam, que as
questões que aqui desfilam deem lugar a outras, que os autores
avancem cada vez mais em suas investigações, e que possamos
ler outras produções do GEPECH em breve.

Eliana Kuster
Apresentação

Por mais que a cidade preexista ao capitalismo, o processo


de industrialização conferiu a ela e à realidade urbana em geral
uma nova configuração. Segundo Lefebvre (2011)1, a industria-
lização fez um assalto à cidade e a transformou no palco dos
principais conflitos sociais.
As relações sociais capitalistas ganharam vida na terri-
torialidade e no ritmo de vida da cidade. Circuitos de riqueza,
com seus sistemas de segurança, convivem com os aglomera-
dos de miséria, com seus poderes paralelos ao estatal. A distri-
buição e a qualidade de moradias, comércio, instituições de en-
sino, transporte coletivo, saneamento básico e infraestrutura,
espaços e equipamentos de lazer e estabelecimentos de saúde
revelam uma cidade segregada e fraturada.
Não por acaso Harvey (2012, 2009a, 2009b)2 evidencia como as
formas espaciais e temporais contemporâneas de nossas cidades
se transformaram em fragmentos, com comunidades fechadas,
privatização de espaços públicos, formação de vários microes-
tados. Para esse autor, a “acumulação por despossessão” (HAR-
VEY, 2012, p. 83) tem desobstruído bairros pobres, capturado
18

terras para incrementar a atividade imobiliária. Em muitos ca-


sos, o mercado imobiliário urbano associado ao capital finan-
ceiro e ao apoio do Estado tem desempenhado função relevante
na absorção e geração de capitais excedentes em escala cres-
cente, “[...] mas ao preço do explosivo processo de destruição
criativa que tem desapropriado as massas de qualquer direito à
cidade” (HARVEY, 2012, p. 85).
Como “lugar de consumo e consumo de lugar” (LEFEBVRE,
2011, p. 20), a cidade não apenas articula a desigualdade social
à segregação espaço-social urbana, mas também aloja o confli-
to constitutivo de toda mercadoria: “[...] a cidade e a realidade
urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a genera-
lização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir,
ao subordiná-las a si [...]” (LEFEBVRE, 2011, p. 14).
Para Lefebvre (2011), a complexidade de tal situação coloca
desafios para a reflexão teórica, para a ação prática e a ima-
ginação. Por isso, filosofia, arte e ciência se veem obrigadas a
reconsiderar esse fenômeno.
Abraçamos essa tarefa a partir de uma preocupação educa-
tiva. Os cidadãos constroem as cidades e, por sua vez, as cidades
formam seus cidadãos. Nesse sentido, a configuração da cidade
nos seus espaços e tempos carreiam uma orientação pedagógi-
ca. Em outros termos, a cidade condensa a história dos grupos e
dos conflitos que, sob certas condições históricas, a realizaram.
Entrar em contato com essa história faz da experiência urbana
uma relação entre gerações de transmissão e incorporação in-
tencional de modos de vida próprios, valores, ritmos e rotinas,
maneiras de agir, práticas imaginativas e artísticas, formas de
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2011.
1

HARVEY, David. Alternativas ao neoliberalismo e o direito à cidade. Novos Cadernos


2

NAEA, Belém, v. 12, n. 2, p. 269-274, dez. 2009a.


HARVEY, David. A liberdade da cidade. Espaço e Tempo, São Paulo, n. 26, p. 9-17, 2009b.
HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n. 229, p. 73-89, jul./dez.2012.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 19

sociabilidade e de mobilidade, confrontos e contradições. Como


atesta Arroyo (1997, p. 25)3, “A dinâmica urbana como um todo
é educativa [...]”.
Se o arranjo da cidade e da urbanidade como um todo é, por
si, um agente educativo e investe na formação subjetiva de seus
habitantes, torna-se premente aprender a ler a grafia social ins-
crita nessa ordenação citadina. Em outras palavras, desvendar
suas ruas e seus nomes, suas sedes administrativas, os recortes
de seus bairros, a concentração de sua população, suas praças e
parques, os monumentos públicos, suas formas arquitetônicas,
a localização de suas indústrias e fábricas, o seu ritmo do tra-
balho, a sua condição ambiental-ecológica, seus lugares de en-
contros, suas rotas de mobilidade, a sua distribuição da riqueza
material e simbólica e seus confrontos de classe.
Para exercitar essa tarefa, não se pode abrir mão de um
vagueio errático pela cidade. Por certo, não se trata do vagar
da multidão, empurrada pelos semáforos prestes a fechar, pelo
tempo acelerado da atividade produtiva, pelo olhar negligen-
te e epidérmico que satisfaz às demandas emergenciais de se
chegar ao trabalho ou em casa. A experiência que se conclama
é errante e desacelerada; paciente, ela experimenta e conhe-
ce; inquieta, vê, cheira, toca, ouve o que a cidade nos diz. Está
longe de ser passiva: retruca seus dizeres, regozija-se com seus
acertos, dialoga com a cidade, a indaga em seu existir. No fundo,
o diálogo com a cidade é um auto diálogo, um colóquio com a
cidade que construímos e que nos construiu, portanto, com a
cidade que existe também em nós.
Segundo Lefebvre (2011), o direito à cidade é um apelo e
uma exigência. Por mais que reformas sejam relevantes, só um
processo revolucionário pode nos assegurá-lo. Por isso, reco-
3
ARROYO, Miguel G. O aprendizado do direito à cidade. Educação em Revista, Belo Hori-
zonte, n. 26, p. 23-38, dez. 1997.
20

nhecemos que evidenciar os projetos educativos que na cidade


se materializam e se chocam pode ser uma ação insuficiente
para a conquista e o exercício efetivo desse direito, mas, nem
por isso, menos importante. Bem cumprida, essa ação pode ins-
pirar a projeção de formas rebeldes de intervenção. De alguma
maneira, os capítulos deste livro se alimentam desse horizon-
te e pretendem, a partir de preocupações variadas, reeducar o
nosso olhar a cidade, de vivê-la e construí-la.
Para tanto, insistimos, com Lefebvre (2011), que os pro-
dutores da cidade têm direito de dela se apropriar. Afinal, “O
direito à cidade, como ele está constituído agora, está extre-
mamente confinado, restrito na maioria dos casos à pequena
elite política e econômica, que está em posição de moldar as
cidades cada vez mais ao seu gosto” (HARVEY, 2012, p. 87). As-
sim, contra a cidade mercadoria, coloca-se a necessidade de
uma construção coletiva do direito à cidade, como caracteri-
zado por Lefebvre (2011): um direito humano de natureza so-
cial vinculado à liberdade, à individualização na socialização,
ao habitat e ao habitar. Trata-se, segundo ele, de um direito à
vida urbana, movida não pela industrialização, mas por neces-
sidades sociais com fundamentos antropológicos, rumo a uma
nova práxis e a um novo ser humano, “o homem da sociedade
urbana” (LEFEBVRE, 2011, p. 108).
Se o humano é o sentido primeiro e último da sociedade
urbana,

[...] então a questão sobre qual tipo de cidade queremos não


pode estar divorciada da questão sobre qual tipo de pessoas
desejamos ser, quais tipos de relações sociais buscamos, qual
relação nutrimos com a natureza, qual modo de vida deseja-
mos. [...] O direito à cidade está, por isso, além de um direito
ao acesso àquilo que já existe: é um direito de mudar a cidade
mais de acordo com o nosso desejo íntimo. A liberdade para
nos fazermos e nos refazermos, assim como nossas cidades,
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 21

é um dos mais preciosos, ainda que dos mais negligenciados,


dos nossos direitos humanos (HARVEY, 2009a, p. 09).

Por isso, o direito à cidade se situa no confronto geral con-


tra o capital. Lefebvre caracteriza que o fundamento antropo-
lógico que advém do processo revolucionário de superação do
capital clama por um ser humano rico. Contudo, nesse contex-
to, a riqueza não diz respeito à propriedade privada: “O homem
da sociedade urbana já é um homem rico em necessidades: o
homem de necessidades ricas que aguardam a objetivação, a
realização” (LEFEBVRE, 2011, p. 124-125).
A base marxiana é claramente perceptível. O ser huma-
no rico é criado pela e criador da ruptura da sociabilidade
burguesa. Em contraposição à unilateralidade restrita do de-
senvolvimento sob o capitalismo, ele experimenta a eman-
cipação completa das qualidades e dos sentidos humanos;
emancipação de todos os seres humanos, emancipação do ser
humano por inteiro.
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (2004)4 contrasta
o ser humano fraturado pela divisão social do trabalho com o
ser humano total. Sob o pressuposto do socialismo, Marx (2004,
p. 139) fala da “riqueza (Reichheit) das carências humanas” e,
portanto, de um novo modo de produção e de um novo objeto da
produção. Assim, ele entrevê o enriquecimento da essência hu-
mana sob outra lógica que não o acumular, o ter. Nesse con-
texto, riqueza e pobreza alcançam uma significação que tem o
ser humano como seu fim. Por isso, Marx afirma: “O homem
rico é simultaneamente o homem carente de uma totalidade da
manifestação humana da vida. [...] que deixa sentir ao homem
a maior riqueza, o outro homem como necessidade (Bedürfnis)”
(MARX, 2004, p. 112-113). Ainda de acordo com Marx (2004, p.

4
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
22

161), o ser humano rico é educado para usufruir a arte, apreciar


a beleza, agir de modo estimulante e encorajador sobre os ou-
tros, trocar amor por amor.
Criada e criadora desse novo ser humano, a sociedade ur-
bana em um horizonte socialista também assume uma dimen-
são omnilateral. A citação é longa, mas vale a pena acompanhar
a descrição de Lefebvre ao se referir às necessidades sociais que
servirão de motor para as transformações urbanas:

[...] opostas e complementares, compreendem a necessidade


de segurança e a de abertura, a necessidade de certeza e a ne-
cessidade de aventura, a da organização do trabalho e a do
jogo, as necessidades de previsibilidade e a do imprevisto, de
unidade e de diferença, de isolamento e de encontro, de trocas
e de investimentos, de independência (e mesmo de solidão) e
de comunicação, de imediaticidade e de perspectiva a longo
prazo. O ser humano tem também a necessidade de acumu-
lar energias e a necessidade de gastá-las, e mesmo de desper-
diça-las no jogo. Tem necessidade de ver, de ouvir, de tocar,
de degustar, e a necessidade de reunir essas percepções num
“mundo”. A essas necessidades antropológicas socialmente
elaboradas (isto é, ora separadas, ora reunidas, aqui comprimi-
das e ali hipertrofiadas) acrescentam-se necessidades especí-
ficas [...]. Trata-se da necessidade de uma atividade criadora (e
não apenas de produtos e bens materiais consumíveis), neces-
sidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de ativi-
dades lúdicas. [...] que superam mais ou menos a divisão par-
celar dos trabalhos. Enfim, a necessidade da cidade e da vida
urbana só se exprime livremente nas perspectivas que tentam
aqui se isolar e abrir horizontes (LEFEBVRE, 2011, p. 105).

Deixemo-nos contagiar por esse horizonte político e teórico!

Sandra Soares Della Fonte


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 23
24
Considerações iniciais: proposta de
constituição do grupo de estudos e pesqui-
sas sobre educação na cidade e humanida-
des (Gepech)

Os estudos sobre a cidade apresentam-se como temáti-


ca importante no campo da educação, pois contribuem para a
compreensão dos aspectos históricos, políticos, sociais, cultu-
rais, filosóficos e econômicos referentes ao desenvolvimento
urbano. A partir de consulta realizada em janeiro de 2016 ao
Diretório de Grupos de Pesquisas cadastrados e certificados
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq), constatamos que poucos são os grupos que
abarcam discussões sobre Cidade e Educação. Dos 312 registros
encontrados a partir do descritor “cidade”, apenas seis grupos
de pesquisa estão concentrados na área da Educação.
A possibilidade de contribuir com esse nicho de pesquisa
favoreceu a constituição de um grupo de estudos que integrasse
alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em Ensi-
no de Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)
para a discussão da cidade como espaço potencial para ações
26

educativas. Desse modo, o Grupo de Estudos sobre Educação


na Cidade e Humanidades (Gepech) iniciou suas atividades em
março de 2016, compondo uma das linhas do Grupo de Pesquisa
“Artes Visuais, Literatura, Ciências e Matemática: diálogos pos-
síveis” cadastrado no CNPq.
Ao idealizarmos o Gepech, elencamos como os seus obje-
tivos: 1) discutir relações entre a cidade e a educação a partir
de   áreas do conhecimento ligadas às humanidades; 2) planejar,
executar e avaliar formações de professores da educação básica
que contribuam com reflexões sobre os espaços da cidade; bem
como 3) sistematizar materiais educativos que discutam e apre-
sentem propostas relacionadas com a cidade.
As reuniões do grupo iniciaram juntamente com o recém
implementado Mestrado Profissional em Ensino de Humanida-
des e ocorreram semanalmente com duas horas de duração cada
encontro. Para a organização das atividades do Gepech, optamos
por um referencial de abordagem crítica e dialógica, conforme
proposições de Bakhtin (2003)5. Essa perspectiva valoriza a in-
teração discursiva, em suas diferentes formas e manifestações,
na promoção do conhecimento e na constituição dos sujeitos.
A partir desse alinhamento teórico, as reuniões semanais
do grupo se configuraram como eventos que promoveram en-
contros repletos de enunciados sobre/com a cidade. Encontros
eEsses que encontros potencializaram diálogos entre os par-
ticipantes e desstes com textos de referência sobre a cidade,
com outros pesquisadores que elegem o tema cidade como foco
principal de estudos, assim como com exposições culturais que
apresentam a cidade por meio de roteiros discursivos diversos.
Nessa dinâmica, várias vozes foram contempladas na configu-
ração de novos textos e, por consequência, promoveram a ela-

5
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 27

boração de outras compreensões pelos participantes, a respeito


do conceito cidade e, mais especificamente, sobre a cidade de
Vitória, no Espírito Santo.
O grupo estabeleceu diálogo com textos teóricos de autores
como Lefebvre (1991, 1999)6; Canevacci (2004)7; Harvey (2014)8;
Silva (1979)9, Klug (2009)10 e outros. Essa sequência de autores
não foi definida a priori, mas sintetiza uma construção coletiva,
pois foi acessada e integrada ao cronograma de estudos a partir
de diálogos entre os participantes e com as primeiras referên-
cias que abordavam a noção de educação e cidade. Assim, na
medida em que desenvolviam os primeiros estudos, professores
e alunos tomavam ciência de outras fontes consideradas rele-
vantes para a exploração da temática privilegiada pelo grupo.
Tal dinâmica de interação com os textos e a consequen-
te produção e reelaboração do cronograma indicam relações
com a noção de inacabamento da palavra, pois, conforme
Bakhtin (2005, p. 195)11, as palavras do outro comportam um
limiar e, ao serem “[...] introduzidas em nossa fala, são reves-
tidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e
da nossa avaliação”. Desse modo, a leitura dos textos numa
perspectiva dialógica pressupõe que um texto abre possibili-
dades para outros textos, alimentando o fluxo da comunica-
ção verbal (BAKHTIN, 2004)12 sobre a cidade. Assim, as leituras
das obras iniciais apontavam para novas fontes e, por meio
de atitudes ativas e responsivas (BAKHTIN, 2004), os partici-
pantes contribuíram com a construção do roteiro de estudos e
exploração do conteúdo.
Essa dinâmica participativa e colaborativa presente na
construção do cronograma das ações do Gepech foi ampliada
nos momentos de estudos e discussões coletivas. Ampliadas
porque os integrantes do grupo assumiam atitudes de prota-
gonismo quando realizavam as leituras das obras e sistema-
28

tizavam roteiros de discussões para exploração de conceitos


considerados importantes para a produção das propostas de
pesquisas e elaboração de materiais educativos, desenvolvidos
pelo Gepech, numa perspectiva crítica. Assim, esses encontros
favoreceram a compreensão de conceitos-chave, como o de ci-
dade educativa, amplamente divulgado pelos documentos for-
mulados pela Unesco, porém com muitas questões que guar-
dam potencial de problematizações, conforme discutido por
Silva (1979) e Chisté e Sgarbi (2015)13. Essas problematizações
puderam ser pensadas de modo mais aprofundado com estudos
de outros autores como Lefebvre (1991, 1999), de base marxia-
na, que apresenta fundamentos importantes para compreender
os problemas da cidade e seu processo de urbanização. Nessa
linha de proposições e também a partir do materialismo his-
tórico-dialético, Harvey (2014) foi outro autor que contribuiu
para que os participantes do Gepech entendessem questões so-
bre o direito à cidade como direito humano. A partir de estu-
dos oriundos da geografia urbana e de cunho marxiano, Harvey
(2014) evidencia que esse direito é prejudicado devido a rela-
ções capitalistas orientarem a vida na cidade em uma perspec-

6
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
7
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da
comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004.
8
HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
9
SILVA, Jefferson Idelfonso da. Cidade Educativa: um modelo de renovação
da educação. São Paulo: Cortêz & Moraes, 1979.
10
KLUG, Letícia Beccalli. Vitória: sítio físico e paisagem. Vitória: Edufes, 2009.
11
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2005.
12
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
13
CHISTÉ, Priscila de Souza; SGARBI, Antonio Donizetti. Cidade educativa: re-
flexões sobre educação, cidadania, escola e formação humana. Revista Deba-
tes em Educação Científica e Tecnológica, Vitória, v. 6, n. 1, out. 2015.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 29

tiva de predomínio do direito individual à propriedade em de-


trimento ao direito coletivo. Essa noção de direito à cidade pode
ser pensada a partir de uma chave de leitura apresentada na
obra Cidade polifônica, de Canevacci (2004). Este autor indica que
fazer a leitura da cidade implica atentar para aspectos de natu-
reza polifônica, ler os diferentes elementos que a integram, es-
tabelecendo interconexões. Mostra, a partir de pressupostos de
Bakhtin, que é importante conhecer as formas arquitetônicas
da cidade, suas relações com a organização de poder, bem como
a comunicação com os demais elementos do entorno.
As proposições conceituais desenvolvidas por esses auto-
res nos levaram a refinar nosso olhar sobre a cidade de Vitória,
capital do Espírito Santo, foco de nossas pesquisas. Nessa dire-
ção, Klug (2009) nos apresenta análises do processo de desen-
volvimento e ocupação da cidade de Vitória, fato que estimu-
lou nos participantes do Gepech um novo olhar sobre o espaço
urbano, com atenção aos patrimônios naturais e históricos que
ainda resistem ao processo de especulação imobiliária ocorrido
no centro histórico da capital.
Além da dinâmica de estudos sobre a cidade a partir de
fontes bibliográficas, o Gepech também promoveu interlocu-
ção com pesquisadores por meio de palestras e entrevistas. Em
relação às palestras, tivemos oportunidade de contar com as
presenças dos doutores Érika Sabino de Macêdo, Eliana Kuster
e Gilton Luis Ferreira. Com a professora Macêdo, notamos a im-
portância de ler a cidade e suas problematizações a partir do
grafitti. Para a pesquisadora, trata-se de manifestação artísti-
ca e crítica que apresenta reflexões e problematizações sobre
temas diversos presentes na vida urbana, dentre eles a polui-
ção do ar da cidade de Vitória/ES. As considerações de Macê-
do contribuem para construir outras formas de ver, interagir e
compreender marcas e discursos inscritos na cidade que podem
30

evidenciar conflitos e contradições.


Seguindo essa tendência, a professora Kuster apresenta o
potencial de leitura da cidade a partir de elementos da arquite-
tura. Explora conhecimentos da arquitetura da cidade, em suas
formas antigas e modernas, estabelecendo diálogos diversos com
obras de arte, com fatos da história, com a literatura e com estra-
tégias de ocupação dos espaços físicos dentre outros elementos.
Com o terceiro palestrante, professor Ferreira, tivemos
a oportunidade de conhecer maiores detalhes do processo de
modernização do estado do Espírito Santo a partir de aspec-
tos históricos, políticos, econômicos e sociais. Nessa direção,
Ferreira explica que as ações inerentes à modernização do Es-
pírito Santo se revestiu de um processo de atualização, trans-
formando o que era velho, ou simplesmente descartando-o.
As ponderações dos palestrantes mostraram conexões com
questões comentadas por pesquisadoras da Universidade de
São Paulo (USP) e pelo coordenador do Instituto Paulo Freire,
entrevistados pelas coordenadoras do Gepech. Essas entrevistas
foram realizadas em 2016, registradas por meio de videograva-
ção e exibidas durante os encontros de estudos com o objetivo
de adensar compreensões sobre aspectos inerentes aos estudos
da cidade. As conversas com as professoras Fraya Frehse, da Fa-
culdade de Sociologia (USP), e Joana Mello e Ana Castro, da Fa-
culdade de Arquitetura e Urbanismo (USP), ressaltaram o valor
de aspectos históricos e sociais para entender as mudanças que
ocorreram na cidade de São Paulo e suas implicações para a vida
coletiva. Articulado a esse investimento de estudos e pesquisas,
as professoras apostam na formação de professores numa abor-
dagem de interação com a cidade por meio de roteiros espe-
cíficos. Essas entrevistas ofereceram contribuições ao Gepech
especialmente por indicar a potência de processos formativos
de docentes para contemplar a educação na cidade como estra-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 31

tégia de acesso aos conhecimentos elaborados.


A entrevista com Paulo Roberto Padilha (Instituto Paulo
Freire) foi fundamental para compreender a inserção de Paulo
Freire nas discussões relacionadas com a educação na cidade. O
pesquisador nos apresenta na ocasião a proposta da Rede Muni-
cípio que Educa como modo de renovar proposições implemen-
tadas pela Unesco conhecidas como Cidade Educativa.
Além das entrevistas, o Gepech ainda realizou visitas a
exposições que exploravam temas com e sobre a cidade. Com
a cidade porque as exposições foram organizadas em espaços
históricos, como o Espaço Cultural Palácio Anchieta e o Museu
Vale. Adentrar nesses espaços possibilitou experiências dos
membros do Gepech aproximando-os de conhecimentos histó-
ricos, políticos, econômicos, sociais, materializados na estrutu-
ra física das construções visitadas.
A sistematização e as repercussões das várias ações
(estudos bibliográficos, palestras, entrevistas e visitas a expo-
sições) que integraram a metodologia de estudos do Gepech,
nos permitem visualizar um caminho percorrido que contri-
buiu para aprendizagens e para reelaborações de conceitos. En-
tendemos esse percurso como primeiras ações de estudos que
precisam ser intensificadas e aprofundadas, especialmente com
atividades de pesquisas. Como modo de contribuir e compar-
tilhar os conhecimentos sistematizados por esse processo de
estudos, o grupo ofertou em maio de 2017 curso de formação
de professores para a divulgação de materiais educativos que
contemplam vários aspectos da cidade de Vitória em meio aos
acontecimentos econômicos, políticos, ecológicos e sociais que
colaboraram com a sua transformação.
Finalizamos este texto ressaltando a importância das ações
realizadas como direcionadoras de novos estudos coletivos,
bem como a produção de pesquisas a partir dos temas de inves-
32

tigação desenvolvidos pelos participantes do grupo em diálogo


com o campo educacional. Deixamos nosso agradecimento a to-
dos que colaboram com os estudos empreendidos e esperamos
que este livro, fruto do primeiro ano de estudos, possa contri-
buir para o debate sobre a educação na cidade, ampliando con-
ceitos, reflexões e diálogos.

Dilza Côco
Nelson Martinelli Filho
Priscila de Souza Chisté
Sandra Soares Della Fonte
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 33

Capítulo I
Educação na cidade:
conceitos e reflexões
34
Reflexões sobre cidade educativa,
cidade educadora, município que
educa e educação na cidade
Simone Oliveira Thompson de Vasconcelos
Priscila de Souza Chisté

A aldeia de Hollywood foi planejada de acordo com a noção


Que as pessoas desse lugar fazem do Paraíso. Nesse lugar
Elas chegaram à conclusão de que Deus,
Necessitando de um Paraíso e de um Inferno, não precisou
Planejar dois estabelecimentos, mas
Apenas um: o Paraíso. Que esse,
Para os pobres e infortunados, funciona
Como inferno.
(Bertold Brecht, 1942)

A cidade14 é objeto de várias abordagens de estudo. Segun-


do Maricato (2015), ela pode ser lida de modos especiais: como
um discurso, pelo viés da estética, como manifestação de prá-
ticas culturais e artísticas, como legado histórico, como palco

O dicionário de filosofia de Japiassú e Marcondes (2008) apresenta o verbete


14

“cidade”, oriundo do latim civitas e do grego polis, como coletividade políti-


ca organizada, possuindo um mínimo de autonomia e mantida por leis.
36

para conflitos sociais, como espaço de reprodução do capital,


entre outros possíveis focos interpretativos. Diante desses vá-
rios campos de pesquisa, neste capítulo buscaremos apresentar
discussão que relaciona a cidade ao campo da educação15, em
especial por discutirmos termos e conceitos que se referem à
“cidade educativa”, “cidade educadora”, “município que edu-
ca” e “educação na cidade” a fim de compor debate que visa
desvelar os motivos que movimentaram a criação de tais ter-
mos e vislumbrar possíveis alternativas conceituais que am-
pliem as discussões sobre cidade e potencializem suas relações
com a educação.
Como modo de alcançar o objetivo traçado, analisaremos
o termo “cidade educativa” proposto pelo relatório Aprender
a Ser, elaborado por uma Comissão da Unesco/ONU, liderada
por Edgar Faure em 1972 e publicado em 1973, com o objeti-
vo de estudar o caminho de soluções globais para as grandes
questões colocadas pelo desenvolvimento da educação em um
mundo de transformações. Em contraponto a esse documento
apresentaremos reflexões de Jefferson Ildefonso Silva, no livro
Cidade educativa: um modelo de renovação da educação.
A seguir, examinaremos o termo “cidade educadora” pro-
posto pela Associação Internacional de Cidades Educadoras
(AICE). Discorreremos sobre algumas publicações da Associa-
ção Internacional de Cidades Educadoras (AICE), dentre elas,
a Carta das Cidades Educadoras, o livro Cidade Educadora: prin-
cípios e experiências, organizado por Moacir Gadotti e outros
autores, bem como a pesquisa Cidade educadora e juventudes: as
políticas públicas e a participação dos jovens de Gravataí – RS, de
Ingrid Wink.

Entendemos “educação”, de modo amplo, como mediação capaz de contri-


15

buir com a formação integral dos seres humanos por meio da apropriação
dos conhecimentos sistematizados pela humanidade.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 37

Investigamos a expressão “município que educa” proposta


em 2009, no Fórum Mundial de Educação (FME), pela Rede Mu-
nicípio que Educa, lançada na ocasião do evento e, finalizamos
o capítulo elucidando o que compreendemos como “educação
na cidade”.
Diante do exposto buscaremos, nas próximas seções, apre-
sentar tais termos com vistas a elencar suas origens e contra-
dições.

Cidade Educativa e as implicações do


Relatório “Aprender a Ser”

Como visto anteriormente, o termo “cidade educativa”


surgiu no Brasil após ser apresentado pelo relatório Aprender a
Ser, publicado em 1973. Esse relatório foi elaborado por uma Co-
missão Internacional da Unesco/ONU liderada por Edgar Faure,
ex-ministro da Educação da França, com representantes dos Es-
tados Unidos da América - EUA, União Soviética - URSS, Chile,
Síria e Congo. Para Faure et al. (1973), o relatório surge como
modelo para “ajudar” os países pobres a enfrentarem o proble-
ma educacional a partir de um intercâmbio livre e sistemático.
Reforçando a condição inferior de alguns países, justifica a ne-
cessidade dessa cooperação internacional para a implantação
da “cidade educativa”. O relatório é dividido em três partes:
Resultados, Futuro e Havia uma Cidade Educativa. Na primeira
parte, o relatório faz uma retrospectiva histórica, reforçando a
condição dos países “menos desenvolvidos” de copiar as inicia-
tivas educacionais de outros países. Essa primeira parte aponta
as heranças do passado, alguns pontos de progressos e fracassos
alcançados ao longo da história e a educação como produto e
fator da sociedade (solução de todos os problemas). Na segunda
38

parte, reforça o tempo de questionamentos (1972), os eixos do


futuro e as transcendências, dentre elas o humanismo cientí-
fico, conceito difundido que retrata a importância do conhe-
cimento científico para o homem moderno, agora centro das
ações. A terceira parte apresenta a cidade educativa como lugar
e função das estratégias educativas, pois a ideia apresentada no
relatório é a de superação de uma concepção escolar sistemáti-
ca. Essa parte retrata ainda a cidade como caminho para a so-
lidariedade na medida em que ela reforce as relações humanas
existentes, por meio de uma compenetração íntima da educa-
ção nas concepções sociais, políticas e econômicas, bem como
nas redes culturais.
Para Faure et al. (1973), quando a economia cresce, o nível
educacional das pessoas tende a melhorar impulsionado pela
qualificação solicitada pelo mercado. Os autores consideram im-
portante uma abordagem educacional humanística e científica
e apontam que, com a era científica-tecnológica, a mobilidade
dos conhecimentos e a renovação das inovações devem consa-
grar um menor esforço ao conhecimento adquirido e reforçar a
aprendizagem pelo método de aquisição do conhecimento cha-
mado de “aprender a aprender”16. Ao explicarem o termo “ci-
dade educativa” informam que a estrutura educacional está em
colapso e consideram que outras instituições educacionais para
além da escola também podem contribuir com a superação da
crise instaurada. Elencam o indivíduo como sujeito da sua edu-
cação e colocam fé utópica na sociedade, propondo uma relação
íntima entre educação e o tecido social, político e econômico.
Diante dessas informações, precisamos realizar uma breve
retrospectiva histórica para compreender o momento de escri-
16
Nos afastamos dessa ideia pois consideramos que as pedagogias do apren-
der a aprender negam a importância da transmissão do conhecimento e
despotencializam o papel do professor enquanto mediador (DUARTE, 2001).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 39

ta deste relatório. Após a segunda guerra mundial os países eu-


ropeus entraram em recessão e algumas alianças foram forma-
das polarizando a Europa em capitalista e socialista. Houve uma
ascensão da economia dos Estados Unidos da América (EUA) e a
consagração de duas potências mundiais, os EUA e a União So-
viética, dando início à Guerra Fria. O investimento na indústria
armamentista fez surgir uma era científica e tecnológica. O mo-
mento de consolidação da hegemonia capitalista acontece no
período anterior à publicação do relatório, mesmo com a crise
econômica dos EUA provocada pela Guerra do Vietnã. Os EUA
precisavam se reerguer e para isso apropriaram-se do discur-
so do desenvolvimento científico e tecnológico para “vender”
seus conhecimentos, tecnologias e ideologias. Dessa forma, o
discurso passa a ser voltado para atender ao capital.
Segundo Lefebvre (1999), o modo de produção influencia o
tipo de cidade e de relações sociais que surgem. Para ele existe
um eixo espaço-tempo em que a cidade se transforma ao longo
do tempo até chegar numa zona crítica, na qual todas as ques-
tões relacionadas à natureza que foram deixadas de lado em
prol do progresso e da urbanização serão cobradas. Assim, todo
cuidado passa a ser pouco quando a educação é pensada para
atender determinado tipo de sociedade. A economia hegemôni-
ca do mercado atual educa quem, como, para quem e para quê?
Silva (1979) contrapõe-se às ideias apresentadas no rela-
tório Aprender a Ser, proposto pela Unesco/ONU, debatendo
sobre educação e sobre as concepções de homem no mundo.
O livro está dividido em três capítulos: o primeiro, O Relatório
Apprendre à être; o segundo, A Cidade Educativa; e, o terceiro, O
Humanismo Científico. No primeiro capítulo Silva (1979) refor-
ça o caráter ideológico do relatório e fala dos principais temas
abordados, problematizando-os. No segundo capítulo, explica a
concepção da cidade educativa como um sistema educacional
40

com uma estruturação tecnoburocrata e inspirada na educação


permanente, aquela que considera a educação como um pro-
cesso contínuo que se estende por toda a vida do indivíduo. No
terceiro capítulo aponta que o humanismo científico descrito
no relatório serviu para sintetizar os aspectos antropológicos
orientadores da proposta de “cidade educativa”. No entanto,
alerta para as posições antagônicas existentes entre o huma-
nismo e a necessidade do progresso científico e tecnológico
descrito. Segundo Silva (1979), o relatório evidencia que na
atualidade aparecem novos sintomas de uma outra revolução
para além da industrial.

É a revolução científica e técnica que, ao contrário da revolução


industrial, não se baseia na máquina como multiplicadora ou
substituta da força humana física, e nem no homem visto como
mão-de-obra produtora. A nova máquina interfere no campo
de força humana mental podendo multiplicá-la e até mesmo
substituí-la. O trabalho humano é atingido em seu significado:
o homem é envolvido no processo de produção, não mais como
mão-de-obra, mas como portador da ciência e do conhecimen-
to social acumulado; é impelido para a margem da produção
imediata; sua presença é muito mais de criador, de cientista,
que de operário no sentido industrial (SILVA, 1979, p. 92).

Para Silva (1979), no relatório, o projeto referencial do mundo e


do homem é o modelo tecnocrático, mesmo que “disfarçado”. O au-
tor ainda considera que falta a esse documento apresentar um cami-
nho com alternativas fora do mito tecnocrático. Em sua crítica, Silva
(1979) relaciona o conceito de cidade educativa ao humanismo, des-
construindo a proposição científica e tecnológica que é reforçada no
próprio relatório e que impregna o mundo de hoje. Essa ambiguida-
de humanismo versus progresso científico e tecnológico demonstra
a inconsistência do relatório, que tenta agradar ao positivismo com
o reforço científico tecnológico e ao mesmo tempo ao humanismo,
que prega o oposto do positivismo. Segundo Silva (1979, p. 117):
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 41

Com relação à proposta concreta da Cidade educativa,


continua o mesmo panorama de ambiguidade. Vê a ne-
cessidade de ultrapassar a dimensão sistêmica da socie-
dade, mas não consegue libertar-se de suas estruturas e
instituições. [...] Não fica claro também como a Cidade edu-
cativa, ao valorizar as instituições sociais como agentes
educativos e ao promover os meios tecnológicos de comu-
nicação, poderá evitar o perigo de se transformar simples-
mente no instrumento universal da “cultura de massa”.

Com isso, Silva (1979) nos faz refletir sobre a seguinte ques-
tão: ou o relatório está simplificando o humanismo, ou acredi-
ta que a desconstrução da mentalidade industrial dará espaço
a uma educação científica e tecnológica utópica. A ênfase na
importância do desenvolvimento das capacidades do homem
com viés utilitário e tecnológico enfatiza o espírito que orienta
o relatório: o capitalismo liberal necessita de forças produti-
vas adaptadas às novas exigências da sociedade e, consequen-
temente, efetivar-se como único sistema econômico possível.
De modo contrário a essas posições, Silva (1979) orienta que
a “cidade educativa” deve ser a busca universal de um humanis-
mo novo, que abra caminhos para o homem, com sua vocação his-
tórica cheia de percalços, sempre ameaçada, mas não destruída.
Silva conclui suas análises sobre o relatório argumentando que,
longe dos pressupostos apresentados pela proposta de Faure e
seus colaboradores, a cidade educativa deveria ser fundamen-
talmente a comunidade humana que se educa, que vai marcan-
do seus caminhos entre perigos, “[...] lutando para se aproxi-
mar da ‘utopia’ de um homem sujeito e criador no centro de
seu mundo feito hoje de ciência e técnica” (SILVA, 1979, p. 119).
Em acordo com as críticas de Silva ao relatório Aprender a
ser, Gadotti (1992) assevera:

A ideia de uma Cidade Educativa, defendida pela Comissão In-


ternacional para o Desenvolvimento da Educação da UNESCO,
é esta miragem da Educação Permanente que, atualmente,
42

alimenta os sonhos dos países em via de desenvolvimento.


No Brasil, por exemplo, a ideia de uma comunidade na qual
a educação estaria “ao alcance de todos”, “durante a vida in-
teira”, “ministrada sob todas as formas possíveis” foi acolhi-
da imediatamente pelos responsáveis pela educação. Assim,
um país como o Brasil, que está longe de haver atendido o
mínimo necessário para a educação fundamental, longe de
haver esgotado seus recursos educativos, tenta “implantar”
um modelo de educação cujos resultados devem ser postos
em dúvida, dado que foram elaborados para as necessidades
dos países altamente desenvolvidos (GADOTTI, 1992, p. 62).

A partir dos excertos de Silva (1979) e Gadotti (1992) pode-


mos inferir que o relatório é ambíguo e contraditório porque não
vai à origem do problema da sociedade hodierna: a sociedade ca-
pitalista precisa ser transformada em uma sociedade justa, sem
desigualdade social e sem exploração do homem pelo homem.
Um dos modos de se preparar a travessia para efetivação dessa
utopia seria, como apontam estes autores, por meio da educa-
ção cidadã na cidade educativa. Concordamos com Freire (2007,
p. 24) quando aponta que “[...] o ser humano jamais para de edu-
car-se”. Contudo, cabe reforçar o alerta desse autor quando diz
que a política da cidade, assim como o Estado, são violentos. Eles

[...] interdita[m] ou limita[m] ou minimiza[m] o direito das


gentes, restringindo-lhes a cidadania ao negar educação para
todos. Daí também, o equívoco em que tombam grupos popula-
res, sobretudo no Terceiro Mundo quando, no uso de seu direito
mas, indo além dele, criando suas escolas, possibilitam às vezes
que o Estado deixe de cumprir seu dever de oferecer educação
de qualidade e em quantidade ao povo (FREIRE, 2007, p. 24).

Na concepção de Freire (2007) a escola é uma institui-


ção fundamental e junto com a cidade deve suprir a ne-
cessidade humana de se poder educar permanentemente.

A Cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 43

aprender, de ensinar, de conhecer, de criar, de sonhar, de


imaginar de que todos nós, mulheres e homens, impreg-
namos seus campos, suas montanhas, seus vales, seus rios,
impregnamos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas ca-
sas, seus edifícios, deixando em tudo o selo de certo tem-
po, o estilo, o gosto de certa época (FREIRE, 2007, p. 25).

Longe dos preceitos do relatório Aprender a ser e a partir


de ideais contra-hegemônicos assumimos que toda escola deve
ser pública, democrática, transformadora, promover a humani-
zação e estar sempre em busca da transformação social. Cremos
em uma formação integral e emancipatória, na qual os indiví-
duos politizados tomem as cidades nas mãos e instruam-se uns
aos outros, tanto na escola como nos espaços citadinos.

Cidade Educadora e suas relações


com os preceitos da AICE

O conceito de “cidade educadora” efetivou-se depois da


realização do I Congresso Internacional de Cidades Educadoras
(1990). Congresso, eEste Congresso, incentivado pela Unesco na
Convenção das Nações Unidas de 1989, que reuniu em uma carta
de intenções princípios essenciais ao desenvolvimento educa-
cional das cidades. A Carta das Cidades Educadoras baseia-se em
documentos internacionais como a Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948), o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Declaração Mundial da
Educação para Todos (1990), a Convenção nascida do Congresso
Mundial para a Infância (1990) e a Declaração Universal sobre
Diversidade Cultural (2001). A carta informa que a cidade possui
elementos para formação integral e, ao mesmo tempo, funcio-
na como um agente de educação permanente. Preconiza, ainda,
a colaboração entre a educação formal, informal e não-formal
44

para uma efetiva troca de experiências. Este documento define


vinte princípios a serem seguidos pelas cidades-membro, divi-
didos em três partes, a saber: o direito a uma cidade educadora,
o compromisso da cidade e serviço integral das pessoas.
Tais princípios propõem direito à igualdade; políticas pú-
blicas baseadas na justiça social, qualidade de vida e civismo
democrático; políticas educativas amplas, compreendendo as
diferentes modalidades de educação; canais abertos e perma-
nentes de comunicação com os cidadãos; ordenamento do es-
paço físico urbano com acessibilidade, promovendo encontro,
cultura, esportes, lazer; definição de estratégias de formação,
de modo que todos ajam com respeito mútuo; resolver desigual-
dades; apoiar associações; dentre outros.
A Carta das Cidades Educadoras define “cidade educadora”
como:
[...] cidade que se relaciona com o seu meio envolvente, outros
centros urbanos do seu território e cidades de outros países.
O seu objectivo permanente será o de aprender, trocar, parti-
lhar e, por consequência, enriquecer a vida dos seus habitantes
(AICE, 1990, p. 04).

Pensando na concepção de sua criação concluímos que da


mesma forma como são debatidas as medidas econômicas mun-
diais por meio de cartas de recomendações/intenções, que mui-
tas vezes não retratam a realidade, nem a história, nem a cultura
de seus países membros, beneficiando apenas uma minoria que
detém o poder econômico nas mãos, assim enxergamos o que se
quer fazer acreditar com essa carta de intenções. , A a concluir
pelos encontros anuais de troca de experiências, que fatalmente
são discussões puramente políticas, que dificilmente aproximam
as discussões da maioria dos habitantes das cidades e que não dis-
cutem a verdadeira causa da desigualdade e da pobreza mundial.
Ficam somente presos a paliativos que não irão, em momento
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 45

algum, contribuir com a transformação da sociedade capitalista.


Tal conceito – cidade educadora, embora considerado novo,
reúne um conjunto de propostas contraditórias apresentadas
anteriormente pela Unesco (no relatório Aprender a Ser – 1972),
principalmente quando fala de formação integral, educação per-
manente, diferentes modalidades de educação (informal, formal
e não-formal), com o agravante de que vivemos numa “pseudo”
urbanização generalizada, que hoje se reflete na busca de uma
educação científico-tecnológica de qualidade. Dentro do modelo
capitalista instalado, com a globalização em foco, maiores são
as contradições, diferenças e dificuldades observadas nas cida-
des, fato que gera uma tentativa de cooperação internacional
para trocas de experiências, sem que se perca o foco no modelo
econômico que impera. Tanto no caso anterior do conceito de
“cidade educativa” proposto pela Unesco, quanto na Carta das
Cidades Educadoras, de 1990, algumas ideias propostas seduzem.
No entanto, observamos que os discursos para a democra-
cia e para o desenvolvimento integral do indivíduo ficam apenas
no plano político, longe dos cidadãos e dos diálogos essenciais.
A exemplo disso, temos a cidade de Vitória, no estado do Espí-
rito Santo, que integra a Associação Internacional de Cidades
Educadoras (AICE), criada em 1994, constituída de uma estru-
tura de permanente colaboração entre os governos compro-
metidos com a Carta das Cidades Educadoras. Hoje a AICE conta
com 478 cidades membros de 36 países de todos os continentes.
A Prefeitura Municipal de Vitória ao integrar-se a esta asso-
ciação deve promover ações que visam cumprir os vinte prin-
cípios propostos pela Carta das Cidades Educadoras, dentre eles
a igualdade, o direito à cidade, a integração social, entre outros.
De acordo com Lefebvre (2001), os seres humanos possuem ne-
cessidades sociais de origem antropológica, dentre elas a segu-
rança e outras carências específicas que não foram e nem são
46

levadas em conta na urbanização ou na construção das cidades.


Além disso, nos diz que é preciso superar ideologias para alcan-
çarmos um humanismo novo, que aproxime o povo de sua histó-
ria a fim de refazer e reconstruir as cidades a partir de projetos
urbanísticos bem desenvolvidos e de programas políticos con-
tra-hegemônicos. Para isso, se faz necessária a transformação
intelectual, que pense na filosofia e na ciência (ou ciências) da
cidade. É preciso o envolvimento do povo e da força que ema-
na dele, demanda conhecimento da cidade, e também do meio
rural, para que se possam criar parâmetros comparativos e de
valores a serem implementados e alcançados coletivamente.
Diante de tal atitude, quantas pessoas que vivem na cidade
de Vitória conhecem ou exercem seus direitos, conhecem es-
ses compromissos assumidos, conhecem e utilizam os espaços
da cidade? Quantos cidadãos da cidade possuem conhecimento
para cobrar metas ou cumprimento de princípios e objetivos?
Ainda debatendo o termo “cidade educadora”, cabe apre-
sentar uma experiência de aproximação realizada pelo Instituto
Paulo Freire17 em parceria com a Associação Internacional das
Cidades Educadoras (AICE), no ano de 2004. Oriunda dessa rela-
ção foi sistematizada uma publicação, em português, intitulada
Cidade Educadora: princípios e experiências, que compila traba-
lhos extraídos dos Cuadernos Ciudades Educadoras América Latina
com a finalidade, também, de apresentar o projeto Escola Cida-
dã, proposto pela cidade de Porto Alegre – RS.
Tal projeto estabelece uma utopia pedagógica em que a es-
cola é dever do Estado, sob controle social, constituída por todos,
com um currículo intermulticultural, que contemple os movi-
mentos de educação popular, sendo este propulsor do processo
de transformação política, econômica e cultural da sociedade. O
projeto Escola Cidadã, surgiu no Brasil no início dos anos de 1990
e, de acordo com Gadotti et al. (2004):
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 47

Designa-se comumente por “Escola Cidadã” uma certa con-


cepção e uma certa prática da educação “para e pela cida-
dania”, que, sob diferentes denominações, são realizadas,
em diversas regiões do país, principalmente em municípios
onde o poder local foi assumido por partidos do chamado
campo democrático-popular (GADOTTI et al., 2004, p. 122).

Nesse livro, Gadotti e seus colaboradores aproximam-se


de algumas experiências ocorridas na América Latina a fim de
estimular o projeto “Escola Cidadã”. Relatam no último capí-
tulo diversas experiências observadas em alguns municípios
brasileiros com viés sócio-democrático. Não se deixam, entre-
tanto, alheios às críticas, esclarecendo na apresentação deste
desse capítulo a fonte dos textos que têm o intuito de fundar
uma rede de solidariedade, aceitando, inclusive, contribuições.
Analisando a aproximação entre grupos de ideias tão diferentes
nos surpreendemos. De um lado um novo nome dado, Cidade
Educadora, a uma antiga ideologia da Unesco, e, de outro, o que
sempre pregou Paulo Freire: a autonomia, o diálogo, a cidada-
nia, a dignidade, o envolvimento político. Entendemos tal apro-
ximação como uma tentativa de Gadotti e seus colaboradores de
extrair o melhor de cada ideologia a fim de atender um objetivo
comum, a emancipação crítica do citadino. E, mesmo sobre essa
égide libertária, é exatamente o oposto o que vemos no nosso
dia a dia consumido pela economia hegemônica capitalista. No
entanto, cabe salientar, como dito anteriormente, que as ideias
propostas pela Carta das Cidades Educadoras seduzem e, até, en-
contram pessoas capazes de criar um movimento novo com o
cumprimento de seus princípios, mas ele é contraditório porque
não supõe a transformação social, apresenta apenas paliativos.
Outro estudo que realizamos acerca do conceito de cidade
educadora deu-se a partir de Wink (2011). Para essa autora, tal
48

conceito está em constante transformação, pois algumas biblio-


grafias tendem a relacionar o conceito de cidades educadoras a
um modelo de bem bem-estar europeu (este oferecendo o mí-
nimo, como uma proposta liberal clássica) com a o qual ela não
concorda. Segundo a pesquisadora, é preciso pensar as cidades
educadoras como aquelas que fortalecem as diversas identida-
des. Explica o ingresso de uma cidade à Associação Internacional
das Cidades Educadoras (AICE), bem como a necessidade de com-
prometimento à Carta das Cidades Educadoras e sua relação com
a Unesco. De acordo com Wink (2011, p. 72):

A Cidade Educadora vê na educação a principal forma de


transformação da sociedade, sendo referência a educação
que vai além dos muros da escola. Trata-se da educação
que não se finda, que não tem idade, não tem necessaria-
mente espaço afixado e trabalha com o viés de que a troca
e a aprendizagem é processo contínuo na construção políti-
ca da autonomia do sujeito.

Além disso, a pesquisadora reforça o conceito de perten-


cimento e informa que a cidade educadora propõe repensar-
mos as relações sociais, ambientais e os planejamentos urbanos
diversos, informando que esta pode contribuir para minimizar
os efeitos avassaladores do capitalismo. A pesquisadora reali-
za algumas críticas ao projeto de cidades educadoras, pois ar-
gumenta que a AICE sugere uma interação educativa entre os
diferentes setores econômicos e sociais, mas isso raramente
acontece, pois os setores propõem ações isoladas, visando seu
bem -estar. Wink (2011), após suas análises, realiza crítica à ló-
gica capitalista por trás das intenções de modelos europeus de
cidade, propostos pela AICE.
Freire (1995, p. 16) ressalta que a escola não é o único es-
paço de veiculação do conhecimento, outros espaços podem
propiciar práticas pedagógicas que possibilitam interação de
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 49

experiências. Para o autor a associação entre diferentes espa-


ços educativos imprime o conceito de coletividade, que enten-
demos ser premissa para a construção de uma visão crítica de
mundo. Essa visão ou leitura de mundo que todo o ser humano
necessita cultivar pode ser ampliada nas cidades por meio do
diálogo, do respeito, da igualdade.
Nos diz Freire (1995, p. 63):

A palavra, a frase, o discurso articulado não se dão no ar. São


históricos e sociais. É possível, em culturas de memória pre-
ponderante ou exclusivamente oral, discutir, em projetos de
educação popular, a criticidade maior ou menor contida na
leitura do mundo que o grupo popular esteja fazendo num
dado momento, sem a leitura da palavra.

Ora, se as relações sociais e históricas nos imprimem uma


visão e leitura de mundo que nos tornam capazes de discutir e
propor ações, não é difícil conceber a ideia de que a cidade edu-
ca. Mas, nesse contexto, é preciso saber como e para que a ci-
dade educa. Quando pensamos na sociedade capitalista em que
vivemos, pensamos também na educação mercantilista, bancá-
ria, excludente que vemos, logo, também, na cidade que afasta,
desprotege, deseduca. De acordo com Harvey (2014):

A cidade tradicional foi morta pelo desenvolvimento capi-


talista descontrolado, vitimada pela sua interminável ne-
cessidade de dispor da acumulação desenfreada de capital
capaz de financiar a expansão interminável e desordenada
do crescimento urbano, sejam quais forem suas consequên-
cias sociais, ambientais ou políticas (HARVEY, 2014, p. 20).

Seguindo a lógica de Harvey (2014), nossas cidades cederam


ao capital e somente um movimento revolucionário consciente
e de interesse coletivo poderá transformar a sociedade e, con-
50

sequentemente, a cidade e seus processos de urbanização. Hoje


vivemos numa cidade hostil onde a própria disposição dos es-
paços privilegia o isolamento. Refletindo sobre a cidade, Lefeb-
vre (2001, p. 73) diz que: “A vida urbana compreende mediações
originais entre a cidade, o campo, a natureza”. Estas mediações
somente podem ser compreendidas por meio de “simbolismos e
representações (ideológicas e imaginárias)” que, hoje, são des-
contruídos pelo movimento complexo de urbanização.
No sentido de clarificar as diferenças entre a cidade edu-
cativa, na perspectiva de Freire, e a cidade educadora, Chisté e
Sgarbi (2015, p. 13) dizem:

Já que consideramos todo ato educacional como um ato polí-


tico, e que pontuamos que ele não é neutro, já que tomamos
uma posição nesta nossa reflexão sobre cidade, educação e
escola, faz-se necessário voltar a uma questão levantada na
introdução deste texto. Ou seja, a de que os esforços por “cida-
de educadora” visavam a ampliação e o reforço da sociedade
capitalista pela via de se delegar a sociedade civil a responsa-
bilidade de implementar e executar políticas sociais.

Corroborando suas ideias às nossas, ao assumirmos o con-


ceito de “cidade educadora” como correto, estamos nos ade-
quando à globalização do mercado e atribuindo nossa incapaci-
dade política, social, cultural e econômica diante daqueles que
impõem a economia de mercado, vendendo uma cultura e um
modelo de sociedade como se fossem únicos e os melhores do
planeta. Longe dessas discussões, precisamos reforçar o que foi
apontado para argumentar que a tarefa educativa da cidade im-
plica posição política: devemos compreender a fundo a política
dos gastos públicos, a política cultural e educacional, a política
de saúde, a dos transportes, a do lazer (FREIRE, 1995). Nas pala-
vras do pensador brasileiro:
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 51

No fundo, a tarefa educativa das Cidades se realiza tam-


bém através do tratamento de sua memória e sua memória
não apenas guarda, mas reproduz, estende, comunica-
-se às gerações que chegam. Seus museus, seus centros
de cultura, de arte são a alma viva do ímpeto criador, dos
sinais de aventura do espirito. Falam de épocas diferen-
tes, de apogeu, de decadência, de crises, da força condi-
cionante das condições materiais (FREIRE, 1995, p. 26).

Nesse sentido, compreendemos que educar na cidade pres-


supõe o desvelamento de seus espaços, muitas vezes configura-
dos para reproduzir a sociedade desigual em que vivemos. Essas
contradições precisam ser reveladas por meio de uma educação
que empodere os sujeitos e os impulsionem a coletivamente
criar meios de transformar as condições de exploração em que
estão hodiernamente submetidos.

Município que Educa: contribuições


do setor privado para o campo da
educação pública

O conceito “município que educa” surgiu com o Programa


Município que Educa, lançado em 30 de janeiro de 2009 e coor-
denado por Paulo Roberto Padilha, no contexto do Fórum Mun-
dial da Educação e do Fórum Social Mundial, em uma iniciativa
do Instituto Paulo Freire de lançar uma reflexão sobre a cidade
com abordagem democrática e participativa. Segundo Padilha
(2010, p. 12), tal programa possui como objetivo geral:
[...] contribuir para o desenvolvimento das municipalida-
des, com base na identificação, fortalecimento e mobilização do
potencial educativo dos seus espaços e tempos, das ações dos
sujeitos que ali vivem ou atuam e das iniciativas articuladas en-
tre Estado e sociedade civil.
52


Padilha (2010) afirma que o conceito “município que
educa” surgiu da experiência de anos, desde os primeiros de-
bates sobre educação popular em meados dos anos de 1960, de
iniciativas nacionais e internacionais, visando potencializar as
intencionalidades educativas e fortalecer processos de gestão
municipal participativa. Para isso utiliza o planejamento dialó-
gico com vários segmentos sociais, iniciado com a base da so-
ciedade. Além disso, prevê cinco estratégias básicas, sendo elas:
potencializar as relações humanas e sociais; influenciar ações
locais com projetos educativos; potencializar espaços educati-
vos e criativos; realizar cadastros e agendamentos para encon-
tros entre os representantes do município e o Instituto Paulo
Freire. Sobre essas estratégias Gadotti (2010) pontua:
Qualquer programa que tenta interconectar os espaços e equi-
pamentos do município é fundamental, pois desconhecemos a
nossa própria municipalidade e subestimamos as suas poten-
cialidades. Precisamos empoderar educacionalmente todos os
seus equipamentos culturais. A educação é cultura. O municí-
pio é o espaço da cultura e da educação. Existem muitas ener-
gias sociais transformadoras que ainda estão adormecidas por
falta de um olhar educativo sobre eles (GADOTTI, 2010, p. 21).

Podemos compreender que o programa Município que Edu-


ca propõe, a partir de atos educativos nos espaços-tempos da ci-
dade, uma educação integral e cidadã. No entanto, o que vemos ao
longo dos anos são muitas propostas com diferentes nomes e, às
vezes, mesmos ideais, que não são colocados em prática porque,
infelizmente, povo crítico e inteligente incomoda. Se o Estado
quisesse poderia empreender esforços para resolver o proble-
ma educacional do país, mas a educação não é a sua prioridade.
O programa Município que Educa instaurou parcerias. O
primeiro parceiro potencial da rede município que educa foi
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 53

a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undi-


me), instituição criada em agosto de 1985, quando um grupo de
dirigentes se reuniram em prol da educação municipal. Em 1986
o movimento já estava amadurecido e contava com cerca de mil
dirigentes municipais de educação. A associação com Instituto
Paulo Freire aconteceu em 2009. A partir das parcerias, inclu-
sive com diversas empresas privadas, a rede “município que
educa” alavancou, realizou palestras, formações de professores,
iniciativas individuais e coletivas, estudos e publicações.
A rede Município que Educa esteve em ascensão até meados
de 2013, quando aconteceu uma mudança na presidência da União
Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e as pa-
lestras com o objetivo de multiplicar a rede foram interrompidas.
Cabe salientar que o Programa Município que Educa espera
e propõe parcerias com os diversos segmentos da sociedade, le-
vando-nos a inferir que, especificamente, por isso se afasta dos
preceitos preconizados por Paulo Freire para uma cidade edu-
cativa, pois, quando reflete sobre a escola esse pensador refor-
ça a importância do Estado em cumprir seu dever de oferecer
educação de qualidade e em quantidade para o povo. Quando
Freire fala da cidade educativa e de sua necessidade de educar,
aprender, conhecer, sonhar, criar, imaginar e ensinar, reforça
em seu discurso a importância de educar politicamente a fim de
quebrarmos as amarras colocadas pela classe dominante e pela
economia hegemônica capitalista. Definitivamente, parcerias
privadas na educação não traduzem seus ideais. Transpor para a
iniciativa privada, em especial organizações não governamentais
(ONGs) e instituições ligadas a bancos, as obrigações do Estado
é inconcebível para Freire e para outros teóricos progressistas.
Apesar de visualizarmos aspectos hegemônicos na propos-
ta da rede Município que educa, vislumbramos pontos positivos
que ainda se referem ao legado freiriano, como o trabalho com
54

temas geradores, o foco nos sujeitos como atores do processo


de apropriação do conhecimento e a inserção dos educandos no
contexto da cidade, estimulando a atuação crítica e cidadã. No en-
tanto, consideramos que a proposta desta rede se aproxima, em
muitos aspectos, das ideias debatidas quando tratamos o concei-
to “cidade educadora”, pois visa o estabelecimento de parcerias
com empresas privadas e, talvez, de modo não intencional, con-
tribuem ao fim e ao cabo com a reprodução do sistema capitalista.

Educação na Cidade como proposta


contra-hegemônica de diálogo entre
a cidade e a escola

Para finalizar este texto, gostaríamos de retomar algumas


questões que se direcionam a elencar pressupostos acerca da
discussão empreendida. Diante da polissemia dos termos apre-
sentados, cidade educativa, cidade educadora e município que
educa, optamos pela utilização do termo “Educação na Cidade”,
pressupondo que Educação em seu sentido amplo depreende
processos de apropriação de conhecimentos diversos e pode ser
efetivada em variados locais. Assim, consideramos que é possí-
vel educar em diferentes espaços, sejam eles a escola, a rua, o
museu, os monumentos históricos, os prédios, as pinturas dos
muros, os parques ecológicos, as praças, as instituições bancá-
rias, os postos de saúde, os hospitais, os centros comunitários, o
comércio em geral, a igreja, etc. Basta para isso termos a inten-
ção e condições objetivas para fazê-lo. A expressão Educação na
Cidade é aquela que se aproxima mais efetivamente da propos-
ta do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação na Cidade
(Gepech); afinal, diante de uma cidade que educa, na maioria
das vezes, para a adaptação à lógica do mercado, precisamos
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 55

construir uma intervenção pedagógica que nos ajude a ler essa


cidade e apontar caminhos de sua transformação. Entendemos
que o que torna, em tese, os espaços efetivamente educativos é
o olhar que se tem sobre eles. Não existe olhar neutro do mun-
do que nos cerca. Todo processo pedagógico está repleto de as-
pectos ideológicos, políticos e culturais que se fazem presentes
no ato educativo e marcam a forma de agir e compreender o
mundo, ou seja, a tarefa educativa que pode ser implementada
na cidade é atravessada pelos posicionamentos políticos, pela
maneira que é exercido o poder na cidade, ou seja, a serviço de
quem e de que estamos agindo. Cabe ficar atento às seguintes
questões acerca da Educação na cidade:

• Qual potencial transformador tem a cidade?


• Que locais podem problematizar o que está posto?
• Que estratégias podem ser pensadas nesses espaços que
contribuam com a problematização da realidade?
• Como pode a cidade contribuir com o processo de huma-
nização dos sujeitos?
• Que lugares da cidade podem contribuir com o processo
de humanização?
• Como planejar a visita a esses espaços?
• O que fazer antes da visita?
• O que fazer durante a visita?
• Como dar continuidade às reflexões iniciadas na visita no
espaço escolar?

Sabemos da necessidade de assegurar que nossas ações pos-


sam contribuir com a emancipação e com a humanização dos
educandos, na perspectiva de construir uma sociedade menos
desigual. Portanto, cabe pensar em uma nova organização dos
espaços e dos tempos da escola e da cidade, na perspectiva da
56

instauração de práticas educadoras orientadas para o processo


de humanização que se distancie dos preceitos capitalistas de
mercantilização dos espaço citadinos. Consideramos necessário
sistematizar propostas contra-hegemônicas que visem revelar
as contradições presentes na cidade, para que os educandos am-
pliem suas consciências críticas e seus conhecimentos de mundo.
Desse modo, compreendemos que educar na cidade pres-
supõe o desvelamento de seus espaços, muitas vezes configu-
rados para reproduzir a sociedade desigual, marca registrada
da sociedade capitalista. Essas ambiguidades precisam ser re-
veladas por meio de uma educação que empodere os sujeitos e
os estimulem a, coletivamente, criar meios de transformar as
condições de exploração em que estão submetidos.
Assumimos que toda a escola deve ser pública, democrá-
tica, capaz de promover a humanização e a transformação so-
cial e de mediar conhecimentos integrais e emancipatórios,
tanto em seu espaço institucional quanto nos demais espaços
da cidade. Insistimos que a escola é um espaço privilegiado de
transmissão do conhecimento sistematizado, por isso é tão des-
potencializada pela elite dirigente que busca de modo inces-
sante enfraquecê-la tendo em vista o seu potencial coletivo de
conscientização. É o local que, sob um viés contra-hegemônico,
pode estimular a politização dos indivíduos impelindo-os à crí-
tica e à tomada do poder. Ensejamos que, a partir de propos-
tas oriundas e em consonância com a escola, todos os espaços
da cidade colaborem com o desmantelamento das estratégias
que enfraquecem o coletivo e reforçam a ideologia dominante.
Vigotski (2010), no último capítulo do livro Psicologia Peda-
gógica, publicado na Rússia em 1926, diz que o maior erro da es-
cola foi ter se fechado e se isolado da vida. Nas palavras do autor:

A educação é tão inadmissível fora da vida quanto a combus-


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 57

tão sem oxigênio, ou a respiração no vácuo. […] Na cidade do


futuro provavelmente não haverá um único prédio em que
apareça o letreiro “Escola”, porque escola, que no pleno senti-
do da palavra significa “lazer”, e destinou pessoas especiais e
um edifício especial para ocupações com “lazer”, estará toda
incorporada ao trabalho e à vida e se encontrará na fábrica, na
praça pública, no museu, no hospital e no cemitério. Em cada
sala de aula haverá janelas. Um professor de verdade irá olhar
de sua escrivaninha para o vasto mundo, para as inquietações
humanas, as alegrias e obrigações da vida, […] e na escola do fu-
turo essas janelas estarão abertas da forma mais escancarada,
o professor não só irá olhar, mas participará ativamente das
obrigações da vida. O que criava bolor e a estagnação da nossa
escola devia-se ao fato de que nelas, as janelas para o vasto
mundo, estavam hermeticamente fechadas, e fechada antes
de tudo na alma do próprio professor. […] Na nova escola papel
do professor irá crescer infinitamente, e exigirá que ele preste
um exame superior para a vida, e assim, poder transformar
a educação em uma criação da vida (VIGOTSKI, 2010, p. 457).

A educação é uma criação humana assim como a cidade. É


necessário, então, pensar sempre, em qualquer situação, utilizar
essas criações para favorecer o processo de formação das pes-
soas. Esse processo tem como finalidade radical a felicidade. Ja-
mais seremos felizes em uma sociedade baseada na exploração.
58

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Cidade e educação: breve ensaio sobre
a questão polissêmica e conceitual
Swami Cordeiro Bérgamo
Sandra Soares Della Fonte

Ao iniciar os estudos sobre educação na cidade e humani-


dades depara-se com uma série de termos conceituais que, após
percorrer um considerável caminho de leitura, concebe inci-
pientemente no horizonte uma compreensão sobre seus signifi-
cados e localização no campo epistemológico e político-ideoló-
gico. Certamente, o conhecimento sobre a definição conceitual
de cada termo e seu percurso de constituição histórica propicia
uma compreensão mais ampla e uma decisão mais segura sobre
a fundamentação teórica pretendida.
Ante tal inquietante questão, este estudo tem o desafio de
delinear alguns caminhos que ajudem à apropriação do uso das
categorias “CIDADE” e “EDUCAÇÃO”. Nesse cenário, dentre as
diversas linhas de abordagens na relação entre “cidade” e “edu-
cação”, chama a atenção a polissemia de nomenclaturas con-
ceituais, muitas vezes usadas como semelhantes ou sinônimas e
algumas outras como concepções distintas. Assim, nos depara-
62

mos, em destaque, com os termos “Cidade Educadora”, “Cida-


de Educativa”, “Cidade que Educa” e “Educação na Cidade”.

Quem nasceu primeiro: Cidade Educa-


dora ou Cidade Educativa?

Preliminarmente, evidencia-se em diversas publicações


que o termo “Cidade Educadora” surge como ponto de parti-
da para as demais concepções. Vários pesquisadores remetem
sua origem ao relatório da Unesco, publicado em 1972, no livro
intitulado Aprender a ser, sob a coordenação de Edgar Faure, ex-
-Ministro da Educação Nacional da França e então membro da
Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação
da Unesco (GADOTTI, 2010, p. 29).
Entretanto, sobre esse relatório, Jefferson Ildefonso da Sil-
va é mais específico e registra o termo “Cidade educativa”, re-
velando ainda uma diferença na data de publicação:

Este trabalho pretende ser um estudo sobre a proposta de


renovação da educação concretizada no modelo da “Cidade
educativa”, apresentado pela Comissão Internacional sobre o
Desenvolvimento da Educação, criada pela UNESCO em 1971,
cujos estudos foram enfeixados em um Relatório concluído em
maio de 1972 e publicado em fevereiro de 1973 sob o título de
Apprendre à être (SILVA, 1979, p. 13, grifo do autor).

Observa-se também que Moacir Gadotti e Paulo Roberto


Padilha registram em nota de rodapé o uso de “Cidade educa-
tiva” como expressão do relatório de Faure et al.:

Foi Edgar Faure em seu Relatório preparado para a


UNESCO no Ano Internacional da Educação (1970) e publicado
em 1972 com o título “Apprendere a Être” que aparece pela
primeira vez a expressão “cidade educativa” referindo-se
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 63

a um processo de “compenetração íntima” entre educação e


“vida cívica” (GADOTTI; PADILHA, 2004, p. 131, grifo nosso).

Contraditoriamente, em outra publicação posterior, é o


próprio Gadotti (2010) que traz a expressão “Cidade Educa-
dora”, referindo-se ao mesmo relatório de Faure et al.: “ba-
sicamente, a UNESCO apontava como a educação do futuro o
que chamava de educação permanente e introduzia a noção de
cidade educadora, chamando a atenção para os novos espaços
educacionais da cidade” (GADOTTI, 2010, p. 29, grifo do au-
tor). O uso de termos diferentes, pelo mesmo autor, para tra-
tar do mesmo documento, gera uma situação dúbia, induzin-
do o leitor a se confundir perante ao uso do termo conceitual.
Afinal, seriam os termos “cidade educadora” e “cidade edu-
cativa” sinônimos? Ou seria uma mera questão de tradução? A
terceira parte da obra “Aprender a ser”, por exemplo, em sua
versão em espanhol, intitula-se “hacia una ciudad educativa”
(FAURE et al., 1973, p. 12). Talvez, diante de tal ambiguidade,
as pesquisadoras Vânia Siciliano Aieta e Aparecida Luzia Al-
zira Zuin, referenciadas em Maria Belén Caballo Villar (2001),
tenham optado em registrar as duas denominações ao se refe-
rir ao supracitado relatório da Unesco: “cidade educativa ou
educadora para Faure” (AIETA; ZUIN, 2012, p. 206, grifo nosso).
Mesmo diante dessa imprecisão, constata-se que, a par-
tir de 1990, a expressão “cidade educadora” passa a se con-
solidar como designação de um movimento internacional de
cidades, institucionalizado oficialmente, em 1994, como As-
sociação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), com
sede em Barcelona, Espanha (AIETA, ZUIN, 2012, p. 194).
O evento inicial deste movimento ocorreu em 1990, foi o

Congresso Internacional de Cidades Educadoras, realiza-


do em Barcelona, quando um grupo de cidades represen-
tadas por seus governos locais, pactuou o objetivo comum
64

de trabalhar juntas em projetos e atividades para melhorar


a qualidade de vida os habitantes, a partir da sua partici-
pação ativa na utilização e evolução da própria cidade e de
acordo com a carta aprovada das Cidades Educadoras. Mais
tarde, em 1994, o movimento foi formalizado como o III
Congresso Internacional em Bolonha (SOROCABA, [2011?]).

Seria este movimento internacional de cidades herdeiro


do relatório coordenado por Faure? A resposta desta indaga-
ção é possível de ser extraída da obra de Jorge Manuel Salgado
Simões (2010), em sua dissertação de Mestrado em Cidades e
Culturas Urbanas, da Universidade de Coimbra, Portugal, que se
concentra, primeiramente, em desvelar “o que está na origem
dos movimentos associativos de cidades e as suas aproximações
às questões que decorrem do contexto de crescente urbaniza-
ção” (SIMÕES, 2010, p. 27). Segundo Simões (2010), tal docu-
mento da Unesco adquire um status orientador para a definição
de políticas educativas em harmonia com a conjuntura políti-
ca e de transformações que se verificavam naquele momento:
O relatório de Faure acaba por considerar também a crescente
relevância das cidades e da vida urbana como factor mobili-
zador para novas políticas de educação, referindo-se às pos-
sibilidades da cidade educativa [...] É este primeiro conceito
de cidade educativa que será recuperado mais tarde pelo
município de Barcelona, que se destaca por uma forte inter-
venção local em educação, através do Instituto Municipal de
Educação, com acções inovadoras neste campo desde a década
50 do século XX. Para além da competência central de gestão
dos estabelecimentos de ensino, note-se o historial de projec-
tos inovadores empreendidos em Barcelona, nomeadamente
através de actividades, serviços e ofertas pedagógicas na área
da educação não formal, de promoção da interacção entre a
população e os vários equipamentos culturais da cidade, como
as bibliotecas, os museus ou o próprio espaço público, como
praças e jardins (SIMÕES, 2010, p. 27-28, grifo nosso).

Simões (2010) identifica que o conceito de cidade edu-


cadora e a adoção intencional da expressão “cidade edu-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 65

cadora”, em substituição a de “cidade educativa” (de Faure


et al.), surge em Barcelona, com a organização e realização
do I Congresso Internacional das Cidades Educadoras (1990),
que juntou 63 cidades de 21 países e cerca de 600 participan-
tes. Os resultados dos trabalhos desse evento se materiali-
zam na Declaração de Barcelona, posteriormente chamada
de Carta das Cidades Educadoras (SIMÕES, 2010, p. 29). “Esta
Carta foi revista no III Congresso Internacional (Bolonha,
1994) e no de Génova (2004), a fim de adaptar as suas abor-
dagens aos novos desafios e necessidades sociais” (ASSO-
CIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIDADES EDUCADORAS, 2004).
As afirmações de Simões se fundamentam principalmente
nas declarações de Pilar Figueras, secretária geral da Associação
Internacional de Cidades Educadoras (AICE), em 2006. Figueras
diz em entrevista concedida à Simões (2010, p. 30) que tal alte-
ração de adjetivos

[…] não é apenas um pormenor […], revelando a vontade de


criação de um quadro conceptual abrangente de todas as po-
tencialidades educadoras da cidade, que congregasse todas as
abordagens, conteúdos, actividades ou programas educativos,
dispersos pela cidade.

Na observação-síntese de Simões (2010, p. 30, grifo nosso),

[...] qualquer cidade é educativa, por inerência das compe-


tências que tem de desempenhar em matéria de educação.
Mas para se considerar educadora, a cidade deve assumir
uma intencionalidade para lá dessas funções tradicionais e
regulamentadas, colocando-se ao serviço da promoção e do
desenvolvimento integral dos seus cidadãos.

Ao refletirem sobre a relação entre “escola cidadã” e “ci-


dade educadora”, Gadotti e Padilha indicam comungar também
deste raciocínio:
66

A cidade educadora é, sobretudo, uma aprendizagem de


planejamento urbano. Como a escola e os diferentes comple-
xos educacionais, formais ou informais, existentes nos bairros
ou nas vilas em que moramos, situam-se no contexto da cida-
de em que vivemos, a aprendizagem da elaboração do projeto
político-pedagógico (PPP) dessas instituições pode se trans-
formar num processo fundamental de exercício de cidadania,
pois contribui justamente para organizar a intencionalidade
educacional necessária para que a cidade, de educativa,
passe a ser, efetivamente, educadora (GADOTTI; PADILHA,
2004, p. 137, grifo nosso).

Em uma nota de rodapé, o pesquisador Thiago Luiz Alves


dos Santos (2013, p. 42, grifo nosso), em sua dissertação de mes-
trado, também confirma a evidência da intencionalidade edu-
cadora como o diferencial entre tais expressões:

Cidade Educadora e Cidade Educativa se diferenciam por


causa da intencionalidade, atualmente a literatura sobre o
tema diz que toda cidade por natureza é educativa e faz se
educadora na medida em que assume conscientemente uma
intencionalidade educadora.

Primeiros apontamentos

Como dito anteriormente, este breve estudo visa registrar


apontamentos iniciais sobre a questão polissêmica conceitual
das categorias “Cidade” e “Educação”, dentro dos limites pos-
tos para o momento, sem esgotamento ou ponto final. Assim,
considerando o que foi tratado até aqui, na tentativa de suplan-
tar os equívocos ou dúvidas quanto ao emprego dos termos em
questão, percebe-se que:
a) cronologicamente e conceitualmente o termo “cidade
educativa” (Relatório de Faure et al./Unesco) precede a expres-
são “cidade educadora” (I Congresso Internacional das Cidades
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 67

Educadoras/AICE); e,
b) há o elemento da intencionalidade do uso da expressão
e conceito de “cidade educadora”, como superação, em outro
patamar, à condição de “cidade educativa”.
Diante desse último elemento, algumas questões ainda sur-
gem e devem ser elucidadas.
Em que medida a intencionalidade da “cidade educadora”
se diferencia ou se aproxima, efetivamente, das formulações
da “cidade educativa”? Há algum outro movimento ou corren-
te de pensamento científico ou político-ideológico que evoca
ou faz uso da expressão “cidade educativa”? Neste caso, qual
é sua conexão à concepção original contida no relatório coor-
denado por Faure? Há outras formulações conceituais que não
se vinculam à “cidade educativa” ou à “cidade educadora”? Ou
seja, na procura de uma objetividade conceitual mais precisa
em contraposição à perpetuação da ambiguidade polissêmica,
tais questões demandam aprofundar os estudos sobre os con-
ceitos de “Cidade Educativa”, “Cidade Educadora”, “Cidade
que Educa” e “Educação na Cidade”.

Caminhando e aprendo com a cidade

Ao pretender prosseguir tal estudo, é importante estabele-


cer um recorte teórico no qual se torna possível identificar se
tais concepções propõem uma ruptura de fato com o modelo de
cidade vigente, incluso na lógica da sociedade capitalista, ou,
por outro lado, se limitam apenas a estabelecerem novas me-
diações que perpetuam ou aprofundam a raiz estrutural do ca-
pitalismo. Como principal referencial para este suporte, apon-
tam-se os autores Henri Lefebvre, Karl Marx, Friedrich Engels e
Antonio Gramsci.
68

Assim, demarcada tal baliza problematizadora, sugere-se


que, primeiramente, se forme um tópico sobre o termo Cidade
Educativa, iniciando-se com uma reflexão crítica qualitativa
sobre o conteúdo da obra Aprender a ser (FAURE et al., 1973),
considerando-se o contexto conjuntural de seu surgimento e
o efeito da concepção político-ideológico da Unesco nesta for-
mulação e aplicabilidade posterior. Esse relatório já foi objeto
de estudo de dois importantes pesquisadores da Educação (GA-
DOTTI; PADILHA, 2004): Moacir Gadotti, em sua tese de douto-
rado em Ciências da Educação, defendida na Universidade de
Genebra (Suíça) e publicada sob o título A educação contra a edu-
cação: o esquecimento da educação e a educação permanente (1979);
e, Jefferson Ildefonso da Silva, em sua dissertação de mestrado,
publicada com o título Cidade educativa: um modelo de renovação
da educação (1979). Certamente, inclui-se nessa exploração os
trabalhos de Paulo Freire (2007) e Priscila de Souza Chisté e An-
tonio Donizetti Sgarbi (2015).
Como segundo tópico, o estudo sobre a Cidade Educado-
ra pode iniciar-se a partir do movimento internacional das ci-
dades, tendo como fontes primárias a Carta das Cidades Edu-
cadoras e outros documentos decorrentes do I Congresso das
Cidades Educadoras ou gerados pela Associação Internacional
das Cidades Educadoras (AICE). As referências desta trajetória
constam ainda, minimamente, da produção de Maria Belén
Cabalho Villar (2001), Moacir Gadotti e Paulo Roberto Padilha
(2004), José Manuel Salgado Simões (2010), Vânia Siciliano Aie-
ta e Aparecida Luzia Alzira Zuin (2012). Aos que quiserem se
enveredar para uma leitura mais ampla e também de caráter
local, podem consultar a Base de dados bibliográfica, do Observa-
tório da Cidade Educadora – OCE (acesso em 02 maio 2017), que
é um centro de investigações e intervenções educativas, com
sede na cidade de Porto, Portugal. Também é possível acessar
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 69

um referencial bibliográfico específico, com vínculo à cidade de


São Paulo, disponível nas páginas da internet intituladas: a) Po-
tenciais Educativos do Território Urbano: rumo à Cidade Educadora;
b) Cidades Educadoras; e, c) Cidade Escola Aprendiz (acesso em 02
maio 2017). Por esses sites é possível ainda perceber a articu-
lação que é denominada de “parceria”, envolvendo os setores
público, privado (empresarial e financeiro) e organizações so-
ciais (associações, organização da sociedade civil de interesse
público, coletivos urbanos, etc.).
Sobre este último elemento, Chisté e Sgarbi (2015) nos
alertam sobre a concepção ideológica “que visa à ampliação
e ao reforço da sociedade capitalista, pela via de se delegar à
sociedade civil a responsabilidade de implementar e executar
políticas sociais”. De fato, o conceito de Cidade Educadora ao se
materializar, sendo em cidades afiliadas a AICE ou não, gera ou
se distribuem em múltiplos projetos e instituições, com deno-
minações diversas, podendo, inclusive, adquirir um caráter re-
produtivista da ideologia capitalista. Joaquim Machado (2004),
em seu estudo sobre a Cidade Educativa em Braga, Portugal,
ressalta outro aspecto complicador: observa uma ausência de
centralidade política mobilizadora em torno dessa concepção,
possibilitando-se a formação de um mosaico de ações autôno-
mas e desarticuladas:

Podemos, pois, assinalar na política autárquica a pre-


sença de muitos princípios que orientam as políticas do mo-
vimento das cidades educadoras, embora não encontremos a
mobilização da expressão cidade educadora como seu slogan
legitimador e mobilizador da acção comunitária. Se, porven-
tura, a administração autárquica se aproxima de um modelo
de “administração relacional” e o protagonismo da autarquia
no domínio da educação vem sendo cada vez maior, o ritmo e
desenvolvimento específico de Braga como cidade educadora
parece apontar mais para uma política de “mosaico” respeita-
dora e promotora da liberdade de iniciativa que numa política
70

concentradora e tutelar do município (MACHADO, 2004, p. 87)

Passando para o terceiro tópico, ao tratar da Cidade que


Educa, percebe-se que, embora possível de ser encontrado em
outros contextos, este termo designa também mais uma con-
cepção que congrega o movimento da Cidade Educadora. O ar-
tigo de Moacir Gadotti, com o título “A escola na cidade que
educa”, publicado no periódico do Centro de Estudos e Pesqui-
sas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), torna-
-se referência. Gadotti (2006) relaciona “escola cidadã” e “cida-
de educadora”, propondo superar a cidadania liberal burguesa
(conquista de 1789) e contribuir para a construção de uma ci-
dadania plena (política, social, econômica, civil e intercultural),
com uma democracia participativa e direta na gestão da cidade,
mas também no desenvolvimento de um currículo escolar que
represente essa visão de mundo. Conclui defendendo uma pe-
dagogia da cidade para ensinar a olhar a cidade e aprender com
e para ela (GADOTTI, 2006).
Da expressão Cidade que Educa, segue o termo Municí-
pio que Educa. Em 2009, Paulo Roberto Padilha publica o artigo
“Município que Educa: nova arquitetura da gestão pública”,
pela editora do Instituto Paulo Freire (PADILHA, 2009). Identi-
fica-se no texto a ânsia de expressar uma mudança radical a
partir das experiências vivenciadas, explicando assim a neces-
sidade da alteração da formulação conceitual para Município
que Educa, em um formato de rede e movimento, articulado em
torno de princípios da Educação Cidadã e da Educação Planetá-
ria. Apesar de não negar a influência da Cidade Educadora, esta
não é apresentada como principal, tendo outras heranças mais
significativas que procuram ampliar ou aprimorar tal experiên-
cia. Cita quatro obras de referência: a) Introdução ao Planeja-
mento Municipal, de Ladislau Dowbor (1987); b) Escola Cidadã:
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 71

uma aula sobre autonomia da escola (1992), de Moacir Gadotti;


c) Educação na cidade (1993), de Paulo Freire; e, d) Município e
Educação, organizado por Moacir Gadotti e José Eustáquio Ro-
mão (1993) (PADILHA, 2009).
Por fim, o quarto tópico: Educação na Cidade. Apesar
desta expressão corresponder ao título homônimo de um livro
escrito por Paulo Freire em 1991, neste não ocorre uma formu-
lação conceitual sobre o termo. Nesta obra, Freire “reflete a sua
experiência, e a de Mário Sérgio Cortella, à frente da gestão da
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo no período de
1989 a 1992” (PADILHA, 2009). Para construção conceitual da
expressão Educação na Cidade, recorre-se ao artigo de Prisci-
la de Souza Chisté e Antonio Donizetti Sgarbi (2015), intitulado
“Cidade Educativa: reflexões sobre educação, cidadania, es-
cola e formação humana”.
Para Chisté e Sgarbi (2015, p. 110), Educação na Cidade se
apresenta “como sendo aquela que promove a humanização, o
empoderamento e a construção da cidadania plena que visa à
transformação social”. Ao compor tal definição, os autores, op-
tam em seguir um caminho diverso ao da mercantilização da
educação, que é motivada pelos interesses corporativos empre-
sariais (maximização do lucro, novos mercados e propagação da
ideologia liberal), dentro da lógica da reprodução da sociedade
capitalista.
Atuando nos espaços da cidade, por meio da ação mediado-
ra da educação, persegue-se proporcionar uma visão crítica e
emancipatória do educando perante o mundo do trabalho e no
exercício de sua cidadania.

Tal perspectiva se materializa quando a Educação é entendida


como atividade na qual educadores e educandos, mediatiza-
dos pela realidade, aprendem e extraem dela o conteúdo da
aprendizagem, atingindo um nível de consciência elevado,
72

capaz de impulsioná-los a atuar na realidade visando à trans-


formação social (CHISTÉ; SGARBI, 2015, p. 88).

Segundo Chisté e Sgarbi, é preciso lançar um olhar diferen-


ciado, igualmente crítico e desvelador, sobre a cidade. Nas pala-
vras de Freire (2007 apud CHISTÉ, SGARBI, 2015, p. 103), “a leitura
crítica de mundo se funda numa prática educativa crescente-
mente desocultadora de verdades. Verdades cuja ocultação inte-
ressa às classes dominantes da sociedade”. Assim, cabe ao educa-
dor estabelecer esse olhar como uma opção político-pedagógica:

[...] o educador deve contemplar a cidade, pensar a cidade, ex-


trair de cada espaço dela as lições que possam dar mais vida às
pessoas, humanizar os cidadãos. Essas são algumas chaves de lei-
tura da cidade e de seus espaços (CHISTÉ; SGARBI, 2015, p. 105).

Considerações finais

Os questionamentos expostos no item Primeiros aponta-


mentos ainda permanecem irresolutos, tendo em vista que fo-
ram apresentados apenas alguns indicativos de leituras, com
breves demarcações. Todavia, é fácil afirmar que a expressão
Cidade Educativa está originalmente vinculada ao Relatório de
Faure et al./Unesco, sendo antecessora dos demais termos e, de
algum modo, servindo de fonte histórica para estes.
Percebe-se ainda que a categoria Cidade Educadora en-
globa uma ampla diversidade de projetos e ações, com deno-
minações próprias. Dentre estas possibilidades, no campo das
publicações de pesquisadores freirianos, como Gadotti e Padi-
lha, há os termos coirmãos Cidade que Educa e Município que
Educa. Se por um lado seus teóricos não negam uma relação
com a expressão Cidade Educadora, por outro não se trata de
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 73

apenas mais um projeto, pois agregam outras concepções ante-


riormente concebidas.
No conceito de Educação na Cidade, embora também ne-
cessite de uma formulação mais robusta, torna-se nítido que há
uma preocupação conceitual diferenciada em relação aos de-
mais. O que o diferencia dos demais conceitos: é o fato de Edu-
cação na Cidade não propor um processo que envolva o con-
trole político do Poder Público Municipal para implementação
desta proposta, ou seja, está na postura (olhar) do professor ou
até da escola por meio de seu Projeto Político Pedagógico. Não
exige, por exemplo, a Municipalidade assinar uma carta de in-
tenções para que possa ser feito.
Sabemos que, não obstante as outras concepções preten-
dam perpassar as suas propostas pela transversalidade entre
Poder Público e sociedade (empresas e movimentos sociais), as
mesmas não vêm conseguindo gerar uma articulação integrada,
como uma rede ou movimento, até pelos limites reprodutivistas
da ideologia capitalista. A Educação na Cidade não é assim. Re-
fere-se a uma proposta possível, principalmente na conjuntura
desfavorável em que vivemos, hegemonizada pelas ideologias e
poder do capitalismo. A Educação na Cidade, de modo metafóri-
co, pode ser concebida como movimento de guerrilha, aprovei-
tando as brechas do território para lançar “ataques pontuais” e
constantes, concentrados de intencionalidade e sistematização,
por meio de ações educativas contra-hegemônicas.
Por fim, como dito, este espaço é um ensaio conciso sobre a
questão polissêmica e conceitual envolvendo as categorias “ci-
dade” e “educação”. Certamente, as leituras apontadas deman-
darão mais leituras, questionamentos e outros debates.
74

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teleológica: paradigmas científicos
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Adriano de Souza Viana


Antonio Donizetti Sgarbi

O Grupo de Estudo e Pesquisa Educação na Cidade e Hu-


manidades (GEPECH), do Instituto Federal de Ciência e Tecno-
logia do Espírito Santo, Ifes, Campus Vitória-ES, iniciou no ano
de 2016 seus estudos sobre o potencial educativo que a cida-
de possui. Esse potencial se estabelece na relação tênue que
há entre educação formal, não formal e informal. No presente
capítulo pretendemos estabelecer um aprofundamento e uma
explicitação objetiva do que entendemos por “educação na ci-
dade”, sua relação com o ato educativo e suas intenções peda-
gógicas a partir da filosofia da práxis.
Antes de descrevermos a você leitora e leitor sobre o por-
quê da opção conceitual pela ideia de “educação na cidade”,
é preciso que expliquemos o que entendemos por “atividade
teleológica”. A palavra “teleológica” é de origem grega e é um
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 79

termo composto. Telos significa fim, finalidade; e Logos, signifi-


ca palavra, ou ainda, estudo racional. Portanto, teleológico é o
estudo das finalidades. Nessa perspectiva a “atividade teleoló-
gica” é toda ação que visa um fim determinado, que possui uma
intenção clara e definida. Tomamos esse conceito seguindo o
pensando de Newton Duarte, que usa essa expressão como si-
nônimo de trabalho. Ele afirma que

Com a evolução da vida em geral e do ser humano, desde os


Australopitecos até o Homo sapiens, ocorreu a grande trans-
formação caracterizada pelo desenvolvimento da atividade,
vindo a constituir-se o trabalho, como atividade teleológica
(dirigida por finalidades conscientes), que produz e empre-
ga meios (ferramentas e linguagem), além de se efetivar de
maneira fundamentalmente social. Teve início, assim, o de-
senvolvimento propriamente histórico-social da humanida-
de. Essa história, por sua vez, desenvolveu-se por meio das
formas de organização social da produção dos bens que sa-
tisfizessem as necessidades humanas (DUARTE, 2016, p. 90).

Nota-se que ao optarmos pela ideia de atividade teleológi-


ca para falarmos da trilha de pesquisa que temos desenvolvi-
do, estamos querendo expressar que o ato educativo, mediado
pelos espaços e aparelhos da cidade, é expressão do trabalho
humano, principalmente as atividades humanas voltadas para
o processo educativo que visam à autoconstrução da própria
humanidade. Esse trabalho formativo tem potencial de trans-
formar a realidade em suas estruturas mais complexas, sejam
elas históricas ou sociais.
Exposto isso, podemos nos deter no desenvolvimento da
compreensão do que entendemos por “educação na cidade”. A
escolha desse conceito não é fruto do desejo de cristalizar um
chavão ou uma ideia extremamente original. Nossa escolha é
intencional. Ela quer falar de nossa visão crítica ao programa
“Cidade Educativa” da Unesco, relatada por Faure (1977)., Ccrí-
80

tica que Chisté e Sgarbi (2015) apresentam de forma bem clara


em seu trabalho.
No Brasil, as primeiras pesquisas acadêmicas que trata-
vam do conceito “Cidade Educativa” foram: a dissertação de
Jéferson Idelfonso da Silva e a tese de Moacir Gadotti (SANTOS,
2010). Ambos os trabalhos foram publicados como livros pos-
teriormente. Segundo Santos (2010) podemos definir o concei-
to de Cidade Educadora, a partir da Declaração de Barcelona,
como

[...] aquela que exercita intencionalmente a sua função edu-


cadora para além da educação formal, ou seja, paralelamente
às suas funções tradicionais (econômica, social, política e de
prestação de serviços) esta cidade usa de suas possibilidades
educadoras de modo consciente e planejado objetivando for-
mar, promover e desenvolver continuamente (“ao longo da
vida”), por meio de processos de conhecimento, diálogo e
participação, todos os seus habitantes (SANTOS, 2010, p. 44).

Por outro lado, Silva (1979, p. 84) trabalhou conceitual-


mente em sua obra a ideia de cidade educativa, dando um cará-
ter mais generalizante ao uso desse segundo termo. Ele afirma
que “a cidade educativa, em dimensão mais palpável, se apre-
senta como uma sociedade que toda inteira se propõe ser edu-
cativa com todos os seus meios e instituições”.
O programa Cidade Educadora ou Educativa merece ser
criticado, pois está alicerçado dentro da lógica de expansão
capitalista da relação do ser humano com a natureza. Não se
pode esquecer que a Unesco foi criada após a Segunda Guerra
Mundial para ser um apoio aos países devastados pela guerra.
No entanto, ela foi subsidiada pelo Banco Mundial e por países
que querem impor o padrão educacional dentro da lógica de
globalização do mercado. Uma imposição cultural e ideológica
do capitalismo às nações em desenvolvimento (CHISTÉ; SGAR-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 81

BI, 2015).
Pelo exposto anteriormente, o Gepech optou por trabalhar
com a ideia de “educação na cidade”, afastando-se da ideologia
hegemônica que foi propagandeada pelo programa Cidade edu-
cadora, do qual, o munícipio de Vitória-ES, faz parte. O que o
grupo de pesquisa propõe é contrapor dialeticamente os obje-
tivos do referido programa a uma visão fundada na filosofia da
práxis, para se pensar o valor de uso da cidade como ambiente
pedagógico numa intencionalidade educativa libertadora.
Ousamos dizer que o que propomos é uma mudança de pa-
radigma, entendido dentro da visão de Tomas Kunh. Na obra
“As estruturas das revoluções científicas”, o autor descreve sua
teoria da filosofia da ciência. Em suma, ele defende que as teo-
rias científicas são um conjunto de acordos dentro de uma de-
terminada comunidade de investigação que são balizadas por
certos paradigmas e que podem ser substituídos por novos na
sucessão da história. Segundo o autor,

A investigação histórica cuidadosa de uma determinada


especialidade num determinado momento revela um conjun-
to de ilustrações recorrentes e quase padronizadas de dife-
rentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais
e na observação. Esses são os paradigmas da comunidade, re-
velados nos seus manuais, conferências e exercícios de labo-
ratório (KUNH, 2006, p. 67).

Portanto, paradigma pode ser definido como um conjunto


de padrões que formam um conjunto teórico de regras, de um
dado grupo científico, num determinado momento histórico.
Como exemplo de paradigmas científicos, Kunh cita as grandes
revoluções que aconteceram com os novos modelos de cientis-
tas como Newton, Lavoisier, Maxwell e Einstein (KUNH, 2006,
p. 68). Não estamos equiparando nossas pesquisas no Gepech
com os grandes tratados desses clássicos da ciência moderna,
82

apenas nos valemos dessa visão filosófica para argumentar: é


preciso que pensemos o que está posto na ciência educacional
e que proponhamos novos paradigmas para analisarmos a re-
lação entre cidade e educação. A análise que propomos toma o
trabalho como um elemento-chave na compreensão e leitura
da cidade. É preciso que se problematize a cultura capitalista
que aliena os trabalhadores, dando liberdade ao capital e apri-
sionando ideologicamente as pessoas que estão no processo de
produção de riquezas da humanidade.
Nesse sentido, o entendimento do que é educação, assu-
mido aqui, comunga com os ideais de Saviani. Ele é muito feliz
na definição do trabalho dos educadores e educadoras quando
afirma que “O trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade
que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos
homens” (SAVIANI, 2013, p. 6). Intencionalmente colocamos a
ideia de “educação na cidade”, baseada numa visão marxista,
como um paradigma para analisarmos o potencial pedagógico
em experiências que circulem nos espaços formais, não formais
e informais de ensino. Isso possibilita explorar os ambientes e
espaços citadinos com todas suas possibilidades. Ambiente en-
tendido em sua integralidade, como nos ensina Milton Santos
(2006).
Moacir Gadotti é um dos grandes nomes que vem refle-
tindo acerca da relação entre cidade e educação numa pers-
pectiva freireana, portanto com viés que se aproxima da base
marxista. Todavia, é preciso fazer uma ressalva, pois ele julga
ser possível trabalhar com o conceito de “Cidade educadora”
sem prejuízos para uma conscientização crítica. Mesmo com
essa ressalva, é fundamental destacar o que esse autor nos diz
quando afirma que:
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 83

Uma cidade pode ser considerada como uma cidade que edu-
ca quando, além de suas funções tradicionais — econômica,
social, política e de prestação de serviços— exerce uma nova
função cujo objetivo é a formação para e pela cidadania. Para
uma cidade ser considerada educadora, ela precisa promover
e desenvolver o protagonismo de todos — crianças, jovens,
adultos, idosos — na busca de um novo direito, o direito à ci-
dade educadora (GADOTTI, 2006, p. 134).

Para aprofundar essa busca pelo direto à cidade, estuda-


mos algumas obras de Henri Lefebvre a fim compreendermos
como poderemos colocar nas pesquisas acadêmicas o teor re-
flexivo da teoria marxista sobre a cidade. Lefebvre critica o
modo de produção capitalista que supervaloriza o valor de tro-
ca dos espaços urbanos desconsiderando o seu valor de uso. Ele
afirma que o direito à cidade é sinônimo de direito à vida. Den-
tro desse campo teórico coloca que “[...] os filósofos pensaram
a Cidade, trouxeram a vida urbana para a linguagem e para o
conceito” (LEFEBVRE, 2001, p. 35). Dentro dessa linha de re-
flexão, é preciso que clarifiquemos como a categoria filosófica
de práxis pode apontar caminhos fecundos para as pesquisas
acadêmicas.
O que está se propondo aqui é perceber a teoria da filosofia
da práxis como uma nova concepção de mundo, isso afetará
nossa maneira de enxergar a educação e a relação com a cida-
de. Kunh (2006) afirma que novos paradigmas levam a novas
concepções de mundo. No início do nono capítulo de seu livro,
supracitado, ele apresenta uma breve exposição sobre isso.

O historiador da ciência que examinar as pesquisas do passa-


do a partir da perspectiva da historiografia contemporânea
pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam os
paradigmas, muda com eles o próprio mundo. Guiados por
um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumen-
tos e orientam seu olhar em novas direções. E o que é ainda
mais importante: durante as revoluções, os cientistas vêem
84

coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos


familiares, olham para os mesmos pontos já examinados an-
teriormente (KUNH, 2006, p. 147).

Somos convidados a olhar de maneira diferente para o


mundo em que estamos imersos existencialmente. Sobretudo,
olhemos para a cidade com novos paradigmas de análise. Lefe-
bvre, em seu livro Marxismo (2016), apresenta as três grandes
concepções de mundo que predominavam na França de seu
tempo. Ele dissertou sobre cada uma delas: a cristã, a indivi-
dualista e a marxista. Suas ideias nos ajudam a compreender
essas concepções da seguinte maneira: a primeira estava ali-
cerçada sobre a visão de mundo herdada da Idade Média. Ba-
seada na filosofia e teologia tomista, enxergava-se um mundo
estático com uma hierarquia pré-determinada tendo o Ser su-
premo no seu cume. Portanto, uma concepção de mundo com
bases metafísicas e religiosas; a segunda concepção de mun-
do nasceu com a modernidade no século XVI, sobretudo com
Montaigne. Embora seja uma concepção que buscou livrar-se
dos ranços metafísicos da época medieval, cometeu um erro
ao supervalorizar o indivíduo e sua racionalidade. Com isso se
tornou a base para o liberalismo, sendo uma concepção clara-
mente burguesa do mundo; e a terceira concepção de mundo,
a marxista, também recusou a hierarquia estática advinda de
uma metafísica, e postulou uma nova relação do ser humano
com a natureza, não se fechando na consciência do indivíduo,
como fez o individualismo. O marxismo como concepção de
mundo procura ser uma visão ampla. Busca observar e descre-
ver cientificamente “[...] as realidades naturais (da natureza,
do mundo exterior), práticas (trabalho e ação), sociais e histó-
ricas (estrutura econômica da sociedade, classes sociais etc.)”
(LEFEBVRE, 2016, p. 12).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 85

Podemos perfeitamente apresentar essas três concepções


de mundo como paradigmas, dentro da teoria Kunhniana. No
entanto, precisamos fazer uma ressalva: o paradigma do marxis-
mo ainda não suplantou os demais. As três concepções coexis-
tem na cultura humana. Entendemos que um processo educati-
vo emancipatório pode nos levar para a superação da concepção
metafísica cristã e da individualista do liberalismo burguês.
É dentro desse quadro complexo que Lefevbre nos fala da
práxis na filosofia marxista. Ele argumenta que

Para o marxismo [...] o relacionamento da ação com a teoria é


completamente diverso. O marxismo aparece de início como
a expressão da vida social, prática e real em seu conjunto, em
seu movimento histórico, com seus problemas e suas contra-
dições, portanto nele está compreendida a possibilidade de
ultrapassar sua estrutura atual [...] (LEFEBVRE, 2016, p. 18).


Sendo assim, nota-se que a práxis, dentro do Materialis-
mo Histórico-Dialético, é entendida como uma possibilidade de
mudança na realidade social e histórica. É nessa mesma linha
de pensamento que está toda a contribuição do pensamento
filosófico de Antônio Gramsci.
Gramsci usa o termo “Filosofia da práxis” para falar de
toda a obra do pensamento de Marx e Engels. Dessa maneira,
pode-se afirmar que esse conceito é sinônimo de Materialismo
Histórico-Dialético. Ele defende isso quando escreve sobre o es-
tudo da filosofia desses dois autores, dizendo que é preciso con-
siderar “[...] a questão das relações de homogeneidade entre os
dois fundadores da filosofia da práxis” (GRAMSCI, 1978, p. 111).
A intenção educativa que temos é: propor uma nova visão
pedagógica para o trabalho com a relação entre cidade e práti-
cas de ensino que visam contribuir para mudanças sociais re-
volucionárias, humanistas, a partir da vida do povo. Giovanni
86

Semeraro, estudioso do pensamento gramsciano, ajuda-nos a


esclarecermos esse argumento quando afirma que

[...] as lutas dos ‘“subalternos” pela democracia e a hegemo-


nia popular revelam-se inconsistentes quando dissociadas de
uma reflexão permanente capaz de criar uma própria con-
cepção de mundo, orgânica a um projeto ético-político de
sociedade que revoluciona o modo capitalista de produção e
suas correlatas relações sociais [...] (SEMERARO, 2006, p. 09).

Sendo assim, é preciso que esteja translúcido para o leitor


e a leitora, que têm acesso às pesquisas do Gepech, a nossa li-
nha ideológica emancipatória de pensamento. Quando falamos
de atividade teleológica, queremos deixar explícito que nossas
pesquisas são trabalho, entendido como categoria marxiana de
compreensão da realidade humana. O que se coloca em ques-
tão são os problemas advindos da lógica cultural capitalista
que tem adoecido as relações humanas com o ambiente urba-
no. Esse adoecimento passa pela alienação na dinâmica vital
das atividades laborais.
Outro grande estudioso de Gramsci, Adolfo Sánchez Váz-
quez, contribuiu sobremaneira para que alcançássemos as in-
tencionalidades de nossas ações no trabalho educativo na rela-
ção com a cidade. Ele descreve seu entendimento sobre o que é
atividade humana e seu potencial de transformar a realidade de
acordo com as nossas finalidades estabelecidas conscientemen-
te. Ele afirma que “a atividade humana é, portanto, atividade que
se orienta conforme fins, e esses só existem através do homem,
como produto de sua consciência” (VÁZQUEZ, 2001, p. 223).
Essa atividade humana é compreendida especificamente
como trabalho. Seguindo a trilha de pensamento que estamos de-
fendendo, Vázquez (2001) afiança que [...] “Marx enfatiza, justa-
mente por se tratar do trabalho como uma atividade especifica-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 87

mente humana, o papel determinante do fim, e seu caráter de lei


no processo de transformação material” (VÁZQUEZ, 2001, p. 224).
Pode-se, nessa parte do texto, parecer que estamos sen-
do repetitivos, ou exagerados na ênfase dada ao viés marxista
da compreensão da atividade teleológica como trabalho. Se há
exagero, a intensão é deixar claro o que pretendemos nas pes-
quisas desenvolvidas que versam sobre educação na cidade. A
base das indagações está fincada em um novo paradigma para
investigações acadêmicas que buscam superar o programa Ci-
dade Educadora. Temos uma meta, e com essa meta sabemos
que: “O fim, portanto, prefigura aqui o resultado de uma ativi-
dade real, prática, que já não é pura atividade da consciência”
(VÁZQUEZ, 2001, p. 224). As intenções estão expostas para não
se cometer o erro crasso da não intencionalidade.

[...] O progresso histórico se caracterizará, entre outras coisas,


por uma superação dessa não intencionalidade. Os homens
que no passado produziram não intencionalmente a escravi-
dão, o feudalismo e o capitalismo se propõem hoje, conscien-
temente, à destruição das relações capitalistas de produção e
à instauração do socialismo. Mas ainda que a história humana
registre resultados que ninguém desejou, essa não intenciona-
lidade não é senão a forma socialmente adotada pelo resulta-
do da atividade desenvolvida pelos indivíduos como seres so-
ciais que atuam conscientemente [...] (VÁZQUEZ, 2001, p. 223).

Portanto, o que esperamos que esteja claro para os que se


detêm na análise atenta dos conteúdos das páginas desse livro
é que as pesquisas contidas neles são fruto do trabalho de mu-
lheres e homens que têm uma finalidade para suas ações. Com
o trabalho educativo, buscamos estabelecer uma nova realida-
de, pois analisamos a relação entre educação e cidade com um
novo paradigma, que ainda não está posto como o principal das
concepções de mundo que vigoram na cultura contemporânea.
88

Considerações finais

O sistema de produção capitalista tem imposto um padrão


civilizacional. Esse padrão criou a vida nas cidades como te-
mos na atualidade. Os problemas socioambientais, as políticas
públicas, os projetos e programas de urbanização, a segrega-
ção social no espaço habitado, etc., podem ser alterados para
outro modelo de sociedade. O trabalho educativo pode contri-
buir para uma concepção crítica e consciente sobre como es-
tão organizadas nossas cidades e como elas podem possibilitar
experiências criativas e fecundas de ensino-aprendizagem.
As pesquisas desenvolvidas no Gepech tentam, dentro dos
seus limites investigativos, articular a reflexão de base episte-
mológica a partir da filosofia da práxis com os objetos de estudos
selecionados dentro dos espaços e equipamentos do ambiente da
cidade de Vitória/ES. O presente artigo expôs noções e conceitos
que foram se tornando centrais em nossos estudos e que ilumi-
naram os projetos de pesquisas elaborados dentro do Mestrado
Profissional em Ensino de Humanidades do Ifes, Campus Vitória.
Acreditamos que um caminho inicial para investigar a rela-
ção entre educação e cidade deve passar pelo aprofundamento
dessas ideias- chave: filosofia da práxis, direito à cidade, educação
na cidade, trabalho, alienação, concepção de mundo, etc. Assim
se poderá construir uma proposta mais crítica de sociedade e de
educação, para além da posta pela cultura de mercado capitalista.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 89

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Contribuições de Henri Lefebvre
para a leitura da cidade

Priscila de Souza Chisté

As cidades, como os sonhos, são construídas por


desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso
seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas
perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam
uma outra coisa
(CALVINO, 1990, p. 44).

O termo cidade designa um objeto de reflexão privilegiado


ligado aos processos de urbanização-industrialização que mar-
cam o advento da modernidade18. Contudo, a cidade precede a
modernidade; surgiram várias delas entre mares e rios como
Tigre, Eufrates, Nilo, Indo, Amarelo, entre outros. Gramatical-
mente a palavra “cidade” é um substantivo, ou seja, uma palavra
que serve para nomear um objeto determinado e possui várias
acepções na língua portuguesa. Pode significar, de acordo com
o dicionário Houaiss, aglomeração humana de certa importân-
cia, localizada numa área geográfica circunscrita e que tem nu-
merosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou às
atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e a ou-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 93

tras não relacionadas com a exploração direta do solo. Etimolo-


gicamente “cidade” deriva da palavra latina civis, que significa
membro livre de um local a que pertence por origem, sujeito de
um lugar, aquele que se apropriou de um espaço. Cidade, então,
pode ser considerada como uma comunidade política cujos mem-
bros se auto governam e têm o direito ao espaço em que vivem.

18
Segundo Habermas (2001) a palavra modernus surgiu no século V para dife-
renciar um presente histórico considerado cristão, de um passado romano pa-
gão. A partir desse momento a expressão passou a traduzir uma ideia de novo
diante do antigo, ou seja, a consciência de uma nova época. Marx e Engels
(1990) em uma das passagens do Manifesto Comunista, refletem sobre o sentido
de modernidade: “[...] todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqui-
to de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e
as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo que é sólido e
estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são final-
mente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida,
suas relações recíprocas” (MARX; ENGELS, 1990, p. 69). Segundo Habermas
(2001), a concepção de modernidade presente nessa passagem pode ser in-
terpretada à luz do conceito clássico de “modernidade ambígua”, que traduz
a ideia de uma tensão originária inerente à modernidade: a destruição do ve-
lho, a ruptura com o passado, a quebra com antigas tradições, que instaura a
experiência da descontinuidade, do diverso, da instabilidade, da efemeridade,
da contingência e, ao mesmo tempo, anuncia a possibilidade e a promessa de
se inaugurar e desvendar uma nova ordem original e autêntica, a qual se ges-
taria em meio ao turbilhão de mudanças e ao caos. Na visão de Marx e Engels
a modernidade pode ser interpretada como portadora desta tensão originá-
ria, que ao mesmo tempo expressa as perspectivas da destruição e da criação.
Assim, revela uma compreensão da modernidade como transformação, mu-
dança, novidade, revolução, que faz desmoronar antigas tradições, relações
sociais, hábitos e preceitos até então rígidos e fixos (BEZERRA, 2007). Com a
expressão tudo que é sólido se volatiza, estes autores vão anunciar o sentido
da modernidade como experiência societal de dessacralização da natureza,
das relações e das instituições sociais, na qual tudo é profanado, e o homem,
visto como ser histórico e social é, então, entregue a si mesmo para imprimir
sua marca no mundo, criando uma nova ordem, por meio do pensamento e
da ação social e política. “O homem, liberto das antigas certezas, seguranças
e amarras garantidas pelas cosmovisões míticas e supersticiosas do mundo,
bem como da rigidez e da estabilidade dadas pelas tradições teológica e reli-
giosa, é posto no mundo para enfrentar, no entender de Marx, as suas reais
condições de vida e sua relação com outros homens” (BEZERRA, 2007, p. 181).
94

Lefebvre (2008) considera que a cidade é espaço moldado,


modelado, ocupado pelas atividades sociais no decorrer de um
tempo histórico. Ela é mediação de relações socioespaciais, de
vínculos das pessoas com o espaço, capaz de revelar a realidade
social produzida pela mediação de processos históricos (FREH-
SE, 2011). Considerar a cidade como mediação abarca compre-
endê-la a partir de passagens e conexões que se estabelecem
entre este espaço e outras áreas do conhecimento, ou seja, im-
plica entender os nexos e os vínculos que cidade estabelece com
determinado fenômeno particular sem deslocá-lo do todo, pois
não podemos explicá-la sozinha, temos que buscar as relações
que ela estabelece com outros fenômenos.
Entre os livros publicados por Lefebvre está O Direito à Ci-
dade, impresso em 1968, no qual formulou suas preocupações e
proposições a respeito do fenômeno urbano. Dentre os aspectos
apresentados neste livro, nos chamou a atenção o modo como
Lefebvre sistematiza suas reflexões sobre a cidade, em especial
pela sua abordagem diacrônica, ou seja, a partir do eixo espa-
ço- temporal. Seus estudos sobre o assunto avançam em outras
obras, tais como em A Revolução Urbana, publicada em 1970,
em que Lefebvre efetua crítica ao poder industrial de modelar
a cidade de acordo com os seus interesses. Nessa obra preten-
de criar uma estratégia urbana para fazer a transição em busca
de um novo tipo de vida, analisando a sociedade urbana como
totalidade e contradição. Ao aproximar-se do marxismo consi-
dera que a categoria19 “totalidade” pode nos ajudar a compre-
ender a cidade como um todo. Desse modo, considera que um
espaço da cidade não se explica por si mesmo. É preciso situá-lo
na totalidade que é a cidade e que também é a história dessa

Determinações da existência, estruturas que a razão humana extrai do real.


19

São instrumentos que nos auxiliam a agir e a compreender a realidade, tor-


nando-a inteligível e passível de transformação.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 95

cidade, do estado, do país etc. Assim, é necessário compreender


determinados espaços ou acontecimentos da cidade a partir da
totalidade que é a própria cidade, pois falar de totalidade im-
plica analisar algo que não se explica por si mesmo, mas que
mantém relação com outros fenômenos. Para compreendermos
a cidade teremos que escavar as relações que constituíram esse
local. Essas relações muitas vezes estão enterradas, por isso, ne-
cessitamos investigar mais para podermos alcançar como este
fenômeno se desenvolveu, entendendo-o como um momento
de uma vida maior. Além disso, Lefebvre considera importan-
te compreender os espaços urbanos como produto do trabalho
humano, constituídos por relações contraditórias. Essas rela-
ções de conflito podem ser não antagônicas, potencializando
os indivíduos por meio do respeito à diferença, ou serem anta-
gônicas, na tentativa de explorar e anular o outro. A partir do
entendimento desse autor, caberia, então, visitar o espaço cita-
dino e questionar quais são as contradições que estão veladas
na cidade de modo a captar o que está oculto nela.
Lefebvre considera o urbano como teoria da organização
da cidade, um fenômeno que se impõe em escala mundial a
partir do duplo processo de implosão-explosão da cidade atu-
al, mas também um lugar da expressão de conflitos, onde reina
o silêncio e se estabelecem os signos da separação. “O urbano
poderia também ser definido como lugar de desejo, onde o de-
sejo emerge das necessidades, onde ele se concentra porque se
reconhece, onde se reencontram talvez (possivelmente) Eros
[pulsão de vida] e Logos [repressão]” (LEFEBVRE, 2008, p. 158,
acréscimo nosso).
Um dos aspectos históricos analisados por Lefebvre (1991,
2008) nestes dois livros, Direito à Cidade e A Revolução Urbana, re-
fere-se ao caminho percorrido pelo fenômeno urbano, sobretu-
do a partir da cidade política que acompanha a aldeia, o esta-
96

belecimento da vida social, e a agricultura; da cidade mercantil


que emerge quando a troca comercial torna-se função urbana;
e da cidade industrial que se instala perto da matéria-prima, da
fonte de energia e da mão-de-obra.
Além da análise diacrônica da cidade, Lefebvre (2008) pro-
põe a sua análise sincrônica por meio de três níveis: global, mis-
to e privado. O Global é o nível das relações mais gerais, dos
espaços institucionais: mercado de capitais, projetos urbanísti-
cos de grande porte e políticas do espaço. Esse nível projeta-se
no domínio do edificado: prédios, monumentos, cidades novas;
mas também projeta-se no domínio do não edificado: organi-
zação geral do trânsito e dos transportes, tecido urbano e pre-
ocupações com a preservação da natureza. Já o nível Misto é o
nível urbano da “cidade”, composto pelo edificado e pelo não
edificado, como ruas, praças, avenidas, edifícios públicos como
prefeituras, igrejas e escolas, bem como serviços do comércio,
dos transportes ou da vida urbana propriamente dita. Já o nível
privado pressupõe a análise de grandes prédios de apartamen-
tos, casas, acampamentos e favelas. Visa desvelar as contradi-
ções entre o habitat (espaço concebido para suprir funções ele-
mentares) e o habitar (corresponde ao espaço vivido).
Lefebvre amplia as discussões sobre tais temáticas no livro
Espaço e Política: O direito a cidade II, em que retoma as produ-
ções precedentes dialeticamente, situando-as de modo mais
elevado. Segundo o autor, o direito à cidade significa o direito
dos cidadãos-citadinos e dos grupos que eles constituem de fi-
gurar sobre todas as redes de circuitos de comunicação, de in-
formação e de trocas. Isso precisa ocorrer a partir de uma reu-
nião de tudo o que pode ser produzido no espaço da cidade e
também por meio do encontro de diversos objetos e sujeitos.
O direito à cidade recusa a organização discriminatória e
segregadora. Além de recusar, critica os centros estabelecidos
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 97

sobre a segregação que lançam para os espaços periféricos to-


dos os que não participam de privilégios políticos. Segundo Le-
fevbre (2016), para se promover o direito à cidade é necessário
proporcionar o direito de encontro, de reunião; lugares e objetos
devem responder a certas necessidades, as necessidades sociais.
Cabe ressaltar que para Lefebvre (2016, p. 36) a sociedade
atual não permite o direito pleno à cidade.

Só um grande crescimento da riqueza social, ao mesmo tem-


po que profundas modificações nas próprias relações sociais
(modo de produção), pode permitir a entrada, na prática, do
direito à cidade e de alguns outros direitos do cidadão e do
homem”. Para que tal direito seja assegurado é necessário
uma reorientação do crescimento econômico, que não mais
conteria em si sua finalidade, nem visaria mais a acumulação
(exponencial) por si mesma, mas serviria a fins superiores (LE-
FEBVRE, 2016, p. 36).

Diante dos aspectos elencados, consideramos que um dos


modos de nos apropriarmos da cidade, mesmo que de forma
parcial, é sabendo analisá-la ou, em outras palavras, aproprian-
do-nos de um modo de ler a cidade. Lefebvre (1991) sugere que
leiamos a cidade como se lê a música, sem esquecer sua história,
a divisão do trabalho que integrou a sua produção, bem como
as demais relações sociais intrínsecas a ela. Consideramos que
a obra de Lefebvre (2008) nos ajuda a perceber quais seriam os
aspectos fundamentais necessários para se fazer uma leitura
aprofundada do urbano, ou seja, do fenômeno em que se insere
a cidade atual. Segundo o autor, para a análise do urbano é pre-
ciso compreender:

1) As organizações e as instituições que estão nele inseridas;


2) A morfologia e a sociologia do urbano;
3) A forma (analisar o urbano a partir da concepção formal
da lógica e de uma dialética do conteúdo);
98

4) O espaço diferencial (três camadas no espaço que são so-


brepostas: espaço rural, industrial e urbano) – análise dia-
crônica;
5) Os níveis global, misto e privado – análise sincrônica;
6) As isotopias (lugares do mesmo, mesmo lugar);
7) As heterotopias (outro lugar, lugar do outro);
8) As utopias (aquilo que não tem lugar, o lugar daquilo que
não acontece);
9) A prática urbana (a maneira de viver).
10) As contradições, pois sem isso ficam só as estratégias
dissimuladas por uma cientificidade.

A partir do que foi exposto e, compreendendo que a leitura
da cidade depende de uma leitura total, buscaremos no capítulo
em tela apresentar dois aspectos que abarcam a proposta de lei-
tura do urbano: um recorte da análise diacrônica realizada pelo
autor do eixo espaço-temporal da cidade política, comercial,
industrial e urbana, por meio dos três livros supracitados de Le-
febvre, de obras de arte e de imagens que nos impulsionaram a
refletir sobre o tema, sobretudo a apresentação de um episódio
que marcou o rompimento com a lógica do capital expressada
pelos graffitis de Blu; e algumas reflexões sobre o eixo sincrô-
nico com ênfase no tema “rua” como exemplo do nível misto,
tendo como objeto de análise uma entrevista sobre o tema que
fizemos com uma criança visando abarcar outros aspectos im-
portantes para a leitura da cidade.
De modo geral, nos limites deste texto, exibiremos recor-
tes sobre o assunto sem perder de vista a dimensão da obra e
o radical aprofundamento do autor ao longo de sua produção
intelectual. Portanto, está longe de nosso alcance abarcar nas
poucas linhas que constituem este escrito os dez pressupostos
lefebvrianos para a leitura do urbano.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 99

Cidade política, comercial, industrial


e urbana: contribuições de Henri
Lefebvre para a análise diacrônica
da cidade europeia
Os primeiros grupos humanos coletores, pescadores e pas-
tores marcaram e nomearam o espaço. A partir desse traçado,
em muitos lugares do mundo a cidade acompanhou a antiga
aldeia que possuía vida social organizada e, progressivamente,
passou a promover a agricultura. Lefebvre (2008) chama esse
tipo de organização de cidade política povoada por sacerdotes,
guerreiros, príncipes, nobres, chefes militares, escribas e admi-
nistradores. Entre essas cidades o autor cita Mesopotâmia e Egi-
to, ambas marcadas pelo modo de produção asiático.

A cidade política administra, protege, explora um território


frequentemente vasto, aí dirigindo os grandes trabalhos agrí-
colas: drenagem, irrigação, construção de diques, arroteamen-
tos etc. Ela reina sobre um determinado número de aldeias.
Ai, a propriedade do solo torna-se propriedade eminente do
monarca, símbolo da ordem e da ação. Entretanto, os campo-
neses e as comunidades conservam a posse efetiva mediante o
pagamento de tributos (LEFEBVRE, 2008, p. 19).


Com relação à organização do espaço na cidade política, em
especial a grega, o aspecto que se apresenta em evidência é o
vazio na Ágora e no Fórum, lugares preparados para reunião. A
Ágora constituiu a principal praça da civilização grega, repre-
sentando o lugar de encontro dos cidadãos. Essa praça era for-
mada por um pátio aberto, circundado por edifícios públicos e
administrativos.
Esse conjunto formava o centro político-social da cidade e
sua configuração reforçava esse simbolismo. Estrategicamente
situada, a Ágora podia ser visualizada por toda a comunidade e
representava um imenso vazio cercado por edifícios institucio-
100

nais, sagrados e comerciais. A percepção desse local não repre-


sentava apenas uma oposição ao espaço privado. Sua concep-
ção legitimava, além de uma função estética, o lugar do domínio
político. Na Ágora, a  vida pública  se manifestava, os cidadãos
livres exerciam a política por meio da ação e do discurso, muito
valorizado entre os gregos, principalmente por aqueles ligados
a Atenas. A palavra era compartilhada e a decisão era tomada
na praça.
Assim como a Ágora grega, a Praça do Fórum, na civiliza-
ção romana, exerceu um papel central na vida da urbes. Espa-
ço urbano principal, o Fórum era delimitado por edificações
institucionais, religiosas e comerciais, e rodeado por colunatas.
Costumava ser construído um fórum a cada nova chefia políti-
ca, como, por exemplo, o Fórum de Trajano. Ornamentado com
esculturas, arcos e colunas, sua configuração também se desta-
cava na malha urbana, sobretudo pelo caráter monumental do
seu conjunto arquitetônico.
A partir do excedente da agricultura as cidades começaram
a acumular riquezas, como objetos e tesouros. Já existia nesses
centros riqueza monetária originada da usura e do comércio.
Além de riqueza esses centros acumularam conhecimentos,
técnicas e obras de arte; funcionavam basicamente como forta-
lezas e passaram a receber, paulatinamente, pessoas de outras
regiões do mundo interessadas em comprar e vender mercado-
rias. Cidades portuárias do Mediterrâneo e dos Mares do Nor-
te, como Gênova, Veneza, Amsterdã e Antuérpia, tornaram-se
grandes polos comerciais nesse período. A cidade medieval era
dominada por mercadores e banqueiros que agiam para promo-
ver a troca e estender o domínio do valor de troca. Conforme
afirma Lefebvre (1991, p. 47), “[...] a cidade foi para eles bem
mais um valor de uso do que de troca. Amavam sua cidade, tal
como uma obra de arte, ornamentada com todas as obras de
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 101

arte, eles a amavam, esses mercadores das cidades italianas, fla-


mengas, inglesas e francesas”.
Os mercadores e as mercadorias ocupavam a praça do mer-
cado normalmente ao lado da igreja. “A igreja abençoa os negó-
cios e dá uma boa consciência aos citadinos atarefados. Entre a
igreja e o mercado, na praça, têm lugar as assembleias que par-
ticipam deste duplo caráter: religioso e racional (nos limites da
racionalidade comercial)” (LEFEBVRE, 1991, p. 130). Os referidos
mercadores compravam produtos da Rota das Especiarias, pro-
dutos naturais ou artesanais que geralmente vinham dos países
do Oriente. Eles tinham como função principal viajar para re-
giões muito diversas e trazer desses lugares o que fosse neces-
sário, mas também o que fosse interessante. Tais mercadorias
eram comercializadas nas Feiras Livres em volta dos castelos
feudais. Daí os nomes “Domingo” para a feira principal, depois
“segunda-feira”, “terça-feira” etc. Havia os mercadores que
serviam aos nobres. Eles levavam as mercadorias diretamen-
te para dentro do castelo ou para as casas dos mais abastados.
O mercador detinha conhecimentos náuticos, domínio de
bússolas, astrolábios, orientação astronômica etc. Ao mesmo
tempo, para tratar dos negócios em terras estrangeiras, ele ne-
cessitava aprender novas línguas e interagir com comerciantes
da Ásia Menor e do Extremo Oriente. Precisava também enten-
der as moedas e as formas de troca econômica desses povos.
Marco Polo (1254-1324) foi um exemplo de mercador ve-
neziano bem-sucedido. Os seus relatos deram origem a um dos
livros mais influentes da história: “As Viagens de Marco Polo”.
Esse texto também serviu como inspiração para escritores
como Ítalo Calvino criar uma nova produção artística, como As
cidades invisíveis, narrativa que apresenta as conversas de Mar-
co Polo com o Imperador Kublai Khan. A história retrata Polo
apresentando ao Imperador as incontáveis cidades do império
102

Mongol. Ele descreve por meio de textos curtos e encantadores


como eram as cidades conquistadas, conforme exibimos na epí-
grafe deste texto.
Os mercadores contribuíram para a acumulação de riqueza
nas cidades, prosperando também o artesanato e a agricultura.
“Ao mesmo tempo, o capitalismo comercial e bancário [...] tornou
móvel a riqueza e [...] constituiu circuitos de trocas, redes que per-
mit[iam] as transferências de dinheiro” (LEFEBVRE, 1991, p. 05).
Os artesãos e comerciantes começaram a se organizar para
obterem melhores resultados em suas atividades, criando as
corporações de ofício e as guildas. Dos artesãos e comercian-
tes mais poderosos, surgiram aqueles que passaram a investir
grandes somas de riqueza em manufaturas. Essas manufaturas,
na verdade, foram as primeiras indústrias, ainda primitivas,
mas que já se caracterizavam pela divisão interna de funções,
ou seja, pelo trabalho parcelado em inúmeras atividades a par-
tir da introdução de máquinas e técnicas.
Cada operador de máquinas já não elaborava o produto
por inteiro, mas apenas uma peça que, somada às peças de ou-
tros operadores isolados, dava origem ao produto final. Assim
ocorre a divisão social do trabalho. Com ela a produção voltada
para o mercado começou a ganhar espaço, incentivando as tro-
cas monetárias, a organização empresarial e o espírito de lucro.
No começo da industrialização a produção agrícola não
era mais predominante, assim como a propriedade da terra.
“As terras escapam aos feudais e passam para as mãos dos ca-
pitalistas urbanos enriquecidos pelo comércio, pelo banco, pela
usura” (LEFEBVRE, 1991, p. 05). As indústrias na maioria dos ca-
sos instalavam-se fora das cidades, perto das fontes de energia
(rios, florestas), de meios de transporte (rios, estradas de ferro),
de matérias-primas e de reservas de mão -de- obra nas figuras
dos artesãos, tecelões e ferreiros.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 103

A partir desse momento inicia-se a constituição de uma


rede de cidades feita por estradas, por vias fluviais e marítimas
e por relações comerciais e bancárias. A passagem do capitalis-
mo comercial e bancário e da produção artesanal para a produ-
ção industrial e para o capitalismo concorrencial gera uma crise
na cidade. “A indústria a toma de assalto. Apodera-se da rede,
remaneja-a segundo suas necessidades. [...] a industrialização
não produz apenas empresas (operários e chefes de empresas),
mas sim estabelecimentos diversos, centros bancários e finan-
ceiros, técnicos e políticos” (LEFEBVRE, 1991, p. 09).
Lefebvre exemplifica apresentando o caso da Grécia, que,
mesmo com o seu fraco processo de industrialização, atraiu
para a capital Atenas muitas pessoas das cidades pequenas. A
cidade arcaica passa a se configurar como um lugar de peregri-
nação estética e de consumo turístico. Contudo, os seus arre-
dores ficam povoados de modo desorganizado. “Circuito frágil
que pode se romper a todo instante, que define um tipo de ur-
banização mas com uma rápida extensão da aglomeração, es-
peculação com terrenos e imóveis, prosperidade ficticiamente
mantida pelo circuito” (LEFEBVRE, 1991, p. 10).
A cidade industrial remodela a paisagem e aos poucos ca-
minha para se constituir como o lugar do consumo que fomenta
também o consumo do lugar.

Os comércios se densificam no centro, que atrai os comércios


raros, os produtos e gêneros de luxo. Esta centralidade se ins-
tala com predileção nos antigos núcleos, nos espaços apro-
priados no decorrer da história anterior. [...] Nesses lugares
privilegiados o consumidor também vem consumir o espaço; o
aglomerado dos objetos nas lojas, vitrinas, mostras, tornam-se
razão e pretexto para a reunião das pessoas; elas vêem, olham,
falam, falam-se. E é o lugar do encontro, a partir do aglome-
rado das coisas. Aquilo que se diz e se escreve é antes de mais
nada o mundo da mercadoria, a linguagem das mercadorias,
a glória e a extensão do valor de troca. No entanto, o uso e o
104

valor de uso resistem obstinadamente: irredutivelmente (LE-


FEBVRE, 1991, p. 130-131).

O fenômeno urbano se estende por muitos territórios dos


grandes países industriais. Esses territórios estão encerrados em
um tecido urbano fechado, marcado pela ampliação da divisão
técnica e social do trabalho. As concentrações urbanas tornam-
-se gigantescas; as populações se amontoam e núcleos urbanos
antigos se deterioram ou ampliam-se por demais. Desse modo, o
problema da moradia se agrava com a especulação imobiliária.

O Estado não pode mais se contentar com regulamentar os lo-


teamentos e a construção dos conjuntos, com lutar (mal) con-
tra a especulação imobiliária. Através de organismos interpos-
tos, toma a seu cargo a construção de habitações. Começa o
período dos ‘novos conjuntos’ e das ‘novas cidades’. [...] Por
assim dizer, o direito à moradia aflora na consciência social.
Ele se faz reconhecer de fato na indignação provocada pelos
casos dramáticos, no descontentamento engendrado pela cri-
se (LEFEBVRE, 1991, p. 18-19).

No contexto francês, os partidos de esquerda passam a rei-


vindicar mais casas e, em resposta a tal demanda, as iniciativas
públicas e semi-públicas visam fornecer moradias de baixo custo
e de rápida execução. São construídos pavilhões nos arredores
de Paris. “O habitat tipo pavilhão proliferou ao redor de Paris,
nas Comunas urbanas, ampliando de maneira desordenada o se-
tor construído” (LEFEBVRE, 1991, p. 20). Nesses subúrbios toda a
realidade urbana desapareceu: praças, ruas, monumentos e es-
paços para encontros. Mesmo assim, mais de 85% dos franceses
aspiravam à moradia do tipo pavilhão. “A consciência de classe
se esfuma [...] até desaparecer” (LEFEBVRE, 1991, p. 21). A indús-
tria e o processo de industrialização subtraem a realidade urba-
na, “[...] até extirpá-la da realidade e da consciência. Conduzida
segundo uma estratégia de classe, a industrialização se compor-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 105

ta como poder negativo da realidade urbana: o social urbano


é negado pelo econômico industrial” (LEFEBVRE, 1991, p. 21).
Tal estratégia de classe dá origem ao processo de suburba-
nização que afasta o proletariado da cidade e o direciona para
uma periferia desurbanizada e dependente da cidade. O urba-
nismo científico promovido pelos administradores, desconsi-
dera o fator humano e se alia ao urbanismo incentivado pelos
promotores de venda que trabalham para o mercado. Visam o
lucro e, nesse sentido, o urbanismo se torna valor de troca. O
urbanismo passa a se constituir como local de felicidade, como
conto de fadas e como ideologia da felicidade através do consu-
mo, origina uma nova forma de viver, um novo estilo de vida.
“A quotidianeidade parece um conto de fadas. Deixar seu ca-
saco no vestiário da entrada e, mais leve, dar suas caminhadas
após ter deixado as crianças no jardim da infância da galeria,
encontrar amigos, tomarem juntos um drink no bar... E eis a
imagem realizada da alegria de viver” (LEFEBVRE, 1991, p. 25).
A partir do exposto é possível compreender que os proble-
mas da cidade e seu processo de urbanização, impulsionados
pelo poder industrial, modelaram a cidade de acordo com os
interesses do capital. O recorte apresentado coloca em evidên-
cia a trajetória histórica de cidades europeias, mas é possível
realizar aproximações com outras cidades do globo. A crítica
feita sobre o processo de urbanização das cidades, ampliada
pelas análises relacionadas à especulação imobiliária, pode ser
observada também em alguns trabalhos artísticos, sobretudo
os do grafiteiro italiano Blu. Ele apagou algumas de suas obras
que colaboravam, de modo inusitado, com o fortalecimento do
mercado imobiliário. Essa ação radical foi realizada em protes-
to à elitização e ao uso de sua arte como maneira de valorizar
apartamentos e áreas comerciais. Blu decidiu arrancar os graffi-
tis das paredes de Bolonha, na Itália, porque descobriu que, du-
106

rante a mostra “Street Art: Banksy & Co”, alguns de seus graffitis
iriam ser explorados sem a sua autorização. Essas obras seriam
retiradas das ruas pelos organizadores do evento por meio de
uma técnica inovadora que captura somente a tinta do muro
sem necessariamente remover a estrutura construída, inserin-
do o graffiti em um novo suporte no interior de um museu. Além
disso, dentro da programação da exposição estava prevista a
realização de visitas aos graffitis locais; ação financiada pelos
patrocinadores do evento, os principais bancos da cidade, que
visavam sobretudo a valorização dos prédios que continham es-
sas produções artísticas.
A mostra ocorreu entre os dias 18-03-2016 e 26-06-2016, no
Palazzo Pepoli, e contou com cerca de 300 obras de arte, fotos,
vídeos, documentos provenientes da Europa e dos Estados Uni-
dos. Algumas obras expostas eram públicas e outras pertencen-
tes a coleções particulares. A organização do evento ficou sob a
responsabilidade do grupo Arthemisia, a maior produtora de ex-
posições de Itália, e do sistema de museus do centro de Bolonha,
o Genus Bononiae, presidido pelo ex-acadêmico Fabio Roversi
Monaco, que também atuou como presidente do banco IMI20.
De acordo com a postagem realizada por Blu no site do co-
letivo italiano de escritores de esquerda “Wu Ming”, o nome de
Roversi Monaco evoca poder, dinheiro, privatizações e políticas
repressivas. O artista aponta também casos de intolerância para
com protestos estudantis quando Monaco era reitor da Univer-
sidade da cidade. Além disso, Blu critica a criminalização que os
grafiteiros vêm sofrendo, fato colocado em evidência por meio
de dezesseis processos que criminalizam os artistas por pinta-
rem nas ruas de Bolonha.
20
Instituto bancário de investimentos do Grupo Intesa Sanpaolo. O Intesa
Sanpaolo é um dos maiores bancos da Itália. Está sediado em Milão e formou-
-se a partir da fusão do Banca Intesa com o Sanpaolo IMI em 2007.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 107

Trata-se de um episódio constituído por aspectos contradi-


tórios que se colocam em relevo nas duas versões sobre o ocor-
rido: o que diz o artista e o que relatam os curadores da mos-
tra. Os organizadores da exposição manifestaram-se por meio
do site oficial do evento expondo preocupações com relação à
conservação dos graffitis de Blu, pois eles estavam em situação
de conservação precária. Elencaram algumas questões sobre o
assunto: Será que temos que restaurar graffitis? É melhor man-
ter uma obra de arte em seu contexto original ou deixá-la ser
destruída? Podemos trazê-la para dentro de um museu público?
Qual deve ser o papel de fotos, vídeos, documentação tradicio-
nal e digital para contribuir com o registro destas obras de arte?
De certo modo, podemos pensar que as ideias e ações dos
organizadores da mostra revelam uma discussão antiga com
relação ao mercado de arte: os objetos artísticos transforma-
dos em mercadorias com valores comerciais altíssimos e que,
muitas vezes, integram investimentos de especuladores. Por
parte dos curadores e colecionadores bastaria somente contri-
buir com a preservação da arte ou seria essa ação um modo de
aumentar o patrimônio dos museus e das coleções particula-
res? Quanto ganharia o dono do imóvel grafitado se deixasse os
“restauradores” retirar o grafitti de seus muros e paredes? Qual
seria o percentual de valorização do imóvel após a inserção de
graffitis de artistas famosos em suas paredes ou muros? Se pen-
sarmos que uma das características do graffiti é a efemeridade,
seria possível tornar a sua fugacidade em permanência por con-
ta da importância de se preservar a obra de arte?
Blu enxergou tanto a visita guiada quanto o patrocínio dos
banqueiros como tentativas de a especulação imobiliária fazer
uso de sua arte. Sobre o ocorrido o artista assevera:
Esta exposição “arte de rua” representa um modelo de
espaço urbano que devemos lutar contra, um modelo baseado
108

na acumulação privada que comoditiza a vida e a criativida-


de para os lucros de poucas pessoas. Somos confrontados por
senhores arrogantes que atuam como governadores coloniais
e pensam que são livres para tomar nossos murais além das
paredes. A única coisa que resta é fazer estas pinturas desapa-
recerem (WU MING, 2016).

Entender as produções que integram os muros da cidade


compõe o que Lefebvre (1991) chamou de semiologia da cidade,
abarcando dimensões e níveis múltiplos de compreensão, tais
como: a fala da cidade (aquilo que acontece na rua, nas praças,
nos vazios, aquilo que esses espaços dizem); a língua da cida-
de (as particularidades próprias a uma tal cidade expressas nas
conversas, nos gestos, nas roupas, nas palavras e nos empregos
das palavras pelos habitantes); a linguagem urbana (linguagem
de conotações no interior do sistema denotativo); e a escrita da
cidade (aquilo que se escreve em seus muros). Desse modo, con-
sideramos que o episódio relatado nos impulsiona a pensar como
a cidade pode revelar as contradições que envolvem a socieda-
de capitalista: o espaço e a arte transformados em mercadoria.
Vimos por meio da análise diacrônica da cidade propos-
ta por Lefebvre como essa trajetória foi delineada e, por meio
do exemplo do episódio envolvendo o grafiteiro Blu, observa-
mos que a arte configura-se na atualidade como um modo de
desvelar contradições. Segundo Lefebvre (1991, p. 115), a arte

[...] traz para a realização da sociedade urbana sua longa medi-


tação sobre a vida como drama e fruição. Além do mais, e sobre-
tudo, a arte restitui o sentido da obra; ela oferece múltiplas figu-
ras de tempos e espaços apropriados: não impostos, não aceitos
por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra.

Blu não se resigna pacificamente, não se curva ao que foi


imposto. Ele mostra por meio de sua atitude irreverente que é
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 109

possível se opor à lógica atual. Suas ações são pistas que deve-
mos seguir para nos contrapor ao que está posto e buscar, por
meio da análise histórica, perceber onde estão as brechas, onde
estão as possíveis saídas. Como nos diz Calvino (1990, p. 150):

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que
já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que for-
mamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno
e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A
segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínu-
as: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno,
não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Não nos cabe aceitar a sociedade excludente, exploradora


atual, mas procurar o que ainda existe nela que pode ser co-
nhecido e potencializado para rompermos com tal modelo so-
cietário. Para Lefebvre (1991), somente grupos com iniciativas
revolucionárias poderão desfazer ideologias dominantes, favo-
recendo o habitar, organizando o espaço de outro modo, que
se afaste do urbanismo, que dissimula a estratégia capitalista e
elabora um espaço como mercadoria.

Contribuições de Henri Lefebvre


para análise sincrônica da Cidade:
o caso da rua

Além de observarmos a análise diacrônica que Lefebvre re-


alizou sobre algumas cidades europeias que nos levaram a co-
nhecer o rompimento com a lógica do capital expressado pela
iniciativa de Blu, cabe ressaltar a importância de também com-
preendermos a cidade por meio de sua análise sincrônica, com
ênfase no seu nível misto.
110

Como dissemos, nos limites deste texto, não conseguire-


mos refletir sobre todos os dez pontos elencados por Lefebvre
como necessários para se ler a cidade. Iremos nos empenhar
em apresentar nesta seção o exemplo da rua, pois consideramos
que ela seja um objeto potencial para a leitura da cidade.
Segundo Frehse21 (2011) a rua é um produto social que in-
terfere na produção da vida em seu sentido amplo, material
(econômico) e social, ou seja, ela é mediação reveladora de
processos históricos mais abrangentes. Conforme apontamos,
Lefebvre (1991, 2008, 2016) considera que para se analisar a ci-
dade é necessário revelar suas contradições. Compreendemos
que a rua constitui-se como reveladora dessas incongruências,
ou seja, por meio dela é possível entender as contradições da
cidade da qual a rua é mediação. “A cidade que a rua revela si-
naliza, assim, dilemas e possibilidades históricas que são as do
urbano que essa rua e essa cidade anunciam no plano do vivido”
(FREHSE, 2011, p. 33). Diante desses apontamentos buscaremos,
a seguir, apresentar análise que busca colocar em evidência a
rua por meio de argumentos e percepções positivas e negativas
relacionadas a ela.
Entendemos que a rua não é somente um lugar de passa-
gem ou circulação de pedestres. Os automóveis invadiram-na
e transformaram os estacionamentos em objetos de obsessão.
Preferem-se vagas gratuitas, mas isso é difícil. No caso dos mu-
nicípios da Grande Vitória, no Espírito Santo, é necessário inse-
rir moedas nos totens que foram colocados nas avenidas mais
movimentadas para organizar, a um certo custo financeiro, a
utilização de uma parte da rua destinada aos carros. Esse siste-

21
Em diálogo com Lefebvre traremos as discussões de Frehse (2005, 2011) nos
livros intitulados O tempo das ruas na sociedade na São Paulo de fins do im-
pério e Ô da Rua: o transeunte e o advento da modernidade em São Paulo.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 111

ma visou também afastar os famigerados guardadores de carro,


os “flanelinhas”, que transitavam pelas regiões nobres da cida-
de, fato que nos remete ao que comenta Lefebvre quando trata
das diferentes estratégias de classe para afastar e silenciar os
mais pobres, expulsando-os para o subúrbios.

Se a classe operária se cala, se não age, quer espontaneamen-


te, quer através da mediação de seus representantes e manda-
tários institucionais, a segregação continuará com resultados
em círculo vicioso. A segregação tende a impedir o protesto,
a contestação, a ação, ao dispersar aqueles que poderiam pro-
testar, contestar, agir (LEFEBVRE, 2001, p. 123).

O pagamento do estacionamento pela via dos totens auto-


matizados configura-se como parte desta estratégia de classe
que visa retirar os pedintes das ruas de ampla circulação. Assim,
os abastados passam a ver a cidade sem as pessoas, que sempre de
modo constrangedor, abordam os “verdadeiros” donos das ruas.
Apesar de exibir as diversas estratégias de classe para obs-
curecer a classe dominada e excluída, a rua é também de encon-
tro: cafés, teatros, bares, são espaços privilegiados que a ani-
mam. “Nela efetua-se o movimento, a mistura, sem os quais não
há vida urbana” (LEFEBVRE, 2008, p. 27). A rua movimentada,
frequentada, fornece segurança, ajuda a diminuir a violência
criminal (roubo, estupro e agressão). Mas se o movimento de-
saparece, a criminalidade aumenta. A rua promove diferentes
apropriações, pessoas aparecem e desaparecem nela conforme
os usos que fazem desse espaço.
Ela é o lugar privilegiado de encontros superficiais. “Na
rua, caminha-se lado a lado, não se encontra” (LEFEBVRE, 2008,
p. 28). Caminhamos ao lado de pessoas, as vezes encostamos ne-
las, sem querer, mas não as vemos, não sabemos quem são, de
onde vem e o que fazem ali. A rua não permite a constituição de
um grupo, de um sujeito, é um “amontoado de seres em busca”
112

(LEFEBVRE, 2008, p. 28). Em busca de quê? Lefebvre questiona.


Em busca, muitas vezes, de mercadorias que invadem a cida-
de inteira. Ela é vitrine em que as mercadorias são expostas de
modo provocante, atraente, ao mesmo tempo que transforma
as pessoas em espetáculo, umas para as outras.
Quando alguém chama nossa atenção, ou porque gostamos
da roupa, do corte de cabelo e até do cheiro que esta pessoa
exala; ou de modo contrário, pelo estranhamento que causa,
pelo odor desagradável ou pela figura caricata que representa;
paramos rapidamente para observá-la melhor. As contradições
que a rua revela mostram que a análise que envolve esse lugar
precisa ser realizada de forma ampla e recorrente.
A rua pode ser encontro, mesmo que superficial, mas esse as-
pecto esvai-se, no fluxo das grandes cidades, passa a ser lugar de pas-
sagem de pedestres encurralados e de automóveis privilegiados.
A rua converteu-se em rede organizada pelo/para o consu-
mo. A velocidade de circulação de pedestres, ainda tolerada,
é aí determinada e demarcada pela possibilidade de perceber
as vitrinas, de comprar os objetos expostos. O tempo torna-
-se o ‘tempo-mercadoria’ (tempo de compra e venda, tempo
comprado e vendido). [...] Ela não é mais que a transição obri-
gatória entre o trabalho forçado, os lazeres programados e a
habitação como lugar de consumo (LEFEBVRE, 2008, p. 28-29).

Se pensarmos em uma das ruas mais movimentadas do Bra-


sil, a 25 de março em São Paulo, conseguimos refletir sobre o
que coloca Lefebvre. Durante o dia (porque a noite ela repre-
senta perigo, consumo de drogas e prostituição), pessoas andam
rapidamente, buscando produtos de baixo preço, para consumo
próprio ou para comercialização. São gentes de vários lugares
do Brasil. Cada uma com seus objetivos próprios, com tempos
contados e desejo de conseguir o melhor produto com o menor
preço. Os objetos de desejo, criados por grifes mundialmente
conhecidas são copiados e disponibilizados por preços módi-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 113

cos. Todos na 25 de março podem comprar uma Louis Vuitton,


uma Dudalina, um Rayban, um Gucci etc. O desejo de ascender
socialmente pela via do consumo e da utilização de uma deter-
minada marca pode ser realizado neste lugar. Ter esses obje-
tos contribui para ser sujeito análogo. Pseudo burguês que tem
poder aquisitivo para comprar produtos caros, mas que utiliza
transporte público superlotado para se deslocar a caminho de
suas residências periféricas.
A organização do consumo mostra a força da rua e inscre-
ve a lógica da mercadoria acompanhada por uma contempla-
ção passiva. A acumulação dos objetos é estimulada na rua pela
imagem, pela publicidade e pelo espetáculo dos objetos. Se pen-
sarmos que essa reflexão precisa ser realizada por todos os su-
jeitos transeuntes, por que não começar pelos pequenos, aque-
las crianças que seguem de mãos dadas com os seus familiares?
Em ruas movimentadas são arrastadas e visualizam, em grande
parte, somente corpos pela metade. Pernas, pés e braços. Pou-
cos rostos, vitrines e construções. Quais seriam suas percepções
sobre esses lugares? Crianças que vivem em grandes cidades,
muitas vezes já passaram por essa experiência, e as crianças de
cidades menores? O que pensam sobre isso? Quais são suas ex-
periências sobre as ruas da cidade?
Perguntamos para uma criança22, na ocasião com onze
anos, o que ela sente quando anda em uma rua movimentada,
como na Avenida Expedito Garcia23, em Campo Grande, o maior

22
Optamos por preservar a identidade da criança e asseguramos a posse do
termo de livre assentimento para apresentação dos dados da entrevista re-
alizada.
23
O nome da rua foi dado em homenagem ao empresário que implantou em
Cariacica nos idos dos anos de 1940  a  Companhia Comercial de Couros Ltda.,
Industriais Bovinos Capixaba Ltda. e a Imobiliária Itacibá  S.A. A Imobiliária
abriu ruas e praças que deram origem ao Bairro Campo Grande.
114

bairro do município de Cariacica24, no Espírito Santo.


Buscamos compreender suas percepções sobre esse local.
Compreendemos, a partir de Frehse (2005, p. 28) ao citar os es-
critos de Lefebvre em La production de l’espace (1974), que per-
cepção é a “[...] maneira como captamos no dia-a-dia, em meio
aos usos que fazemos de nossos corpos (empregando mãos,
membros, órgãos sensoriais, gestos de trabalho e das atividades
exteriores ao trabalho), o espaço – portanto, também, fragmen-
tos do espaço como as ruas”.
Por meio de suas experiências e percepções relacionadas
com a rua, nossa entrevistada disse que na maioria das vezes
quando anda olha para o chão, porque não quer tropeçar devido
ao desnível das calçadas. Outras vezes olha para as pessoas com
o objetivo de desviar delas. Não gosta de encostar em estranhos.
Gosta de olhar as lojas de produtos de beleza que vendem ma-
quiagens, cremes, xampus e perfumes. O cheiro bom que exa-
la desses estabelecimentos se opõe ao cheiro de fritura que ela
aponta detestar. Mas, ao mesmo tempo, diz que toda a vez que
vai a essa avenida sente vontade de comer milho cozido e pipoca
que são vendidos por ambulantes. Ela não tem medo da violên-

24
O termo Cariacica é uma abreviação de Carijacica, que significa chegada do
branco na linguagem Tupi. Inicialmente, Cariacica era somente o nome ao rio
que desaguava na Baía de Vitória, mas com o tempo passou a denominar toda
a região local, marcado por origens que agregam povos indígenas, negros e
imigrantes europeus, com destaque aos Italianos. Durante o período colonial,
os povos indígenas tiveram suas moradias e terras invadidas, sua cultura ar-
rasada e seu povo destruído. Em consequência disso, várias fazendas de cana
-de-açúcar estabeleceram-se na região, utilizando-se de mão de obra escrava.
Antes de se tornar município, o local fazia parte do município de Vitória e
em 1890 tornou-se independente. Suas atividades econômicas agrícolas fo-
ram aos poucos substituídas por atividades de apoio à comercialização e ao
transporte de mercadorias, incentivadas pela construção da Estrada de Ferro
Vitória-Minas. Na década de 1940, com a inauguração da Companhia Vale do
Rio Doce (CVRD), a população urbana do município aumentou consideravel-
mente (BEZERRA, 1951).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 115

cia que pode ocorrer, sente-se segura porque quando percor-


re esse local está sempre acompanhada pelos seus familiares.
Outro ponto interessante de seu depoimento é quando diz
que se vê obrigada a pegar os folhetos de propagandas que são
distribuídos na rua. Considera falta de educação não o fazer.
Quanto aos moradores de rua, argumenta que as pessoas pode-
riam ajudá-los mais, “vejo pessoas com problemas pedindo mo-
eda, parece que ninguém dá as moedas, as pessoas ignoram eles
e eu sinto um pouco de pena deles”. Esse relato nos indica que
o olhar da criança está atento às contradições sociais e, além
disso, é um olhar comovido.
Quanto ao movimento de carros, a entrevistada relata que
essa convivência a faz se sentir apressada e com raiva. “Quando
eles passam jogam poeira na gente. Os caminhões são os piores,
atrapalham a andar na rua. Tenho medo de ser atropelada ou de
que os carros machuquem os animais que vivem na rua”.
Mas um momento importante da entrevista foi quando a
criança descreveu as construções que ficam na rua analisada:
“Nos prédios desta rua tem algumas pessoas morando, embaixo
tem as lojas, o problema é o calor, os prédios parecem quen-
tes, às vezes vejo janelas abertas e ventiladores ligados. [...] Pelo
menos eles têm aonde morar”. Essa fala demonstra a preocu-
pação que a entrevistada possui com as condições de moradia
dessas famílias. Tal preocupação relaciona-se com as reflexões
de Lefebvre (1991) quando discorre sobre as diferenças entre o
habitar e o habitat. Este último possui uma função simplificada,
restringindo o ser humano a alguns atos elementares: comer,
dormir, reproduzir-se, obrigando o vivido a encerra-se em cai-
xas, gaiolas e máquinas de habitat.
Conforme pode ser observado a partir da fala de nossa en-
trevistada, a avenida Expedito Garcia possui inúmeras lojas. Os
prédios estão configurados pelas recorrentes lojas no andar tér-
116

reo e nos andares superiores apinham-se residências e salas co-


merciais. Ao analisarmos algumas residências térreas percebe-
mos que paulatinamente as casas – consideradas por Lefebvre
como nível privado da cidade – foram perdendo espaço para o
comércio devido à alta valorização dessa área. Assim, a avenida
Expedito Garcia configurou-se como uma das maiores avenidas
de comércio a céu aberto do estado do Espírito Santo. Isso expli-
ca a razão de a maioria dos donos dos imóveis residenciais op-
tarem por alugar parte de suas moradias para lojistas e bancos,
verticalizando os antigos prédios e realocando-se em andares
superiores com pouca ventilação.
Sobressai também, durante a entrevista, uma análise rela-
cionada às pessoas que atuam no comércio informal. “Eu vejo
camelôs vendendo brinquedos, óculos, bolsas, alguns vendem
toalhas, capinha de celular, controle remoto e DVD. Por que eles
estão ali? Para vender as coisas e sustentar a família. Não conse-
guem um emprego decente e aí precisam vender as coisas para
sobreviverem”. Esse excerto dialoga com o que Frehse (2005)
pontua quando diz que frequentar a rua integra deparar-se com
pobres de todas as cores e credos, envolvidos em atividades so-
ciais historicamente antigas, tais como o comércio de produtos.
Além disso, podemos notar que existe uma dificuldade em mui-
tos de nós de lidar com ruas marcadas pela presença, muito an-
tiga, de tipos pobres, que desde o período colonial têm exercido
atividades sociais variadas nesses espaços. Historicamente a rua
é um local para os menos abastados, fato que se confirma por
meio da entrevista realizada com a criança. Os pobres frequen-
tavam as ruas “engajados em atividades como limpeza das vias
ou comércio ambulante, [...] frequentaram historicamente tais
espaços dia a dia já muito antes das camadas médias” (FREH-
SE, 2005, p.116). Cabe-nos, portanto, reconhecer uma igualdade
que é inevitável quando se está nas ruas e que pode incomo-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 117

dar a muitos que integram a sociedade hodierna na qual as ruas


centrais foram e ainda são lugares de atividades sociais realiza-
das, sobretudo, por pobres (FREHSE, 2005). Estar na rua é per-
manecer em interação. Mesmo que não se queira podemos nos
deparar com o pedinte, com o camelô apelativo, com a poeira
que sobe devido ao tráfego de veículos, com o lixo jogado pelos
cantos, com as vitrines e com as comidas servidas nas calçadas.
Diante dos dados produzidos pela entrevista conside-
ramos necessário estimular questionamentos relacionados
às impressões sobre as ruas centrais da cidade entrevistando
outras crianças. Sabemos que caberia realizar mais conversas
com crianças, jovens e adultos para podermos compreender, de
modo aprofundado, como esses sujeitos apreendem os cheiros,
os toques, os sons e de que modo eles apresentam seus desejos
de consumir e percorrer a rua. Além disso, como apontamos no
início deste capítulo, cabe-nos também pensar em modos de fa-
vorecer o direito à cidade. Tal direito relaciona-se a uma certa
recusa à organização discriminatória e segregadora. Quando a
entrevistada demonstra estranhamento em suas incursões na
avenida Expedito Garcia, podemos observar sinais de uma ten-
dência segregatória. Um olhar que reproduz uma posição de
classe e expõe incômodo por conviver com tipos sociais dife-
renciados. O interessante seria contribuir para que essa criança
compreendesse que cidade pode ser um espaço de segregação.
E, a partir de tal entendimento, poder recusar e criticar estra-
tégias que lançam para os espaços periféricos todos os que não
participam de privilégios políticos e que não detêm poder eco-
nômico. Segundo Lefevbre (2016), para se promover o direito à
cidade, é necessário proporcionar o direito de encontro, de reu-
nião; lugares e objetos devem responder a certas necessidades,
as necessidades sociais.
Contudo, tal direito pleno está longe de ser alcançado na
118

sociedade marcada pela extrema desigualdade social. Por isso


a importância da educação, das problematizações que podem
ser feitas por um mediador atento às questões contemporâneas
que atravessam a sociedade urbana. É fato que cada um de nós
percebe a rua de um modo, mas por meio de interações contra-
-hegemônicas podemos favorecer o diálogo sobre as contradi-
ções que atravessam esse espaço da cidade para que possamos
compreender por que os pedintes, camelôs e os transeuntes
anônimos estão ali. Além disso, colocar também em evidência a
história das ruas centrais da cidade para melhor compreensão
desses espaços e, de modo geral, da sociedade na atualidade.
Uma sociedade cercada por contradições e pelas armadilhas
do capital, mas capaz também de buscar alcançar, por meio de
ações coletivas, um não-lugar, uma utopia.

Considerações Finais

Neste capítulo buscamos apresentar contribuições de Hen-


ri Lefebvre para a leitura da cidade. Iniciamos situando algumas
produções desse autor, colocando em evidência dez pressupos-
tos fundamentais para a leitura do urbano. Dois aspectos foram
elencados como balizadores da escrita deste texto: a análise dia-
crônica e sincrônica da cidade. Iniciamos discorrendo sobre a
análise diacrônica do eixo espaço temporal da cidade política,
comercial, industrial e urbana. Diante do exposto, foi possível
compreender os problemas da cidade e seu processo de urbani-
zação a partir das críticas feitas pelo autor ao poder industrial
que modela a cidade de acordo com os interesses do capital. Es-
sas ponderações nos impulsionaram a refletir sobre o tema, a
partir da apresentação de um episódio que envolveu o grafiteiro
italiano Blu e suas relações com o mercado de arte e com a espe-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 119

culação imobiliária. De modo geral, observamos que conhecer o


percurso histórico traçado pelas cidades até chegar a sua confi-
guração atual é fundamental para desvelarmos as contradições
existentes na sociedade contemporânea e, de modo específico,
observamos a potência que a arte possui para trazer à tona refle-
xões sobre a vida e oferecer múltiplas leituras que rompem com
resignações passivas que abarcam as estratégias hegemônicas.
Por fim, apresentamos algumas reflexões sobre o eixo sin-
crônico com ênfase no tema “rua” como exemplo do nível misto,
tendo como objeto de análise entrevista que fizemos com uma
criança de onze anos visando abarcar aspectos importantes para
a leitura da cidade. Os dados produzidos nos levaram a perce-
ber que a rua necessita também ser compreendida como espaço
mediador e contraditório, que historicamente comportava ati-
vidades sociais realizadas por pessoas pobres e, que aos poucos,
passou a se constituir como lócus que comporta atividades co-
merciais importantes para a reprodução da sociedade capitalista.
Na tentativa de contribuir com o estabelecimento de fis-
suras que poderão colaborar com a transformação do modelo
capitalista de sociedade, concordamos com Lefebvre quando
ele defende a criação de uma estratégia de transição oriunda
principalmente da classe desprivilegiada, na busca por outra
concepção de sociedade que contribuirá com a destruição do
plano de segregação realizado pelos donos do capital durante
o processo de industrialização e de urbanização das cidades.
Por fim, deixamos um excerto do filósofo e sociólogo fran-
cês Henri Lefebvre que nos ajuda a compreender como pode-
mos pensar em estratégias contra-hegemônicas para superar-
mos o capitalismo e, por meio do direito de nos apropriarmos
da cidade, alcançarmos um mundo sem desigualdade social.
120

O direito à cidade não pode ser concebido como um simples


direito de visita ou retorno às cidades tradicionais. Só pode
ser formulado como direito à vida urbana, transformada, re-
novada. Pouco importa que o tecido urbano encerre em si o
campo e aquilo que sobrevive da vida camponesa conquan-
to que “o urbano”, lugar de encontro, prioridade de valor de
uso, inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de
supremo bem entre os bens, encontre sua base morfológica,
sua realização prático-sensível. O que pressupõe uma teoria
integral de cidade e da sociedade urbana que utilize recursos
da ciência e da arte. Só a classe operária pode se tornar o agen-
te, o portador ou o suporte social dessa realização (LEFEBVRE,
1991, p. 116-117).

Nossa luta continuará em busca da ampliação da consciên-


cia de classe por meio da educação. Avante em busca da cons-
trução coletiva da travessia.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 121

Referências

BEZERRA, Omyr Leal. Cariacica (resumo histórico). Vitória/ES:


Edições Renato Pacheco, 1951.

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo. Companhia


das Letras, 1990.

FREHSE, Fraya. O Tempo das Ruas na São Paulo de Fins do


Império. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

FREHSE, Fraya. Ô da Rua: o transeunte e o advento da moder-


nidade em São Paulo. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2011.

FREHSE, Fraya. Tão longe, tão perto: percepções das ruas de


centro de São Paulo em fins do Império. In: CAMARGO, Ana Ma-
ria de A. São Paulo, metrópole em mosaico. São Paulo: CIEE,
2010. p. 91- 116.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Editora Moa-


res, 1991.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro,


2001.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Editora Moa-


res, 1991.

LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed.


UFMG, 2008.
122

LEFEBVRE, Henri. Espaço e política: o Direito à cidade II. Belo


Horizonte: Ed. UFMG, 2016.

WE MING. Street Artist #Blu Is Erasing All The Murals He


Painted in #Bologna. Bologna, 12 març. 2016. Disponível em:
<http://www.wumingfoundation.com/giap/2016/03/street-
-artist-blu-is-erasing-all-the-murals-he-painted-in-bologna/>.
Acesso em 26-02-2017.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 123

Capítulo II
Educação na cidade de
Vitória - Espírito Santo
124
A modernização da cidade de Vitória:
Reflexões sobre a história capixaba
Patrícia Guimarães Pinto
Priscila de Souza Chisté

A história de um povo é construída ao longo do tempo atra-


vés de sua memória, seu patrimônio, sua cultura, seus costumes
e valores. A identidade de um grupo é formada e transformada
pelas diversas representações sociais que vão se desenvolvendo
no cerne de sua sociedade. A memória possui papel fundamen-
tal na construção dessa identidade e, segundo Le Goff (1990), a
memória contribui para que o passado não seja esquecido, pois
permite que o homem resgate e atualize impressões e informa-
ções do passado fazendo com que a história se eternize na cons-
ciência humana.
A análise do processo de modernização da cidade de Vi-
tória tem por objetivo refletir sobre essa memória e colocá-la
em permanente dialética, contribuindo assim com a constan-
te construção da identidade capixaba, sendo ela individual e
também coletiva, permitindo sua continuidade. Le Goff (1990,
p. 426) diz que devemos nos pautar nessa “[...] memória social
126

que é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do


tempo e da história [...]” reforçados por meio da formação de
um povo e do que os une através da apropriação de valores que
irá se perpetuar através das gerações.
Buscando manter a história da cidade de Vitória em cons-
tante debate e certos de sua importância para a constituição
deste estado, enquanto sua capital, buscaremos tecer conside-
rações sobre os principais momentos da modernização que in-
fluenciaram na paisagem física e, por conseguinte, no cenário
político e social da cidade e abordar como os diversos espaços
da mesma possuem potencial educativo no processo de for-
mação do indivíduo ao conhecer e se apropriar de sua cidade.
Para que tais objetivos sejam alcançados, abordaremos na
seção primeira alguns pressupostos e conceitos acerca da cida-
de e de seu potencial educativo. Na segunda seção, conceituare-
mos o termo modernidade, já que o mesmo é fundamental para
entendermos o processo de modernização ocorrido na cidade
de Vitória. Na terceira seção, contextualizaremos o cenário
mundial e em seguida, na quarta seção, abordaremos o início da
colonização do Espírito Santo. A seguir, discorreremos sobre os
principais períodos da modernização de Vitória abordando de
forma sucinta, porém elucidativa, as diversas transformações
sofridas pela cidade de Vitória ao longo dos séculos. Por fim,
concluiremos fazendo alguns apontamentos sobre a importân-
cia da apropriação dos espaços da cidade como instrumentos
que contribuam no processo de identidade e memória do povo
e da sociedade e seu potencial educativo.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 127

Sobre a cidade e seu potencial educativo

Começamos este tópico chamando a atenção para o concei-


to de direito à cidade, extraído de Lefebvre (2001), que o define
como sendo, em poucas palavras, o processo de inclusão de toda
a sociedade nos benefícios gerados pela vida urbana. Para tanto,
é necessário habitar a cidade, como sendo não só a moradia em
si, mas sim um movimento de apropriação do espaço e de todas
as suas potencialidades, aprofundando-se na teia urbana da ma-
neira mais íntima possível. A esse movimento Lefebvre (2001)
atribui o direito à cidade, título que deu a uma de suas obras e
que é um desafio a ser superado, ficando latente no trecho:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direi-


tos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao
habitat e ao habitar. O direto à obra (à atividade participante) e
o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade)
estão implicados no direito à cidade (LEFEBVRE 2001, p. 134).

A cidade nos é apresentada, então, como espaço máximo


de nossas vivências. Ela foi construída no decorrer do tempo
pelas mãos humanas e deve ser usufruída por todos nós. Buscar
compreender o papel dessa cidade que educa, em tese, a todos
os que pertencem a ela, se torna objeto de análise, na medida
em que aproximamos os sujeitos e as diversas configurações de
espaços presentes na cidade. Promover, de forma consciente e
crítica, tal aproximação, faz com que se estabeleçam relações de
maior aproveitamento e apropriação desses espaços. Por meio
da construção de conceitos relacionados com a cidadania o es-
paço citadino pode educar a todos os seus habitantes e oferecer
a eles oportunidades variadas de ampliação de conhecimentos.
No entanto, para que esse processo ocorra, Chisté e Sgar-
bi (2015, p. 03) nos chamam a atenção para o fato de que “[...]
128

para o indivíduo se constituir como ser humano, é preciso que


internalize as produções humanas que foram sistematizadas na
trajetória da humanidade, sendo a cidade um exemplo dessas
produções”. Afirmam, ainda, que essa internalização deve ocor-
rer no processo de educação, vista como mediadora, um pro-
cesso constante que visa contribuir para a transformação dos
indivíduos através das relações que eles estabelecem entre si,
com os outros e com o mundo. Chisté e Sgarbi (2015, p. 06) argu-
mentam sobre o conceito da educação na cidade, corroborando
os pensamentos propostos por esse capítulo, afirmando que

[...] todo ser humano é um educador ou um educando. O que de-


fine isso é a postura de cada um. Depende do modo como se com-
porta no ambiente em que vive ou no que está a conhecer. É as-
sim que os espaços passam a ser realmente espaços educativos.

Assim, consideramos que a educação possui papel funda-


mental nas reflexões sobre os modos como se configura a cida-
de e, em especial, como se configurou o processo de moderniza-
ção da cidade de Vitória, aspecto que observamos, por meio de
experiência própria e de relatos de profissionais da educação,
ser pouco discutido no espaço escolar e que é relevante para se
conhecer e perpetuar a memória e a identidade capixaba, aqui
descrita como primordial na construção da história do estado
do Espírito Santo.

Modernidade e modernização

O conceito de modernidade está relacionado à ideia de


novo, de rompimento, de mudança e progresso, se opondo ao
clássico e às tradições. A nova forma de pensamento traz como
princípios básicos o racionalismo, a difusão da ciência e tam-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 129

bém a mudança do próprio homem enquanto indivíduo, co-


locando-o como centro de sua própria vida e da sociedade. O
movimento surgiu com o Renascimento se contrapondo à Idade
Média e desenvolveu-se ao longo dos séculos XVI e XVII com
grandes filósofos, pensadores e cientistas, tendo como princi-
pal expressão o Iluminismo25.
A modernidade surge, então, como um questionamento filo-
sófico da sociedade, de sua arte e cultura e traz à tona a crença na
ciência e na razão com objetivo emancipador do sujeito. Portan-
to, o modernismo seria o movimento decorrente da modernida-
de, que defende a renovação do pensamento, buscando sempre
a ideia de progresso e ruptura com o denominado tradicional.
O processo de modernização das cidades tem início na Eu-
ropa, em países como França e Inglaterra, e nasce com os mes-
mos preceitos de renovação, progresso e embelezamento. Nesse
sentido, as formas dadas às cidades se transformam em repre-
sentações dessas mudanças. O urbanismo surge como disciplina
técnica e científica no final do século XIX e tem como objeti-
vo tornar as cidades funcionais e também bonitas, tendo Paris
como sua principal inspiração, fato que veremos adiante, e que
se transpôs para grandes capitais no Brasil, incluindo Vitória.
Segundo Berman (2007), a modernidade está sempre se
reinventando e pressupõe transformação constante seja no
campo material ou intelectual, fato que possibilita sua perma-
nência até os dias de hoje. Veremos, no decorrer do texto, como
o movimento de modernização esteve presente em momentos
importantes de modificação da paisagem física e política da
cidade de Vitória, tendo início com o advento da República e

Movimento intelectual do século XVIII de caráter racionalista que valoriza-


25

va a experimentação e o materialismo e criticava a superstição e o dogmatis-


mo. Kant define o Iluminismo dizendo que ele permite ao homem sair de sua
menoridade, ensinando-lhe a pensar por si mesmo.
130

todas as mudanças decorrentes da mesma, a partir do final do


século XIX.

Contexto histórico

A modernização é um conceito recente em nossa historio-


grafia e é decorrente da Revolução Francesa, ocorrida no século
XVIII, de seus ideais libertários e da nova configuração social
e econômica definida nesse processo. O movimento europeu,
que antecede a modernização de Vitória e de outras capitais do
Brasil e do mundo, toma força a partir da metade do século XIX,
com grandes descobertas tecnológicas, como afirma Ferreira
(2009, p. 70):

[...] a ciência fazia revelar as luzes do progresso e da civili-


zação com todos os seus símbolos: luz elétrica, grandes bou-
vevards, telégrafo, locomotiva, enfim todas as representações
do triunfo de uma modernidade que tinha pressa e não podia
esperar. Um tempo onde a civilização se impunha como um
caminho sem retorno, com uma força tamanha propagada aos
lugares mais recônditos [...]

A revolução industrial deu início às mudanças rumo ao


progresso. Essas transformações ficaram evidentes, inicialmen-
te, em países como França e Inglaterra. O projeto de reforma
e urbanização que ocorreu em Paris entre 1851 e 1870 tornou-
-se conhecido mundialmente e não passou despercebido pelos
arquitetos, urbanistas e homens públicos brasileiros. A auto-
ra afirma que a mudança econômica do Brasil, da agricultura
para a industrialização, balizou o interesse e a necessidade em
se modernizar as mais antigas capitais brasileiras, destacando
nesse momento Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Vitória.
Um dos principais projetos que influenciaram a revitali-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 131

zação da arquitetura urbana no Brasil foi a reforma da capital


francesa, denominada haussmanniana, que foi instituída pelo
prefeito de Paris, Georges-Eugène Haussmann, entre 1852 e
1870. A reforma revitalizou e higienizou a cidade trazendo uma
valorização estética da paisagem urbana com elementos do
imaginário republicano recém-incorporado. Ações, como lim-
peza da cidade, demolição de vias estreitas, ainda remanescen-
tes da época medieval, construções de jardins e parques foram
algumas das mudanças postas em prática na Paris da segunda
metade do século XIX.

A Capitania do Espírito Santo

A Capitania do Espírito Santo se estabeleceu em 23 de maio


de 1535, com a chegada de Vasco Fernandes Coutinho com cer-
ca de sessenta colonos, que construíram suas casas na região
próxima ao atual morro do Moreno, em Vila Velha. Assim que
chegou, Vasco Fernandes doou as ilhas menores aos seus colo-
nos. Em 15 de julho de 1537, a Ilha de Santo Antônio foi doada a
Duarte de Lemos, que construiu ali a primeira edificação, a ca-
pela de Santa Luzia, entre 1537 e 1540, em sua fazenda chamada
Rio das Roças Velhas. A capela permanece na paisagem até os
dias de hoje.
Em 1540, por questões políticas relacionadas à cobrança de
tributos e outras desavenças, Duarte de Lemos foi embora para
a capitania da Bahia deixando para trás a ilha com pequenas
construções: a fazenda e um engenho de açúcar. O processo de
transição dos colonos para a ilha iniciou-se por volta de 1549. A
Vila de Vitória é registrada oficialmente em 08 de setembro de
1551, tornando-se a sede da capitania de Vasco Fernandes Cou-
tinho. A seguir, falaremos dos principais momentos de trans-
132

formação na paisagem da Ilha de Vitória e também dos diversos


aspectos políticos e sociais que permearam tais mudanças.

O Nascimento da capital

O primeiro momento de mudança da paisagem se inicia no


século XVI, mais precisamente em 1551, quando Vitória foi fun-
dada na chamada Ilha de Santo Antônio, que passa a receber
o nome de Vila de Vitória, seguindo até início do século XIX.
A escolha da ilha foi pensada estrategicamente, pois a capital
antiga, Vila Velha, ficava em área próxima à baía, suscetível a
ataques de embarcações e de índios. A escolha da ilha é apon-
tada por Klug (2009, p. 17) pois “O terreno era bastante irre-
gular, com muitos recortes e afloramentos rochosos que pode-
riam funcionar como pontos estratégicos de defesa”. É possível
observar na Figura 1 a paisagem de Vitória que foi construída
através dos anos até o século XIX.

Figura 1 - Vitória no século XIX

Fonte: Acervo da Biblioteca Central da Ufes.

No Brasil, o processo denominado civilizatório, que com-


preende o período colonial (1500-1822), foi marcado pela influ-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 133

ência lusitana e dos jesuítas, responsáveis pela catequese dos


índios e também pelo auxílio prestado às famílias dos colonos.
Juntamente com essa forte influência religiosa nos costumes e
hábitos, também é possível notar a grande produção cultural e
arquitetônica, tantos nas músicas, brincadeiras, vestimentas e
culinária, quanto nas construções do período, que possuíam es-
tilo barroco trazido da Europa e que podem ser vistas nas Igre-
jas e casarios mais antigos de Vitória. Observando a arquitetura
da época, vemos a simplicidade das formas, cores e composi-
ções do interior, já que havia uma escassez de mão de obra es-
pecializada e de materiais adequados. No entanto, isso não im-
pediu a construção de obras importantes que podem ser vistas
até os dias de hoje, ainda que tenham sofrido alterações. Como
exemplo, podemos citar diversas igrejas, como: a Capela de San-
ta Luzia (1537) (Figura 2), Igreja do Rosário (1765), Igreja de São
Gonçalo (1707) (Figura 3), o Convento de São Francisco (1591),
além de diversas outras construções como casarios e comércios.

Figura 2 – Capela de Santa Luzia (1537)

Fonte: Acervo pessoal.


134

Figura 3 – Igreja São Gonçalo (1707)

Fonte: Acervo pessoal.

No início do século XIX, o Espírito Santo contava com 24.587


habitantes, seis vilas, oito povoados e oito freguesias, números
que nos mostram o crescimento do Estado e expansão territorial.
O tempo que compreende o início do Império até a proclamação
da República, em 1889, foi de expansão demográfica, através das
diversas imigrações ocorridas e da expansão da cultura cafeeira.

O advento da República

A Vila de Vitória foi crescendo em torno da baía e possuía ruas


tortuosas, pequenas e irregulares, com grandes ladeiras onde, no
topo, ficavam concentradas as construções mais importantes da
cidade. Segundo Derenzi (1965, p. 112), “Vitória foi tipicamen-
te cidade colonial portuguesa. Os arruamentos, a apresentação
arquitetônica, as proporções de seus sobrados [...] que as ruas
fossem tortas, estreitas, algumas com menos de cinco metros”.
Esse cenário se estendeu até meados do século XIX, com
a população situada, basicamente, no litoral e com vistas para
a baía de Vitória, quando a independência do Brasil e o impé-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 135

rio trouxeram diversos impactos para a política, a sociedade e a


economia do Espírito Santo. A segunda fase presente na confi-
guração da cidade tem início no fim do século XIX, juntamente
com todo o movimento de urbanização que vinha ocorrendo no
Brasil e no mundo e que se estendeu até meados do século XX.
O processo de modernização da cidade de Vitória guarda em
si a significação do advento da República no fim do século XIX e
início do século XX, trazendo à tona toda a ânsia de inserção do
estado na nova configuração política e social da época, que ha-
via começado a ser delineada em todo o Brasil, possuindo forte
influência mundial. Tais mudanças foram necessárias para que
a cidade adentrasse de vez na era republicana e rompesse com
o aspecto religioso e colonial, assim como nos afirma Schutz-
-Foerste (2011, p. 27), ao dizer que “[...] os acontecimentos reli-
giosos deram lugar aos encontros cívicos. Isso ainda hoje se re-
pete. É também um espaço cujas transformações são visíveis”.
Essas mudanças, assim como tantas outras já vistas
como essenciais, ocorreram principalmente nos governos
de Moniz Freire (1892-1896 e 1900-1904), Jerônimo Montei-
ro (1908-1912), se estendendo até o governo de Florentino
Avidos (1924-1928), que agiram incisivamente no processo
de modificação da paisagem física, social e política da cida-
de de Vitória e fizeram com que as relações na cidade ficas-
sem permeadas pelo cenário que vinha se configurando na
tão recente República. A seguir, comentaremos de forma bre-
ve algumas características dos governos desses três políticos.

a) Moniz Freire (1892-1896 e 1900-1904)

Moniz Freire assume a administração do estado em um


momento especialmente promissor, pois o café, principal
produto de exportação, encontrava-se com o valor da saca
136

nas alturas, aumentando em cinco vezes a receita do Esta-


do e trazendo a tão necessária estabilidade, como nos rela-
ta Campos Júnior (1996). Tal questão motivou não só os pen-
samentos vanguardistas de Moniz Freire, como os projetos
e início de obras há tanto tempo pensadas e necessárias, mas
que só começaram a se concretizar, de fato, no século que se
iniciara. O intenso trabalho de transformações físicas, a fim
de dar à Vitória ares de capital da recém-nascida Repúbli-
ca, passou, como nos mostra Schutz-Foerste (2011, p. 36), por

[...] alargamento de ruas, construção de avenidas retilíneas


e calçadas largas, aterro de praias e de áreas de manguezais;
abastecimento de água, rede de esgoto, construção de edifí-
cios, praças e jardins públicos, para a manutenção de áreas ver-
des, em meio às quais sobressaíam esculturas monumentais.

O plano idealizado por Moniz Freire para Vitória pre-


via: projetar a província nacionalmente e centralizar como
polo nacional de exportação; ocupação das terras devolu-
tas, incentivando a imigração; prover a infraestrutura de
transporte com ferrovias, estradas e portos ligando Vitó-
ria ao mundo; ampliar o ensino público; reforçar a identi-
dade local, através da construção da memória; e construir
uma nova elite voltada para os interesses do estado.
Ao observar o teor das mudanças propostas, é possível per-
ceber o pensamento de Moniz Freire em longo prazo, e, não so-
mente, com coisas pontuais e momentâneas. Ele almejava que
Vitória tivesse papel de centralidade e protagonismo, atraindo
para si o comércio de Minas Gerais, bem como o comércio do pró-
prio estado e mesmo internacional, por meio da modernização
do porto e implantação de uma malha ferroviária satisfatória.
É com base nessa visão de vanguarda que, logo no primei-
ro governo, Moniz Freire propõe um ousado projeto de moder-
nização da cidade, que tinha como objetivo ampliá-la cerca de
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 137

seis vezes o tamanho atual. Além das mudanças propostas para


a parte já construída, como as citadas anteriormente, o proje-
to denominado de Novo Arrabalde26 deveria, como nos afirma
Klug (2009 p.27), possuir características físicas diversas da en-
contrada no núcleo inicial central que era visto pelo engenheiro
responsável pelo projeto, Saturnino de Brito27, como um erro.
Esse projeto extremamente inovador propunha ainda
grandes áreas públicas, como bosques e parques, aproveitando
e valorizando as paisagens naturais presentes na cidade. O dife-
rencial desse empreendimento estava justamente na inovação
proposta por Saturnino de Brito, na qual a estética e a higieni-
zação faziam parte da mesma proposta.
O projeto do Novo Arrabalde foi, antes de tudo, “[...] uma
nova organização do espaço em âmbito estadual, e tinha por
finalidade motivar o desenvolvimento, através da atração e
centralização espacial de capitais privados em Vitória, dirigi-
dos para o comércio” (CAMPOS JÚNIOR, 1996, p. 138). Tal ação,
proposta então por Moniz Freire, seria a primeira de inter-
venção planejada do espaço a fim de transformar a capital no
centro do comércio do café do Espírito Santo e Minas Gerais.
Apesar de o projeto ser considerado inovador e ousado,

26
De acordo com o Dicionário online Online de Português, Arrabalde significa:
s.m. Que se encontra localizado na periferia de uma cidade; fora dos limites de
uma cidade; subúrbio. Local extremamente afastado do centro (cidade, bairro
etc); arredor. (Etm. do árabe: ar-rabad). Disponível em: <http://www.dicio.
com.br/arrabalde/>.
27
Conforme nos diz Bertoni (2015), Francisco Rodrigues Saturnino de Brito
formou-se engenheiro civil em 1886 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro
tendo participado da expansão da malha rodoviária de vários estados brasi-
leiros como Minas Gerais, Pernambuco e Ceará. A partir de 1892 começa a re-
alizar trabalhos voltados para a área de saneamento básico vindo a participar
de importantes projetos em Vitória/ES, Campos dos Goytacazes/RJ, Santos/
SP, validando através deles princípios higienistas a fim de construir um saber
urbano de matriz sanitária.
138

propondo para Vitória aspecto real de modernização, algumas


ponderações são feitas sobre a real motivação do projeto. Cleto
Nunes28, político pertencente ao grupo de Moniz Freire, interme-
diou o contrato entre o governo e a Companhia Torrens, em 1890,
suscitando muitos boatos acerca dos benefícios que seriam con-
cedidos à empresa. Tal Companhia ficaria responsável pelo pro-
cesso de regularização da infraestrutura básica, construção de
estradas e aterros, como o do Campinho, atual Parque Moscoso.
Ainda que a expansão para o nordeste só viesse a ocor-
rer no governo de Jerônimo Monteiro, o projeto do Novo Ar-
rabalde se adequava aos novos conceitos de modernidade.
Tal projeto incorporava um ideário que visava transformar a
capital na praça comercial principal do estado, com grandes
expectativas de desenvolvimento e ampliação da atividade
portuária, importadora e exportadora, e também das ferro-
vias. O principal produto comercial era o café enviado para
outros estados e também para diversos países do mundo.

b) Jerônimo Monteiro (1908-1912)

Ao assumir, em 1908, Jerônimo de Souza Monteiro conti-


nuou o processo de remodelagem da cidade de Vitória já ide-
alizado, porém não executado a contento, por Moniz Freire, a
partir de 1892, almejando retirar da capital os aspectos colo-
niais restantes do Império. Entre suas propostas estava o Plano
de Melhoramentos e de Embelezamento de Vitória, que foi um
projeto criado para ratificar as ideias já sinalizadas por Moniz
Freire e que começaram com diversas ações, como a derrubada
de casas e igrejas, desapropriações, construção de ícones nacio-

Jornalista, deputado no período de 1878 a 1891, conselheiro municipal e se-


28

nador em 1898 (DERENZI, 1965, p. 166).


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 139

nais que dariam força ao advento da República, construção de


novos prédios do governo, muitos circundando o Palácio An-
chieta, alargamento de ruas, aterros em grandes áreas, instala-
ção do bonde elétrico e de luz elétrica por todo o centro, água
e esgoto, construção de parques públicos e praças, drenagem,
matadouro municipal, cemitério municipal, aterros e hospital.
Jerônimo Monteiro almejava, através do seu Plano de
Melhoramentos, prover a capital do Estado com água enca-
nada, luz elétrica e rede de esgoto, ações que visavam aten-
der à sociedade e criar um ambiente urbano em condições
de receber investimentos que iriam aumentar a receita pú-
blica. Esse projeto estabelece uma nova forma de se ver a ci-
dade, buscando a sua remodelação, alinhando beleza, sa-
neamento e modernização, construindo jardins, edifícios e
dando à cidade nova configuração, como nos aponta Klug (2009).
Seguindo a ideia de embelezamento e trazendo para a
capital características europeias e também um agir europei-
zado, temos a construção do Parque Moscoso (Figuras 4 e 5),
que trará para Vitória um local onde a burguesia, estabeleci-
da recentemente, encontra um espaço para lazer e relacio-
namentos sociais. Pessoas passeando pelo parque, que pos-
sui fontes e esculturas imponentes, com praças e ruas largas
e arborizadas lembrando a arquitetura presente na Europa
e em outras capitais brasileiras – já reflexo de remodelações.
140

Figura 4 - Parque Moscoso

Figura 5 - Parque Moscoso

Fonte: Acervo pessoal.

Importante ressaltar que muitos desses projetos se inicia-


ram no período em destaque e se estenderam por anos a fio. A
arquitetura foi aos poucos perdendo características do perío-
do colonial com influência jesuítica e adquirindo aspectos do
ecletismo iniciado por Justin Norbert. Esse arquiteto francês
reformou, a pedido de Jerônimo Monteiro, o Palácio Anchieta,
trazendo características haussmannianas para a arquitetura
desse prédio, acabando por retirar dele de uma vez por todas
seus traços jesuíticos.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 141

Com o argumento da necessidade de utilização de alguns


setores do Palácio para funcionar como repartições públicas, a
antiga Igreja de São Tiago foi sendo substituída e sofreu muitas
modificações configurando-se definitivamente em um prédio
com conotação política. A partir desses ideais a Igreja da Miseri-
córdia, localizada próxima ao Palácio Anchieta, também cedeu
lugar ao prédio da Assembleia Legislativa.
Apesar do reconhecimento do trabalho feito por Jerônimo
Monteiro, algumas são as perdas do período, no que se refere ao
patrimônio histórico da capital, descaracterizando um momento
significativo para a história capixaba, a saber, a influência jesuí-
tica sobre os colonos, que por tanto tempo estiveram desorien-
tados e desprotegidos, não só de fortuna, mas também do apoio
da coroa. Em vinte anos, tais ações dos governantes, quase apa-
gam por completo do cenário de Vitória os vestígios do passado,
que nas palavras de Derenzi (1965) foi pobre, porém glorioso.

c) Florentino Avidos (1924-1928)

Outro importante governador que contribuiu com o pro-


cesso de modernização da capital de Vitória foi Florentino
Avidos, que governou o estado entre 1924 e 1928. No período
compreendido entre os governos de Jerônimo Monteiro e Flo-
rentino Avidos, que se estende de 1913 a 1923, houve três gover-
nos pouco expressivos na expansão do estado, ficando estagna-
dos ou mesmo dando andamento às obras de seus sucessores.
Fato importante a lembrar, é que tais governos compreendem a
Primeira Guerra Mundial, tendo sido tempo de pouca prosperi-
dade e de cautela extrema com gastos. Entre 1913 a 1923 os go-
vernantes limitaram-se a dar continuidade às obras já iniciadas,
abrindo assim caminho para a gestão de Avidos.
Como Florentino Avidos era engenheiro e estivera a frente
142

do Plano de Melhoramentos de Vitória durante o governo que


precedeu o seu (Nestor Gomes), ele já era conhecedor da capital
e também das diversas demandas e projetos a serem implemen-
tados.
O governo Florentino Avidos realizou um número signi-
ficativo de mudanças estruturais na região central de Vitória,
a fim de “[...] adequar Vitória aos modernos padrões urbanos
existentes” (FERREIRA, p. 202). Diversas foram as ações postas
em prática durante o governo, tais como:

Desapropriações, indenizações, escavações aterros, demolição


de prédios, alargamento e calçamento de ruas e avenidas. Co-
locação de meios-fios, construção de novos passeios, ladrilha-
mento e drenagem de vias, expansão da iluminação pública
com troca e implantação de novos postes e luminárias, melho-
rias nos serviços de água e esgoto, mudanças e ampliação na
linha dos bondes, entre outras, foram as ações desenvolvidas
no antigo sítio histórico da cidade. As ruas Jerônimo Monteiro,
Primeiro de Março, Duque de Caxias, Ladeira do Palácio, Sete
de Setembro, Graciano Neves, Coronel Monjardim, Treze de
Maio, do Oriente, do Rosário, Gama Rosa, Coutinho Mascare-
nhas e travessa, Ladeira Professor Balthazar, Henrique Couti-
nho, Washington Pessoa, General Câmara, Ararigboia, General
Osório, Caramuru, São Francisco, viaduto ligando a ladeira São
Francisco à rua do Egypto, rua nova e velha do Egypto, Beira
Mar, avenida José Carlos, Escadaria Maria Ortiz, avenida Cleto
Nunes, escadaria da avenida Cleto Nunes, avenida República,
ladeira e escadaria da rua Pernambuco e avenida 15 de No-
vembro foram objeto de melhoramentos, assim como a praça
Costa Pereira, praça João Clímaco e Praça Municipal (FERREI-
RA, 2016, p. 201-202).

É também no governo de Florentino Avidos que se conso-


lidam os grandes aterros, que ocorreram em três momentos

Apelidada de Cinco Pontes por possuir cinco módulos de estrutura metáli-


29

ca que foram comprados na Alemanha e montados em 1928. Disponível em:


<http://www.iia.com.br/guias/pontes.asp>.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 143

diferentes: 1840, 1850 e 1925 e tiveram grande importância no


processo de modernização de Vitória. A drenagem e o aterro do
bairro de Jucutuquara, próximo ao Forte São João, foram ou-
tras ações que contribuíram para que ocorresse a construção de
casas destinadas aos funcionários e operários, bem como para
abrir novas ruas, como nos afirma Ferreira (2016). Também ali
foi construída a estrada que daria acesso ao Novo Arrabalde na
parte nordeste da ilha.
Esse foi, de fato, um momento de construções grandiosas,
de expansão e grandes realizações, com mudanças na estru-
tura física da cidade através de todas as mudanças já citadas;
construções de habitações, prédios públicos, como a Biblioteca
Pública, Mercado da Avenida Central, Grupo Escolar, reforma e
ampliação da Santa Casa, entre outros projetos de exponencial
notoriedade, como a reforma e ampliação do porto, visto na Fi-
gura 6, antes da reforma.
Ainda sobre a ampliação do Porto, outra questão se tornou
um entrave: mantê-lo na ilha de Vitória ou transferi-lo para o
continente? O porto permaneceu na ilha e a ligação foi feita
pela construção da primeira grande ponte entre Vila Velha a
Vitória, a então chamada Ponte Florentino Avidos, mais conhe-
cida como “Cinco Pontes29”, vista ao fundo, na Figura 7, junto
com parte do Porto.
144

Figura 6 – Porto antes da reforma

Fonte: Acervo da Biblioteca Central da Ufes

Figura 7 – Porto atualmente e Ponte Florentino Avidos

Fonte: Acervo de Gabriela Zucoloto.

As obras consolidadas no governo de Florentino Avidos


contribuíram com as modificações que atingiram a paisagem
física e também social da capital, que estava cada vez mais se
inserindo no cenário comercial nacional, através de seu porto,
ferrovias, suas grandes avenidas e construções imponentes que
reforçaram a economia local. Segundo Ferreira (2016, p. 213),
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 145

[...] o advento da ponte, do porto, das rodovias, das ferrovias


e de tantas outras intervenções urbanísticas deu mais fluidez
aos negócios que geravam riquezas e novas expectativas, tor-
nando Vitória uma dinâmica praça comercial muito similar ao
empório de comércio e riqueza sonhado por Muniz Freire.

Esse legado encerra um período de muitas transformações na


paisagem física e também na dinâmica social de uma cidade que
tentou, a todo custo, se inserir no processo de modernização que
atingia todas as partes do mundo com grandes reflexos no Brasil.

A verticalização da cidade

O terceiro momento ao qual nos referimos diz respeito ao


processo de verticalização e a nova expansão da cidade de Vi-
tória. Apesar desse processo ter seu registro mais perceptível
a partir de meados do século XX, identificam-se indícios dessa
tendência em 1926, quando foi aprovado o projeto do Teatro
Glória (Figura 8), considerado o primeiro edifício vertical na
área central de Vitória, possuindo cinco pavimentos, destoando
de toda a paisagem do entorno.

Figura 8 – Teatro Glória atualmente

Fonte: Acervo pessoal.


146

Em meados do século XX, a população da capital continuou


a se expandir em todas as direções: Novo Arrabalde, área cen-
tral e também para o oeste da ilha, tendo como destaque a cons-
trução da rodovia Serafim Derenzi, que acaba por interligar a
região central com a parte oeste. Foi na década de 1940 que co-
meçam a ser aprovados projetos de edifícios na região do Par-
que Moscoso e também nas imediações da avenida Florentino
Avidos que geraram grande impacto visual, como nos aponta
Klug (2009, p. 45):

A construção desses edifícios vai desencadear o início do proces-


so de verticalização que viria a causar uma severa ruptura visu-
al na paisagem da cidade através das alturas, da massa, da esca-
la e da forma das edificações no contexto da paisagem natural.

Em 1954 iniciou-se, de forma oficial, o processo de verti-


calização do centro de Vitória através da promulgação da Lei
nº351, que delimitava em doze pavimentos os edifícios constru-
ídos na região do Parque Moscoso e arredores. Essa ação gerou
grande impacto no sítio histórico da cidade. Essa Lei autorizava
esses edifícios em quaisquer áreas do centro, mesmo nas mais
altas onde, segundo Klug (2009), a altura já era equivalente a
prédios de seis ou sete pavimentos. Esses prédios e a rápida ver-
ticalização, ocorrida na década de 1950, interferiram de forma
abrupta e definitiva na imagem e na história da cidade de Vitó-
ria de outrora e destoa da paisagem ainda nos dias atuais.
O processo tem continuidade na década de 1960, com os ater-
ros na ilha do Príncipe e novas construções que podiam a partir
daí terem até vinte e cinco pavimentos. As barreiras visuais eram
imensas. Já não era mais possível vislumbrar o mar, paisagem
presente por tantos séculos. A identidade histórica, que ainda
se podia ver no centro da cidade, estava agora incrustada entre
as grandes construções que ditavam a nova paisagem da capital.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 147

Um dos aterros em questão ocorreu na Ilha do Príncipe


abrindo espaço para a construção da nova ponte que ligaria
Vitória à Vila Velha, a Ponte do Príncipe30. O segundo aterro
é considerado de maior impacto para a urbanização da Ilha
de Vitória.
Ele ocorreu na região da Praia do Suá e incorpora as ilhas
presentes no litoral, expandindo significativamente seu territó-
rio. O momento no qual está inserida essa expansão refere-se a
um planejamento urbano direcionado para o mercado imobili-
ário, como nos aponta Klug (2009, p. 56), e não mais nos moldes
de Saturnino de Brito, no final da década de 1890. Foi também
nesse momento que o processo de verticalização da Cidade Alta
e do centro de Vitória como um todo se consolida, motivado
pelo forte mercado imobiliário presente.
O centro da cidade, nesse período, já não comportava o au-
mento da densidade e saturação do espaço. Não era interesse do
governo expandir a capital para a chamada “Cidade de Palha” e
adjacências, localidades que abrigavam pessoas menos abasta-
das. Começou nesse momento a expansão para a região recém
aterrada, Praia do Suá, bem como Praia do Canto e Bento Ferrei-
ra, mostrando uma continuidade do processo de verticalização,
que já iniciara há cerca de vinte anos atrás.
Iniciou-se, em meados de 1970, a construção da Ponte Dar-
cy Castelo de Mendonça31, mais conhecida como Terceira Ponte,
fato que impulsionou a expansão para a região do Novo Arra-

30
Mais conhecida como Segunda Ponte liga Vila Velha a Vitória e Cariacica,
dando acesso também à BR 262. Disponível em: <http://www.iia.com.br/
guias/pontes.asp>.
31
Um dos maiores símbolos arquitetônicos da cidade, possui 3,33km de ex-
tensão, 70m de altura e 200m de distância de um pilar a outro, permitindo o
acesso de navios de grande porte. É a maior obra pública realizada no Estado
e o principal meio de ligação Vitória - Vila Velha e com o litoral sul do Estado.
Disponível em: <http://www.iia.com.br/guias/pontes.asp>.
148

balde e redondezas. Essa obra teve imensa importância por dar


à cidade uma nova forma de vê-la. Através dela é possível ob-
servar elementos fortes descritos por Klug (2009 p. 57), como
as Ilhas do Boi e do Frade, o Morro do Moreno e o Convento da
Penha, ícones da paisagem do Estado, além dos afloramentos
rochosos e a Pedra dos Olhos, elementos que haviam sido es-
condidos pela nova configuração imobiliária.
A Terceira Ponte (projetada a partir de 1973 e tendo o início
das obras em 1978), inaugurada em 1989, torna-se, de fato, uma
nova forma de se observar a cidade de Vitória, dando a ela as-
pecto de metrópole e ressaltando, em meio à paisagem, belezas
naturais que dividem espaço com uma capital mais moderna.
Em 1984 foi criado o Primeiro Plano Diretor que visava nor-
matizar a expansão e especulação imobiliária, traçando regras
para a construção de edificações, bem como os locais, tipos e
limites. Observa-se uma preocupação em proteger as paisagens
e o valor histórico da cidade, porém isso não ocorre exatamente
do modo como deveria. As delimitações estabelecidas para as
novas construções circundam os elementos naturais de forma
muito tênue e não garantem a visibilidade desses ícones da na-
tureza e de outros pontos da cidade. Sendo assim, os locais ime-
diatamente próximos aos diversos monumentos naturais ficam
preservados, mas o acesso e utilização pela população ficaram
prejudicados.
Dentre as medidas tomadas estão: a não construção nos ar-
redores imediatos aos grandes elementos naturais, limites na
altura dos prédios, nas diversas regiões da cidade, e proteção
para os afloramentos rochosos.
Quanto às limitações referentes ao centro de Vitória, des-
tacando a Cidade Alta, o Plano Diretor foi mais rigoroso, assim
como descreve Klug (2009), cuja altura máxima ficou estabele-
cida em três pavimentos, tendo alguns pequenos locais, como
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 149

a encosta do Maciço sendo permitidos seis pavimentos, bem


diferente das décadas passadas. Esse foi um período no qual a
cidade teve grande expansão na região compreendida como a
Praia do Canto. Mesmo as restrições naturais, junto aos arredo-
res dos afloramentos rochosos, não impediram uma verticali-
zação exacerbada dessa região durante o tempo que perdurou
o Plano, dez anos.
Após tal período de implantação do Primeiro Plano Diretor
Urbano, fez-se necessário uma reformulação que culminou com
o Segundo Plano Diretor Urbano de Vitória, no ano de 1994. A
grande modificação desse projeto foi a criação de um Zonea-
mento de Planejamento, que se tratava de uma zona de prote-
ção da paisagem que buscava preservar, valorizar e recuperar
os arredores dos afloramentos rochosos e as praias. As áreas
próximas não podiam ultrapassar 15 metros de altitude, o que
não era suficiente para manter a visibilidade desses elementos,
como nos afirma Klug (2009). No que diz respeito ao Centro de
Vitória, as restrições se mantiveram, ficando ainda mais rigoro-
sas e tendo, de certa forma, maior efetividade na preservação
do sítio histórico restante no meio da cidade verticalizada ins-
talada ao seu redor.

Considerações Finais

Este artigo aborda a importância de se compreender o pro-


cesso de modernização da cidade de Vitória e suas diferentes
fases, para que seja possível conhecer e ocupar os espaços da ci-
dade como pertencentes a nós e parte da história da sociedade
capixaba. Importante resgatar a memória existente nas cons-
truções, cenários políticos e sociais de uma cidade que cresceu
e se desenvolveu ao longo dos séculos construindo, reforçando
150

e ressignificando elementos de sua identidade.


Compreendemos a importância de criação de políticas efe-
tivas de preservação dos elementos naturais, culturais e arqui-
tetônicos, ação primordial para que seja despertada na popula-
ção a ligação com seu próprio espaço. O resgate da memória e
a incorporação desses elementos, como parte da realidade, são
primordiais para que essas ações sejam validadas e para que a
cidade seja, de fato, espaço amplo de educação, humanização
e transformação. Como nos apontam Chisté e Sgarbi (2015, p.
10) “[...] podemos afirmar que o cidadão, habitante da cidade,
ao apropriar-se dos conceitos científicos e culturais, com a me-
diação do educador, atinge o estágio de cidadão mais completo,
integrado à cidade e à sociedade”.

Figura 9 – Vista atual do porto de Vitória, tirada do lado oposto da baía, em Vila Velha

Fonte: Acervo de Gabriela Zucoloto.

Vitória (Figura 9) é hoje uma capital com grande projeção


nacional e internacional, tendo conquistado o seu espaço, assim
como muitos de seus governantes de outrora se empenharam.
Cidade de grandes belezas naturais e que passou por diversas
transformações até os dias de hoje. Em sua arquitetura é possí-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 151

vel observar elementos de diferentes épocas e momentos polí-


ticos que conseguiram resistir à ação do tempo e dos homens e
possuem muito a nos ensinar. Espaços de verdadeiro resgate da
memória, da cultura e do diálogo entre diferentes saberes. Tais
locais estão à nossa disposição para serem utilizados, apropria-
dos e ressignificados de modo a podermos dar a eles o verdadei-
ro sentido do processo educativo: a produção de reflexão e de
transformação dos sujeitos envolvidos no processo escolar e no
meio em que vivem.
152

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Vitória (ES) nos cartões-postais:
a cidade em exposição e suas
potencialidades educativas

Dilza Côco
Priscila de Souza Chisté

[...] a magnificiência e prosperidade de Maurília transfor-


mada em metrópole, se comparada com a velha Maurília
provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a
qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos
velhos cartões-postais [...].
Ítalo Calvino

Ítalo Calvino, no livro As cidades invisíveis, apresenta con-


versas do viajante veneziano Marco Polo com o imperador
mongol Kublai Khan. Marco Polo conta as histórias das cidades
que o Imperador conquistou, entre elas Maurília:

Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade e ao


mesmo tempo em que observa uns velhos cartões-postais
ilustrados que mostram como esta havia sido: a praça idêntica
com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no
lugar do viaduto, duas meninas com sombrinhas brancas no
lugar da fábrica de explosivos. Para não decepcionar os habi-
tantes é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 157

-postais e preferi-la à atual, tomando cuidado, porém, em con-


ter seu pesar em relação às mudanças nos limites das regras
bem precisas: reconhecendo que a magnificência e prosperi-
dade de Maurília transformada em metrópole, se comparada
com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa
graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada
através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em pre-
sença da Maurília provinciana não se via absolutamente nada
de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurí-
lia houvesse permanecido antes, e que, de qualquer modo, a
metrópole tem esse atrativo adicional - que mediante o que
se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que se foi.
Evitem dizer que algumas vezes as cidades diferentes sucedem-
-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem
sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes
dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até
mesmo os traçados dos rostos; mas os deuses que vivem com
os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus luga-
res acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se
estes são melhores do que os antigos, dado que não existe ne-
nhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos pos-
tais não representam Maurília do passado, mas uma outra cida-
de que por acaso se chamava Maurília (CALVINO, 1990, p. 31).

Nesse trecho do livro é possível observar o saudosismo dos


moradores de Maurília e a valorização que dão às imagens que
rememoram a cidade em tempos distantes. Olhar a cidade atual
por meio de postais antigos, comparar os espaços, relacionar o
rural e o urbano, a tradição e a modernidade32, as contradições
entre o rural e o industrial são aspectos elencados pelo narra-
dor. Ele aponta a preferência dos moradores pela cidade antiga,
revelando o pesar ocasionado pelo progresso de Maurília até se
constituir como uma metrópole. Tal saudosismo não ocorreria
se Maurília tivesse permanecido nos moldes provincianos, ele
só acontece porque a cidade foi transformada em um local dife-
rente do que antes fora.
Este excerto do livro destaca um aspecto peculiar dos car-
tões-postais: a nostalgia que o leitor sente ao vê-los. Considera-
158

mos que esse sentimento pode ocorrer com intensidades dife-


rentes, dependendo da relação que cada pessoa estabelece com a
cidade que analisa. Se o morador acompanhou o processo de mo-
dernização ele verá as imagens de um modo, com uma empatia
própria. Mas, se for um visitante que não conhece o local, pode,
dependendo da análise que é capaz de empreender, observá-lo
de modos distintos: ignorar o passado da cidade, vangloriando

32
De acordo com o Dicionário Básico de Filosofia, de Japiassú e Marcondes
(2008), modernidade refere-se a uma nova forma de pensamento e de visão
de mundo inaugurada pelo Renascimento e que se contrapõe à escolástica e
ao estilo medieval. Segundo Harvey (2014), o projeto da modernidade rela-
cionava-se ao esforço intelectual de pensadores iluministas para desenvolver
a ciência objetiva, a moralidade, as leis universais e a arte autônoma. A ideia
era usar o acúmulo de conhecimentos gerado até a ocasião em busca da eman-
cipação humana e a melhoria da vida diária. O desenvolvimento de formas
racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia
o domínio da ciência sobre a natureza, a libertação das irracionalidades do
mito, da religião, da superstição, a liberação do uso arbitrário do poder, bem
como do lado sombrio da própria natureza humana. Contudo, tal otimismo
caiu por terra quando no século XX foram criados, em nome de tal desenvolvi-
mento, os campos de concentração, o militarismo, as duas guerras mundiais e
os ataques nucleares a Hiroshima e a Nagasaki. Marx e Engels (1990) compre-
endem a modernidade como transformação, mudança, novidade, revolução,
que faz desmoronar antigas tradições, relações sociais, hábitos e preceitos até
então rígidos e fixos. A modernidade envolve uma ruptura com as condições
históricas precedentes e pode ser interpretada como portadora de uma ten-
são que ao mesmo tempo expressa perspectivas de destruição e de criação.
Segundo Harvey (2014), a destruição criativa é uma das características do
projeto da modernidade, pode ser reconhecida nas artes visuais e também na
arquitetura por meio da grande preocupação com a criação de novos códigos
que rompem com antigas linguagens, valorizando a inovação e a efemerida-
de. Nesse contexto, compreendemos que modernismo é um movimento que
defende a renovação do pensamento e a ruptura com a tradição artística clás-
sica. Já modernização se apresenta como um projeto da modernidade feito a
partir de uma ideologia desenvolvimentista, do progresso e da racionalidade.
Ela envolve a afirmação dos valores da classe social hegemônica e favorece a
ampliação do capitalismo por meio de um processo de expansão territorial.
A sua expressão pode ser identificada nas ruas, nas formas urbanas, nos sis-
temas de transporte, nos contrastes das cidades, nos diferentes lugares, na
velocidade, na circulação de mercadorias etc.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 159

as conquistas da metrópole, ou olhar imagens antigas, compa-


rando-as com a cidade atual, sentindo a melancolia que acirrava
o visitante de Maurília, descrito por Calvino. O ponto de media-
ção, seja qual for o sentimento suscitado, são os cartões-postais.
Diante desses apontamentos iniciais, poderíamos pensar: o
processo de modernização de uma cidade pode ser conhecido
por meio de cartões-postais?
Os cartões-postais foram criados na primeira metade do sé-
culo XIX. De acordo com Fernandes Júnior (2002) o surgimento
desse tipo de comunicação postal simplificada e direta foi favo-
recido por condições sociais, econômicas e tecnológicas. Para
esse autor, o cartão-postal pode ser entendido como integrante
do início do processo de globalização econômica que buscava a
internacionalização de diferentes países através do crescimen-
to do comércio e dos fluxos migratórios de pessoas.
A regulamentação internacional e padronização dos car-
tões-postais no formato 14x9cm, deu-se com a criação da Union
Postal Universal, a partir de 1878, na França. A Em princípio
eles eram puramente textuais e visavam transmitir mensagens
rápidas e de baixo custo. No final do século XIX, abriu-se a pos-
sibilidade de eles serem editorados comercialmente, surgindo
os primeiros cartões-postais ilustrados com desenhos, a partir
de técnicas de gravura e que, posteriormente, passaram a in-
corporar as técnicas de impressão da fotografia. Atualmente
os cartões-postais podem ser considerados como um gênero
discursivo2 que reúne as linguagens verbal e visual (FRANCO,
2006). Contudo, nos limites deste artigocapítulo, privilegiare-
mos a linguagem visual dos cartões-postais, suas relações com o
entendimento do processo de modernização das cidades e com
o campo educativo.
Os estudos sobre a cidade por meio dos cartões-postais
constituem-se como lócus de pesquisa de pequeno interesse en-
160

tre pesquisadores da área da educação. Dissemos isso porque


constatamos por meio de levantamento realizado no Banco
de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior (Capes) que poucas pesquisas
abarcam essa temática. Dos 586 registros a partir do descri-
tor “cartões-postais”, encontramos doze trabalhos, realizados
entre 2013 e 2016, dos quais somente um apresenta pesquisa
realizada em um programa de pós-graduação em educação.
Trata-se da tese de Petry (2016), que tem como objeto de es-
tudo a presença da Art Nouveau na arte gráfica brasileira, par-
ticularmente do Rio de Janeiro, entre os anos de 1895 e 1904.
A autora analisou revistas e exposições de fotografias e tam-
bém de cartões-postais que versavam sobre o tema abordado.
Tal investigação aproxima-se da que estamos apresentando
neste artigo, em especial, por utilizar o gênero textual “car-
tão-postal” como fonte de produção de dados para o estu-
do da cidade. Contudo, a autora não pontua a relevância dos
cartões-postais como modo de mediar propostas educativas.
Diante da possibilidade de contribuir com esse nicho de
pesquisa, elencamos como objetivo principal deste texto apre-
sentar estudo sobre o processo de modernização da cidade de
Vitória, no Espírito Santo, por meio dos cartões-postais, com
vistas a analisar também o potencial histórico e educativo des-
se gênero textual. Para isso, além de realizarmos estudos sobre
cartões-postais que retratam a cidade de Vitória, entre outros
documentos e fontes bibliográficas sobre o assunto, explora-
mos dados produzidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Educação na Cidade e Humanidades (Gepech), do Instituto Fe-
deral do Espírito Santo (Ifes). Em 2016 o grupo realizou quinze
reuniões para discussão de textos teóricos sobre o tema edu-
cação na cidade, organizou seis palestras com pesquisadores
da área, quatro entrevistas em São Paulo com professores da
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 161

Universidade Estadual de São Paulo (USP) e do Instituto Paulo


Freire e também participou de três visitas a espaços expositi-
vos da Grande Vitória, dentre eles o Espaço Cultural do Palácio
Anchieta, para conhecer a mostra de cartões-postais, intitula-
da “Postais do Espírito Santo: acervo Monsenhor Jamil Abib”.
A exposição apresentou mais de 300 cartões-postais e ficou em
cartaz de 19-01-2016 a 17-04-2016.
Como forma de sistematizar este trabalho, na primeira se-
ção dialogaremos com autores que pesquisaram o processo de
modernização da cidade de Vitória e também os que investiga-
ram cartões-postais antigos dessa cidade. Para examinar esse
processo, exibiremos cartões-postais que integram o acervo
particular que pudemos conhecer em visita à mostra do acervo
“Monsenhor Jamil Abib”. Além disso, apresentaremos algumas
potencialidades educativas dos cartões-postais, revelando, na
terceira seção, depoimentos de integrantes do grupo de pesqui-
sa Gepech, de modo a analisar por meio de tais dados empíricos,
a contribuição da visita à referida exposição para o conheci-
mento do processo de modernização da cidade de Vitória. Para
discorrer sobre esses depoimentos e imagens dos cartões-pos-
tais, interagiremos com apontamentos bakhtinianos referentes
aos conceitos de dialogismo e polifonia, sem perder de vista as
recomendações de Marco Polo ao apresentar a cidade de Mau-
rília a Kublai Khan.

A cidade de Vitória no Espírito Santo:


percurso de seu processo
de modernização

Apesar de historicamente o Espírito Santo estar localizado


próximo aos principais polos econômicos do Brasil colonial, o
162

estado integrou a lógica de exploração mercantil das capitanias


hereditárias de forma singular. No século XVIII o Espírito Santo
era considerado uma das províncias mais pobres e até o final do
século XIX possuía uma das menores populações do país. A des-
coberta do ouro em Minas Gerais não afetou o desenvolvimento
do Espírito Santo, pois o escoamento do ouro foi realizado pelo
porto do Rio de Janeiro, cabendo ao Espírito Santo apenas o pa-
pel de defesa natural para impedir o acesso à região de Minas
Gerais. O governo reforçou os contingentes militares e impediu
a abertura de estradas que ligassem o litoral capixaba a região
do ouro como forma de evitar contrabando de pedras e metais
extraídos de Minas Gerais. Além disso, a designação das terras
capixabas como reserva madeireira de Portugal também contri-
buiu para o estado de estagnação econômica mantido durante
séculos. Somente com o declínio da exploração aurífera e com
a chegada da família real ao país a estrada que ligava Vitória a
Ouro Preto foi oficialmente aberta. Esse caminho ficou conhe-
cido como Estrada Real e possuía vários postos policiais monta-
dos ao longo do trajeto. Em torno desses quarteis ergueram-se
vilas que mais tarde transformaram-se em cidades, como por
exemplo o município de Iúna.
O aumento da produção de café contribuiu para a mudança
desse quadro de estagnação. Contudo, por não dispor de infraes-
trutura portuária para receber navios maiores, a produção cafe-
eira era levada para o Rio de Janeiro e comercializada por empre-
sas exportadoras, mantendo a economia capixaba dependente
do grande capital mercantil exportador localizado na cidade do
Rio de Janeiro. Conforme aponta Sueth (2004), o Espírito Santo,
devido a sua carência e pouca autonomia, pode ser considerado
um estado satélite, ou seja, “[...] aquele que, por seu caráter se-
cundário, não dispõe da autonomia necessária para reger seu des-
tino e, por isso, depende de outra entidade que lhe proporcione
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 163

os meios de sobreviver politicamente” (SUETH, 2004, p. 16-17).


Atualmente Vitória possui 359.555 habitantes (CENSO IBGE,
2013), é composta por 34 ilhas, uma parte continental com área
total de 96 km2 e possui 40% da área de seu território coberta
por morros. Foi fundada em 1551 pelos colonos portugueses e,
inicialmente, chamada Ilha de Santo Antônio. A antiga capital,
Vila Velha, ficava em área próxima à baía, suscetível a ataques
de embarcações piratas e à resistência à ocupação portuguesa
por parte dos povos tradicionais indígenas. Por isso, foi neces-
sário mudar a capital do Estado para uma região que tivesse
condições geofísicas que favorecessem a sua proteção/ocupa-
ção e que também contribuísse com a construção de fortifica-
ções como estratégia de defesa. Com essa mudança ocorreram
os primeiros passos para realização de modificações na paisa-
gem34 de Vitória.

Figura 1 – Cartão-postal da Escola de Aprendizes e Marinheiros do Espírito Santo

Fonte: Acervo Monsenhor Jamil Abib.

Neste trabalho compreendemos “paisagem” como “[...] conjunto de formas


34

heterogêneas, de idades diferentes, pedaços de tempos históricos represen-


tativos das diversas maneiras de produzir as coisas, de construir o espaço”
(SANTOS, 1988, p. 24).
164

Antes da mudança da capital para Vitória, algumas ações


de defesa foram implementadas, entre elas a construção do For-
te de São Francisco Xavier de Piratininga, localizado no municí-
pio de Vila Velha. A sua construção foi iniciada em 1674, com o
objetivo de incrementar a defesa da parte sul da baía de Vitória.
O local escolhido para a edificação do forte foi o ponto em que
aportou, em 1535, a caravela de Vasco Fernandes Coutinho, do-
natário da capitania do Espírito Santo. O formato circular da
construção, apresentado na Figura 1 foi elaborado na reedifica-
ção iniciada em 1726. A partir de 1862, o Forte abrigou a Escola
de Aprendizes e Marinheiros do Espírito Santo, apresentando a
preocupação do governo com a formação de profissionais res-
ponsáveis pela segurança das águas capixabas.

Figura 2 – Cartão-postal da Rua das Flores ou Rua Dionísio Rosendo

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 165

Conforme aponta Derenzi (1965), a Vila de Vitória era bem


pequena e no início da colonização a população ocupava um pe-
queno território da ilha. Ela possuía ruas tortuosas e irregulares
(Figura 2), com grandes aclives que dificultavam a circulação e a
comunicação das pessoas, mas ajudavam a proteger a parte mais
alta da cidade, onde se concentravam construções de destaque,
como as igrejas, por exemplo. De acordo com Lima (2013), essas
construções eram compostas por fachadas com geometria bá-
sica, com frontão triangular, duas ou três janelas retangulares
com função de iluminação e ventilação do coro localizado na
parte mais alta do templo (Figura 3). Outro elemento arquitetô-
nico importante era a torre sineira que conferia verticalidade à
construção, evidenciando a superioridade divina.

Figura 3 – Cartão-postal da Igreja Matriz de São Thiago

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012


166

Essas construções com posição de destaque demonstravam


o poder e a força das instituições religiosas, constituindo-se
como marcos visuais na paisagem (Figura 4), assim como mar-
cos do poder simbólico35 (BOURDIEU, 1989)

Figura 4 – Cartão-postal do Convento de São Francisco de Assis

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.

Até o início do século XIX, o desenho da cidade respeitou


os limites da topografia do terreno, conforme os preceitos da
arquitetura portuguesa, e seguiu suas barreiras naturais, tais
como a baía de Vitória, o Maciço Central e as áreas alagadiças
(Figura 5). Durante o período colonial existiu a preocupação e o

35
Para Bourdieu (1989), o poder simbólico é um tipo de manifestação que so-
mente pode ser mobilizado e efetivado com o envolvimento de entes sujei-
tados ou partícipes da produção desse poder, de modo relacional. Em cenas
da vida quotidiana, é possível encontrar situações sociais tomadas como “na-
turais” e que se constituem pela manifestação do poder simbólico. Algumas
relações estabelecidas por membros e por instituições religiosas podem ser-
vir como exemplo de poder simbólico apresentando-se por meio de relações
interpessoais e interinstitucionais. É possível também afirmar que o poder
simbólico está na vida cotidiana. Ele se instaura na vida cotidiana quando as
pessoas são levadas a agir, a repetir gestos e atos numa rotina de procedimen-
tos que não lhes pertencem, nem estão sob seus domínios, podendo ocorrer
por meios místicos ou religiosos.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 167

interesse da metrópole pela constituição de povoações “decoro-


sas”. Essa tendência portuguesa consistia em, no âmbito da ar-
quitetura, valorizar a formosura, a decência, e a comodidade de
edifícios e de cidades. A consideração do decoro contribuiu para
a consolidação de uma política de expansão e conservação das
conquistas e povoações. Era baseada na atenção aos costumes,
às condições dos sítios e dos edifícios já construídos e seguia os
tratados de arquitetura e engenharia militar que subsidiavam a
formação de um corpo técnico responsável pela construção das
colônias portuguesas. Buscava “[...] conciliar as conveniências
metropolitanas e as conveniências coloniais, concentrando as
vilas dotadas de um organismo administrativo municipal – a Câ-
mara” (BASTOS, 2012, p. 202), que tinha a responsabilidade pelo
zelo e coordenação das atividades que ocorreriam na localidade.
O lento desenvolvimento econômico do Espírito Santo não
tornou oportuna a expansão de Vitória. Desse modo, o centro
foi por muitas décadas local de expansão, por aterros ou aden-
samentos por verticalização dos prédios construídos. Entre
1812 e 1819 foram realizados vários aterros nas regiões alaga-
das próximas ao núcleo urbano central para a ocupação de no-
vas áreas da cidade, fato que possibilitou a construção de novas
ruas e residências. Esse tipo de intervenção provocou modifi-
cações no desenho e na percepção do sítio físico de Vitória. Um
dos aterros realizados na ocasião foi o do manguezal do Campi-
nho (Figura 6 e 7), com o intuito de fazer uma passagem para o
centro da Vila e implementar ideias higienistas na região.
168

Figura 5 – Cartão-postal com vista panorâmica da baía de Vitória

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.

De acordo com Derenzi (1965) as condições de higiene da


cidade eram precárias. O lixo ocupava as ruas, quintais sujos,
terrenos cobertos por mato, cemitérios na área urbana e muita
pobreza. Os problemas referentes à insalubridade demoraram
a serem resolvidos devido à falta de recursos financeiros. Além
disso, os governantes limitavam-se a realizar obras de cunho
mais popular que pudessem render-lhes popularidade.

FIgura 6 – Foto da região alagada do Campinho

Fonte: Acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 169

Na figura 6 observamos o manguezal do Campinho, locali-


zada na parte baixa da cidade. Já na figura 7, essa mesma região
é mostrada totalmente aterrada, o que gerou a ampliação do
espaço de ocupação da cidade de Vitória e deslocamento das
pessoas que ali viviam. Nesse local foi construído o Parque Mos-
coso, primeiro parque urbano da capital, inaugurado em 1912.

Figura 7 - Cartão-Postal do Campinho aterrado

Fonte: Acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

O Parque Moscoso (Figuras 8 e 9) passou a ser ponto de en-


contro e de convivência dos capixabas abastados, fato que re-
força a estratégia de classe, apontada por Lefebvre (1991), que
visa retirar dos locais de convivência dos ricos, os pobres, enca-
minhando-os para os subúrbios e periferias da cidade.
170

Figuras 8 e 9 – Cartões-Postais com vistas do Parque Moscoso

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.

Podemos destacar que durante o século XIX os aterramen-


tos e as intervenções realizadas na paisagem de Vitória provo-
caram mudanças significativas no seu sítio físico. Consideramos
que os registros dessas mudanças, por meio da análise dos car-
tões-postais da época, são fundamentais para que compreen-
damos a trajetória histórica de urbanização desta cidade. Eles
permitem que realizemos o acompanhamento das modificações
que foram ocorrendo. São discursos visuais que nos ajudam a
compreender aspectos históricos, sociais e culturais desta épo-
ca. As comparações entre os locais são inevitáveis e nos fazem
aludir ao texto de Calvino, quando diz que por meio dessas ima-
gens podemos recordar com saudades aquilo que um dia a cidade
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 171

foi. Além disso, é possível também compreender as estratégias


usadas pelos governos da época para reafirmar seus projetos
de modernização que englobavam um conjunto de transfor-
mações na estrutura econômica, política e cultural da cidade.
O período compreendido entre o final do século XIX até a
década de 1950 passou por um grande processo de moderniza-
ção, embelezamento e expansão promovido pelo poder público
“[...] que vai modelar partes da cidade e buscar novas áreas de
expansão do tecido urbano” (KLUG, 2009, p. 25). O intuito era
atender à burguesia enriquecida e adequar a cidade ao desen-
volvimento imposto pela economia cafeeira, bem como fazer
fluir de forma mais rápida o comércio da capital.
O núcleo central da capital colonial, cujo traçado seguia a
topografia do terreno, com ruas estreitas, tortuosas e mal ilu-
minadas, passa a ser alterado. As ruas são retificadas e as qua-
dras ganham certa regularidade, buscando adequar o traçado
colonial a um traçado moderno conforme novas referências
criadas a partir do período republicano. Schutz-Foerste, Ferrei-
ra e Conti (2011) apontam que além de novas ruas e avenidas
retilíneas foram construídas também calçadas largas, edifícios,
praças e jardins públicos.
As fotografias dos cartões-postais da Praça do Palácio (Fi-
guras 10 e 11) representam esses elementos modernizantes
incorporados durante as reformas de diferentes espaços da ci-
dade. Tais modificações ganharam relevo durante o projeto do
“Novo Arrabalde” de Vitória, datado de 1896, que propõe a ex-
pansão da cidade por meio de reformas, construções e aterros,
a partir da criação de novos bairros na cidade.
172

Figuras 10 e 11 – Cartões-postais da Praça do Palácio. Aspectos coloniais x modernos

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.

O desenho de Vitória proposto para o “Novo Arrabalde”


consiste principalmente em duas avenidas longas e retas que
acompanhavam o vale entre os morros presentes na região,
convergindo para a saída Norte da cidade, como podemos veri-
ficar na área rosa à direita do mapa, próxima à baía do Espírito
Santo (Figura 12). O “Novo Arrabalde” visava mais do que am-
pliar a cidade existente construir uma nova paisagem urbana.
“A distância que separava o novo bairro da capital não era ge-
ográfica [4km], mas histórica e cultural, pois o Novo Arrabalde
pretendia ser o campo verdadeiro de expansão para uma vida
muito diferente do viver acanhado que oferece a velha cidade”
(ANDRADE, 1999, p. 197).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 173

Figura 12 – Mapa do projeto do Novo Arrabalde, mostrando relação de


escala entre o núcleo existente em 1896 e a área de expansão proposta

Fonte: Acervo Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo.

O movimento de modernização da cidade de Vitória ocorri-


do durante a primeira década do século XX relacionava-se com
o chamado “City Beautiful” que se destacava nos Estados Uni-
dos e nas grandes intervenções urbanas ocorridas na Europa,
em especial, a intervenção haussmaniana em Paris.

A partir de uma valorização estética da paisagem urbana com


a construção de cenários, as cidades modernas se transforma-
ram em símbolo do ideário republicano. Os planos de melhora-
mento e embelezamento das cidades tinham como principais
preocupações a estética urbana, a construção de infra-estru-
tura nas cidades e reforma e ampliação dos portos. As ações
prioritárias concentravam-se na realização de saneamento,
abertura e regularização do sistema viário, com alargamento
das ruas para facilitar a circulação de mercadorias e a comuni-
cação do porto com o restante da cidade (KLUG, 2009, p. 30-31).
174

Figura 13 – Cartão-postal do Porto dos Padres em 1910

Fonte: Acervo Monsenhor Jamil Abib.

Com relação ao transporte marítimo, cabe colocar que a


área portuária de Vitória sofreu alterações por meio de aterros
para ampliar o cais e a Rua do Comércio e também pela constru-
ção de quiosques que visavam à comercialização de alimentos
(Figura 13).
Durante a década de 1920, o plano de urbanização da cida-
de de Vitória foi ampliado e Vitória passou a contar com uma
avenida reta e ampla, rompendo com a tipologia anterior (Fi-
gura 14). Nas décadas seguintes, os aterros foram aumentados,
ampliando a extensão do Porto de Vitória (Figura 15). De acordo
com Santos (2015), a ampliação do porto contribuiu para o de-
senvolvimento econômico e político do Espírito Santo e buscou
romper com a falta de estrutura que comprometia o fluxo eco-
nômico do estado.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 175

Figuras 14 e 15 – Cartões-postais com tomadas aéreas da Avenida


Jerônimo Monteiro e os aterros realizados na região do Porto de Vitória

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.

Ao mesmo tempo em que os planos de urbanização foram


desenvolvidos, novos projetos começaram a ser aprovados, ini-
ciando o processo de verticalização da cidade de Vitória (Fi-
gura 16). A construção de edifícios altos, com cerca de vinte
andares, causou uma “[...] severa ruptura visual na paisagem
da cidade através da altura, da massa, da escala e da forma das
edificações no contexto da paisagem natural” (KLUG, 2009, p.
45), tendo em vista que o maior prédio construído até aquele
momento possuía cerca de quatro andares.
176

Figura 16 – Cartão-postal que apresenta os novos prédios da cidade de Vitória

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.

O processo de verticalização levou à formação de uma imensa


barreira visual nas proximidades do mar com a cidade anti-
ga, aparecendo apenas através de rasgos na massa edificada e
entre galpões do porto. O centro antigo da capital ficou per-
dido e escondido entre um emaranhado de edifícios altos que
sobrecarregaram visualmente um ambiente preparado para
receber pequenas construções. Os novos elementos constru-
ídos passaram a figurar mais fortes na imagem do Centro de
Vitória (KLUG, 2009, p. 51).

Entre 1951 a 1954 foram executados vários aterros desti-


nados exclusivamente à implantação de edifícios. O aterro da
Esplanada Capixaba (Figura 17) partiu do Centro de Vitória
e seguiu até o bairro Bento Ferreira (Figura 18). Lima Júnior
(2012) esclarece que as intervenções urbanas públicas ocor-
ridas referentes principalmente às construções de edifícios
apresentaram-se não apenas como uma consequência da va-
lorização do solo, propiciada pelas melhorias realizadas, mas
como outra forma de expressão urbanística da modernização
da cidade de Vitória.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 177

Figura 17 e 18 – Cartões-postais da Esplanada Capixaba (1960)


e do Bairro Bento Ferreira [1960?]

Fonte: LIMA JÚNIOR, 2012.

Diante do exposto é possível inferir as transformações que


relatamos modificaram a estrutura do sítio físico original, ele-
mento estruturador da paisagem, da imagem e da identidade de
Vitória. Desse modo, algumas referências naturais foram per-
didas e novas referências foram criadas. Parafraseando o que
escreveu Ítalo Calvino sobre Maurília, apesar de o nome perma-
necer o mesmo, não é mais possível reconhecer a Vitória dos
cartões-postais ao olhá-la na atualidade. A cidade com caracte-
rísticas coloniais foi banida. No lugar dos casarios, jardins, co-
retos e praças, suspenderam-se prédios que bloquearam a visão
do traçado da cidade. Hoje quase não existe mais relação entre
os postais e o que a cidade se transformou. “[...] os velhos pos-
tais não representam Maurília do passado, mas uma outra cida-
178

de que por acaso se chamava Maurília” (CALVINO, 1990, p. 31).


Desse modo, é assertivo considerar que os cartões-pos-
tais que representam a cidade de Vitória conseguem mediar
de modo especial essas discussões, quando analisados em um
conjunto de textos que se complementam e que registram uma
história visual de transformação da cidade. A partir dessa cons-
tatação, na seção seguinte, buscaremos discorrer de modo mais
ampliado sobre tais potencialidades pedagógicas.

Cartões-postais de Vitória e suas


potencialidades educativas

Privilegiar a utilização de cartões-postais como recurso


para mediar processos educativos, em especial, os que abordam
conhecimentos sobre o processo de modernização da cidade de
Vitória, exige situar aspectos desse gênero discursivo e desta-
car contribuições de conceitos como dialogismo e polifonia, de-
senvolvidos por Bakhtin (2003).
Segundo Franco (2006), os postais podem ser concebidos
como textos que apresentam fragmentos da história da cida-
de, pois retratam com predominância o ambiente urbano e suas
conquistas tecnológicas. Sugere também que a compreensão
desses textos não deve ser realizada no isolamento e limite dos
seus elementos constituintes, mas precisa dialogar com outros
textos que atravessam os cartões-postais como documentos
escritos, fotografias registradas em épocas anteriores e poste-
riores, obras de artes e outros. Frehse (2005) em pesquisa so-
bre transformações do espaço urbano da cidade de São Paulo
evidencia essas possibilidades de diálogo e desenvolve análises
que coloca em articulação dados da vida comum, por meio de
documentos como matérias jornalísticas sobre fatos cotidianos,
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 179

atas da câmara e também cartões-postais que retratam diferen-


tes tempos e espaços da cidade de São Paulo.
As proposições de Franco (2006) e Frehse (2000, 2005) si-
nalizam potencialidades educativas dos cartões-postais para o
estudo da cidade, especialmente pela análise das imagens de
paisagens, monumentos, lugares e pessoas que compõem esse
gênero textual. Por meio dos textos visuais, os cartões-postais
apresentam informações que superam suas finalidades comu-
nicativas imediatas, ou seja, ultrapassam a ideia restrita de
simples recurso utilizado para troca de mensagens rápidas e de
baixo custo entre pessoas distantes. A produção de cartões-pos-
tais ilustrados materializa evidências sobre o desenvolvimento
da arte da fotografia, das transformações de paisagens consi-
deradas importantes em determinadas épocas, assim como as
transformações técnicas e atividades gráficas vinculadas a essa
linguagem.
Sobre as técnicas de impressão, a história dos cartões-pos-
tais mostra que foi graças à colotipia (também conhecida como
fototipia) que esse tipo de gênero discursivo se popularizou.
Essa técnica permitiu o aumento das tiragens e a melhoria da
nitidez da imagem da fotografia. A colotipia é um processo fo-
tomecânico que

[...] se desenvolve a partir da criação de uma matriz de vidro


com gelatina aderida e sensibilizada com bicromato de potás-
sio. Sobre ela é colocado um negativo fotográfico e, depois de
exposto à luz, a imagem se transpõe a matriz. Posteriormente,
é lavada para a revelação e retirado o excesso químico. Por
último, depois de seca, entinta-se a matriz, transferindo por
contato a imagem para o papel. Trata-se ao final de uma ima-
gem pigmentária que não tem, em sua composição, sais de
prata nem processo químico como revelação e fixação (ESPÍ-
RITO SANTO, 2016, p. 12).
180

A colotipia, como os demais métodos de impressão, contri-


buiu para a distribuição e o consumo massivo dos cartões-pos-
tais em nível mundial. Em 1906 foi criada pelos correios uma
normativa que admitia maior espaço para as imagens, sendo
permitido que uma face do cartão fosse utilizada para apresen-
tar a imagem e a outra destinada a mensagens escritas e infor-
mações de endereço. Desse modo, cada vez mais as imagens ga-
nharam destaque e espaço nos cartões-postais, passando a ser
um elemento de forte caracterização e identidade desse gênero
discursivo.
Além desse aspecto, é importante considerar que a amplia-
ção da produção desse tipo de cartões-postais colaborou para a
constituição de acervo de imagens de diferentes aspectos físi-
cos, culturais, sociais e econômicos da sociedade, cujo conjunto
de exemplares constitui fontes de preservação da memória das
cidades, lugares, fatos e costumes tematizados. Assim, a partir
de postais ilustrados, temos condições, mesmo que parciais, de
conhecer transformações que ocorreram nas cidades, especial-
mente no período áureo de sua circulação no Brasil, que foi en-
tre 1893 a 1930.
Segundo Franco (2006), a temática das imagens dos car-
tões-postais sinaliza essas transformações. Para a autora, atra-
vés desse gênero discursivo é possível entender as transforma-
ções das cidades e também diferentes contextos que revelam
o antigo e o moderno. Ela considera que a modernidade é re-
tratada nos cartões-postais a partir de ícones que evidenciam
intervenções no espaço que consolidam a ideia do urbano. Essa
tendência privilegia vistas de praças, prédios, circulação de
pessoas, transporte, indústria, dentre outros aspectos. Esses
temas postais revelam diálogos com o ambiente político, eco-
nômico e social de cada época e nos fazem perceber que os pro-
cessos de modernização sofridos pelas cidades e analisados de
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 181

modo comparativo por meio dos cartões-postais envolvem um


conjunto de valores que, advindos de uma determinada classe
social, se apresenta com forte caráter ideológico.
Alguns colecionadores conseguiram reunir material que
apresenta essa tendência, tais como o acervo organizado por
Monsenhor Jamil Abib, religioso paulista com formação em His-
tória e colecionador de cartões-postais, em especial exemplares
sobre o Espírito Santo. Sua coleção reúne postais produzidos
desde 1899, com grande valor histórico. Esse acervo foi obje-
to de exposição pública no Espaço Cultural do Palácio Anchieta
denominada de “Postais do Espírito Santo – acervo Monsenhor
Jamil Abib”, no ano de 2016 (Figura 19). É importante destacar
que esses postais apresentam fatos comunicativos que retratam
intervenções realizadas nos três grandes períodos que caracte-
rizaram o processo de modernização da cidade de Vitória.

Figura 19 – Exposição Postais do Espírito Santo – acervo Monsenhor Jamil Abib

Fonte: Acervo dos autores, 2016.

Diante do que foi apresentado, entendemos que os cartões-


-postais podem favorecer a ampliação e o aprofundamento do
conhecimento da cidade. Uma das possibilidades de trabalho
com cartões-postais é a análise comparativa. Comparar ima-
gens de diferentes épocas pode estimular um olhar mais am-
182

pliado sobre os espaços da cidade, percebendo diferenças entre


tempos históricos e a arquitetura de cada época, como sinaliza-
mos no item um desse artigo. Esse tipo de comparação coloca a
necessidade de estabelecer nexos entre textos produzidos em
épocas distintas e por fotógrafos diferentes que provavelmen-
te tinham intencionalidades diversas. Desse modo, é necessá-
rio estabelecer diálogos com esses gêneros discursivos. Como
Bakhtin (2003) afirma, um ato de compreensão exige que o su-
jeito que interage com textos, no caso específico de nossas dis-
cussões sobre cartões-postais, assuma posição ativa e responsi-
va. Posicionamento ativo porque para compreender a narrativa
visual dos cartões-postais e seus outros elementos é preciso for-
mular indagações, cujas respostas podem gerar outras questões
e a busca por outros textos. Assumir um lugar ativo responsivo
diante da análise de textos alimenta o fluxo da comunicação
verbal com a produção de novos textos, fruto do processo de
reelaboração contínua dos sujeitos. Esses postulados de Bakh-
tin realçam que um texto produzido e preservado nunca morre,
porque carrega em si a possibilidade de atualização futura, ou
seja, de entrar em diálogo com outras esferas da comunicação
humana, independente do seu tempo.
A perspectiva dialógica de estudo da cidade por meio de
cartões-postais se apresenta ainda como possibilidade a partir
da exploração comparativa desses textos com as características
do espaço físico, natural e cultural do presente, considerando
um conjunto de marcas objetivas, reais, como prédios, ruas, pra-
ças, fluxo das pessoas e dos transportes, tipos de trabalho, den-
tre muitos outros elementos singulares e gerais que integram o
urbano. Nessa vertente, Canevacci (2004), em consonância com
proposições de Bakhtin, entende que a cidade pode ser com-
preendida como um grande texto polifônico, ou seja, um texto
constituído por diferentes enunciados que entrecruzam vozes.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 183

Vozes materializadas especialmente no conteúdo das imagens


dos cartões-postais que revelam tempo e espaço distinto da ci-
dade atual, mas que se cruzam e possibilitam outras leituras.
Nesse sentido, para captar essas vozes e colocar em diálo-
go os vários enunciados impregnados na cidade que podem nos
ajudar a compreender o processo de modernização de Vitória,
as fontes dos cartões-postais podem se constituir recursos in-
teressantes para mostrar o movimento de intervenção e trans-
formação do urbano. Para exemplificar tal potencial educativo,
propomos a realização de visita à Cidade Alta, primeiro núcleo
urbano de Vitória, com o objetivo de explorar características
das ruas, viadutos, escadarias, prédios históricos, árvores cen-
tenárias, igrejas, esculturas, praças, casarios e muitos outros
elementos. Essa parte da cidade guarda marcas históricas do
período de colonização portuguesa, ou seja, marcas do velho
período que precisaram ser modernizadas para atender con-
cepções ideológicas de seus governantes. Assim como apontou
Calvino (1990), ao comparar ícones da sociedade rural (galinhas
pelas ruas, moças de sombrinha caminhando e o coreto como
atração da praça) com marcos referentes ao urbano (ônibus,
viadutos e fábricas) na cidade de Maurília, podemos constatar,
por meio dos cartões-postais antigos, que a cidade de Vitória
aos poucos foi perdendo suas características originais. Essas
foram silenciadas para que surgisse uma concepção de cidade
que dialogasse com as inovações requeridas pelo processo de
modernização e que trariam a pretensa esperança de uma vida
melhor e o reconhecimento que o estado do Espírito Santo ain-
da não tivera, pois permaneceu por séculos funcionando como
barreira natural para proteger a exploração aurífera na região
das Minas Gerais.
A interação com os espaços físicos e culturais da parte alta
da cidade de Vitória, bem como a mediação de conhecimentos
184

relativos ao processo de sua constituição pode estimular refle-


xões dos estudantes que possibilitem a comparação e a com-
preensão da parte plana da capital e suas formas de utilização e
ocupação do espaço urbano. A comparação e a reflexão das ca-
racterísticas desses dois planos da cidade, explorados em rotei-
ros educativos que revelam intervenções diferenciadas, podem
ocorrer com a análise de cartões-postais e outras fontes tex-
tuais, como mapa conforme o apresentado anteriormente por
meio da figura 12. Assim, os cartões-postais podem ser contem-
plados no processo educativo como modo de contribuir com a
compreensão da cidade e, dessa forma, oferecem conhecimen-
tos que o espaço real não possibilita pela observação direta.
Consideramos, portanto, que a análise da cidade a partir de seu
núcleo inicial, apresentados por cartões-postais antigos, consti-
tui uma das possibilidades para organizar o estudo do processo
de modernização das cidades.
É importante realçar que outras partes da cidade de Vitó-
ria evidenciam características de momentos da intervenção ur-
bana que contribuíram para a transformação da cidade, como
podemos notar em imagens de cartões-postais produzidos com
o objetivo de apresentar os projetos industriais instalados na
cidade de Vitória.
Figuras 20 e 21 – Cartões-postais sobre desembarque de minério
no Porto de Vitória (1958) e sobre construção do Porto de Tubarão (1960)
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 185

Fonte: LIMA JUNIOR, 2012.

Esses postais (Figuras 20 e 21) colocam em evidência as


transformações que marcaram o processo de modernização da
cidade de Vitória, quando, a partir de 1950, projetos industriais
ligados à mineração e à exportação foram implantados na ci-
dade, sustentados pela ideologia desenvolvimentista. Segundo
Santos (2015), nessa época o café era o principal produto a ser
exportado, seguido pelo minério de ferro. Contudo, rapidamen-
te o minério passa a ser “o principal item de exportação pelo Por-
to de Vitória, ao ponto de forçar sua ampliação para o continen-
te – atualmente Terminal de Vila Velha – e posteriormente com
a implementação do Porto de Tubarão” (SANTOS, 2015, p. 169).
Na esteira desses projetos, novos bairros populares e resi-
denciais foram criados no entorno das empresas para abrigar
trabalhadores envolvidos nesses projetos. Esse fato trouxe para
a cidade consequências desastrosas, tais como o aumento da
desigualdade social e os bolsões de pobreza instaurados na pe-
riferia e nos municípios limítrofes. Nesse sentido, a “explosão
demográfica aliada ao modelo político que não permitia discus-
sões em torno do formato de desenvolvimento e modernização
implantado no estado, provocou grandes problemas, como a in-
tensificação da favelização da população” (SANTOS, 2015, p. 170).
Na prática educativa as imagens dos cartões-postais (Figu-
186

ras 20 e 21) podem ser problematizadas por indiciar discursos


alusivos à política desenvolvimentista e mediar a explicitação
de contradições geradas pelas construções destes portos. Além
dos aspectos sociais elencados, outro ponto que pode ser real-
çado refere-se ao custo ambiental cobrado ao coletivo da cida-
de. A implantação desses projetos gerou intenso processo de
poluição do ar e das águas da cidade de Vitória, ocasionando
comprometimento da qualidade de vida das pessoas, bem como
de seus bens naturais, como o ar e a praia. Harvey (2014) explica
que a análise da cidade a partir desses aspectos contraditórios
coloca em evidência o processo de privatização dos bens pú-
blicos como, por exemplo, a natureza. Para o autor, esse tipo
de intervenção revela estratégias do capitalismo na direção de
pensar a cidade sob a lógica da propriedade privada em detri-
mento do direito coletivo à cidade.
Diante dessas ponderações teóricas, defendemos que os
cartões-postais são gêneros do discurso que podem contribuir
com o estudo dos processos de modernização das cidades. Eles
podem mediar práticas pedagógicas que irão colocar em diá-
logo espaços da cidade que não existem mais como outros que
passaram a reconfigurar a cidade após seu processo de moder-
nização. Dessa forma, compreendemos que a análise de elemen-
tos do passado mostrados nos cartões-postais e as reflexões so-
bre condições do presente possibilitam a tomada de consciência
dos estudantes a respeito dessas contradições, cotejando for-
mas de agir engajadas que poderão conduzir a outras formas de
viver na cidade de Vitória.
Pensamos que esse tipo de trabalho pode ser viabilizado
com o planejamento de roteiro educativo que realize visitas a
variadas partes da cidade, de modo a confrontar esses espaços
com cartões-postais antigos.
Que diferenças podemos observar nas representações da ci-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 187

dade (antiga e atual)? Conseguimos identificar referentes que ex-


pressam continuidades ou rupturas que caracterizam a cidade?
Explorar questões como essas e outras podem contribuir
para o desenvolvimento de ações educativas que ampliem o co-
nhecimento da cidade e de seu processo de modernização. Po-
rém, entendemos que tais ações necessitam de materiais edu-
cativos específicos, planejados e organizados intencionalmente
para essa finalidade, bem como espaços de formação continu-
ada de professores que possam fomentar e instigar o interesse
em abordar a cidade em diálogo com diferentes gêneros discur-
sivos, dentre eles os cartões-postais.

Cartões-postais como modo de


reelaboração de conhecimentos
sobre a cidade: a experiência do Gepech

Na introdução deste texto indicamos algumas atividades


relacionadas ao estudo da cidade de Vitória que foram realiza-
das pelo Gepech. Colocamos em destaque as visitas realizadas ao
Centro Histórico de Vitória e, em especial, a exposição “Postais do
Espírito Santo: acervo Monsenhor Jamil Abib”. O objetivo da visi-
ta foi conhecer os cartões-postais para ampliar o entendimento
acerca do processo de modernização da cidade de Vitória e poder
contribuir, após estudo36 aprofundado, para a elaboração de ma-
teriais educativos destinados a professores da educação básica.

Em 2016 realizou uma série de ações com mestrandos do Programa de Pós-


36

-Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo,


com o intuito de explorar o potencial formativo da cidade, a partir de visitas a
espaços da cidade e estudos teóricos de autores internacionais como Lefebvre
(1991, 1999), Harvey (2014), Canevacci (2004), assim como de obras nacionais
de autoria de Chisté e Sgarbi (2015), Freire (2007), Gadotti e Padilha (2004),
Silva (1979) e Klug (2009).
188

Nessa exposição, acessamos outros tempos e espaços da


cidade por meio dos cartões-postais, conhecemos e reconhece-
mos praças, ruas, prédios, fontes e monumentos. Essas obser-
vações nos remete a Freire (2007) quando aponta que a cidade
revela estilos e gostos de certas épocas. Para esse autor,
No fundo a tarefa educativa das cidades se realiza também
através do tratamento de sua memória e sua memória não
apenas guarda, mas reproduz, estende, comunica-se às ge-
rações que chegam. Seus museus, seus centros de cultura, de
arte são a alma viva do ímpeto criador, dos sinais de aventura
do espírito. Falam de épocas diferentes, de apogeu, de deca-
dência, de crises, da força condicionante das condições mate-
riais (FREIRE, 2007, p. 26).

Compreendemos a partir desses pressupostos freireanos


que visitas a diferentes espaços da cidade podem proporcionar
reflexões e novos modos de pensar o espaço citadino. Na visita
que estamos a relatar participaram dez mestrandos acompa-
nhados pelas duas coordenadoras do Gepech. A duração da visita
foi de aproximadamente duas horas e envolveu mestrandos de
diferentes áreas de conhecimento na educação básica (Língua
Portuguesa, História, Filosofia, Sociologia, Geografia, Pedagogia,
Artes). Inicialmente a interação do grupo com o acervo da expo-
sição foi conduzida pela mediação de um profissional da equipe
técnica do Palácio Anchieta e depois seguiu de forma livre, onde
cada participante pode se deter a fontes de seu interesse parti-
cular. Ao final da visita foi solicitado aos mestrandos que res-
pondessem uma questão que buscava evidenciar o aprendizado
sobre a cidade de Vitória que ocorreu por meio da visita à expo-
sição de cartões-postais. Para exemplificar dados produzidos,
apresentamos no Quadro 1, uma síntese de respostas37obtidas.
As respostas dos mestrandos foram identificadas pela letra inicial de seus
37

nomes, seguida de numeral para distinguir os informantes.


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 189

Quadro 1 – Dados sobre visita à Exposição Postais do Espírito Santo –


acervo Monsenhor Jamil Abib

Que conhecimentos presentes nos discursos visuais da ex-


Participante posição visitada foram importantes para a reelaboração
da compreensão da cidade de Vitória?

Conhecer a História da cidade contribui para entender


como ela se desenvolveu e ajuda a pensar como ela ainda
A1 se desenvolverá. Para nós educadores, esse é um aspecto
muito importante, pois nos ajuda a planejar ações a fim de
formar cidadãos para habitarem a cidade.

Da exposição dos cartões-postais o que mais me marca


são as transformações que a cidade passou. E a possibili-
A2
dade de estar mais atento aos detalhes dos monumentos
da paisagem da cidade.

A exposição de Postais me despertou para a História do


P1 Espírito Santo e suas especificidades. Além de resgatar a
arquitetura belíssima.

A visita feita oportunizou conhecer melhor a história da ci-


I1
dade e perceber as contradições contidas no espaço.

Visitar a exposição contribuiu para que eu remontasse


a História da cidade no tempo.  A exposição de cartões-
-postais foi muito rica nesse sentido, pois por meio das
imagens, verifiquei como eram as ruas, os costumes, os
D1 transportes, etc., o que me despertou um sentimento de
valorização por Vitória, uma compreensão maior da im-
portância dos restauros dos prédios do centro da cidade,
trazendo aquela singeleza de tempos mais antigos, onde
os lugares de convivência eram mais valorizados.

Visitar a exposição contribuiu para que eu remontasse


a História da cidade no tempo.  A exposição de cartões-
-postais foi muito rica nesse sentido, pois por meio das
imagens, verifiquei como eram as ruas, os costumes, os
L1 transportes, etc., o que me despertou um sentimento de
valorização por Vitória, uma compreensão maior da im-
portância dos restauros dos prédios do centro da cidade,
trazendo aquela singeleza de tempos mais antigos, onde
os lugares de convivência eram mais valorizados.

É interessante perceber que cada pessoa tem uma forma


de representar os mesmos lugares. Isto é fascinante. As
I2
imagens, construções, enfim todas estão lá, mas ela toca
a cada um de uma forma diferente. Depende de cada um.

Fonte: Elaboração do autor


190

Os enunciados (Quadro 1) produzidos pelos participantes


do grupo a partir da visita à exposição de cartões-postais do
Espírito Santo sinalizam a potencialidade desse gênero discur-
sivo para a revisão e/ou reelaboração de conhecimentos sobre a
cidade. Inferimos que os diferentes extratos pontuam reflexões
em várias direções, para além do conteúdo dos cartões-pos-
tais. Contudo, podemos perceber que a maioria das respostas
enfatiza o potencial dos cartões-postais para a compreensão
do processo de modernização da cidade de Vitória. Segundo os
mestrandos, a visita à exposição proporcionou: conhecer a his-
tória da cidade para entender como ela se desenvolveu e ajuda a
pensar como ela ainda se desenvolverá (A1); observar as trans-
formações que a cidade passou (A2); conhecer melhor a história
da cidade e  perceber  as contradições contidas no espaço (I1),
verificar como eram as ruas, os costumes e os transportes (D1)
e revelar uma outra cidade pouco conhecida (L1).
Além de evidenciar o potencial dos cartões-postais para o
estudo do processo de modernização da cidade as respostas dis-
correram também sobre outros temas. D1 ressaltou a importân-
cia de ações de restauro dos prédios históricos. Já P1 reconhece
por meio dos cartões-postais a beleza da arquitetura da cidade.
Os depoimentos apontam ainda que a interação com o acervo
de cartões-postais pode favorecer subsídios para o planejamen-
to de ensino, conforme realçado por A1.
Os discursos formulados pelos participantes do Gepech
permitem reafirmarmos também o potencial educativo das
visitas a espaços da cidade, entendendo-as como experiências
coletivas de encontro com o conhecimento, com textos e com o
outro, tendo como horizonte nosso processo de compreensão e
humanização. Os cartões-postais ampliam nossa capacidade de
ver, de ler e de compreender a cidade e suas transformações.
Considerando esse potencial, alguns mestrandos optaram por
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 191

utilizar esse gênero discursivo em suas propostas de pesquisas


que discutem temas específicos da cidade. Os cartões-postais
utilizados foram selecionados conforme foco de cada estudo.
Essas pesquisas, embora em andamento, formularam propostas
de materiais educativos que contemplam roteiros de visitas a
espaços específicos da cidade, como parques, praças, prédios,
igrejas, museus, bem como a espaços naturais como praias e
orla da cidade de Vitória.
Esses roteiros de visitas a espaços da cidade que integram os
materiais educativos formulados pelo Gepech serão estudados,
discutidos e problematizados com professores da rede pública
em ações de formação continuada. Esses encontros de formação
continuada têm o intuito de dialogar com os professores da edu-
cação básica sobre possibilidades e limites das propostas que
defendem o estudo da cidade de Vitória. Caber realçar que nes-
ses materiais educativos os roteiros educativos são permeados
por textos visuais e verbais, como a fotografia, os cartões-pos-
tais, a poesia, a literatura, as obras de artes, os textos jornalís-
ticos dentre outros, evidenciando a dialogicidade e a polifonia
(CANEVACCI, 2004) que integram o conhecimento da cidade.
Especificamente, os cartões-postais trazem significativas con-
tribuições por apresentarem imagens da cidade valorizadas so-
cialmente em outras épocas. A abordagem comparativa dessas
fontes com outras favorecem a compreensão de elementos do
espaço físico, natural e social que compõem a tessitura urbana.
Compartilhar essas perspectivas de estudo da cidade por
meio de ações de formação continuada consistem nos próximos
horizontes de ações do Gepech que visam a articulação de ati-
vidades de ensino, pesquisa e extensão do Instituto Federal do
Espírito Santo, no âmbito do Mestrado em Ensino de Humani-
dades. Essas ações estão organizadas a partir de momentos dia-
lógicos (BAKHTIN, 2003) de estudos coletivos, sistematizados
192

por adesão voluntária dos professores, e de visitas a espaços da


cidade, por entendermos que todos, pesquisadores, professores
e estudantes tem direito à cidade (LEFEBVRE, 2001), em sua di-
nâmica urbana que pode ser percebida como potencialmente
educativa.

Considerações Finais

Finalizamos este capítulo com a compreensão de que car-


tões-postais guardam potencial para explorar diferentes aspec-
tos sobre o processo de modernização da cidade de Vitória no
Espírito Santo. Para tanto, apresentamos histórico e explicita-
mos aspectos desse processo; situamos informações sobre a his-
tória de constituição do gênero discursivo cartão-postal, salien-
tando que ele deve ser explorado em diálogo com outros textos,
em uma perspectiva crítica. Nessa direção, buscamos apresen-
tar possibilidades de ações educativas que contemplem os pos-
tais como fontes de memória da cidade, exemplificando como as
narrativas visuais desse gênero discursivo podem ser colocadas
em diálogo com elementos físicos, naturais e culturais da cidade.
Por meio de metodologia comparativa, mostramos que os
cartões-postais podem favorecer a compreensão de conhe-
cimentos sobre a cidade a partir da análise de diferentes car-
tões-postais. Evidenciamos ainda estratégias de utilização dos
cartões-postais como gêneros discursivos que revelam infor-
mações sobre a cidade que não podem ser observadas na mate-
rialidade dos espaços urbanos atuais. Esse modo de pensar a uti-
lização de postais para o estudo do processo de transformação
e modernização da cidade apresenta contribuições, conforme
relatos de membros do grupo de pesquisa que realizaram visita
à exposição pública sobre postais do Espírito Santo.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 193

A partir do exposto, reforçamos a viabilidade da utilização


dos cartões-postais como recursos para estudos da cidade, sen-
do importantes também para ações de formação continuada de
professores que visam elaborar coletivamente material educa-
tivo que apresente estratégias dialógicas de estudo sobre a cida-
de. Portanto, consideramos que ações voltadas para a formação
contínua de professores podem contribuir com a divulgação e
conhecimento do potencial educativo dos cartões-postais, favo-
recendo o entendimento da cidade como espaço urbano marca-
do por contradições e estratégias de classe.
Para finalizar, consideramos, por meio do texto literário de
Calvino, que em Vitória, assim como em Maurília, as marcas da
colonialidade não foram vistas como graciosas. Será que tais
marcas seriam observadas dessa maneira se estivessem presen-
tes até os dias de hoje? Seríamos um outro exemplar famoso
mundialmente pela preservação da arquitetura colonial? Ficam
somente as elucubrações alusivas a Maurília calviniana e às me-
mórias presentes nos cartões-postais para recordarmos com
saudades aquilo que um dia a cidade foi.
194

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O Parque Moscoso como espaço
educativo da cidade de Vitória-ES
Larissa Franco de Mello Aquino Pinheiro
Priscila de Souza Chisté

Apresentamos neste capítulo um estudo sobre o Parque


Moscoso, parque urbano mais antigo da cidade de Vitória/ES.
O texto é um recorte de pesquisa em andamento e tem como
objetivo apresentar aspectos históricos, políticos, culturais,
econômicos e educativos relacionados com o Parque Moscoso,
tendo em vista que constatamos, por meio de pesquisa biblio-
gráfica, que poucos estudos se debruçam sobre esse espaço.
Como forma de sistematizar o texto em questão, elabora-
mos três seções: na primeira, apresentamos a história da cida-
de de Vitória, com foco nas transformações que foram se pro-
cessando na cidade, mais exatamente, no governo de Jerônimo
Monteiro – momento em que foi criado o Parque Moscoso. Na
segunda seção, apresentamos a história do Parque Moscoso,
apresentando as principais transformações que foram ocor-
rendo no seu espaço. Por fim, apresentamos o potencial educa-
tivo do Parque Moscoso, enunciando as considerações finais.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 199

História de Vitória

Fundada em 1551, a cidade de Vitória desenvolveu-se de


forma lenta. Tratava-se de “[...] um núcleo urbano limitado, pe-
queno, e ‘preso’ ao passado colonial, fruto da (des)organização
portuguesa na constituição de vilas e cidades ao longo de sua
colônia na América” (QUINTÃO, 2005, p. 19). Há uma passagem
do livro “Viagem de Dom Pedro II ao Espírito Santo”, de Levy Ro-
cha (2008, p. 41) que retrata bem como era a cidade de Vitória,
no final do século XIX:

Sem obedecer a qualquer regularidade ou simetria, Vitória se


apertava em anfiteatro, à margem de plácida baía, ruazinhas
estreitas, tortuosas, escorregadias, procurando o paralelismo
da praia, ou subindo as rampas do morro desbeiçado pelas en-
xurradas e enfeitado pelas ramas de melões-de-são-caetano,
perdendo-se em becos ou vielas ladeirosas e labirínticas.

A capitania do Espírito Santo experimentou durante mui-


to tempo isolamento promovido pelo governo de Portugal, que
impedia comércio com outras capitanias e com países estran-
geiros, ao mesmo tempo, eram proibidas as aberturas de estra-
das para Minas Gerais. A cidade de Vitória viveu isolada durante
muito tempo, sem ligações de transporte com as regiões norte e
do sul. A partir do momento em que cessou o risco de invasões,
a cidade, que inicialmente ocupou as partes mais altas de seu
relevo, vai descendo da elevação e ocupando também as partes
baixas. Surgem pequenos cais que davam suporte ao embarque
e desembarque de mercadorias. Também surgem as primeiras
casas comerciais exportadoras de café, que funcionavam como
atracadouros, com portas abrindo-se diretamente sobre o mar
(MENDONÇA et al., 2009).
Com isso, a cidade de Vitória permaneceu três séculos e
200

meio, desde sua fundação, dentro do seu núcleo histórico ini-


cial. As partes baixas da ilha foram de difícil ocupação, por con-
ta dos constantes alagamentos e influência das marés e ainda o
risco de invasões estrangeiras e ataques indígenas. Isso fez com
que a orla tivesse uma ocupação rarefeita, sendo que as partes
mais altas eram mais favoráveis ao povoamento, onde foram
construídos prédios oficiais e religiosos. Todavia, o solo, de to-
pografia acidentada, obrigava uma ocupação em ruas e ladeiras
estreitas e tortuosas (MENDONÇA et al., 2009).
Contudo, devido a sua posição geográfica privilegiada, ex-
plorada desde o século XIX, Vitória, aos poucos, assume sua
vocação portuária, tornando-se um lugar de destino político e
econômico do Espírito Santo, tendo sido, desde então, prepa-
rada para superintender capital e porto (IJSN, 1981). O porto
está relacionado com o processo de desenvolvimento a partir
da própria cidade de Vitória, reunindo em suas proximidades
atividades mercantis que davam apoio ao seu principal produto
de início, que era o café de exportação, junto com a presença de
todo um aparato público-administrativo, dada sua condição de
capital (IJSN, 1996) (Figura 01).
Figura 01 - Vista da cidade de Vitória a partir da baía. Em primeiro plano o cais da Al-
fândega. No alto, destaca-se a Igreja Matriz e o Maciço Central. Marc Ferrez, 1884.

Fonte: Biblioteca Central da Ufes.


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 201

Na virada do século XVIII para o XIX, foi dado início ao


processo imigratório, em consequência do desenvolvimento da
hinterlândia do rio Santa Maria da Vitória, e, a partir disso, a
função portuária ganhou novo impulso até os dias atuais. Foi
o café que deu impulso ao desenvolvimento das comunicações
marítimas fluviais e ferroviárias no início do século passado, e
geraram transformações significativas na economia regional,
tendo reflexo nas cidades através da ampliação da malha ur-
bana e remodelação dos setores mais antigos, com a abertura
e retificação de vias e demolição da grande maioria do casario
(IJSN, 1978).
Para os governos da Primeira República, a cidade de Vitória
“[...] não poderia continuar apresentando os sinais de um passa-
do indesejável, de uma cidade pouco produtiva para os padrões
modernos, modos de vida marcadamente provincianos [...]”
(PINTO JUNIOR, 2012). Com a produção do café em alta, a cida-
de então passou a ser beneficiada economicamente, perdendo
aos poucos as suas características coloniais para dar lugar a um
centro comercial e urbano moderno à altura de outras cidades
brasileiras (CANAL FILHO et al., 2012).
O foco maior de Jerônimo Monteiro38 era na desarticulação
de um modelo urbano colonial, que atrasava o desenvolvimen-
to econômico, sem contar as condições sanitárias que eram pés-
simas, desde a virada do século, o que colaborava para as ende-
mias que causavam mortes. Assim, era necessário continuar a
modernizar as cidades, no que se referia à infraestrutura e ao
embelezamento (FOLLADOR; FERREIRA, 2015). Nesse sentido, a
cidade de Vitória deveria ser identificada com as concepções de

No Espírito Santo destacamos os governos de Moniz Freire (1892-96/1904-


38

08), Jerônimo Monteiro (1908-12) e Florentino Avidos (1924-28), que foram


importantes nas transformações do espaço urbano de Vitória, sendo todos
representantes das forças políticas dominantes no Espírito Santo.
202

modernidade capitalista, ideário defendido por diversos seto-


res das elites brasileiras.
Em seu governo foi elaborado um programa amplo de urba-
nização chamado Plano de Melhoramentos e de Embelezamen-
to de Vitória, que compreendeu jardins, parques, com destaque
para a construção do Parque Moscoso – objeto de nossa pes-
quisa –, arborização, desapropriação de matas, alargamento de
ruas e iluminação pública e particular, arruamentos e edifícios
(FREITAS, 2002; DERENZI, 1995). Em pouco tempo, então a cida-
de-cais colonial foi transformada numa cidade-porto moderna,
inserindo Vitória numa nova rede de relações políticas, sociais
e econômicas locais e globais (CANAL FILHO, 2011).

História do Parque Moscoso

O Parque Moscoso foi construído em uma área chamada


inicialmente Lapa do Mangal, formada por terrenos alagados
pelas marés, cujo canal constituía um dos limites da cidade de
Vitória, no final do século XIX. Era uma área formada, em gran-
de parte, por mangues, próxima ao porto, formada pela mistura
de água salobra e água poluída desses esgotos, formando um
grande brejo inundando toda região até os morros do Mosco-
so e de Santa Clara, acumulando detritos e dejetos humanos.
Tratava-se de um local que representava grande risco de epide-
mias, causando frequentes mortes.
As primeiras intervenções, no sentido de melhorar a região,
ocorreram no governo de Francisco Alberto Rubim (1812-19),
período em que foi realizado um aterro para ligar o Porto dos
Padres à construção da Santa Casa de Misericórdia, passando
pela lateral do Campinho, originando a Rua do Comércio (hoje
Avenida Florentino Avidos). Todavia, apesar da obra ter sido
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 203

elaborada para facilitar o acesso ao hospital, acabou piorando a


situação, porque causou obstrução que impedia a limpeza natu-
ral do local pelo movimento das marés. Como forma de contor-
nar a situação, foi necessário fazer o aterro39 na parte interna da
região, que foi iniciado em 1888, no governo de Henrique Ataíde
Lobo Moscoso (VITÓRIA EM DADOS, 2015; FREITAS, 2015).
Mais tarde, para escoar definitivamente as águas quando a
maré estava alta, foi construída uma vala coletora com vários
drenos, que convergiam para essa vala principal, direcionan-
do as águas para o mar possibilitando o secamento do mangal.
Uma comissão de oito engenheiros foi contratada para o estu-
do da drenagem e do aterro da obra, aprovada por Jerônimo
Monteiro. De 27 de agosto de 1910 e 26 de fevereiro de 1911, foi
contratada a empresa Duarte e Beiriz para realizar o desmonte
e a terraplanagem de toda a área e com Paulo Motta Teixeira
foi contratado o ajardinamento da maior parte da área a ser be-
neficiada (LINDENBERG, 1984; LINDENBERG, 2014) (Figura 02).
Figura 02 - Vista geral de Vitória, destacando-se o aterro do Campinho, futuro Par-
que Moscoso. Ao fundo, a Baía de Vitória e o Penedo. Autoria: Paulo Motta (1909).

Fonte: Biblioteca Central da Ufes.

O serviço de aterro começou em 1882 e foi finalizado em 1888, sendo que


39

o período de 1889 a 1891 foi um período de estagnação das obras. Todavia, o


reinício das obras pode ter tido como motivação a publicação em 1890, de um
Código de Posturas da Intendência Municipal da Cidade de Vitória que possuía
dentre os objetivos listados “o esgotamento de pântanos e águas estagnadas,
aterros, tapamento de terrenos abertos e valas e canalização de águas”.
204

Jerônimo de Souza Monteiro retoma os termos do acordo


firmado com a Companhia Torrens, celebrado em 1890, com a
finalidade de realizar serviços de infraestrutura na cidade, ob-
jetivando resolver, entre outros, problemas de inundações, que
eram frequentes ocasionadas pelas chuvas e pelas variações das
marés. Vitória recebeu melhoramentos, como serviços de água,
esgotos, luz e transporte por bondes elétricos, abertura de no-
vas ruas, construções, entre elas, de armazéns e galpões, como
o da empresa Hard, Rand & Cia, que estocava café para exporta-
ção (FERRARI, 2005) (Figura 03).
A intenção da obra era também a de “[...] tornar aquele lo-
cal um dos pontos mais attrahentes de nossa capital” (DIÁRIO
DA MANHÃ, 1910a, p. 02). Havia por parte da administração
uma preocupação de melhorar “[...] a esthetica da capital e for-
necer typos elegantes para novas construcções [...]”, o que foi
iniciado com a construção de cem novas casas no bairro Mos-
coso “[...] de feitio moderno e obedecendo aos preceitos da hy-
giene moderna [...]” (DIÁRIO DA MANHÃ, 1910b, p. 02). Após o
aterro do Campinho, parte da área foi destinada à construção
de casas para funcionários públicos, enquanto outra parte da
área foi alienada (CAMPOS JUNIOR, 1996).
Além disso, com os serviços de saneamento concluídos, a
cidade se abriu para nova fase do progresso, com promessas de
rápido desenvolvimento, dado principalmente pelo aumento
da população. As obras foram encerradas com o ajardinamento
do local, dando lugar a uma grande praça que veio a se chamar
Parque Moscoso, o mesmo nome dado ao bairro após o aterra-
mento. O Parque Moscoso foi projetado dentro de um olhar mo-
dernizante, onde todos os vestígios da cidade provinciana fo-
ram substituídos pelo projeto francês de urbanização, que tinha
como finalidade consolidar uma política urbana para repensar
as áreas metropolitanas, com ênfase nos eixos: embelezamento,
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 205

racionalização e higienização do espaço público (SOUSA, 2012).


O projeto do Parque Moscoso é de autoria do paisagista
Paulo Motta Teixeira40, contratado para planejar e executar
o projeto do parque, dando início às obras em 1910. As obras
foram iniciadas de acordo com a moda do século XIX – estilo
eclético com traços da Art-Nouveau41, inspirado no arquiteto
francês Bouvard42. Esse estilo repercutiu durante a Belle Époque43
(MUNIZ, 1985). Foram incluídos no jardim: fontes luminosas,
repuxos, ruínas de templos greco-latinos, caminhos sinuosos e
lagoas com ilhotas artificiais com sapos e pontes em concretos,
cujos parapeitos imitavam troncos de árvores. Também foram
projetados coreto, orquidário e alamedas que dividiam o par-
que em quatro partes bem definidas (Figura 03).

40
Também responsável pelo Horto Municipal (A GAZETA, 2014). Também foi o
responsável pelo projeto da Catedral de Vitória e de muitas vilas em Vitória.
Desejava criar um jardim botânico (TATAGIBA, 1978).
41
Trata-se de um estilo arquitetônico inspirado nas formas orgânicas da na-
tureza. Caracteriza-se pelo uso de linhas suaves e ondulantes, continuidade
dos espaços internos, degradé de tons, uso de ferro e opalina nos elementos
arquitetônicos (ALBERNAZ; LIMA, 1997).
42
Diretor honorário dos serviços de arquitetura, passeios, vias públicas da ci-
dade de Paris que de passagem pelo Brasil transmitiu estas ideias.
43
Foi um período entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do sé-
culo XX em que vigorou o entusiasmo diante da nova configuração mundial:
a globalização, a modernidade, o progresso tecnológico e científico, o avanço
do capitalismo, a efervescência artística e a proliferação da vida boêmia com
seus inúmeros cafés, bares e cabarés” (CANAL FILHO et al., 2012, p. 44).
206

Figura 03 - Praça Moscoso em maio de 1912, depois de concluídos


os trabalhos de drenagem, aterro e ajardinamento.

Fonte: Arquivo Público do Espírito Santo.

A área do Parque Moscoso passou a ser cada vez mais a ser


valorizada, até que, aproximadamente na década de 1940, pas-
sou a ser considerado o ponto mais nobre da cidade (CAMPOS
JUNIOR, 1996). Segundo Vilaça (2001), “ir ao Parque Moscoso
era passeio de luxo, as roupas domingueiras sacudindo o cheiro
de naftalina, o corre-corre das crianças, as famílias caminhando
em bandos de felicidade, os gansos grasnando”. O parque era a
principal atração, considerado no seu início, o lugar mais boni-
to (TATAGIBA, 1978). O parque ocupava um espaço importante
na cidade devido à carência de espaços de socialização e de di-
versão (CANAL FILHO et al., 2012).
Registros encontrados na revista Vida Capichaba, segundo
Canal Filho (et al. 2012, p. 40) sinalizavam que “[...] o Parque
Moscoso passou ao ser ponto de encontro dos capixabas, prin-
cipalmente de uma elite, que o utilizavam para passear, fazer
o footing rotineiro, paquerar, brincar, transformando o antigo
mangue em local de sociabilidade”. O Parque Moscoso foi artis-
ticamente construído e se tratava de um lugar aprazível e poé-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 207

tico, sem falar romântico. Muitas paqueras ocorreram e muitos


namoros se iniciaram no Parque Moscoso, ficando conhecido
inclusive como “jardim dos namorados”.
Para Campos Junior (1996), as realizações ocorridas em
Vitória tiveram claro caráter de classe, dessa forma, as frações
mais ricas foram favorecidas com essa política da centraliza-
ção do café, que atendeu os setores do comércio. No caso do
Campinho e outras obras de infraestrutura ocorridas em Vitó-
ria, estavam ligadas aos interesses políticos desses setores, que
reivindicavam melhorias na cidade, acreditando que com isso
se beneficiariam da concentração de atividades em Vitória44.
Conti (2011, p. 51) aponta para o “[...] o papel da elite real-
çado na concepção e transformação dos espaços públicos como
forma de estabelecimento de uma nova ordem social, uma vez
que esses espaços são objetos sociais, carregados de valores e
sentidos próprios”. O Parque Moscoso foi concebido pelas elites
locais. Segundo pesquisa de Ferreira (2016), a área do Campi-
nho, antes da construção do Parque Moscoso, já apresentava
uma rala e escassa urbanização, o que indicava a presença de
pessoas na região. Antes mesmo de terminar as obras do aterro,
os lotes do quarteirão delimitado para o projeto já haviam sido
vendidos (KUSTER, 2003) (Figura 04).

Foram criados rede de água, esgotos, energia elétrica e a introdução do bon-


44

de elétrico (CAMPOS JUNIOR, 1996).


208

Figura 04 - Residência de Antenor Guimarães.

Fonte: Centro de Artes-UFES.

Segundo Pinto Junior (2012, p. 116), “[...] junto com as no-


vas paisagens arquitetônicas e urbanísticas da cidade, o proje-
to modernizador acabou renegando determinados aspectos do
passado colonial, sobretudo os que faziam referência à cultura
popular”. Essa modernização foi contraditória em vários aspec-
tos, “[...] pois se por um lado afastava os sujeitos indesejáveis e/
ou considerados incapazes de habitar as áreas civilizadas, por
outro atraía para as suas cercanias os responsáveis pelo tra-
balho doméstico diário, pelo transporte de mercadorias, pela
construção civil e demais serviços braçais”.
Os ideários republicanos mais a gestão regional fortalecida
impulsionou as transformações urbanas e, a elite local, o estilo
arquitetônico e a moda no período. Segundo Canal Filho (2004
apud SCHÜTZ-FOERSTE; FERREIRA; CONTI, 2011, p. 27), “[...] em
Vitória, as mudanças nos padrões urbanísticos e arquitetônicos
da cidade acabaram por alimentar/reforçar uma mudança de
comportamento, incluindo-a no contexto da belle époque bra-
sileira”. As mudanças na região, com a construção do Parque
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 209

Moscoso, repercutiram na vida social da cidade de Vitória, sen-


do o parque o epicentro de todas essas transformações que fo-
ram se sucedendo ao seu redor, conduzida pela elite capixaba.
Na década de 1950, foram construídas a Concha Acústica
e o Jardim de Infância Ernestina Pessoa (Figura 05). Ambas as
construções são do arquiteto Francisco Bolonha, dentro da con-
cepção da arquitetura modernista45. Essas obras representam a
primeira intervenção no Parque Moscoso (ACHIAMÉ; BETTA-
RELLO; SANCHOTENE, 1991). Nesse período, passaram a existir,
nas mediações do parque, os bares frequentados por perso-
nagens que marcaram época. Muitos que passaram por ali se
destacaram nos segmentos políticos, sociais e econômicos do
estado posteriormente. Funcionava perto o Colégio Americano,
cujos alunos também frequentavam o Parque Moscoso, os ci-
nemas46 São Luiz e Santa Cecília – os cinemas da cidade (MAIA,
2013; MAIA, 2011).
O Parque Moscoso começou a perder status aos poucos, até
que, a partir da década de 1990, o Centro de Vitória é superado,
em termos de disponibilidade, oferta e sofisticação dos servi-

45
“Movimento arquitetônico introduzido no início deste século por arquite-
tos europeus e americanos, como Walter Gropius (1883-1969) e Frank Lloyd
Wright (1869-1959). Caracteriza-se pelo uso de formas geométricas, composi-
ção assimétrica, ausência de ornamentação e amplas aberturas nas fachadas,
geralmente em faixas horizontais. No Brasil é introduzido na década de 30
por Le Corbusier (1887-1966), sendo influenciado pelos princípios por ele es-
tabelecidos. A arquitetura que segue os princípios do modernismo ou que tem
suas características é chamada de arquitetura moderna. É também chamada
de estilo internacional” (ALBERNAZ; LIMA, 1998, p. 393).
46
O Santa Cecília foi construído no lugar do cinema Politheama, enquanto e
hoje em dia é uma igreja evangélica. Na época, possuía a maior tela de proje-
ção do Espírito Santo. Quanto ao São Luiz era um cinema considerado chique,
construído com materiais sofisticados. O cinema nessa época considerado um
programa refinado que agradava muito às elites. Eram concorridas as matinês
que ocorriam domingo pela manhã. E após o cinema, completavam o domingo
com um passeio no Parque Moscoso (KUSTER, 2003).
210

ços que oferecia. Também são transferidos para o Novo Arrabal-


de47 as novas sedes da Assembleia Legislativa e dos Tribunais
de Contas e da Justiça. Assim, aquela área, outrora concebida
como expansão do Centro de Vitória, passa a configurar como
um novo e independente centro (MENDONÇA et al., 2009).
Com isso, tanto o Parque Moscoso, quanto o centro da cida-
de perderam espaço como bairro sofisticado. Já nas décadas de
1980 e 1990, o bairro deteriorou-se de modo que muitas famílias
saíssem da região. Mesmo assim, mantém perfil residencial com
vários prédios construídos na década de 1970 (KUSTER, 2003).
Percebia-se que o Parque Moscoso ia perdendo a grandeza que
tinha em outros tempos. Como descreve (MORAES, 1994, p. 61),
“é um pulmão muito pequeno para os grandes espigões que o
cercam indiscretamente e o sufocam, e para a densa população
das imediações”.

Figura 05 - Concha Acústica. Autoria: Mazzei. Data: década de 1970.

Fonte: Arquivo Histórico Municipal.

No governo Moniz Freire (1892-96) ocorre uma política diferenciada de in-


47

tervenções que vão transformar a cidade de Vitória, criando uma Comissão de


Melhoramentos da Capital, tendo à frente o engenheiro-sanitarista Francisco
Saturnino de Brito que projetou um Novo Arrabalde, em direção às praias da
zona leste da ilha, desde o Suá até a ponte da Passagem, aumentando de cinco
a seis vezes a área ocupada pela cidade.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 211

Em 1973, durante o governo do prefeito Crisógono Teixei-


ra, ocorreram transformações mais drásticas no Parque Mos-
coso: foram alteradas linhas estruturais e realizadas pequenas
construções, mudando não somente sua ambientação, mas tam-
bém sua função. Alamedas foram desviadas e estreitadas para
dar lugar à capela ecumênica, quadra de esportes, brinquedos e
equipamentos infantis. Além disso, sua topografia foi alterada,
sendo criados alguns morros artificiais. Também foram cons-
truídos muros com grades e iniciado o sistema de cobrança de
ingresso, por meio de portais e roletas, diferenciando-se da sua
proposta inicial. “O Parque Moscoso ficou, foi cercado, tran-
cado, patrulhado. A entrada deixou de ser franca – e risonha.
Agora se paga ingresso, se impõem limites, se ditam regras, e
proibições” (FIGUEIRA, 1994, p. 47).
Na década de 1980, o Parque Moscoso passou a ter sérios
problemas, que iniciaram discussões públicas a respeito de seu
uso. Nesse período, eram recebidas, diariamente, aproximada-
mente três mil pessoas, registrando-se o maior afluxo de pesso-
as entre às 7h e às 10h, sendo que, aos sábados e domingos, esse
número triplicava, fazendo as cinco roletas do parque girarem
até 15 mil vezes. Esse movimento era graças aos brinquedos e
ao mini-zoológico, que atraía frequentadores, principalmente
dos bairros periféricos de Vitória, em busca de lazer (A GAZETA,
1983) (Figura 06).
212

Figura 06 - Viveiro. Autoria: Mazzei. Data: década de 1970.

Fonte: Arquivo Histórico Municipal.

Nos anos 2000, existiu um movimento que buscava recupe-


rar as características originais, no mesmo sentido do projeto de
revitalização do Centro de Vitória. Foram recriados os mesmos
caminhos, as fontes voltaram às posições originais e o muro foi
substituído por grades. Atualmente, a configuração do parque
aproxima-se do projeto original. O chamado Projeto de Requalifi-
cação do Parque possibilitou melhorias na infraestrutura e equi-
pamentos, com o enriquecimento dos jardins, arborização das
alamedas e outras intervenções que melhoraram a visualização,
inclusive dos monumentos históricos (DIÁRIO DE VITÓRIA, 2015).
Todavia, o entorno do Parque Moscoso não é o mesmo des-
de sua inauguração em 1912. De lá para cá, ficou evidenciada a
progressiva mudança nos usos e nos tipos de edificações que
foram se erigindo nas mediações do Parque Moscoso. Aquelas
antigas residências de luxo foram transformadas em estabeleci-
mentos comerciais e de serviços ou até mesmo demolidas para
dar lugar a edifícios de usos variados, sobrando ainda alguns
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 213

exemplos para contar história, mas já não se tratam de residên-


cias como antigamente. Circulam na região muitas pessoas, de
diferentes regiões e classes sociais. Nota-se que, antigamente,
elas assumiam diferentes atividades, hoje, a conjuntura alterou,
em parte, os modos de vivência do espaço, que é ocupado tam-
bém por pessoas em situação de rua.
O Parque Moscoso é um lugar que, além de possuir função
ecológica, também tem atribuições estéticas e de lazer, princi-
palmente para aqueles que moram próximos a ele. Há muitos
anos é frequentado por famílias, principalmente nos finais de
semana, que utilizam suas áreas para convivência e recreação.
No mesmo perímetro do Parque Moscoso, funciona a Escola
da Ciência da Prefeitura Municipal de Vitória, o que nos leva a
pensar se alunos e professores dessa instituição compreendem
a história do Parque Moscoso e também se as escolas próximas
utilizam esse espaço com finalidades educativas.

Potencial educativo
do Parque Moscoso

O Parque Moscoso é o parque urbano mais antigo da cidade


de Vitória. É um espaço formado, modelado a partir de elemen-
tos históricos e também políticos. Esse espaço também é atra-
vessado por uma ideologia que faz parte de sua constituição.
De acordo com Lefebvre (2002, p. 142), “o espaço, considerado
como produto, resulta das relações de produção à cargo de um
grupo atuante”48.

Trata-se de um assunto que não é novo, pois sempre existiu na história da


48

humanidade, sendo que a inovação se dá na produção global e total do espaço


social. Como uma atividade produtiva dela se beneficiam aqueles que a inven-
tam, gerem e beneficiam, ou sejam, as classes dominantes.
214

A partir de Le Goff (1992), é possível pensar que o Parque


Moscoso é um lugar de memória coletiva. Le Goff (1992, p. 423)
considera “a memória, como propriedade de conservar certas
informações, remete-nos, em primeiro lugar, a um conjunto de
funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar im-
pressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas”. Já Pierre Nora (1978 apud LE GOFF, 1982, p. 54) con-
ceitua memória coletiva como “o que fica no passado vivido dos
grupos, ou o que estes grupos fazem do passado”.
Nesse sentido, consideramos que informações e fotos do
parque podem contribuir com discussões sobre o conceito de
memória, conforme apontado por Le Goff. O autor aponta a fo-
tografia como um suporte que permite “[...] guardar a memória
do tempo e da evolução cronológica” – por isso, sua utilização
será importante no nosso trabalho (LE GOFF, 1992, p. 402).
As imagens têm grande potencial como mediadoras de pro-
cessos educativos, ressignificando os olhares sobre os espaços
de circulação da cidade de Vitória. Além disso, as fotografias
são como documentos históricos, não apresentando um ca-
ráter ilustrativo tão somente, mas, ao contrário, “[...] suscita
lembranças, evoca semelhanças, associa referências e permite
a reconstrução da teia de relações vividas” (SCHÜTZ-FOERSTE;
FERREIRA; CONTI, 2011, p. 12).
Mesmo com todas essas transformações que sofreu o Par-
que Moscoso com o passar das décadas, pode-se dizer que suas
qualidades estéticas desempenharam grande papel na sua ma-
nutenção. Isso se deve não somente por seus monumentos em
si, mas também por seu espaço ser e ter sido apropriado para
festas, desfiles, passeios e diversões com o passar do tempo
(LEFEBVRE, 2011). O próprio Parque Moscoso pode ser consi-
derado como um monumento repleto de símbolos que, se mal
aproveitados, se oferecem à contemplação passiva, por outro
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 215

lado, pode apresentar uma concepção de mundo, pois revela a


cidade projetada e a vida social que se configura em seu espaço
(LEVEBFRE, 2002).
Assim, se tomarmos a cidade como espaço de educação por
excelência, podemos considerar que o Parque Moscoso apre-
senta um interessante potencial educativo. Em diálogo com Ga-
dotti (2006), consideramos que a cidade, além de cumprir suas
funções tradicionais (econômica, social, política e de prestação
de serviços), exerce também outra função, cuja finalidade é a
formação para e pela cidade, uma função educativa. Ele propõe
uma pedagogia da cidade49 “[...] para nos ensinar a olhar, a des-
cobrir a cidade, para poder aprender com ela, dela, aprender a
conviver com ela” (GADOTTI, 2006, p. 05).
Freire (1993, p. 16) coloca a educação “[...] enquanto pro-
cesso permanente e a vida das cidades, enquanto contextos que
não apenas acolhem a prática educativa, como prática social,
mas também constituem, através de suas múltiplas atividades,
em contextos educativos em si mesmas”. A partir desse ponto
de vista é possível promover educação em qualquer espaço da
cidade. Dessa forma, “[...] o educador deve contemplar a cidade,
pensar a cidade, extrair de cada espaço dela as lições que pos-
sam dar mais vida às pessoas, humanizar os cidadãos”, como
apontado por Sgarbi e Chisté (2015, p. 11).

No diálogo com os estudos ligados à Educação na Cidade não estamos nos


49

referindo à proposta de renovação da educação apresentado pela Comissão


Internacional sobre o Desenvolvimento da Educação, criado pela UNESCO em
1971, cujos estudos foram compilados no relatório Apprendre à être, publicado
em 1973 (SILVA, 1979). Ao contrário, nos filiamos às ideias trazidas por Freire
(1993) quando coloca que a cidade necessita educar de forma dialógica e a edu-
cação precisa se fazer presente cotidianamente em todos os espaços da cidade.
216

Segundo Lefebvre (2011), a cidade pode apoderar-se das


significações políticas, religiosas e filosóficas, o que faz dela um
conjunto significante. A cidade existe e tem voz nos edifícios,
nos monumentos, e também se faz nas ruas e praças, pelos va-
zios, como também pela teatralização espontânea dos encon-
tros que nelas acontecem, sem contar as festas, as cerimônias,
com seus lugares determinados.
A partir disso, trabalharemos com a ideia lançada por Frei-
re (1993), de que o conjunto das memórias da cidade também
exerce função educativa, pois são manifestações vivas da cultu-
ra. Portanto, acreditamos que ativar a memória ligada ao Par-
que Moscoso em conexão com a cidade, que fala “[...] de épocas
diferentes, de apogeu, de decadência, de crises, de força condi-
cionante das condições materiais” (FREIRE, 1993, p. 24), pode
contribuir para a compreensão histórica, econômica e cultural
de como a cidade de Vitória foi sendo modelada e por que e tal
configuração favoreceu seu processo de modernização.
Através da leitura de imagens das fotos antigas e do estu-
do dos documentos sobre o assunto é possível colaborar com a
reflexão e identificação das contradições que surgem desse pro-
jeto urbano conduzido pelas elites locais. Além disso, essas ima-
gens podem favorecer o entendimento da memória coletiva que
possui o Parque Moscoso, gerando discussões sobre os modos
de uso do espaço e a transformação física que o parque sofreu.

Considerações finais

Constatamos que possibilitar experiências educativas so-


bre este tema é importante para valorizarmos os espaços das
nossas cidades, ampliando as possibilidades do fazer pedagó-
gico. A cidade de Vitória conta com uma rica história, presente
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 217

no seu espaço urbano: ruas, avenidas, prédios, praças, parques,


edifícios, etc, com grande potencial de serem explorados em
sala de aula, e, principalmente, fora dela, o que tornaria o tra-
balho educativo ainda mais completo.
Nos limites deste capítulo, buscamos apresentar um recor-
te acerca da cidade de Vitória, dando ênfase ao Parque Mos-
coso, com mais de cem anos de existência, tendo passado por
várias intervenções, por meio das quais é possível extrair co-
nhecimento sobre nossa própria constituição como capixabas.
Essas intervenções englobaram vários aspectos que dizem res-
peito ao nosso modo de ser e de viver na cidade. Consideramos
que, por meio desse estudo no campo da educação, é possível
favorecer a compreensão de nossas origens e a nossa identi-
dade, enquanto cidadãos críticos que exigem cada vez mais o
direito à cidade numa reinvenção permanente da vida social.
218

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O direito à cidade e as questões
ecológicas: o problema capixaba
do pó preto
Israel David de Oliveira Frois
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A orla da capital capixaba tem como destaque Camburi, a


maior e mais urbanizada praia do município. Seu nome tem ori-
gem Tupi e pode significar rio que muda de lugar, robalo ou rio
do robalo. Possivelmente o nome da praia se vincule à antiga
incidência do robalo nas suas águas.
Situada na porção setentrional e continental de Vitória, nas
adjacências dos bairros Jardim da Penha, Mata da Praia, Jardim
Camburi e do Terminal Marítimo de Tubarão, possui uma pai-
sagem intrigante que possibilita percepções de diversas dimen-
sões do aparato simbólico desta parte da cidade. Num relance
de olhar, a beleza litorânea salta aos olhos. O mar entreaberto,
o calçadão arquitetado para agraciar os munícipes abastados e
as frondosas amendoeiras ao norte da praia, numa sintonia cí-
nica, dissimulam as condições reais do ambiente da capital. Ao
224

caminhar pela praia, vislumbra-se um brilho anômalo na areia.


Reflexo intenso da luz solar que apenas o quartzo, o feldspato e
mica – minerais comuns entre os que constituem os grânulos de
areia – não conseguem reproduzir. Assim, como o reflexo da luz
do Sol no mar oculta os infortúnios ambientais estabelecidos ali.
Contudo, ao ampliar a perspectiva, apurando a visão, per-
cebe-se no céu um tom azul acinzentado. E, na busca da origem
da emanação, visualiza-se, quase que de forma fantasmagórica,
as chaminés do Complexo de Tubarão. Ao caminhar pela praia
e apalpar a areia, percebe-se que areia pouco há, pois o miné-
rio de ferro sedimentado, lançado por décadas, espalha-se pela
orla, concentrando-se na porção menos visitada e mais impac-
tada da praia, qual seja, o entorno da Vale S.A.
Daquele foco da emanação emerge o problema que não elege
suasvítimasdeacordo com a classe social. Todos residentesdaGran-
de Vitória, instalados na direção diametralmente oposta ao vento
nordeste50 que passa pelo complexo portuário-siderúrgico, rece-
bem uma lenta, mas potente overdose do famigerado pó preto51.
Nessa perspectiva, a partir da concepção do direito à cidade,
questionamos as dinâmicas ambientais entre a Vale S.A. e o seu
entorno. Assim, levantamos a questão que serve de bússola para
as nossas reflexões: o direito à cidade, ou seja, ao ambiente53 jus-
to, promotor da qualidade de vida, não deveria ser inalienável à
população da Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV)?

50
Os ventos predominantes no Espírito Santo vêm do nordeste e sopram de 8
a 9 meses por ano (janeiro, fevereiro, março, julho, agosto, outubro, novem-
bro e dezembro) em velocidade que varia de 4 a 38 km/hora.
51
Pó preto é o nome dado pelos moradores da Grande Vitória às partículas de
minério de ferro em suspensão no ar.
52
Entendemos ambiente a partir da concepção de totalidade, ou seja, aquela
que traduz o ambiente como o espaço geográfico, lugar de interação dialéti-
ca entre o homem e a natureza, onde o físico/biológico não se fragmenta do
social, do cultural, do político e do econômico.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 225

Em termos de estrutura deste capítulo, inicialmente, colo-


camos em relevo questões teóricas relacionadas à produção do
espaço (HARVEY, 2001) e ao direito à cidade (LEFEBVRE, 2001;
2016). Em seguida, evidenciamos os problemas ambientais que
envolvem a apropriação do espaço urbano de Vitória/ES para
a reprodução e acúmulo do capital por meio das atividades da
empresa Vale S.A.

O direito à cidade

A apropriação do espaço urbano para o processo de acumula-


ção capitalista altera o caráter das paisagens naturais e constru-
ídas, pois o que outrora era concebido pelo valor de uso, passa a
ser dominado pelos tentáculos do capital provocando a mercan-
tilização do espaço urbano (HARVEY, 2001). Deste modo, ao tratar
tal espaço como produto, o sistema vigente acaba por segregar os
espaços e as paisagens, isto é, acaba por excluir os indivíduos de
terem o direito, o acesso de usufruir a cidade na sua totalidade.
Isto quer dizer que os locais que deveriam servir a todos os
citadinos – como praças, ruas, parques, construções históricas,
praias e demais paisagens –, são tomados pela força do capital e,
consequentemente, pela especulação imobiliária dando conota-
ção meramente mercadológica, alijando, assim, os grupos e clas-
ses sociais oprimidas da participação e usufruto do espaço urbano.
Pode-se dizer que as cidades surgiram do processo de
concentração de excedente de produção, promovendo, então,
a concentração geográfica e social. Desde os tempos antigos,
marcado pela presença dos comerciantes do excedente agrícola
em pequenos aglomerados e vilas até os tempos modernos re-
gidos pelos conglomerados industriais resultando nas grandes
concentrações urbanas.
226

Harvey (2014, p. 30) aponta que

A urbanização sempre foi, portanto, algum tipo de fenômeno


de classe, uma vez que os excedentes são extraídos de algum
lugar ou de alguém, enquanto o controle sobre o uso desse
lucro acumulado costuma permanecer nas mãos de poucos
(como uma oligarquia religiosa ou um poeta guerreiro com
ambições imperiais).

Essa dinâmica sistemática se desenvolveu e prosseguiu


no decorrer das Revoluções Industriais até os dias de hoje, por
meio da busca constante pela mais-valia, obtida pelo exceden-
te de produção. Assim, percebe-se a conexão entre o desenvol-
vimento do capitalismo e da urbanização, visto que as cidades
concentram o excedente de produção exigido pelo processo de
urbanização; nesse movimento, o capitalismo necessita da ur-
banização para a absorção do excedente de produção constan-
te. (HARVEY, 2014)
Nesse contexto, Lefebvre (2001, p. 7) afirma que a sociedade
urbana é “sentido e finalidade da industrialização”. Isso porque
foi a partir das Revoluções Industriais que as cidades ganharam
a grandiosa proporção que abrangem hoje. Conforme aponta
tal autor, a industrialização foi a indutora da urbanização nos
moldes modernos e, concomitante a esse processo, induziu os
problemas típicos das cidades.
Em Lefebvre, entendemos que o processo de industrializa-
ção-urbanização está inserido em uma situação de crise da cida-
de/urbana. O referido autor contribui ao dizer que

O duplo processo (industrialização-urbanização) produz o du-


plo movimento: explosão-implosão, condensação-dispersão
(estouro) já mencionado. É portanto ao redor desse ponto crí-
tico que se situa a problemática atual da cidade e da realidade
urbana (do urbano) (LEFEBVRE, 2001, p. 77-78).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 227

Nesse caso, fica evidente que a problemática maior da re-


alidade urbana, como coloca Lefebvre, é a negação do direito à
cidade, isto é, negação de um ambiente saudável, do habitar, da
centralidade urbana, dos circuitos de comunicação e dos pontos
de encontro.
Para Lefebvre, o direito à cidade

[...] supõe portanto a reapropriação dos tempos-espaços da


vida tragados pelo vórtice do mundo das mercadorias em fa-
vor da (ir) racionalidade que governa a industrialização. O que
significa reorientá-la, pois a industrialização não guarda em
si mesma seu sentido e finalidade. Decerto que o estonteante
crescimento da riqueza alcançado pela industrialização não
pode ser negligenciado. Porém, entregue aos propósitos da
acumulação do capital, a industrialização não se orienta para
as necessidades da sociedade urbana (LEFEBVRE, 2016, p. 12).

O sentido de direito à cidade traz a concepção de direito de


todos os cidadãos-citadinos estabelecerem relações e participa-
rem de todas “as redes e circuitos de comunicação, de informa-
ção, de trocas” (LEFEBVRE, 2016, p. 33). Essas relações depen-
dem do acesso a esta centralidade urbana, sem discriminação e
segregação espacial.

A cidade dominada pelo capital

Na década de 1960, tardiamente, o Espírito Santo se assen-


tou como ponto estratégico em termos de logística no contexto
da industrialização brasileira, visto que as condições naturais
deram possibilidade de desenvolvimento de redes portuárias.
Ademais, a proximidade da área extratora – Quadrilátero Ferrí-
fero53 – fez com que o estado recebesse investimentos do Gover-
no Federal e da iniciativa privada ao longo dos anos. O objetivo
228

dessa articulação do desenvolvimento portuário e industrial do


Estado era o aumento da lucratividade. Para que este aumento
fosse possível, tornou-se necessário anular o espaço pelo tempo,
ou seja, melhorar a estrutura logística e produtiva, para expor-
tar em um tempo menor e em maior quantidade, obtendo as-
sim, maiores margens de lucro. Conforme aponta Harvey (2001,
p. 50), “[...] qualquer redução no tempo de circulação aumenta a
produção do excedente e intensifica o processo de acumulação”.
Vale destacar que o contexto de industrialização do Espí-
rito Santo coincide com o período da Revolução Técnico-Cien-
tífica-Informacional, contribuindo para o aprofundamento do
processo de globalização e consequente busca pela mais-valia
global (SANTOS, 2001). Com as novas tecnologias de transporte
e comunicação, a economia se mundializou de forma mais in-
tensa e, por conseguinte, a expansão geográfica de acumulação
se potencializou.
Marx indica que

Quanto mais a produção se baseia no valor de troca e, em con-


sequência, na troca, tanto mais importantes se tornam para
ela as condições físicas da troca – meios de comunicação e
transporte. É da natureza do capital mover-se para além de
todas as barreiras espaciais. A criação das condições físicas da
troca – de meios de comunicação e transporte – devém uma
necessidade para o capital em uma dimensão totalmente dife-
rente – a anulação do espaço pelo tempo (MARX, 2011, p. 699).


Nesse quadro, os países periféricos se tornaram palco de
produção e acumulação de capital para os países centrais, haja

“O Quadrilátero Ferrífero, uma estrutura geológica cuja forma se assemelha


53

a um quadrado, perfaz uma área de aproximadamente 7000 km² e estende-se


entre a antiga capital de Minas Gerais, Ouro Preto a sudeste, e Belo Horizonte,
a nova capital a noroeste” (ROESER; ROESER, 2010, p. 33).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 229

vista que os fatores ditos locais (mão de obra, mercado consu-


midor, energia, matéria-prima etc.), além da legislação ambien-
tal e trabalhista menos rigorosa, tornavam estas áreas atrativas
e aumentavam a margem de lucro.
Segundo Harvey (2001), nessa conjuntura de acumulação
de capital, o Estado tem função importantíssima na produção
do espaço, seja na implementação de infraestrutura para garan-
tir a plena circulação da produção, seja (em momentos de crise)
para promover ajustes espaciais que garantam a expansão geo-
gráfica a fim de conquistar novos mercados.
Nessa estrutura de sociedade urbano-industrial, a Vale S.A.
se inscreve na cidade de Vitória, a partir da década de 196054 e,
desde então, influencia na configuração do espaço urbano, assim
como nos problemas ambientais indesejavelmente presentes.
Inserida na Ponta de Tubarão, a Vale S.A., junto com outras
empresas, provocou diversas transformações no bairro Jardim
Camburi e, principalmente, na praia de Camburi no decorrer
dos cinquenta anos das atividades industriais no complexo si-
derúrgico-portuário. A urbanização do entorno, motivada pelo
início das atividades portuário-industriais e o crescimento po-
pulacional da capital – decorrente da atração provocada pela
industrialização e da repulsão do campo causado pelo “Plano
de Erradicação dos Cafezais”55 –, e a intensa poluição do ar e
das areias, devido à emissão do pó preto e demais partículas e
gases contaminantes, configuram as transformações principais
notadas dessa área.

54
No ano de 1966, o porto Tubarão começou a operar. Em seguida, em 1969, a
primeira usina de pelotização da chamada CVRD, em Tubarão, com enverga-
dura para produzir mais de dois milhões de toneladas/ano, foi inaugurada.
55
Na década de 1960, devido à queda expressiva do preço do café e a alta con-
corrência, o Governo Federal lançou o “Plano de Erradicação dos Cafezais” com
o intuito de erradicar a cafeicultura para diversificar a produção econômica.
230

Relatos56 de moradores antigos do bairro afirmam que o ex-


tremo norte da praia de Camburi, antes da inserção da Vale S.A.,
era uma área salubre, onde jovens se reuniam para práticas es-
portivas na areia e no mar. Muitos levavam seus filhos para o
lazer e, quando a sede se fazia sentir, bebiam água ali mesmo,
em uma nascente de águas cristalinas que brotava de rochas do
terreno onde hoje se situa o Complexo Tubarão. Atualmente,
tal nascente encontra-se contaminada com metais e coliformes
fecais; ao passar pelo terreno contaminado, a água tornou-se
insalubre (Fotografia 1).

Fotografia 1 – Nascente no norte da Orla da Praia de Camburi (2016)

Fonte: Facebook da Associação dos Amigos da Praia de Camburi (AAPC)

56
Relatos obtidos por meio de anotações elaboradas em roteiro de campo fei-
to durante passeio ecológico pelo entorno da Vale S.A. na praia de Camburi
realizado pela AAPC (Associação dos Amigos da Praia de Camburi) no dia 7 de
janeiro de 2017.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 231

A Vale S.A. tem cerceado os munícipes da RMGV o direi-


to a uma cidade digna, justa, seja pelo ar, devido à emissão de
poluentes que têm comprometido o ambiente da capital e ad-
jacências, seja pela sedimentação de minério na praia de Cam-
buri e demais praias situadas na direção do Porto de Tubarão,
provocada pelo translado dessa matéria-prima do pátio da em-
presa até aos navios e pelo depósito de um passivo ambiental57
estimado pela AAPC em 180.000 m³ de sedimentos resultante de
décadas de deposição irregular de minério.
Como já observado, quanto ao ar contaminado pelas em-
presas atuantes na ponta de Tubarão, observa-se que ele não
escolhe classe social. A população com poder aquisitivo maior
também sofre com os problemas respiratórios e alergias gera-
dos pelo contato diário com os materiais particulados e gases
tóxicos provenientes das termelétricas, das caldeiras e dos al-
tos-fornos que processam o minério. O vento nordeste faz com
que a poluição consiga atingir áreas nobres (Ilha do Boi, Ilha do
Frade, Mata da Praia, Praia do Canto, Praia da Costa etc.). De-
vido a essa peculiaridade, a luta contra a poluição atmosférica
devido ao pó preto parece mobilizar um contingente da popu-
lação maior que outros tipos de degradação ecológica na RMGV.
Por causa dos problemas de saúde acima da média nacio-
nal (Quadro 1) e do comprometimento da qualidade de vida na
capital e arredores, vários movimentos sociais reivindicatórios
e contestatórios surgiram nos últimos anos, como: ACAPEMA
(Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente); AMPIB
(Associação dos Moradores e Proprietários da Ilha do Boi); SA-
MIFRA (Sociedade dos Amigos e Moradores da Ilha do Frade); e

57
“O passivo ambiental pode ser conceituado como toda agressão que se pra-
ticou/pratica contra o meio ambiente e consiste no valor de investimentos
necessários para reabilitá-lo, bem como multas e indenizações em potencial”
(IBRACON, 1996, p. 5 apud SANTOS et al., 2001, p. 92).
232

a já citada AAPC (Associação dos Amigos da Praia de Camburi).


Em estudo intitulado “Prevalência da asma e sintomas no
município de Vitória ES: comparação entre duas áreas com di-
ferentes fontes de poluição atmosférica identificadas através do
biomonitoramento”, Miranda (2008) concluiu que, nos bairros
de Jardim Camburi e Jardim da Penha, as prevalências de sinto-
mas respiratórios encontradas foram elevadas em comparação
a estudos nacionais e internacionais; há uma associação direta
entre a proximidade das indústrias do Complexo Tubarão, à po-
luição e ao sintoma respiratório problemático; os grupos mais
vulneráveis são as crianças, os idosos e portadores de deficiên-
cia respiratória prévia.
Quadro 1 – Situação do Espírito Santo, no que tange à saúde
da população baseado no questionário internacional ISSAC -
International Study of Asthma and Allergies in Childhood

Média do
Diferença
Estado do
Doença Média Nacional em porcen-
Espírito
tagem
Santo

Asma 20,9 26,5 27,8%

Rinite 26,0 46,6 80,2%

Rinocon-
12,0 20,0 66,6%
jutivite

Fonte: Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do pó preto – ALES

Em relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito


apresentado em outubro de 2015, a Assembleia Legislativa do
Espírito Santo (ALES) indicou medidas compensatórias a serem
tomadas pelas empresas atuantes no complexo Tubarão, como
a construção de unidades hospitalares e investimentos em pes-
quisas e projetos para diminuir a emissão de material particu-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 233

lado. Como se percebe, nenhuma medida de combate efetivo e


imediato do problema foi tomada, apenas medidas paliativas e
que visam a atingir as consequências em vez da raiz. Pode-se
ressaltar que a empresa Vale S.A. e a Arcellor não assumiram a
responsabilidade integral pelos problemas, mesmo com estu-
dos (cf. MIRANDA, 2008) apontando a relação direta entre as
suas atividades e os problemas de saúde.
Hoje, a praia de Camburi encontra-se deteriorada; deje-
tos de esgoto, resíduos sólidos provenientes da falta de coleta
e efluentes industriais são despejados diretamente na praia ou
chegam por meio do canal da baía de Vitória, pela maré e pela
Lagoa Pau-Brasil (Fotografia 2) que deságua no curto rio Cam-
buri e, logo depois, segue para o mar.

Fotografia 2 –Deságue da Lagoa Pau-Brasil no rio Cambur

Fonte: Arquivo do autor

Salienta-se, ainda, conforme aponta a legislação que insti-


tuiu o “Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro - PNGC”,  que

Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo,


sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao
mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos
considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos
234

em áreas protegidas por legislação específica. (LEI 7.661, DE


MAIO DE 1988).

Ao observar a localização do complexo siderúrgico-portuá-


rio, nota-se que a praia, espaço público, quase foi incorporada pela
empresa. O acesso a este espaço é dificultado pelos muros muito
próximos à costa. Em alguns pontos do percurso, apenas é pos-
sível passar buscando o equilíbrio em meio às pedras colocadas
para sustentar os muros diante da erosão marinha (Fotografia 3).
Devido às dificuldades impostas pelas empresas que segre-
garam parte do espaço público, o extremo norte da orla da praia
de Camburi é pouco frequentado. Assim, apesar dos problemas
ambientais, tal área apresenta uma beleza ímpar. Diferentes pers-
pectivas da cidade, dos patrimônios naturais e históricos (Foto-
grafia 4), podem ser vistas pelos poucos que descobrem o lugar e
se atrevem a enfrentar os obstáculos construídos pela Vale S.A.

Fotografia 3 – Muro da Vale e o mar.

Fonte: Arquivo do autor.


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 235

Fotografia 4 – Praia secreta no entorno da Vale.

Fonte: Arquivo do autor.

Dessa maneira, nota-se que a cidade é moldada pelo capital,


o direito ao espaço urbano é limitado pelas vontades do capi-
tal, pelas necessidades da acumulação constante que subjuga as
pessoas, as paisagens, e os espaços promovendo a desumaniza-
ção do meio urbano. O estado calamitoso da praia de Camburi,
a péssima qualidade do ar da região e o cerceamento de uma
área pública -– que poderia ser utilizada pelos munícipes para
atividades lúdicas e desportivas –-, corresponde ao reflexo da
dinâmica político-econômica do sistema vigente que tem como
característica a exclusão e a segregação.
Lefebvre (2016, p. 34) alerta que

[...] o direito à cidade estipula o direito de encontro e de reu-


nião; lugares e objetos devem responder a certas “necessida-
des”, em geral mal conhecidas, a certas funções menospreza-
das, mas, por outro lado, transfuncionais: a “necessidade” de
vida social e de um centro, a necessidade e a função lúdica, a
função simbólica do espaço [...].
236

Assim formulado, podemos pensar: quantas nuanças artís-


ticas, esportivas, culturais, sociais, ou seja, humanas são impe-
didas de aflorar devido à apropriação do espaço urbano apenas
para a manifestação desumanizada da industrialização? Certa-
mente inúmeras possibilidades são frustradas e suprimidas.
Porém, Lefebvre indica que por meio da concepção de di-
reito à cidade, reconstituindo a unidade espaço-temporal vin-
culada ao coletivo, à centralidade do urbano ao invés de uma
fragmentação, é possível buscar um novo paradigma de huma-
nismo (LEFEBVRE, 2016).
Portanto, faz-se necessário pensar em uma estratégia do
saber, ou seja, uma estratégia do conhecimento que esteja atre-
lada à política, no horizonte do “direito à cidade, isto é, à vida
urbana, condição de um humanismo e de uma democracia re-
novados” (LEFEBVRE, 2001, p. 7). Propondo assim, a superação
da cidade urbano-industrial para uma cidade de fato urbana,
feita para as pessoas e não para atender a sociedade industrial.
Lefebvre aponta que

[...] é na direção de um novo humanismo que devemos tender


e pelo qual devemos nos esforçar, isto na direção de uma nova
práxis e de um outro homem da sociedade urbana. E isto, es-
capando aos mitos que ameaçam essa vontade, destruindo as
ideologias que desviam esse projeto e as estratégias que afas-
tam desse trajeto (LEFEBVRE, 2001, p. 108).

Nesse prisma de análise, evidenciamos que as transforma-


ções desencadeadas pelo processo de industrialização-urbani-
zação estiveram (e estão) entrelaçadas à lógica sistemática do
capitalismo, que modificam o habitar no espaço urbano descon-
figurando o lócus social, e configurando relações meramente
produtivas e comerciais.
No entanto, de acordo com Lefebvre, a “[...] vida urbana
ainda não começou” (2001, p. 108). Isto significa que a vida dig-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 237

na, do lazer, da cultura, do aproveitamento pleno dos espaços


e paisagens ainda não ocorreu. Por isso, é necessário pensar
em um novo humanismo, em uma nova perspectiva de cidade,
onde o direito de usufruir as paisagens, as obras e todos os ele-
mentos urbanos torna-se inalienável.
238

Referências

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Comissão Parlamentar de Inquérito do “pó preto”. Assembleia
Legislativa do Espírito Santo. 7 Out. 2015. Disponível em:<
http://www.al.es.gov.br/appdata/anexos_internet/down-
loads/Relat%C3%B3rio%20Final%20da%20CPI%20do%20P%-
C3%B3%20Preto%20-%20Ales%20-%20Outubro%20de%202015.
pdf> Acesso em: 02 fev. 2017.

BRASIL. Planalto da República. Lei n. 7.661, de 16 de maio de


1988. Institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro
e dá outras providencias. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
18 mai. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/L7661.htm>. Acesso em: 20 jan. 2017.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo:


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na. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

______. Espaço e política: o direito à cidade II. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2016.

MARX, Karl. Gundrisse: manuscritos econômicos de 1857. São


Paulo/ Rio de Janeiro: Boitempo/ Editora UFRJ, 2011.

MIRANDA, Dione da Conceição. Prevalência da asma e sinto-


mas no município de Vitória ES: comparação entre duas áre-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 239

as com diferentes fontes de poluição atmosférica identificadas


através do biomonitoramento. Faculdade de Medicina da Uni-
versidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: <http://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5144/tde-30102008-
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SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamen-


to único à consciência universal. São Paulo: Record, 2001.

ROESER, H. M. P.; ROESER, P. A. O quadrilátero ferrífero - MG,


Brasil: aspectos sobre sua história, seus recursos minerais e
problemas ambientais relacionados. Geonomos, Ouro Preto,
UFOP, n.18, v. 1, p. 33-37, 2010. Disponível em: <http://igc.ufmg.
br/geonomos/PDFs/1.06_Hubertetal_33_37.pdf>. Acesso em:
19 jun. 2016.
A criança e a educação na cidade:
pensamentos inquietantes na
educação infantil de Vitória

Dina Lúcia Fraga


Dilza Côco

Durante anos de trabalho na educação infantil da Prefeitura


de Vitória, constatamos a necessidade de aproximar as práticas
pedagógicas realizadas em escolas que atendem a este segmento
com a Cidade onde estão situadas. Dessa forma, podemos com-
preender os tempos e espaços potencialmente educativos que
ela possui, a fim de realizar propostas pedagógicas que possam
“desemparedar as crianças” das instituições escolares infantis e
levá-las a ouvir as histórias que a Cidade nos conta, nos aproprian-
do dos conhecimentos que ela evoca, social e artisticamente.
Nas últimas décadas, temos assistido uma maior discus-
são acerca do conceito de Cidade Educativa (UNESCO) e Cidade
Educadora (Programa da Associação Internacional das Cidades
Educadoras – AICE), da qual, inclusive, a cidade de Vitória, faz
parte. É importante esclarecer os sentidos diferenciais das ex-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 241

pressões Cidade Educativa para Faure (1977) e para Freire (2007)


como forma de entendermos que, apesar de utilizarem o mes-
mo nome, esses conceitos diferem-se bastante.
O conceito de Cidade Educativa teve sua origem a partir de
um relatório publicado pela UNESCO, em 1973, conhecido como
Relatório Aprender a Ser (ou mais conhecido como Relatório
Faure), que defendia a tese de “elaborar e apresentar aos Estados
membros os elementos necessários para uma reflexão sobre as
estratégias da educação em escala internacional” (FAURE, 1972
apud SILVA, 1979, p. 19). Esse conceito consolidou-se em Bar-
celona, Espanha, quando da realização, em 1990, do I Congres-
so Internacional das Cidades Educadoras, em que foi aprovada
uma carta de princípios básicos especificando as características
de uma cidade que educa. Este documento aponta que a Cidade
Educadora deve deixar de ser um mero recurso pedagógico da
escola para converter-se em um verdadeiro agente educativo,
em uma fonte de aprendizagem, de sabedoria, de convivência
(CHISTÉ; SGARBI, 2015).
As palavras nos soam bonitas, mas analisando o momen-
to histórico da criação da Unesco (pós-guerra) e seus objetivos
de “ajuda” aos países subdesenvolvidos pelos desenvolvidos,
ou seja, por uma ótica hegemônica, compreendemos que pre-
cisamos refletir com mais cautela sobre os “interesses” dessa
afirmação.
Sobre isso, Gadotti nos diz:

A ideia de uma Cidade Educativa, defendida pela Comissão In-


ternacional para o Desenvolvimento da Educação da UNESCO,
é esta miragem da Educação Permanente que, atualmente,
alimenta os sonhos dos países em via de desenvolvimento.
No Brasil, por exemplo, a ideia de uma comunidade na qual
a educação estaria “ao alcance de todos”, “durante a vida in-
teira”, “ministrada sob todas as formas possíveis” foi acolhida
imediatamente pelos responsáveis pela educação. Assim, um
242

país como o Brasil, que está longe de haver atendido o mínimo


necessário para a educação fundamental, longe de haver es-
gotado seus recursos educativos, tenta “implantar” um mode-
lo de educação cujos resultados devem ser postos em dúvida,
dado que foram elaborados para as necessidades dos países
altamente desenvolvidos (GADOTTI, 1992, p. 62).

Após o exposto podemos inferir que o termo Cidade Edu-


cativa é utilizado no Relatório Faure e cunhado pela Unesco e o
termo Cidade Educadora refere-se às ações implementadas pela
AICE. Já a concepção trazida por Freire58 (2007) de Cidade Edu-
cativa, coloca a educação face-a-face com uma cidade histórica
e afetivamente constituída por seus habitantes num efêmero e
ao mesmo tempo imortal tempo de descobertas, valores, arte,
ciência e tudo do que o homem é capaz de criar e (des)construir
ao longo de sua existência.
Diz Freire (2007, p. 25)

A Cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de


aprender, de ensinar, de conhecer, de criar, de sonhar, de
imaginar de que todos nós, mulheres e homens, impregnamos
seus campos, suas montanhas, seus vales, seus rios, impregna-
mos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, seus edifí-
cios, deixando em tudo o selo de certo tempo, o estilo, o gosto
de certa época. A Cidade é cultura, criação, não só pelo que
fazemos nela e dela, mas pelo que criamos nela e com ela, mas
também é cultura pela própria mirada estética ou de espanto,
gratuita, que lhe damos. A Cidade somos nós e nós somos a Ci-
dade. Mas não podemos esquecer de que o que somos guarda
algo que foi e que nos chega pela continuidade histórica de
que não podemos escapar, mas sobre que podemos trabalhar,
e pelas marcas culturais que herdamos.

Os responsáveis pelo Instituto Paulo Freire prosseguiram com as elabora-


58

ções de Freire e chegaram a outra denominação, a de município que educa.


Em todas essas proposições a educação fica na condição secundária, o que não
reflete nossas proposições. Assim, privilegiamos nesse texto a perspectiva
educação na cidade, por acreditarmos que a potência para entender e com-
preender a cidade exige uma mediação qualificada, em especial, do professor.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 243

Assim, ao nos referirmos à educação na cidade, nos apro-


ximamos da concepção de Cidade Educativa apresentada por
Paulo Freire, que guarda em si um potencial educativo em seus
múltiplos “cantinhos” e compreende que a destinação que de-
les fazemos implica também em uma opção política, que prio-
riza (ou não) seus moradores, por meio de espaços que visem a
convivência, o lazer, o conhecimento, a permanência e conti-
nuidade da história.
Ao mesmo tempo, reconhecemos que a cidade é o espaço
das diferenças (GADOTTI, 2006, p. 139), pois é nele que apren-
demos a reconhecer no outro aquilo que nos identifica, mas
também aquilo que nos personifica como seres únicos. É saindo
do espaço escolar que poderemos perceber, não somente os es-
paços da cidade, mas também os seus moradores, os seus costu-
mes, as suas ideias.
Para reconhecer a diversidade de suas gentes e, portanto, de
suas necessidades e especificidades é preciso ensinar a olhar,
ensinar a sentir e conhecer que a História nos mostra que, se
hoje, as crianças, mesmo com inúmeras reticências, já são reco-
nhecidas por serem cidadãos de direitos, nem sempre foi assim.
Trataremos deste recorte histórico da infância a seguir.

A Sociedade das Crianças Invisíveis


É isso que me faz pular para o passado: eu penso que nunca
segui um comportamento histórico que não tivesse como
ponto de partida uma questão colocada pelo presente.
Philippe Ariès

É interessante constatar que, apesar de muitas tentativas,


ainda percebemos nas sociedades atuais, um processo de invisi-
bilidade das crianças pequenas. Seguindo o pensamento de Ariès,
244

recorremos à História e encontramos uma história relacionada


à mudez e à invisibilidade da infância. Apesar de a infância ser
uma etapa de vida e as crianças sempre existirem, somente a
partir do século XII elas passaram a fazer parte de representa-
ções artísticas de grandes pintores. Inicialmente, retratadas em
miniaturas ou pinturas, mas, ainda assim, suas figuras não eram
infantis, pois seus corpos eram musculosos, com feições e trajes
adultos, tendo como única diferença em relação a estes as pro-
porções reduzidas. Posteriormente, outra forma de retratá-las
foi utilizando figuras angelicais, relacionando-as a sentimentos
puros e singelos, mas suscitando ao mesmo tempo a necessidade
de proteção e amparo, sentimentos que permaneceram até hoje.
O sentido etimológico da palavra, de origem latina, infância,
segundo Sarmento (2007), é “aquele que não fala” (in- negação
e fans- o que não fala). Esse sentido atribuído à palavra pode ter
contribuído para que, ao longo da História, as crianças pouco ou
nada valessem, pois podiam ser vítimas de castigos físicos ou prá-
ticas como o infanticídio e o filicídio, sem que seus agressores (que
na maioria das vezes eram da própria família) fossem punidos.
Nas sociedades antigas, como a hebraica, a grega e a ro-
mana, as crianças que não passassem pela avaliação dos mais
velhos ou dos mais respeitados, que lhes atribuíam um “cer-
tificado de perfeição”, eram eliminadas com naturalidade, ar-
remessadas aos precipícios, principalmente se eram fracas ou
deficientes. Em Roma, a prática de abandono ou morte era ins-
tituída pelo Direito romano. Percebemos, então, que a violência
e a exclusão social da infância é uma antiga prática ratificada
pelas antigas culturas da humanidade.
Durante séculos, a infância foi (e ainda é) socialmente ex-
cluída por uma sociedade predominantemente adultocêntrica.
Mesmo assim, as concepções de infância foram se modificando à
medida que transformações políticas e econômicas foram acon-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 245

tecendo, levando a outros modos de ser e viver em sociedade.


Mas outros desafios foram surgindo. À medida que as socie-
dades foram se industrializando, os espaços coletivos das brin-
cadeiras na rua foram desaparecendo. As instituições de guarda
de crianças, a princípio organizadas por mães que não tinham
uma ocupação, para que outras pudessem trabalhar nas fábricas
foram sendo criadas, as ruas deram lugar aos automóveis e as
casas com grandes quintais cederam espaço às moradias coleti-
vas, aos grandes prédios. E a infância começou a ser aprisionada.
Rizzo (2003) relata que

Criou-se uma nova oferta de emprego para as mulheres, mas


aumentaram os riscos de maus tratos às crianças, reunidas em
maior número, aos cuidados de uma única, pobre e desprepa-
rada mulher. Tudo isso, aliado a pouca comida e higiene, gerou
um quadro caótico de confusão, que terminou no aumento de
castigos e muita pancadaria, a fim de tornar as crianças mais
sossegadas e passivas. Mais violência e mortalidade infantil
(RIZZO, 2003, p. 31).

A infância começa a sair de seu anonimato social quando a


Constituição de 1988, em seu artigo 205, reconhece que a edu-
cação é direito de todos e, por inclusão, também das crianças
de zero a seis anos. Nesta mesma legislação, o inciso IV do ar-
tigo 208 ratifica que o “dever do estado com a educação será
efetivado mediante garantia de [...] atendimento em creche e
pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”. A partir daí,
a Coordenação de Educação Infantil do Ministério da Educação
lança pela primeira vez, em 1994, um documento intitulado Po-
lítica Nacional de Educação Infantil, que em suas diretrizes pe-
dagógicas institui que

[...] a criança é concebida como um ser humano completo


que, embora em processo de desenvolvimento e, portanto,
dependente do adulto para sua sobrevivência e crescimen-
246

to, não é apenas um “vir a ser”. Ela é um ser ativo e capaz,


motivado pela necessidade de ampliar seus conhecimen-
tos e experiências e de alcançar progressivos graus de au-
tonomia frente às condições de seu meio. A criança, como
todo ser humano, é um sujeito social e histórico; pertence a
uma família, que está inserida em uma sociedade, com uma
determinada cultura, em um determinado momento histó-
rico. É profundamente marcada pelo meio social em que se
desenvolve, mas também o marca, o que lhe confere a con-
dição de ser humano único, de indivíduo. A criança tem na
família - biológica ou não - um ponto de referência funda-
mental, apesar da multiplicidade de interações sociais que
estabelece com outras instituições sociais (PNEI, 1994, p. 16).


Gradativamente, os movimentos sociais em prol das crian-
ças também foram conquistando direitos legais de proteção
contra os maus tratos. Assim, em 13 de julho de 1990 é promul-
gado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, entre outras
conquistas importantes, institui os conselhos dos direitos da
criança e do adolescente em todos os níveis, com caráter deli-
berativo, cujos objetivos são: assegurar políticas públicas para
a efetivação desses direitos, zelar pelo cumprimento da Lei e
atender os casos de violação dos mesmos.
Mas, ainda hoje, mesmo que se reconheça a criança como
um indivíduo que sente, pensa e age sob uma ótica própria, que
lhe permite interpretar os fatos e as vivências pelas quais passa
de forma singular, é fácil perceber que nossa cidade não é pla-
nejada ou pensada para que as crianças dela se apropriem e a
utilizem de forma autônoma. Os espaços a elas destinados não
atendem aos seus impositivos peculiares como, por exemplo,
sua estatura. Os painéis, as gravuras, as estantes são instalados
na altura do olhar dos adultos. Para que consigam enxergá-los,
é necessário pegá-las no colo; também não há banheiros ou tro-
cadores de bebês disponíveis nas praças ou teatros e, muitas ve-
zes, nem mesmo programação infantil de que possam usufruir.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 247

Hoje, a sociedade moderna encontra-se “encastelada”, en-


clausurada em suas unidades domésticas e as crianças que a ha-
bitam, cada vez menos se movimentam ou brincam, pois seu
tempo é preenchido com inúmeras ocupações que a subtraem
da infância e as conduz para o mundo das obrigações do balé,
da língua estrangeira, dos deveres intermináveis de uma vida
ainda invisível mesmo que anunciada.
Mas, podemos ousar em tentativas que apostem em práti-
cas diferenciadas nas instituições de educação infantil. É essa
experiência que relatamos a seguir.

O Parque é das Crianças:


uma vivência real na Cidade de Vitória

Para que a criança se aproprie dos tempos-espaços


da Cidade, “[...] é necessário que a ela seja permitido dei-
xar suas marcas” (PINTO, 2003, p. 67). É preciso que ela pos-
sa perceber onde mora, as características que definem a
sua cidade, sentindo os seus cheiros e seus sabores, re-
conheça sua gente, sua diversidade e suas desigualdades.
Apesar de muitos avanços, ainda se percebe o quanto as prá-
ticas pedagógicas nos Centros Municipais de Educação Infantil
(CMEIs) de Vitória limitam-se a serem realizadas no interior
das salas de aula. Permanecemos com as crianças em prédios
escolares cada vez mais cimentados e acinzentados, de forma
desarticulada com a vida da cidade. As atividades pedagógicas,
em sua maioria, também não privilegiam o movimento corpo-
ral, tão característico dessa faixa etária. Cada vez mais, obser-
vamos as crianças sentadas, enfileiradas, enquadradas em uma
“cultura do papel”, que privilegia o silenciamento da infância.
Essa constatação levou-nos a pensar em uma possibilidade
248

de trabalho pedagógico que mais se aproximasse dos interes-


ses da criança, que criativa e curiosamente quer experienciar
tudo o que lhe “está às mãos”. Assim, no ano de 2014, tive-
mos a oportunidade de, enquanto Coordenadora de Formação
e Acompanhamento das Unidades Escolares, da Gerência de
Educação Infantil da Prefeitura de Vitória, participar da rea-
lização de um Projeto que levasse as crianças a compreende-
rem sua Cidade como “um lugar cheio de sentido, que desper-
ta o gosto pelo saber e que permite às crianças vivenciarem
sua infância juntamente com seus pares” (PINTO, 2003, p. 65).
Assim surgiu o Circuito Educacional, Científico e Cultural
da Educação Infantil, que logo recebeu o nome de “Pé na Ci-
dade”. Esse Projeto objetivava vivenciar atividades curricula-
res próprias da educação infantil em espaços mais amplos da
cidade. No caso, os Parques. Após visitar e analisar os Parques
existentes em nossa cidade e fazermos contato com seus direto-
res, escolhemos aqueles que melhor se adaptavam aos objetivos
do projeto, atendendo aos critérios de localização, estrutura e
recursos diferenciados que cada um oferecia (existência de nas-
centes e vegetação típica, terrenos acidentados, etc.). Dessa aná-
lise, quatro foram os escolhidos: Parque Moscoso, no centro da
Cidade; Parque Pedra da Cebola, na Mata da Praia; Parque Barrei-
ros, em São Cristóvão e Parque fazendinha em Jardim Camburi.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 249

Figura 1- Logomarca do Projeto.

Fonte: Secretaria de Educação do Município de Vitória.

A proposta consistia em participar de um circuito de vivên-


cias científicas, linguísticas, artísticas (musicais e plásticas) e cor-
porais com crianças, professores e outros profissionais atuantes
nos centros de Educação Infantil de Vitória, tendo como eixo
central Patrimônio, Sustentabilidade e Contemporaneidade.
Os Parques, historicamente, representam em uma cidade
o ponto de encontro de seus cidadãos, que dela usufruem de
forma a criar laços de pertencimento às suas áreas de lazer. Essa
relação afetiva era também importante de ser resgatada nes-
sa proposição pedagógica para que as crianças soubessem que
aqueles espaços guardavam em si uma memória ou expressa-
vam sua constituição a partir de movimentos sociais e urbanos
que os fizeram existirem.
Calvino (2003), descrevendo suas Cidades Invisíveis, diz que

A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui


das recordações e se dilata. [...] a cidade não conta o seu pas-
sado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos
das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas,
250

nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada


segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfola-
duras (CALVINO, 2003, p. 15).

Assim, nos dias especificados para a atividade do Pé na Ci-


dade, os Parques se inundavam do colorido das crianças, du-
zentas por turno, de quatro CMEIs diferentes, que, já nos ôni-
bus, no trajeto, deslumbravam uma Cidade que nem sempre
conheciam. Viam a orla do mar, as montanhas, como o Penedo,
na Avenida Beira-Mar, as ruas, as grandes lojas, o Shopping Vi-
tória, a Ponte da Passagem, a Terceira Ponte, a Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes), já que, propositadamente, os
Parques eram escolhidos distantes dos CMEIs para provocar
esse olhar das crianças.
Mas para que o Circuito acontecesse, o convite às crian-
ças era feito dias antes, no próprio CMEI, pela Marieta e suas
amigas, que, envoltas no jogo de papéis, característico da faixa
etária das crianças do segmento infantil, incentivando-as a par-
ticiparem, estimulando a vontade de já estar no Parque, viven-
ciando tudo o que estava por vir.

Figuras 2 e 3 - Convite às crianças.


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 251

Fonte: Acervo particular da autora.

Ao chegar ao Parque, as crianças aconchegavam-se em pe-


quenos grupos. Enquanto aguardavam seus colegas de outros
CMEIs, conheciam o Parque por meio de banners-mapas, visu-
alizando o espaço em que se encontravam e o percurso inicial
que iriam realizar – o Cortejo – e as vivências das quais iriam
participar: trilha ecológica, práticas radicais, artes, capoeira,
música, práticas científicas, história.

Figura 4: Visualizando o Parque no mapa. Acervo da pesquisadora.

Fonte: acervo particular da autora.


252

Antes da divisão das crianças pelas vivências pedagógica-


-curriculares, era feito um reconhecimento geral do Parque por
meio de um Cortejo, que se caracteriza por um acompanhamen-
to de pessoas a alguém que os conduz. O Cortejo representa uma
época vivida, um recriar do passado em que era muito utilizado
para dar visibilidade aos acontecimentos da cidade, já que, an-
tigamente, era esse o canal de comunicação entre os cidadãos.
O cortejo do Pé na Cidade era conduzido pelos próprios educa-
dores, que iam tocando seu bumbo e cantando músicas que re-
presentavam a infância. Nos Parques mais rurais, como o Fazen-
dinha, o bumbo era trocado pelo acordeom, a fim de combinar
melhor com a atmosfera e o tempo mais lento da vida na fazenda.

Figuras 5 e 6 - O Cortejo do Pé na Cidade. Acervo da pesquisadora.


Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 253

Fonte: Acervo particular da autora.

É importante ressaltar que utilizar a cidade naquilo que ela


tem e guarda de si e da sua história é uma verdadeira lição, na
qual o conhecimento é adquirido pela voz de seus monumentos,
seus jardins, suas belezas. Parar e ouvir, imaginar e sentir, coisas
que deveríamos nos acostumar a fazer no cotidiano das escolas.

Figuras 7 - Monumentos no Parque Moscoso.

Fonte: Acervo particular da autora.


254

O Pé na Cidade proporcionou, não só às crianças, mas tam-


bém aos educadores, conhecimentos que a Cidade possui pelo
seu valor, pela sua própria existência. Mas para descobri-los, de-
vemos reconhecer a importância da mediação dos professores,
desenvolvendo uma possibilidade de trabalho que aposta em
ações educativas que promovam a democratização dos conhe-
cimentos. A escola deve ser o espaço formativo onde ocorrem
ações intencionais de transmissão do conhecimento, não apenas
daquele trazido pelo repertório social das crianças, mas princi-
palmente daqueles que venham representar “um ponto de au-
mento do capital cultural da criança [...]” (ARCE, 2010, p. 33).

Figura 8 – Crianças observando monumento do chafariz no Parque Moscoso.

Fonte: Acervo particular da autora.

As vivências do Projeto levaram as crianças a perceberem as


possibilidades de seus corpos, ora descobrindo formas de enxer-
gar o mundo por outro ângulo, como na capoeira, ora sentindo as
possibilidades de criação por meio da confecção das tintas que
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 255

iam utilizar ou as sensações provocadas pela descida de ladeiras


em um carrinho de rolimã.
Também podiam experimentar localizar-se por meio de
pistas e obstáculos de uma trilha ou ouvir a ovelha Bé narrar
suas histórias do mundo da fantasia. Ouvir o canto da sereia a
contar sobre as nascentes dos rios de um dos Parques ou empre-
ender subidas radicais de rapel nos desníveis de outro. Ou ainda
observar o céu e suas constelações, num planetário, que incita-
va a uma viagem interestelar, por meio de aventuras incríveis.
Ou fotografar detalhes que lhes chamavam a atenção, como as
flores dos jardins ou seus colegas fazendo pose ou ainda o avião
que viam ao longe e depois passava tão pertinho, em cima de
suas cabeças. O melhor era depois ver as fotos reveladas e en-
tender suas invencionices.
Tantas e tantas aprendizagens eram proporcionadas em
uma manhã ou tarde em um Parque da cidade, não só para as
crianças, mas também para os professores. E também para nós,
equipe propositora que precisamos muitas vezes saber lidar
com os “nãos” recebidos dos Parques, já que, para alguns rece-
ber esse trabalho representava desordem ou possibilidade de
poluição do espaço. Aí era a hora de também nós exercermos
nossa condição de criadores e pensar outras possibilidades que
não inviabilizassem o planejado: já que não podíamos usar tin-
ta em um, usávamos outro veículo que trouxesse outras cores
diferentes do verde e do marrom de determinado Parque. E en-
tão, a cor se fazia!
256

Figuras 9 e 10 - Vivência “Fazendo Arte”.

Fonte: Acervo particular da autora.

Fonte: Acervo particular da autora.

Nos momentos da realização desse Projeto percebemos que


foi possível viver a vida da cidade sem separatismos, possibili-
tando a ocupação dos espaços urbanos por meio de mediações
educativas de ambos os lados: da escola e da cidade, pois “[...]
não é possível ver a escola separada da cidade. A escola é da
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 257

cidade, na cidade e para a cidade e, nesse sentido a educação


será sempre um ato político” (CHISTÉ; SGARBI, 2015, p. 106).

Considerações finais

A Cidade é uma contadora de histórias. Por meio dos no-


mes de suas ruas, seus monumentos erguidos para homenagear
feitos da guerra ou da paz, sua arte, seus típicos cidadãos carac-
terizados por sua resistência aos modos convencionais de ser e
viver, seus palacetes ou suas palafitas, seus espaços comuns ou
seus guetos, conhecemos seus tempos e os interesses de quem
lhes governou ou governa.
Dessa forma, podemos entender os espaços da cidade como
potencialmente educativos e o que os torna assim

[...] é o olhar que se tem sobre eles. Quem se interessa pela


educação tem um olhar pedagógico diante das coisas, assim
como um filósofo que se espanta diante das coisas ou um artis-
ta que capta a totalidade do real, enxergando aquilo que está
além das aparências. Assim, aquele que tem um olhar peda-
gógico percebe logo o potencial educador de um espaço ou de
uma situação (CHISTÉ; SGARBI, 2015, p. 9).

Assim, quando propomos uma prática que saia com as


crianças do espaço escolar, fazendo com que elas leiam a cidade
naquilo que lhes é perceptível e também em suas entrelinhas,
compreendendo suas potencialidades e suas desigualdades,
contribuímos para a constituição de sua cidadania, “gerando
uma nova mentalidade, uma nova cultura, em relação ao cará-
ter público do espaço da cidade” (GADOTTI, 2006, p. 136).
Partindo dessas análises e da experiência vivida com o Pro-
jeto “Pé na Cidade”, pensamos ser possível realizar um trabalho
escolar com crianças da educação infantil de modo mais aproxi-
258

mado da Cidade, empreendendo uma prática intencionalmente


planejada para além dos muros dos CMEIs, realizando ações que
convoquem a pensar em como as relações entre a cidade e a
escola podem contribuir com sua aprendizagem e a valorização
do patrimônio cultural da cidade de Vitória.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 259

Referências:

ARCE, Alessandra. O referencial curricular nacional para a edu-


cação infantil e o espontaneísmo. In: ARCE, Alessandra e MAR-
TINS, Lígia Márcia (Org). Quem tem medo de ensinar na edu-
cação infantil? em defesa do ato de ensinar. 2.ª ed. Campinas,
SP: Editora Alinea, 2010.

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tra-


dução de Dora Flaksman. 2ª. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Política Nacional


de Educação Infantil. Brasília, DF: MEC/SEF/COEDI, 1994. 48 p.

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. Tradução de Diego Mai-


nardi. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo,
2003.

CHISTÉ, Priscila de Souza; SGARBI, Antonio Donizetti. Cidade


educativa: reflexões sobre a educação, a cidadania, a escola e a
formação humana. Revista Debates em Educação Científica e
Tecnológica, Vitória, v. 5, n. 4, p. 84-114, dez. 2015.

FREIRE, Paulo. Educação permanente e as cidades educati-


vas. São Paulo: Vila das Letras, 2007.

GADOTTI, Moacir. A escola na cidade que educa. In: Caderno


Cenpec, 2006, nº1.

______. Escola cidadã, cidade educadora: projetos e práticas


em processo. Disponível em: <www.revistas.usp.br/posfau/ar-
ticle/viewfile/43364/46986>. Acesso em: 24/01/2017.
260

PINTO, M. R. B. A condição social do brincar na escola: o pon-


to de vista da criança. 2003. 182 f. Dissertação (Mestrado em
Educação). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianó-
polis, 2003.

REDIN, E.; ROMANINI, R. Outra cidade é possível. In: Educação


Unisinos, v. 11, n. 1, p. 51-56, jan./abr. 2007.

RIZZO, Gilda. Creche: organização, currículo, montagem e fun-


cionamento. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Visibilidade social e estudo da in-


fância. In: VASCONCELOS, Vera Maria R.; SARMENTO, Manuel
Jacinto (Org.). Infância (in)visível. Araraquara: J&M Martins,
2007, p. 25-46.

SILVA, Jefferson Ildefonso da. Cidade Educativa: um modelo de


renovação da educação. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 261

Capítulo III
Educação na cidade e suas
interfaces com a literatura
262
O outro e a cidade na literatura
brasileira: um diálogo entre Rubem
Fonseca e as relações de alteridade
no espaço urbano
Letícia Queiroz de Carvalho

A cidade não é apenas um espaço físico, mas uma forja de


relações. É o centro de um tempo onde se fabricam e refa-
bricam as identidades próprias.
Mia Couto

A vida urbana e seus tipos marginalizados em meio aos pro-


blemas sociais e à violência compõem o eixo temático da cole-
tânea de contos Feliz ano novo, do mineiro radicado no Rio de
Janeiro, Rubem Fonseca. Publicado em 1975, em pleno regime
militar, o livro foi censurado um ano após o seu lançamento a par-
tir da arbitrariedade da censura naquela época, em que a moral
e os bons costumes pareciam não se coadunar à tessitura narra-
tiva do universo fonsequiano. A linguagem cortante e o tom rea-
lista do autor trouxeram para a cena literária as relações huma-
nas na cidade grande, permeadas pela solidão e pela melancolia.
264

Relançada em 1989, a coletânea de Rubem Fonseca – até


então censurada – resgata cenas do cotidiano das metrópoles
brasileiras, mais precisamente do espaço carioca, em sua face
excludente, violenta e reveladora de uma patologia social que
imobiliza o homem no tocante às suas relações alteritárias. No
conto o “O outro”, escolhido como corpus desta análise, a voz
narrativa desenha ações vividas por um executivo que vive
apressadamente o cotidiano do mundo empresarial carioca, em
todas as suas angústias físicas e psicológicas acentuadas pela pre-
sença de um mendigo que passa a persegui-lo e a tirar-lhe a paz.
A fim de analisarmos as relações contraditórias entre os
homens, presentes no ritmo de vida citadino e de problema-
tizarmos os contrastes sociais presentes no espaço urbano
da edificação narrativa de Rubem Fonseca, traremos à baila a
discussão da cidade como local excludente na Literatura, bem
como a invisibilidade social de alguns tipos humanos que vivem
à margem dos processos da sociedade.
Desse modo, o texto será organizado em três seções: na
primeira, intitulada “Rubem Fonseca: ‘O outro’ e o brutalismo
na Literatura Brasileira”, serão tecidas considerações gerais
sobre a produção fonsequiana e o contexto relativo ao conto
em análise, além da apresentação de algumas especificidades
concernentes ao brutalismo, corrente literária que inaugurou
nos anos 70 um modo de narrar alinhado ao realismo da vida
cotidiana em sua feição violenta e contraditória.
A segunda seção, “A cidade como espaço de exclusão na Li-
teratura: as relações de alteridade no contexto urbano”, abor-
dará mais especificamente a articulação entre o universo nar-
rativo do conto “O outro” e o espaço urbano apresentado como
um campo de tensões e conflitos, uma arena de lutas que aden-
tra os cenários da literatura, a partir das respostas dadas pela
linguagem literária aos processos excludentes de urbanização
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 265

surgidos na modernidade e intensificados no mundo hodierno.


A seção ainda abordará no subtópico “Cenas de alteridade
no universo narrativo: Rubem Fonseca e Mikhail Bakhtin em
diálogo” o conceito bakhtiniano de alteridade a partir da sua
interlocução com as situações criadas no conto “O outro”, para
que possam ser problematizados os temas da invisibilidade
social, o não reconhecimento do outro no espaço coletivo e o
isolamento humano diante das questões sociais que se lhe apre-
sentam cotidianamente.
Por fim, na terceira e última seção, “Apontamentos para
discussão”, a síntese das análises realizadas sobre a cidade, a
Literatura e a presença do outro nas relações sociais será apre-
sentada como ponto de partida para novas interlocuções entre
o universo ficcional – representado aqui pela narrativa fonse-
quiana – e as questões que permeiam amplamente as atividades
humanas nos grandes centros urbanos.

Rubem Fonseca: “O outro” e


o brutalismo na Literatura Brasileira

As produções literárias de Rubem Fonseca trouxeram para


o nosso cenário cultural as marcas do universo policial por onde
o autor passou algum tempo da sua carreira como advogado e
como comissário, no 16° Distrito Policial, em São Cristóvão, no
Rio de Janeiro, nos anos 50.
A proximidade com as ruas e com o mundo do crime trou-
xe fatos e peculiaridades imortalizadas em personagens e situa-
ções ficcionais criadas pela linguagem idiossincrática do autor,
característica de uma nova corrente literária no Brasil, deno-
minada por Bosi (1997) de brutalistaum modo especial de lidar
literariamente, sem abrandamentos, com situações sociais de
266

extrema violência em nosso contexto urbano. A expressão “Li-


teratura brutalista”, como ressalta Anjos (2016, p. 01)

[...] foi cunhada em meados da década de setenta do século


passado por Alfredo Bosi para caracterizar determinada ver-
tente da literatura brasileira, que em linhas gerais, e grosso
modo, trazia em sua configuração os instantâneos de uma
sociedade opressora das individualidades, registrados no coti-
diano terrível das grandes cidades. Este cotidiano, fotografado
por personagens narradores apresenta as deformidades de um
mundo violento, sujo e infame, onde a moral e a ética simples-
mente se dissolveram.

A vertente brutalista ou neo-realista da literatura brasi-


leira caracterizou-se, pois, como a configuração de um campo
constituído pela violência, pelo descaso, pelo individualismo,
pela corrupção e pela ausência de ética, ressaltadas na criação
literária por traços peculiares como: personagens marginali-
zados, violência urbana, exclusão social, abandono do poder
público, linguagem das margens, entre outras (BOSI, 1997).
Bosi (1997) aponta para o “realismo brutalista” como uma
consequência da violência indeliberada, obviamente, por ve-
zes, decorrida das condições miseráveis na esfera humana e
material, além das dissonâncias sociais presentes na realidade
brasileira dos grandes centros urbanos, advindas de uma nova
explosão do capitalismo selvagem presente no Brasil da década
de 60, momento em que a sociedade de consumo se renova de
forma bárbara e opressora.
Mais adiante, no cenário ainda ditatorial dos anos 70, Rubem
Fonseca lançou a coletânea de contos Feliz ano novo, no qual
a vida urbana é registrada de forma contundente e realista, em
um desfile de situações cotidianas assustadoras, permeadas pela
violência em algumas circunstâncias sociais configuradas pela
reificação humana e pelo aprofundamento das exclusões social e
econômica resultantes dos processos históricos da urbanização.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 267

É assim que o mineiro Fonseca inaugura um diálogo entre


a ficção brasileira com a nova vida social e econômica do país,
marcada pela urbanização das cidades e pelas mazelas decor-
rentes das transformações inerentes à nossa tardia industriali-
zação (REBINSKI, 2015, p. 1).
No universo narrativo do conto “O outro”, Fonseca (1996) re-
afirma o ciclo da violência, a partir do medo gerado pela presença
de um pedinte que cruza o caminho de um executivo que é abor-
dado, insistentemente, por esse outro, diferente e deslocado no
cenário onde as ações ocorrem. Submetido a uma rotina estres-
sante de trabalho, o narrador personagem conta as suas angús-
tias quando se depara com a figura desagradável de um mendigo.
Desse encontro entre classes distintas surge o estopim para
a violência que é criada e se amplia em meio aos contrastes pre-
sentes nas relações alteritárias entre o narrador e o pedinte, am-
bos anônimos no texto, cada qual metaforizando os anseios, as
angústias e os temores instalados na cidade onde essas relações
adversas se estabelecem e se alimentam das contradições inter-
nas geradas pelo abismo social e econômico dos grandes centros.
Se em outros contos da coletânea Feliz ano novo (FON-
SECA, 2012) a violência é intensificada pela narrativa – em
primeira pessoa – de protagonistas pobres e marginalizados,
no texto “O outro” o foco narrativo traz a perspectiva do pro-
tagonista rico, o que especifica ainda mais o direcionamen-
to do conto ao universo social desse personagem: uma vida
confortável, sem privações ou mazelas de natureza material,
marcada – no entanto – pelo isolamento e pelo desgaste emo-
cional da vida apressada e competitiva das grandes cidades.
Rubem Fonseca, na década de 70, em pleno regime ditato-
rial já mimetizava no plano estético do texto literário o cenário
de barbárie instaurado no contexto repressivo do regime mi-
litar. Nesse sentido, a nossa literatura passa a representar os
268

indivíduos urbanos e a violência decorrente da censura institu-


cionalizada, diante da qual os meios literários passam a trilhar
caminhos pedregosos nos quais são apresentadas cenas cruas
de violência e de embrutecimento do homem (COIMBRA, 2016).
Nessa perspectiva, analisaremos a seguir as relações entre
a edificação narrativa do conto “O outro” (FONSECA, 2012, p.
46-49) e o espaço urbano apresentado como um campo de ten-
sões e conflitos, uma arena de lutas que adentra os cenários da
literatura, a partir das respostas dadas pela linguagem literária
aos processos excludentes de urbanização surgidos na moder-
nidade e intensificados no mundo hodierno, para que possam
ser problematizados no texto literário os temas da invisibilida-
de social, o não reconhecimento do outro no espaço coletivo
e o isolamento humano diante das questões sociais que se lhe
apresentam cotidianamente.

A cidade como espaço de exclusão na


Literatura: as relações de alteridade
no contexto urbano
A cidade, o espaço urbano e a realidade urbana não
podem ser concebidos apenas como a soma dos locais de
produção e consumo...
Henri Lefebvre

As cidades têm contribuído para o surgimento de proces-


sos discriminatórios nas sociedades contemporâneas ao colo-
carem à margem da vida social alguns sujeitos impossibilitados
de usufruírem econômica e culturalmente alguns espaços cita-
dinos apropriados pelo capital.
A gênese dessa exclusão e da existência de sujeitos mar-
ginalizados, alijados dos movimentos de construção de uma
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 269

cidade democrática e inclusiva, reside provavelmente em al-


guns traços que contribuíram para dar certa fisionomia co-
mum a esse quadro social delineado a partir dos anos 50 e
intensificado pelo cenário atual, tais como, por exemplo, a
urbanização acelerada e desumana, advinda da industriali-
zação com características parecidas, motivando a migração
das populações rurais para os centros urbanos que os trans-
formaram em massas miseráveis e marginalizadas, submeti-
das à neurose do consumo, que era inviável diante da penú-
ria econômica dessa parcela populacional (CANDIDO, 1989).
Na análise da nova narrativa brasileira, Candido (1989) ain-
da reitera que, no contexto social brasileiro das últimas décadas
do século XX, pairava sobre esse quadro de marginalização no
espaço urbano o capitalismo predatório das imensas multina-
cionais, muitas vezes revelando-se mais fortes do que os gover-
nos dos seus países de origem, transformando-nos em “[...] um
novo tipo de colônias regidas por governos militares ou milita-
rizados, mais capazes de garantir os interesses internacionais e
os das classes dominantes locais” (CANDIDO, 1989, p. 03).
Assim, a expansão do processo urbano acarretou grandes
transformações no estilo e na qualidade de vida na cidade, a partir
da transformação da própria vida urbana e do contexto citadino
em mercadoria, em cuja estrutura político-econômica imperam
os aspectos relacionados ao consumismo, ao turismo e à indús-
tria da cultura e do conhecimento, de modo a encorajar cada vez
mais hábitos de consumo e de formas culturais que condicionam
a experiência urbana contemporânea ao poder de compra em
centros comerciais, galerias e pequenos comércios que prolife-
ram – fast-food e mercados locais de artesanato (HARVEY, 2012).
Sob tal ótica, o espaço urbano seria a materialização do
sistema capitalista no qual a sua produção e transformação re-
sultam da circulação do capital e do seu ciclo de reprodução
270

decorrente, sobretudo, dos agentes sociais que administram o


capital imobiliário no processo de sua transformação em mer-
cadoria-edificação.
Harvey (2009, p. 269) trabalha há algum tempo com a ideia
de um direito à cidade resultante da participação humana nos
processos históricos de criação de um espaço urbano que real-
mente satisfaça as necessidades dos homens, afinal para o geó-
grafo esse direito à cidade “[...] não é o direito de ter – e eu vou
usar uma expressão do inglês – as migalhas que caem da mesa
dos ricos. Todos devemos ter os mesmos direitos de construir
os diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam”.
Desse modo, o lócus urbano na perspectiva capitalista tor-
na-se apenas um espaço de segregação em cujo cerne se locali-
zam apenas os interesses econômicos e políticos propriamente
ditos, quando na verdade deveria ser também “[...] o lugar da
vida, da reprodução da vida, da apropriação social – ao menos
deveria ser – , lugar do cotidiano e da vivência, lugar da inven-
tividade” (AMORIM, 2008, p. 13).
Nessa perspectiva, o direito à cidade vai além daquilo que
ela tem para oferecer aos seus habitantes e precisa ser repensa-
do sob a ótica da transformação do ambiente urbano, ou seja, as-
segurar o direito à cidade para Harvey (2009) é, principalmente,
ter o direito de transformá-la em algo radicalmente diferente,
um lócus regido pelas pessoas e não pelo capital e a sua força
avassaladora que exerce tantos poderes no contexto citadino.
Alinhado a essa concepção, Lefebvre (2001) considera o es-
paço como um produto social que engloba as relações sociais,
por isso não se restringe ao espaço físico, é produzido pelo ho-
mem através do trabalho. Desse modo, é a partir das relações so-
ciais que constituem o espaço é que o homem altera a natureza.
Em meio a tais relações sociais destacam-se as de produção,
consumo e reprodução como determinantes nessa produção do
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 271

espaço que, sob a ótica do filósofo francês, deve ser estudado


e analisado a partir das formas, funções e estruturas, às quais
novas relações podem fazer emergir funções diferentes para
formas preexistentes, já que o espaço não desaparece, mas vai
se transformando por meio de elementos de momentos sociais
e históricos distintos.
Vale destacar que o direito à cidade é uma necessidade dos
países subdesenvolvidos, cujo descontrolado processo de urba-
nização pelo qual passaram nas últimas décadas incorpora em
sua constituição as marcas do processo histórico de coloniza-
ção, a presença de regimes autoritários e a dependência políti-
co-econômica dos países imperialistas.
A cena urbana contemporânea, portanto, instaura um es-
paço multifacetado em que mundos contrastantes coexistem
e convivem com interesses conflitantes na esfera social, prin-
cipalmente por conflitos provenientes da insegurança pública
responsável pelos receios e temores que acompanham as nos-
sas experiências cotidianas no ambiente urbano, no qual, se-
gundo Damião e Félix (2011, p. 154), tende a criar

[...] uma multiplicidade de imagens contraditórias e de estreita


convivência: da favela ao condomínio de luxo, dos arrabaldes
ao subúrbio, dos shopping centers aos lixões, das multidões aos
milionários, do crime à poluição. Essa composição de imagens
e experiências, positivas ou negativas dependendo da percep-
ção e apreensão delas dentro de um contexto e um espaço es-
pecífico, afetam o cotidiano de nossas interações com a cidade.

Segundo Lira (2009), o medo social intensificado nas últimas


décadas tem influenciado a reconfiguração do desenho arquite-
tônico da cidade, na qual os espaços privados incorporam em
suas formas elementos característicos desse novo padrão, a sa-
ber, muros altos, grades, guaritas, cercas elétricas, torres, alar-
mes, circuito de vídeo-monitoramento, entre outros, presentes
272

– sobretudo – em bairros ocupados por camadas sociais mais


privilegiadas e, de forma ostensiva, em espaços residenciais.
O mesmo autor reitera que, além desses espaços, os ambien-
tes comerciais também não estão isentos das representações da
arquitetura do medo, pois o temor do crime também impulsiona
a adoção de medidas autoprotetivas para prevenir os possíveis
danos aos seus proprietários e ao seu patrimônio, ou seja, sur-
ge um clima de repulsa a qualquer acontecimento ou indivíduo
que ameace esse cenário preventivo perante eventuais riscos.
Assim, a paisagem contraditória que se desenha na cidade
altera profundamente as nossas relações e reafirma a segrega-
ção dos indivíduos pobres cuja presença passa a ser ameaçadora
e temida no espaço urbano, principalmente pelo fato deste “ou-
tro” que é diverso e diferente materializar as próprias contradi-
ções internas do contexto citadino.
Desse modo, a partir da metaforização desse indivíduo que
sofre o “apartheid natural” dos espaços públicos e dos proces-
sos sociais e políticos que legitimam a cidadania, iremos ana-
lisar no tecido narrativo fonsequiano o crescente sentimento
de repulsa ao “outro”, a partir da interlocução entre esse texto
ficcional e o conceito de “alteridade” presente nas concepções
bakhtinianas da filosofia da linguagem.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 273

Cenas de alteridade no universo


narrativo: Rubem Fonseca e
Mikhail Bakhtin em diálogo
Através da palavra, defino-me em relação ao outro,
em última análise, em relação à coletividade. (...) A palavra
é o território comum do locutor e do interlocutor.
Mikhail Bakhtin

A linguagem literária responde aos processos excludentes


da urbanização surgidos na modernidade e intensificados no
mundo hodierno quando apresenta o espaço urbano como um
campo de tensões e conflitos, permeado pelas histórias de per-
sonagens violentos e solitários em um cenário narrativo marca-
do pela melancolia e desilusão.
As relações sociais na cidade, permeadas pela linguagem,
são construídas em meio à interação entre os indivíduos nas
diversas esferas coletivas por onde transitam e pelas quais se
constituem pelos processos sociais que demandam a alteridade,
desse modo as experiências individuais desses sujeitos formam-
-se pelo cruzamento constante e contínuo com os enunciados
individuais dos outros.
Portanto, uma premissa básica bakhtiniana é a constitui-
ção da individualidade entre os indivíduos por meio da relação
com a alteridade, fundamento da sua construção identitária.
A partir do momento que se constitui, o indivíduo também se
altera continuamente, consolidando esse processo socialmente
através das interações verbais, já que para o filósofo russo os
pensamentos, opiniões e visões de mundo defendidas pelos ho-
mens são sempre correlacionadas a outras posições a partir de
relações dialógicas e valorativas com outros sujeitos, opiniões e
dizeres (GEGE, 2009).
Por mais que fuja das relações ou das situações contrastan-
274

tes e conflitivas, o homem na perspectiva bakhtiniana apenas


existe a partir do Outro, constituindo-se humano apenas em
suas relações vivas com outros seres humanos na esfera coti-
diana e social, de modo a perceber que o sujeito torna-se consti-
tutivamente dialógico por não absorver apenas uma voz social,
mas várias, que estão em relações diversas entre si, em relações
de concordância ou discordância.
A questão da alteridade atravessa, praticamente, todos os
escritos do Círculo de Bakhtin, apresentando-se como funda-
mental para a compreensão da natureza humana e da sua in-
completude, de modo a destacar no pensamento desses autores
a necessidade do outro como constitutiva do eu. Bakhtin (2010)
afirma que o mundo concreto organiza-se em torno dos centros
de valores do eu e do outro, em três dimensões, quais sejam, eu
para mim, eu para o outro e o outro para mim.
A relação entre o eu e seu (s) outro(s), também presente em
suas análises sobre o autor e o herói (BAKHTIN, 2003), é sem-
pre atravessada pela dimensão axiológica, ou seja, pelos valores
predominantes em dado grupo social. Assim sendo, a questão
da alteridade, nessa perspectiva, passa a incorporar também
uma vertente ética ou política na qual se instaura o princípio
ético da responsabilidade para com o outro. Ou seja, incorpo-
ra uma dimensão ética e política, na medida em que esse “eu”
e esse “outro” configuram-se como sujeitos que não têm álibi,
instaurando a responsabilidade dos indivíduos pelos seus atos
em relação aos outros.
O homem seria, pois, um ser de resposta, cuja agentividade,
implicaria a capacidade de transformar a história, a partir da
consciência da dimensão histórico-ideológica em sua estreita
relação com o contexto e os ecos das múltiplas vozes nele pre-
sentes, bem como das apreciações valorativas provocadas em
nossas relações em sociedade. Szundy (2014, p. 16) destaca esses
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 275

pressupostos ao lembrar que

A importância da inserção no mundo pode ser relacionada


à filosofia do ato responsável delineada por Bakhtin (1920-
24/2010), em que o autor enfatiza a singularidade sem álibi
do nosso existir-evento construída a partir da responsabi-
lidade e responsividade do eu para mim, do eu para o outro
e do outro para mim. Quanto mais desenvolvida a consci-
ência de que nenhuma realidade é assim mesmo (FREIRE,
1997), ou seja, de que os enunciados mais refratam do que
retratam a realidade (VOLOSHINOV, 1929/1999), maiores as
possibilidades de se inserir no mundo para transformá-lo.

Portanto, a autora reafirma a função ativa e responsável do


homem diante da realidade que se apresenta a ele, de modo que
ao tomar posições transformadoras ou não, os homens devem
realmente se inserir no mundo e não apenas a ele se adaptar,
pois todo contexto é prenhe de transformações e mudanças e
estar no mundo é viver um “não álibi da existência” (BAKHTIN,
2010), ou seja, apenas quando não separamos os nossos atos da
nossa realidade e da nossa história vivida é que damos sentido à
vida e nos tornamos seres singulares.
Cabe observar, no entanto, que ao reconhecermos a nossa
unicidade realizada em nossos atos individuais e responsáveis
não significa que devemos viver apenas para nós mesmos, des-
considerando a dimensão alteritária que, para o filósofo russo,
deve ser considerada

O maior princípio arquitetônico do mundo real do ato rea-


lizado ou colocado em prática é a contraposição concreta e
arquitetonicamente válida ou a contraposição performativa
do eu e do outro. A vida não conhece dois centros de valo-
res que sejam fundamental e essencialmente diferentes, mas
correlacionados cada um com o outro: eu e o outro; e é em
torno desses centros que todos os momentos concretos do
Ser são distribuídos e dispostos. Um único e o mesmo obje-
to (idêntico em seu conteúdo) é um momento do Ser que se
276

apresenta de forma diferente do ponto de vista valorativo,


quando correlacionado comigo ou com o outro. E o mundo
inteiro que é unitário em conteúdo, quando em correlação co-
migo ou com o outro, é permeado por um tom emocional-vo-
litivo completamente distinto, é valorativamente operatório
ou válido de um modo diferente, no sentido mais vital, essen-
cial. Isso não perturba a unidade de sentido do mundo, e sim,
o eleva ao nível de um evento único (BAKHTIN, 2010, p. 32).

À luz desses princípios, Bakhtin reitera que o eu necessita


continuamente da contribuição dos outros para definir-se e si-
tuar-se no mundo de forma autônoma, sendo autor de si mes-
mo, respondendo de forma ética e responsável às questões so-
ciais que a realidade possa lhe exigir, em cenários diversos, em
situações complexas ou não, enfim, no constante contato com
seus pares, seus outros.
É assim que, no campo estético, mais especificamente no
conto “O outro” (FONSECA, 2012), deparamo-nos com essa di-
mensão alteritária narrada a partir da rotina de um executivo
submetido a um ritmo alucinante de trabalho em um grande
centro urbano, supõe-se que o espaço narrativo seja a cidade do
Rio de Janeiro. Em sua existência vazia e angustiante vive uma
sensação de esgotamento persistente

Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefone­


mas, lendo memorandos, ditando cartas à minha secretária e me
exasperando com problemas. Quando chegava a hora do almo-
ço, eu havia trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impres-
são de que não havia feito nada de útil (FONSECA, 2012, p. 47).

O narrador personagem descreve em muitas passagens do


texto intensificada pela falta de tempo, pela sensação de vazio e
de incompletude de uma vida estressante até que sinais físicos
de desgaste mudam a sua rotina. Paralelamente a esses novos
acontecimentos que despertam esse executivo anestesiado pelo
cotidiano profissional, surge a figura do “outro”, o marginaliza-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 277

do, o invisível, a outra face da cidade:

Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse


mesmo dia, ao chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu
lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta
dizendo “doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?”.
Dei uns trocados a ele e entrei. Pouco de­pois, quando estava
falando ao telefone para São Paulo, o meu coração disparou
(FONSECA, 2012, p. 47).

Um encontro fortuito e aparentemente casual nas ruas da


cidade transforma-se, gradativamente, em uma relação de de-
pendência entre o empresário e o pedinte, acentuando a atmos-
fera de medo, isolamento e um recorrente mal-estar advindos
desse encontro alteritário: “No dia seguinte, na hora do almoço,
quando fui dar a caminhada receitada pelo médico, o mesmo
sujeito da véspera me fez parar pedindo dinheiro. Era um ho-
mem branco, forte, de cabelos castanhos compridos” (FONSE-
CA, 2012, p. 48).

Mas não foi a última vez. Todos os dias ele surgia, repentina­
mente, súplice e ameaçador, caminhando ao meu lado, ar-
ruinando a minha saúde, dizendo é a última vez doutor, mas
nunca era. Minha pressão subiu ainda mais, meu coração ex-
plodia só de pensar nele. Eu não queria mais ver aquele sujei-
to, que culpa eu tinha de ele ser pobre? (FONSECA, 2012, p. 48).

Coagido e amedrontado pela presença do mendigo, o execu-


tivo exaurido também pelo excesso de trabalho evita transitar
pelas ruas próximas do seu escritório e, adaptado a uma nova
rotina mais saudável, distante do trabalho e daquela sombra
humana que o perseguia diariamente, buscando em suas ações
uma reconfiguração da sua vida e das suas relações. No entan-
to, a força do encontro entre universos tão distintos emerge no
cenário do conto e o narrador protagonista é novamente asse-
diado pelo pedinte e surpreendido por sua presença incômoda:
278

Um dia saí para o meu passeio habitual quando ele, o pedinte,


surgiu inesperadamente. Inferno, como foi que ele descobriu
o meu endereço? “Doutor, não me abandone!” Sua voz era de
mágoa e ressentimento. “Só tenho o senhor no mundo, não
faça isso de novo comigo, estou precisando de um dinheiro,
esta é a última vez, eu juro!” — e ele encostou o seu corpo bem
junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o
seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que
eu, forte e ameaçador (FONSECA, 2012, p. 48).

Surpreendido em inúmeras situações por aquele hálito


azedo e aquela presença funesta, o executivo que narra a his-
tória metaforiza o desespero humano gerado pela incapacidade
de se livrar da desagradável figura do mendigo, do pária social
que não lhe dava sossego . No desenvolvimento desse texto fic-
cional, o encontro conflituoso e tenso entre dois universos tão
distintos encaminha-nos para um desfecho violento. Assim, a
cena final do conto retrata

Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele


ao me ver disse “não faça isso, doutor, só tenho o senhor
no mundo”. Não acabou de falar ou se falou eu não ouvi,
com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era
um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma pali-
dez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrin-
do a sua face, conseguia esconder (FONSECA, 2012, p. 48).

No universo do conto “O outro” é claro o temor surgido


entre os indivíduos no cotidiano da cidade em sua face violenta
e excludente. O tom crítico desse texto ficcional reside, princi-
palmente, na reação extrema dessa voz narrativa que sequer
percebeu que o pedinte era um menino franzino, por estar com-
pletamente imersa em um tipo de medo que a cegava. É nessa
literatura brutalista de Rubem Fonseca que podemos encontrar
elementos que poderão sinalizar uma tentativa de compreen-
são de uma realidade que emerge no contexto urbano. Assim,
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 279

o neo-realismo literário radicalizou na ficção esse cenário de


desigualdades e contrastes sociais acentuados no ambiente ci-
tadino, afinal

[...] Ao mesmo tempo havia, nessa literatura, um elemento que


radicalizava a expressão das motivações políticas do momen-
to, uma tentativa de compreensão de uma realidade social
excluída, que procurava representar a reação da classe média
urbana às ameaças criadas pelas crescentes desigualdades so-
ciais: assaltos, sequestros e assassinatos. Nessa perspectiva, a
ficcionalização literária da época pode ser compreendida em
termos de re-simbolização da violenta realidade emergen-
te dos confrontos sociais no submundo das grandes cidades
(SCHOLLHAMMER, 2008, apud COMIBRA, 2016, p. 08).

A desumanização da vida urbana, portanto, traz nesse con-


to a denúncia de uma realidade brutal emergente em um contex-
to político repressivo que surge na linguagem literária mimeti-
zado nas ações violentas dos personagens que representam dos
dois extremos da nossa sociedade: os que vivem à margem e os
que constituem a elite privilegiada do sistema. Nesse universo,
não há espaço para o reconhecimento desse outro nos proces-
sos sociais cotidianos e na dimensão da cidade, pois ele se torna
um invasor, um estrangeiro e consequentemente uma ameaça
àqueles que não são excluídos do processo produtivo, conhe-
cem os seus direitos e deveres, possuem segurança, têm sua
própria identidade e são indivíduos visibilizados socialmente.
O aspecto ético, desse modo, vai esmorecendo diante das
relações conflituosas que se configuram no lócus urbano e perde
cada vez mais força na definição de ações humanas que conside-
rem a presença do outro como essencial para a formação identi-
tária e social de todos os homens, afinal estar no mundo é com-
prometer-se e responder de forma responsiva e responsável às
situações concretas que surgem nos processos de convivência.
280

Apontamentos para Discussão

O conto “O outro” potencializa alguns aspectos advindos


do embrutecimento humano e intensificado a partir das novas
demandas sociais surgidas no cenário brasileiro, em seu pro-
cesso tardio e desordenado de industrialização e de crescimen-
to urbano. Por isso, o convívio social substituído cada vez mais
pelas relações de trabalho e consumo não pode ser dissociado
dos espaços da cidade e das relações que reafirmam a nossa hu-
manidade. É por isso que Harvey (2012, p. 74) ressalta o direito
à cidade como um direito à própria transformação individual
construída no espaço coletivo:

A questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divor-


ciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos
de vida, tecnologias e valores estéticos que desejamos. O direi-
to à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso
a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela
mudança da cidade. Além disso, é um direito comum antes de
individual já que esta transformação depende inevitavelmen-
te do exercício de um poder coletivo de moldar o processo de
urbanização. A liberdade de construir e reconstruir a cidade
e a nós mesmos é, como procuro argumentar, um dos mais
preciosos e negligenciados direitos humanos.

Nos espaços urbanos são constituídas também as nossas re-


lações afetivas e axiológicas em nossos encontros diários com
os nossos outros em situações construídas nos processos histó-
ricos dos quais fazemos parte e inscrevemos as nossas experi-
ências. A ficção de Rubem Fonseca mostra a cidade como uma
intrincada rede cujos fios da violência estão presentes em vá-
rios campos que acentuam as diferenças provocadas pelo pro-
cesso modernizador. A leitura do urbano e do seu esquecimen-
to como espaço de convívio e de encontro está a todo instante
permeando a narrativa fonsequiana. Os personagens cruéis e
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 281

embrutecidos invocam reflexão dos seus leitores diante de um


quadro de violência social que tem se agravado nos tempos ho-
diernos e transformado a vida nas cidades em uma experiência
cada vez mais isolada.
No entanto, a cidade que deveria ser o espaço privilegiado
do encontro com a diferença torna-se o palco da intolerância
e do enclausuramento, estratégias que negam cada vez mais a
alteridade, provavelmente pela sensação de segurança que tal
recusa possa trazer, ou seja, é menos desgastante e mais segu-
ro evitarmos a diferença. Por outro lado, sabemos que essa di-
ferença como expressão da alteridade torna-se essencial para
a produção da nossa singularidade. Todavia, o ritmo de vida
imposto na contemporaneidade tem sustentado relações arti-
ficiais e blindadas em relação à experiência de alteridade, de
modo a negar o contato com a diferença em sua complexidade.
O direito à cidade, ao convívio e à vida social, portanto,
inclui também o direito à literatura e à cultura como inaliená-
veis e essenciais à humanização do indivíduo, uma vez que faz
vivenciar diferentes mundos e realidades metaforizados em si-
tuações vividas por outros sujeitos. Nossa formação prescinde
do contato com o literário que dá forma aos sentimentos e à
visão do mundo, organizando o nosso caos mental; por isso, nos
humaniza (CANDIDO, 2004).
282

A complexa experiência social dos séculos XX e XXI encon-


tra na literatura um campo de renovação em que a expressivi-
dade da sua escrita procura nos temas sociais uma experiência
que rompa com “a automatização da realidade, trazendo o indi-
víduo de volta à realidade, mostrando-a como deveras é, cruel,
violenta, não para lançá-lo ao caos, mas para que ele reflita so-
bre” (COIMBRA, 2016, p. 02).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 283

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Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 285

SZUNDY, Paula Tatianne Carréra. “Educação como ato respon-


sável: a formação de professores de linguagens à luz da filosofia
da linguagem do círculo de Bakhtin”. Trab. Ling. Aplic, Campi-
nas, n(53.1): 13-32, jan./jun. 2014.
Lirismo e cidade - uma voz entre
muitas vozes

André Luiz Neves Jacintho


Letícia Queiroz de Carvalho

O texto em tela é um recorte de uma pesquisa em anda-


mento do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de
Humanidades, realizado no Instituto Federal do Espírito Santo
– campus Vitória – e tem como objetivo apresentar a poesia de
Elmo Elton, poeta capixaba da primeira metade do século XX,
como uma voz outra da Cidade de Vitória.
A Cidade é polifônica (CANEVACCI, 1993). As ruas, os pré-
dios, os automóveis dizem algo sobre ela. É impossível não
distinguir uma metrópole de uma pequena cidade do interior,
assim como não se pode deixar de perceber as muitas vozes
que ambas emitem. O antropólogo italiano Massimo Canevacci
(1993), em uma de suas viagens a São Paulo, deixa-se perder pela
Cidade a fim de “ouvi-la”. Sobre ela diz que “Compreender uma
cidade é colher fragmentos” (1993, p. 35). Afirma ainda que “a
comunicação urbana é dialógica” (p. 23). O antropólogo observa
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 287

a arquitetura, as pessoas, as avenidas e cita Ítalo Calvino e o seu


Cidades Invisíveis (1990), para tratar das manifestações artísti-
cas e literárias produzidas na Cidade. Nosso objetivo com este
capítulo é apresentar uma voz outra da Cidade, a voz da poesia.
Não pretendemos traçar um conceito do que seria a poesia
da Cidade, qualquer tentativa nesse sentido estaria a priori

condenada ao fracasso não tanto pelo objeto em si, mas pelo


esmagador acúmulo de História que obrigatoriamente se apre-
senta, o que exigirá um desdobramento metodológico (com
suas variedades) que dificilmente chegaria a algum fim – ou
a um princípio. As escolhas teriam de ser tantas e tais, que no
máximo poderíamos chegar, instavelmente, a alguma poesia,
ou a um modelo que, definido, excluiria a multidão dos outros,
um pecado que parece fazer parte da natureza das vanguardas
(TEZZA, 2003, p. 56).

Pretendemos, sim, colocarmo-nos em escuta da poesia e o


que ela tem a dizer sobre a Cidade. O que o seu discurso sobre a
Cidade tem a nos revelar. Calvino, no seu Cidades Invisíveis (1990,
p. 59), nos diz, como que dizendo ao imperador mongol Kublai
Khan: “Ninguém sabe melhor que tu, sábio Kublai, que nunca
se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. No
entanto, há uma relação entre ambos”. São justamente essas re-
lações que buscamos no presente estudo.
Antes, porém, de nos embrenharmos pelos discursos sobre
a Cidade, trataremos das (in)funcionalidades da poesia, esse
“desvio” se faz necessário, pois não queremos tornar o discurso
poético uma chave para a leitura da Cidade, apenas o apresen-
tamos como uma outra voz que pode nos revelar algo que o dis-
curso ordinário não é capaz.
288

A Poesia e suas (in)funcionalidades

A primeira das (in) funcionalidades da poesia que gosta-


ríamos de anunciar é a sua capacidade de transmitir conhe-
cimento. Merquior (1965 apud KONDER, 2005, p. 13) diz que
“Se há um ponto em que decididamente concordam as mais
opostas teorias estéticas de hoje (por exemplo, a estética de
Heidegger com a de Lukács), é na aceitação comum da arte
como forma de conhecimento”.
Compagnon reafirma essa capacidade de instruir da lite-
ratura através de Aristóteles, que tinha a mimese como “ins-
tintiva no homem” (ARISTÓTELES 2005 apud COMPAGNON,
2009, p. 30). Para o autor francês, “a literatura deleita e ins-
trui” (p. 30). Ele utiliza como exemplo as fábulas de La Fontai-
ne e outros textos ficcionais para argumentar que por meio da
leitura é possível ver e viver experiências humanas que levam
ao crescimento moral, espiritual, psíquico etc.
Antonio Candido, no seu “Direito à Literatura”, argumen-
ta sobre a capacidade humanizadora da literatura, trata-a
como indispensável à formação integral do homem e como
“instrumento poderoso de instrução e educação” (CANDIDO,
2004, p. 243).
Voltando a Compagnon, encontramos uma outra potência
da literatura, ela como instrumento de libertação, libertação
principalmente da religião, dos autoritarismos, da intolerân-
cia. Nesse sentido, a poesia é capaz de lançar luz sobre ques-
tões humanas que ignoramos, sobre sentimentos alheios em
comparação com nossos próprios sentimentos, pois “a poesia
me proporciona a descoberta de alguns dos meus sentimentos
possíveis. Ela pode ampliar para mim o campo da minha capa-
cidade de sentir coisas novas” (KONDER, 2005, p. 15).
Paz (1993, p. 140) nos diz que ela está “entre a revolução e
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 289

a religião”. Konder (2005), que ela torna os homens mais sen-


síveis para se conhecerem melhor. Barthes argumenta que a
literatura liberta do fascismo da língua que nos “obriga a di-
zer” (1977, p. 13).
Ainda em Compagnon, temos a terceira potência da li-
teratura, seu poder de corrigir os defeitos da linguagem. Por
meio da literatura – e dos gêneros literários – Bakhtin (2010)
nos ensina a trabalhar o discurso dialogicamente, interagindo
através do diálogo. O mesmo autor diferencia gêneros primá-
rios e secundários, estes voltados mais para a escrita, frutos de
uma utilização mais formal da linguagem, aqueles, produções
mais ligadas ao cotidiano. As relações entre eles poderiam me-
diar o processo de ensino-aprendizagem da língua na escola.
Culler (1999, p. 35) chama a atenção para “colocação em
primeiro plano da linguagem” na literatura, ou seja, na litera-
tura, o interesse é o trabalho que se tem com a língua e seus
efeitos de sentido produzidos no texto. A relação forma/con-
teúdo chama a atenção do leitor para os usos incomuns que o
artista consegue empregar na obra.
Compagnon (2009) nega qualquer poder da literatura,
além do exercício sobre ela mesma e reafirma seu impoder,
seu despoder, sua impossibilidade de ser aplicada a qualquer
uso social ou moral. Citando Barthes, afirma: “A literatura não
permite andar, mas permite respirar” (BARTHES, 2003 apud
COMPAGNON, 2009, p. 41). Segundo Candido (2004, p. 176),
“ela não corrompe nem edifica”.
Já Barthes (1977) chama de segunda força da literatura, a
força de representação. Para o autor francês a literatura tem
o poder de representar o real, apesar de, com Lacan, chamá-lo
impossível, diz que a literatura não se furta a buscá-lo, ao con-
trário, seria o impossível que motiva a faina literária. E é essa
força apontada por Barthes que nos interessa a partir daqui.
290

Vamos buscar na literatura, mais especificamente na poesia,


uma representação, uma voz outra que fale da Cidade, que fale
da relação entre o discurso e a Cidade, para a qual chama a
atenção Calvino.

As Cidades e suas vozes

Baudelaire foi, segundo Canevacci (1993), o primeiro po-


eta a captar “a psicologia da idade evolutiva da cidade” (p.
98). Para o antropólogo italiano, a metrópole evolui mais ra-
pidamente que o homem. Sua velocidade de mudança não é
acompanhada pelos seus habitantes e isso causa um estranha-
mento, uma angústia, pois a mudança desconforta o habitante
da Cidade moderna que “se percebe como estranho, isolado,
derrotado” (Idem, ibidem).
Nessa Cidade, em constante mudança, o que se poderá
cantar, o céu, as nuvens, as pessoas? Canevacci diz que “narrar
uma Cidade, ou seja, descrevê-la e interpretá-la, não pode sig-
nificar realizar sua ‘réplica’, mas sim produzir uma desorien-
tação” (idem, p. 101). Ponzio (2010), falando sobre a palavra li-
terária, diz que ela não se limita ao contexto monológico, não
fica presa, subordinada a um objeto ou aos indivíduos que a
utilizam. A escritura literária pode, por seu caráter exotópico,
seu desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior,
olhar a cidade de maneira irônica, de soslaio, pois a própria
exotopia lhe permite um excedente de visão capaz de resistir
ao tempo e seus efeitos.

A palavra literária permite fazer o que Perseu, o “herói leve”


louvado por Ítalo Calvino, faz no mito quando vence a Medu-
sa. Perseu vence o monstro cujo olhar petrifica, olhando-o
não diretamente e nem tampouco evitando olhá-lo ou vi-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 291

rando os olhos para outra direção, mas olhando-o indireta-


mente, refletido, como se diz no mito, no escudo. De forma
análoga, a escritura literária pode furtar-se à petrificação da
realidade olhando as coisas, mas de maneira indireta (PON-
ZIO, 2010, p. 64).

Além do olhar exotópico, do excedente de visão, a litera-


tura proporciona o olhar do devaneio sobre a Cidade, a pala-
vra literária apura os sentidos e revela o opaco urbano para os
seus habitantes. No poema “O cisne”, de Baudelaire, o poeta
revela uma visão da Cidade que o artista é capaz de revelar,
embora esta esteja sempre à nossa frente:

Um cisne que escapara enfim ao cativeiro


E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,
As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro.
Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,

No pó banhava as asas cheias de aflição,


E dizia, a evocar o lago natal:
“Água, quando cairás? Quando soarás, trovão?”
Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal, [...]
(BAUDELAIRE, 2006, p. 450)

No poema dedicado a Vitor Hugo, o poeta compara-se ao


cisne diante de uma cidade mais incerta que o “coração de uma
infiel”. Essa visão não é uma reprodução ou réplica da Cidade,
trata-se da captação de suas vozes, de suas nuances, pois ela di-
lacera com todas as suas forças a casca criada pelo hábito e pela
razão que nos mostra uma “realidade” insuperável. Essa “rea-
lidade” citadina deseja o genérico, os estereótipos, os padrões;
rejeita tudo que não se conforma, tudo que não se subjuga. Con-
tra essa padronização levanta-se Candido e diz que a literatura
se trata do “sonho acordado das civilizações. Portanto, assim
como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho du-
rante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”
292

(CANDIDO, 2004, p. 175).


O retrato da realidade, o discurso ordinário sobre as Cida-
des a descreve em números de habitantes, metros quadrados,
renda per capita, taxas de natalidade e mortalidade; os mapas
mostram suas fronteiras como linhas estanques, como se fos-
se possível acabar uma e começar outra a partir de uma rua,
de rio ou quaisquer outras marcações ou acidentes geográficos.
Nesses discursos não há preocupação com a alteridade, com a
cultura com os costumes, afinal as Cidades não são formadas
por pessoas?
Todos esses números, estatísticas, desenhos, são signos e
como tal, são políticos, ideológicos sempre a serviço de interes-
ses, pois não há linguagem neutra. Bakhtin afirma que “o signo,
então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece
inseparável dela” (2011, p. 35). A poesia então põe em dúvida a ve-
racidade desses textos objetivos, desses “utensílios” ideológicos,
serve como antidoto a esse signo comprometido, empenhado.
Usando as palavras com outros fins que não os práticos, sendo
um inutensílio (Paulo Leminski), o poema põe em questão a
utilidade dos outros textos e da própria linguagem. Afirman-
do coisas inverificáveis, irredutíveis a um referente, o poema
questiona a verificabilidade e a referenciabilidade das mensa-
gens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar,
imperiosamente, que tudo é linguagem, e que esta engana.
Que a linguagem está o tempo todo fingindo-se de transpa-
rente, de prática e de unívoca, e nos enreda num comércio que
nada tem de essencialmente verdadeiro e necessário (PERRO-
NE-MOISÉS apud TEZZA, 2003, p. 69).

A linguagem do cotidiano anestesia o homem para sua


existência, a poesia serve então de lembrança “do homem que
está dormindo no fundo de cada homem” (PAZ, 1993, p. 144).
Essa poesia resgata a universalidade, a alteridade e o devir. O
homem da poesia “tem mil anos e tem nossa idade e ainda não
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 293

nasce. É nosso avô, nosso irmão e nosso bisneto” (p. 144-145).


Por isso é outra voz, porque diz, mas não com o objetivo de di-
zer, diz porque não lhe resta alternativa e ao mesmo tempo não
diz, pois não tem a obrigação de dizer. Daí a sua (in)funcionali-
dade observada anteriormente.
Esse discurso descomprometido sobre o homem e sobre a
Cidade dos homens nos interessa sobremaneira, pois revela fa-
ces e vozes citadinas soterradas em si mesmas.
Calvino (1990), quando fala da Cidade de Cloé, diz que as
pessoas se cruzam, se entreolham, não se reconhecem, não se
cumprimentam, mas “imaginam mil coisas a respeito umas das
outras” (p.51). Essa indiferença, tão comum nas metrópoles,
alimenta a imaginação do poeta que tem como herói os perso-
nagens do cotidiano. Bakhtin (2010, p. 12) fala da tensa relação
entre o autor e a personagem, da distância que ambos mantêm,
o que permite ao autor abarcá-la inteiramente, completá-la, fa-
zer dela um todo, com aquilo que lhe é e não é acessível. O poeta
assinala com possibilidade de lhe fazer “viver os sonhos efême-
ros” (p. 52) e nutre o “carrossel das fantasias”.
Quando Elmo Elton canta os personagens do cotidiano ci-
tadino de Vitória/ES, está nutrindo o “carrossel das fantasias”,
está dando uma voz outra à Cidade, que, como dissemos ante-
riormente, é formada pelos homens. Para Bakhtin (2010, p. 13),
ao vivenciar esses personagens, o autor embarca em valores
axiológicos diferentes da sua existência e da existência ética de
seus pares, ele entra por caminhos e valores exotópicos. Reco-
nhecer a voz do catraieiro, da rendeira ou dos tipos populares
é falar outra voz da Cidade. É ser surpreendido por vozes ex-
traordinárias. E essas vozes apuram a visão, chamam a atenção
para aquilo que era ignorado. É como se a poesia fosse um espe-
lho d’água à beira de uma Cidade a sua margem, a água reflete
as imagens, mas não as reflete de maneira límpida e cristalina,
294

reflete-as com seu próprio movimento, seu ritmo, sua vibração


e não há imprecisão na imagem refletida ou cantada, pois “a
mentira não está no discurso, mas nas coisas” (p. 60). Eis então
outra voz da Cidade.
Marco Polo, ao descrever as Cidades ao imperador Kublai
Khan, o atrai por causa do seu discurso incomum sobre os lu-
gares que visitou. O olhar de estranhamento lançado por Polo
consegue captar nuances que os discursos vulgares são incapa-
zes. Esta é a surpresa, esta é a grande possibilidade da poesia de
descascar as Cidades como se fossem cebolas, uma após a outra,
as cascas vão revelando outras faces enterradas sob discursos
banais. Paz (1976) afirma que o tempo, o espaço e o mundo se
desagregam em nossa época e tornam o homem ser errante na
dispersão, por isso os discursos totalizantes não dão conta desse
universo. Só “a poesia: procura dos outros, descoberta da outri-
dade59” (p. 102) é capaz de reunir a dispersão do homem.
A seguir, elencamos alguns poemas que tratam de Cidades,
as mais diversas, na tentativa de ouvir o que os poetas têm a
dizer sobre elas.

As Cidades na poesia

Selecionamos algumas poesias em que a Cidade se apresen-


ta ao leitor de forma inesperada, diferente das vozes ordinárias
que as descrevem. Os critérios de seleção são bastante subjeti-
vos, mas se orientam principalmente pela forma como as Cida-
des ou seus atores aparecem em cena, evidenciando os pontos
de vistas nem sempre percebidos no contexto urbano. Nos po-

O autor usa o termo otredad, um neologismo. A tradução para outridade é


59

também um neologismo, que implica a noção de outro em oposição à noção


de mesmo, ou seja, de alteridade.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 295

emas, os poetas conseguem apresentá-las com um discurso que


não as replica, mas as reflete à maneira do lago de Valdrada
(CALVINO, 1990, p. 53).
Começamos por um poema do curitibano Paulo Leminski.

O olho da rua vê
O que não vê o seu.
Você, vendo os outros,
Pensa que sou eu?
Ou tudo que teu olho vê
Você pensa que é você?
(LEMINSKI, 1990: s.p.)

No poema “O olho da rua vê”, Leminski60 chama a atenção


para o olhar atento da rua, o olho que consegue perceber aquilo
que os olhos comuns não conseguem. Esse olhar pode ser o do
poeta, sempre atento às nuances ou do boêmio, criativo e irre-
verente. Esse olho não vê como os outros veem, tem uma outra
amplitude, conseguem perceber coisas que outros olhos, aque-
les que desejam o estereótipo, o padrão, não conseguem. Esse
olhar não se prende à casca do cotidiano, vai penetrando até
encontrar as outras camadas que fazem parte do complexo jogo
das alteridades que dão significado à vida. Talvez seja o mesmo
olho que enxerga a “feia flor” de Drummond (1997, p. 17). Esse
olho, segundo Konder, é o olho da poesia, que “trava uma ‘guer-
ra de guerrilhas’ contra o princípio (que nos está imposto, na

60
Paulo Leminski nasceu em Curitiba, Paraná, em 1944. Ficou conhecido por
sua irreverência na criação poética, misturando trocadilhos e ditados popu-
lares. Começou sua carreira como escritor publicando em revistas alternati-
vas. Seus livros foram publicados na década de 1980. Entre eles destacam-se:
Capricho e Relaxos, La Vie en Close, Não Fosse Isso e Era Menos / Não Fosse
Tanto e Era Quase. Exerceu o magistério como professor de História e Reda-
ção. Compôs músicas chegando a fazer parceria com Caetano Veloso. Faleceu
precocemente em 1989.
296

prática) da ‘vendabilidade universal’” (2005, p. 17). E continua:

Com sua natural atenção às diferenças, com sua abertura para


as singularidades, a poesia complica o que tem de ser compli-
cado, relativiza o que tem de ser relativizado. E faz isso para
salvar o que tem de ser salvo (p. 17).

Os olhos da rua podem ver muito além do que se imagina.


Esses olhos sagazes distinguem aquilo que é superficial daquilo
que é essencial. O que é essencial precisa ser trazido à tona, pre-
cisa se mostrar aos que observam a Cidade de maneira desatenta.
A seguir outro poema de Leminski que tem a Cidade como
cenário:

Ainda vão me matar numa rua.


Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.
(LEMINSKI, 1990: s.p.)

No poema, Leminski coloca a rua como o lugar fundamen-


tal da Cidade. ­A rua é o lugar do encontro, o lugar do conflito, da
alteridade, diferentemente do espaço privado, da casa, do lar, a
rua é dialógica. O poeta reconhece as potencialidades de apren-
dizagem que a rua permite, reconhece que a rua, diferentemen-
te do condomínio fechado, aceita o outro, acolhe o diferente, ou
pelo menos, deveria ter essa capacidade. Daí a sua importância
para a Cidade.
No Poema “Curitibas”, também de Leminski, há uma relação
de reconhecimento e prazer com a Cidade. O eu-lírico conhece
as Curitibas – que pelo título são muitas – como a “palma da mi-
nha pica”, referência ao ditado popular “conheço como a palma
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 297

da minha mão”. A utilização do órgão genital ao invés da mão


sugere a possibilidade de prazer que a Cidade oferece. Além da
referência ao órgão genital, há ainda referências ao “palácio”
e a “fonte” que podem aludir a palácio ou fonte dos prazeres.
Porém, além dos prazeres oferecidos, as “Curitibas” também
legam ao eu-lírico saudades. Saudades cuja origem ele ignora.
Nas duas últimas estrofes aparece a confissão da Cidade
no poeta, a confissão de que sua relação com as Curitibas é tão
entranhada que já não se reconhece onde acaba o eu-lírico e
começa a cidade.

Curitibas

Conheço esta cidade 


como a palma da minha pica.
Sei onde o palácio 
sei onde a fonte fica,

Só não sei da saudade 


a fina flor que fabrica.
Ser, eu sei. Quem sabe, 
esta cidade me significa
(LEMINSKI, 2002, p. 16)

Passamos agora a analisar alguns poemas de Elmo Elton.


Nascido e criado na Ilha de Vitória, capital do estado do Espírito
Santo, Elton foi o primeiro poeta capixaba a trazer para a poesia
a voz das personagens populares da ilha: o pescador, a rendeira,
o catraieiro são temas de suas primeiras publicações Marulhos,
de 1946 e Poemas que a onda levou, de 1947. Após essas primeiras
publicações, que lhe renderam a alcunha de “Poeta de Cidade”,
dada pelo também escritor Adelpho Poli Monjardim, Elton foi
para o Rio de Janeiro cursar jornalismo. Lá ingressou na Fun-
dação Legião Brasileira de Assistência, onde exerceu as funções
298

de assistente técnico, diretor estadual no Rio de Janeiro e chefe


da divisão de administração e finanças. Só voltaria a publicar
em 1952, quando lançou Heráldicos, coletânea de poemas escri-
tos entre 1947 e 1952. Até 1982 dedicou-se à escrita de trovas,
poemas de inspiração parnasiana, e à escrita de biografias, prin-
cipalmente de membros da família do poeta Alberto de Olivei-
ra. Nestas obras destaca-se Amélia de Oliveira, a eterna noiva de
Olavo Bilac. Em 1980, tomou posse da cadeira nº27 da Academia
Espírito-santense de Letras. Em 1981, retornou a Vitória, onde
integrou o quadro do Instituto Histórico e Geográfico do Espí-
rito Santo. Em 1982, publicou Poetas do Espírito Santo, antologia
e biografia de vários poetas locais. Em 1984, Anchieta, livro em
homenagem ao, hoje santo, José de Anchieta. Em 1985 volta a
tratar dos personagens da ilha com a publicação de Tipos popu-
lares de Vitória, livro no qual resgata as histórias desses perso-
nagens. Em 1986, publicou Logradouros antigos de Vitória, resgate
de velhos locais de Vitória que seriam esquecidos, não fosse a
pesquisa de Elton. Em 1987, publicou Velhos tempos de Vitória e
outros temas capixabas. Faleceu em 1988, antes de completar 63
anos de idade.
Da obra poética, destacamos textos da primeira fase, pois
é nela em que aparecem os personagens populares da Cidade
olhando-a e nos oferecendo um outro discurso a seu respeito.
O primeiro poema que destacamos aparece no livro Ma-
rulhos. Nele, o pescador é abordado pelo poeta à beira do cais,
onde olhava para o mar à espera de sua barcaça que foi levada
pelas ondas.

UMA HISTÓRIA PRAIEIRA

Na praia, com o olhar perdido na amplidão do Oceano, um velho


barqueiro cisma, ao ouvir estas palavras:
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 299

Ó destemido barqueiro.
Senhor das águas do mar.
Que fizeram da barcaça.
Da tua linda barcaça
Que, à fria luz do luar,
Vinhas aqui ancorar?
Ó desgraçado marujo.
Humilde amante das vagas.
Quem levou para outras plagas
A tua leve barcaça
Que, dia e noite, singrava
Os grandes mares do Norte?

Ó robusto marinheiro.
Alma nascida da espuma,
Da branca espuma do mar...
Por que não vais procurar
Por esses mundos distantes
A fada do teu sonhar?

Ó tristonho aventureiro,
Escravo das verdes ondas,
Das ondas verdes do Atlântico,
Sem a tua embarcação,
A luz dos astros é baça...
A praia ficou deserta...
Não há festa sobre as águas!
E a ventania que passa,
Em ânsia, está soluçando
Por não poder embalar
As velas da tua náu...

Ó belo esposo da lua,


Meu sereno jangadeiro,
Depois que a tua barcaça
Foi encalhar noutro porto.
Este cais parece morto...
O luar ficou mais pálido...
300

Tudo aqui é solidão!


E, agora, só um gemido
Escuta da tua voz!

Ó desditoso praieiro,
Coração cheio de sonhos.
Agarra a tua viola
E vem cantar os teus fados!
Por certo, ouvindo os teus prantos.
As sereias do alto mar,
Em breve, farão voltar
Para esta praia de encantos
A causa do teu penar...

Ó desgostoso argonauta,
Homem criado nas águas,
Já eu sinto enorme falta
Daquelas doces histórias
Que, da popa do teu barco,
Tu me contavas, sorrindo...
Havia sempre em teus contos
Alguma coisa de mim...
Quantas mulheres bonitas,
Quantas donzelas ingênuas
Deixastes, em terras estranhas,
À espera da tua volta?

Ó infeliz pescador,
Miserável sonhador,
Com a ausência da tua barca,
O que terás para os teus?
Não há peixe e nem há pão
Na dispensa do teu lar!
Tua esposa está chorando
Por saber que andas penando...
Tua mãe, santa velhinha,
De há muito, vive a implorar
À virgem dos Navegantes
O desejado regresso
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 301

Da tua amada barcaça...

Ó louco noivo do mar.


Navegador tão sem glórias,
Tua casa está vazia...
Roubaram o teu tresmalho...
Rasgaram tua tarrafa...
Teu anzol criou ferrugem...
E tudo que possuías.
Ao tempo, vai se estragando...

Ó formoso enamorado
Dos mistérios do Oceano,
A noite já vem descendo
Com seu véu todo de estrelas...
Somente a tua barcaça
Até agora não veio
Parar aqui neste cais!
Senhor dos Céus e da Terra,
Quem foi, acaso, o ladrão
Que roubou a embarcação
Deste velho marinheiro?
Depois de escutar tantos lamentos,
Triste, responde o barqueiro:

A minha terna barcaça,


A barca dos meus sonhares,
Não foi roubada, Senhor.
E nem perdida hoje está!
Numa noite de procela,
O mar, o mar traidor,
Invejando a sorte minha,
Quis servir de tampa àquela
Que, em vão, eu busco rever
Por sobre o espelho das águas...
*.*
A história desse barqueiro lembra
A desdita de alguém...
(ELTON, 1946, p. 6-8)
302

No poema, a figura do poeta lança os olhos sobre o pes-


cador, personagem tão frequente nos cais da cidade de Vitó-
ria/ES. Esse olhar revela uma vida de sofrimentos, incertezas,
mas também de prazeres, muitos proporcionados pelo mar. Os
pescadores da cidade nem sempre são percebidos em sua árdua
labuta, mas deixaram como herança ao capixaba o apreço pe-
los frutos do mar. Se sua gastronomia, seus temperos e molhos
são tão importantes para nossa cultura e Cidade, podemos dizer
que suas vozes sempre estão a ecoar em nosso cotidiano. Esses
sujeitos e suas famílias vivem a odisseia diária de tirar do mar o
seu sustento. Os rudes homens do mar fazem parte da Cidade,
são sujeitos da paisagem urbana, vozes de uma Cidade polifô-
nica, mas que poucas vezes tinham sido cantados como poesia.
Essas vozes populares serão recorrentes nos dois primeiros
livros de Elton, Marulhos e Poemas que a onda levou, de 1946 e
1947, respectivamente. Quase quarenta anos depois, em 1985,
o autor voltaria a falar desses personagens em Tipos populares
de Vitória no qual

[...] resgata as tradições do cidadão simples, comum, esqueci-


do e até a antiga “rixa” dos Caramurus com os Peroás, tipos
folclóricos de uma cidade que estava crescendo e esquecendo,
pouco a pouco, esses seus antigos “símbolos”, o que, prova-
velmente, era desejo secreto de muitos, ávidos de entrarem
na “modernidade” e renegar esses tipos que trariam sempre a
ideia de estarem presos ao passado. Com esse resgate históri-
co/socioantropológico, não serão mais esquecidos” (MORAES,
2014, p. 17)

Nesse outro poema, Elton dá voz à rendeira, cujos produtos,


muito apreciados na Cidade, lhe rendem fama e um modesto sol-
do. Tal qual o pescador, a rendeira também é uma voz da Cidade.
Seus trabalhos são apreciados, seus cantos, seus costumes, suas
tradições são também outras vozes da Cidade polifônica. Elton
capta essas vozes, pois elas são constitutivas do ser da Cidade.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 303

CANTIGA DE UMA RENDEIRA

Nascida no mar,
Só vivo a cantar...
Além de praieira,
Sou linda rendeira...

Das aves aos chilros,


Eu troco este bilros...
Os mimos que teço
Não são de alto preço...

Para fazer rendas,


Recebo encomendas...
E sobram fregueses,
Senhores, às vezes...

Meus alvos trabalhos,


De graça não falhos,
São véus de noivados...
São finos bordados...

Quando há casamentos,
(Que doces momentos!)
As noivas vizinhas
Me trazem mil linhas...

E franjas, e bicos,
Também crivos ricos.
Me ponho a tecer,
Com grande prazer...

Nos dias de festa,


Daqui saio, lesta,
Vendendo, com frutos,
Tão belos produtos...
304

Na aldeia querida,
Já sou conhecida...
Meus leves rendados
Não são desprezados...

Sou ágil rendeira...


Sou terna praieira...
Aqui, neste Norte,
Quem tem melhor sorte?
(ELTON, 1947, p. 12-14)
Quando Elton “chama para o diálogo” o barqueiro e a ren-
deira, não está colocando palavras em suas bocas como se fos-
sem mudos, ou se suas línguas não fossem capazes de dizer, tal
posicionamento poderia deformar a natureza desses sujeitos,
pelo contrário, ele está dando a eles a “liberdade da palavra”,
dando-lhes tempo de fala, já que se trata de outra palavra. Pon-
zio (2010, p. 14) diz sobre a palavra outra:

É outra palavra no sentido de que não é palavra própria, seja


porque palavra do outro de mim, palavra do outro, seja porque
palavra do outro de mim, aquele outro eu que o eu identitário
nega e censura: em todo o caso, palavra que se dá na escuta, no
“dar tempo ao outro”. Da centralização do eu à centralização
do outro: é a revolução bakhtiniana.

Essa palavra outra, esse escutar o outro, essa liberdade da


palavra é o que nos interessa nos discursos da Cidade, pois en-
tendemos que, por ser polifônica, existem muitas vozes que se
encontram com a nossa e esse encontro é sempre encontro de
palavras, é o encontro da dialogicidade, e é essa dialogicidade
que nos forma enquanto sujeitos assimétricos, inacabados, mas
que se complementam nos encontros.
Passemos agora a outro poeta, Charles Baudelaire, e sua
voz sobre a Cidade.
Baudelaire nasceu em Paris, em 9 de abril de 1821, e viveu
as profundas transformações da Cidade devido à chegada das
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 305

indústrias. Morreu, prematuramente, na mesma cidade em 31


de agosto de 1867. Foi poeta e teórico da arte francesa, mas le-
vava uma vida boêmia, o que o teria levado a contrair sífilis,
razão de sua morte. É considerado precursor do simbolismo e
fundador da tradição moderna em poesia, pois pela aguçada
percepção do real chegava sempre a um correlato objetivo para
o sentimento que desejava expressar. Sua visão da Cidade era
capaz de encontrar poesia em qualquer lugar “tropeçando em
palavras como nas calçadas, topando imagens desde há muito
sonhadas” (BAUDELAIRE, 1996, p. 295).
Em sua obra As flores do mal, destacamos alguns poemas
“que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo
o que desprezou, tudo o que destruiu, [...]” (BENJAMIN, 1989,
p. 78). No poema a seguir, “Os sete velhos”, Baudelaire não de-
monstrava olhar complacente pelas figuras que transitavam
pelas ruas de Paris. Não há o ranço da “piedade”, os velhos são
o que são e não há pecado nisso, nem em sua situação nem na
forma como a Cidade os relega à “rua feia”. O que há são vozes
que ecoam pelas avenidas da “Cidade Luz”. Vejamos a imagem
d’Os sete velhos.

OS SETE VELHOS
A Vitor Hugo

Cidade formigante, e que ao sonho se aviva,


Em que o fantasma ao sol nos agarra o pescoço!
O mistério por tudo é seiva que deriva
Nos estreitos canais do poente colosso.

No entanto, uma manhã em que na rua feia


As casas, a que a névoa emprestava brancor,
Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,
E em que, decoração como a da alma do ator,
306

Suja e amarela bruma enchia todo o espaço,


Eu ia, os nervos meus com heroicas tensões,
E discutindo com meu espírito lasso,
Pela viela a vibrar dos graves carroções.

De repente um ancião cujas pobres sacolas


Imitavam a cor de um céu a tempestear,
A cujo aspecto só choveriam esmolas,
Se não fosse o rancor que ardia em seu olhar,

Surgiu tendo no fel suas pupilas molhadas;


Enquanto aguça a neve, a das noites mais rudas,
A sua barba imensa, esquia como espadas,
Projetava-se assim como a barba de Judas.

Não era curvo mas alquebrado, a sua espinha


Dava com sua perna exato ângulo reto,
Tanto que seu bastão, que o seu cariz sublinha,
Ia-lhe dando o ar, como o passo incorreto,

De um mórbido muar, de um judeu de três patas.


Metias os membros seus na nevada e no lodo,
Como quem está a pisar mortos com as sapatas,
Lançando ao universo o arreganho do apôdo.

Vinha outro: barba, olhar, costas, bastão, molambos,


Eram em tudo iguais, do mesmo inferno oriundos,
Centenários os dois, visões barrocas ambos,
Iam com passo igual a misteriosos mundos.

Tinha eu diante do olhar um enredo poluto,


Ou era a humilhação de um acaso perverso?
Sete vezes contei, de minuto em minuto,
A multiplicação e velho tão diverso.

Aquele que se ri dessa minha inquietude,


Que não se vê prender de um frêmito fraterno,
Pense bem que, apesar desta decrepitude,
Estes monstros fatais tinham um ar eterno!
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 307

Teria posto o olhar num oitavo avantesma,


Sem morrer, a este sósia, irônico e fatal,
Fênix tremenda, mãe e filha de si mesma?
- Mas as costas voltei ao cortejo infernal.

Bêbado que vê dois, assim exasperado,


Voltei, fechei a porta e de susto transido,
Frio e enfermo, febril o espírito turbado,
Pelo mistério e pelo absurdo malferido!

Minha razão embalde ansiou suster-se à barra;


A borrasca anulou meu empeno ao jogar,
E minha alma dançava assim como gabarra
Sem mastros, por monstruoso e por infindo mar.
(BAUDELAIRE, 2006, p. 51)
Baudelaire retrata seus personagens a partir da visão exo-
tópica, sua transgrediência de olhar capta o sujeito “justamen-
te naqueles elementos em que ele não pode contemplar-se”
(BAKHTIN, 2010, p. 23). Como o autor se situa fora, sua visão
contempla o todo, completa o quadro que se forma atrás de
cada personagem.

O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada persona-


gem em particular e todas as personagens juntas enxergam e
conhecem, como enxerga e conhece mais que elas, e ademais
enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elas,
e nesse excedente de visão e conhecimento do autor, sempre de-
terminado e estável em relação a cada personagem, é que se
encontram todos os elementos do acabamento do todo, quer
das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vi-
das, isto é, do todo da obra (BAKHTIN, 2010, p. 11).

O centro axiológico da personagem é todo conhecido do


autor, e este a limita a olhar a direção que lhe apraz, tornando
então seus valores éticos e cognitivos limitados ao alcance de
sua visão, mas por outro lado o autor também está limitado à
objetividade estética, que abarca tanto ele quanto a persona-
308

gem. Essa limitação do autor não é conhecida da personagem,


que por sua vez não pode ultrapassá-la. Se orientarmos então
nossa pesquisa a abordar autores que falam da Cidade, não seria
a Cidade nosso todo estético, nosso centro axiológico, nossa di-
retriz volitivo-emocional? É justamente nisso que acreditamos
e, apesar do desenvolvimento ainda incipiente da pesquisa, en-
tendemos a Cidade como referência estética da criação poética,
e portadora de outras vozes e leituras, diferentes das usuais.
Ou seja, buscamos as relações entre os discursos e a Cidade das
quais falou Calvino (1990, p. 59).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 309

Referências

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngue. Tra-


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Miradas sobre las ciudades
Gabino Cárdenas Olivares
María Estela Martínez Castro

El sistema:
Con una mano roba lo que con la otra presta.
Sus víctimas:
Cuanto más pagan, más deben.
Cuanto más reciben, menos tienen.
Cuanto más venden, menos cobran.
(Eduardo Galeano, El libro de los abrazos)

La ciudad, mosaico de escenarios y contradiccion es


Imposible pensar la ciudad como un espacio homogéneo o
lineal. La ciudad es un mosaico heterogéneo de escenarios en
donde convergen las más diversas y profundas contradicciones
sociales, además de constituirse como escenario no sólo de lucha
de clases sino de luchas de intereses económicos y políticos que
apuntan en su conjunto mucho más a la producción de capital
que al bienestar social de quienes la habitan. Lugar de consumo
comercial por antonomasia, de establecimientos corporativos
industriales y financieros, de servicios profesionales, de
espectáculos, de transportación, de luchas políticas, de
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 313

violencia y control del crimen organizado. También es un lugar


de marginación, de exclusión, de contaminación ambiental,
de pobreza, de lucha por la supervivencia. Como lo hace notar
Jordi Borja:

Esta nueva sociedad urbana nos aparece – a diferencia de


la sociedad industrial clásica de los siglos XIX y gran parte
del XX–, poco estructurada en grandes grupos sociales. Se
describe habitualmente como una sociedad individualizada,
muy segmentada en grupos diversos, en unos casos por sus
ingresos, en otros por su edad u origen (inmigrantes), o por
su status socioeconómico o su relación con en el trabajo
(asalariado, autónomo, desocupado, propietario, directivo),
incluso por su nivel cultural o por su posición en el territorio
(integrados o más o menos excluidos) (BORJA, 2014, p. 12).

a. Muros y murallas

La ciudad es un lugar de encuentros y separaciones, más de


divisiones que de puntos en común. El muro de Berlín dividió a
la ciudad de un día para otro la noche del 12 al 13 de agosto de
1961 y se constituyó durante 28 años en símbolo de la Guerra
Fría, así como de la división del mundo entre el Este socialista
y el Oeste capitalista. La ciudad fue dividida para protección y
conveniencia del sistema en turno, aunque con ello se mutilaran
los abrazos familiares, los lazos de amistades y se perdieran las
miradas entre los seres humanos que habitaban una ciudad que
era de todos y para todos. Un muro es tal, independientemente
de los fines que sustentan su construcción; un muro separa
a las personas, divide accesos libres al territorio, pero no
necesariamente las aleja.
Ciudades amuralladas hay decenas en el mundo (Ávila,
Rodrigo, Ceuta, Lugo, Campeche, Valença do Minho, Cartagena,
314

Mont Saint-Michel, Duvrovnik, Carcasone, Siena, Toledo, Pyngiao,


Fez, Bragança, Lucca, San Marino, Tallin, Sighisoara, Rothenburg,
Rodas, Nóvgorod, Verona, Jerusalén, Avignon, Belfast…). De igual
manera, algunos países han construido muros en sus fronteras
para evitar la migración entre los no-iguales y marginar a los
indeseados (Estados Unidos-México, Israel-Cisjordania; Turquía-
Siria; Arabia Saudita-Irak; Kuwait-Irak, Chipre griego-Chipre
turco…). El interior de las ciudades también está lleno de muros
–más allá de los necesarios en las viviendas- que se construyen
en los cotos, clusters, reservas, o denominaciones relacionadas
con las colonias y los fraccionamientos “privados” o cerrados.
La justificación: seguridad, protección y defensa. La realidad:
dominio, control y poder… miedo. Muros, bardas, vallas en
las ciudades se levantan para no dejarse ver por el otro, pero,
también, para no ver al otro.
Hoy, las murallas antiguas de las ciudades son grandes
atractivos turísticos, pero la historia de ellas aún está escrita
entre sus piedras. El muro de Berlín fue simbólico en toda su
existencia, desde su construcción hasta su caída, pues no fue
el muro de una ciudad, sino el muro del mundo total: el muro
de los sistemas económicos, de la política, de las formas de
expresión, de las ideologías. De ahí que tanto su construcción
como su derrumbamiento tengan una importancia histórica y
simbólica, más allá de un simple acontecimiento.
Sin embargo, hay muros aparentemente invisibles que no
se han construido de la noche a la mañana, pero son producto
de la historia y permanecen en la normalización de lo que se
acepta por hecho y se asume como algo que simplemente así
es. Las ciudades contienen la expresión más fehaciente de las
contradicciones sociales, son el espacio de la vida cotidiana en
donde la producción del dinero tiene destinatarios invisibles,
porque los agentes de producción producen, pero no gozan del
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 315

producto de su trabajo. Ésta ha sido una construcción lenta y


perdurable que ha sido efectiva: la propiedad de los medios
de producción que garantiza la propiedad del producto. En las
sociedades postindustriales esta contradicción se manifiesta
claramente en las ciudades. Contradicciones amuralladas que
ocultan la posibilidad de ver y de verse.

b. Triunfos ilusorios

Después de la caída del muro de Berlín, el 9 de noviembre


de 1989, pareciera que con él cayeron también las utopías del
socialismo y del comunismo. Las luchas y los sueños de miles
de personas en el mundo por la construcción de sociedades
socialistas más justas y equitativas parecieron también venirse
abajo en los picos y palas de aquel acontecimiento. También se
incrementaron los aires triunfalistas de quienes equipararon al
llamado “socialismo real” con dictaduras de partido, represión,
persecución, vigilancia extrema y pérdida de la libertad
detrás de la entonces conocida como la “cortina de hierro” y
de quienes identificaron al capitalismo como el sistema del
progreso económico y de las libertades humanas plenas. Así, en
noviembre de 1989 se abría una recomposición del mundo con el
asumido triunfo del capitalismo sobre el socialismo. El mundo,
que se había polarizado ideológica y económicamente desde
la revolución bolchevique en 1917, el mismo que mantuvo la
“guerra fría” del siglo XX durante 44 años, de 1947 a 1991, volvió
a polarizarse entre triunfalistas capitalistas y descorazonados
socialistas. Las utopías parecían haberse venido abajo.
Entre las visiones teóricas para la interpretación de la
historia, el marxismo es una perspectiva sin la cual no puede
entenderse el siglo XX ni la historia de los diversos modos de
316

producción. Con los acontecimientos señalados renglones


arriba, los postulados marxistas fueron perdiendo fuerza como
herramienta teórica y metodológica tanto para interpretar el
mundo como para entender el funcionamiento de las estructuras
económicas, políticas y sociales que lo gobiernan; no porque
hubiesen perdido validez o porque hubieran sido superados,
sino porque se impuso la ideología antimarxista y neoliberal
que la relegó como teoría de análisis científico social. La
oposición filosófica ente idealismo y materialismo que tanto se
discutía en las aulas universitarias, principalmente, del mundo
marginal, se fue atenuando hasta asumir que el mundo es como
es y que funciona según las leyes y lineamientos del mercado.
El marxismo, más que como una teoría social, económica y
política, -se insiste- comenzó a verse como parte de la historia
de las ideas y no como recurso teórico-metodológico para el
análisis de la realidad. Sin embargo, la asunción de esta postura
no eliminó las contradicciones del neoliberalismo que Marx y
Engels habían analizado y previsto a profundidad.
Parecía que el dios del dinero había triunfado. El capitalismo
había vencido al socialismo y se afianzaba como el único sistema
“válido” para el progreso de la economía, además de que la
ideología dominante mantuvo su postura de que las libertades
individuales sólo eran posibles en los países capitalistas y en
las democracias, por lo que denostar el sistema de vida de los
países socialistas existentes –Cuba, China, Corea del norte- se
convirtió en el objetivo mediático de Occidente:

En Bucarest, una grúa se lleva la estatua de Lenin. En Moscú,


una multitud ávida hace cola a las puertas de McDonald´s. El
abominable muro de Berlín se vende en pedacitos, y Berlín
Este confirma que está ubicado a la derecha de Berlín Oeste.
En Varsovia y Budapest, los ministros de Economía hablan
igualito que Margaret Thatcher. En Pekín también, mientras
los tanques aplastan a los estudiantes. El Partido Comunista
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 317

Italiano, el más numeroso de Occidente, anuncia su próximo


suicidio. Se reduce la ayuda Soviética a Etiopía y el coronel
Mengistu descubre, súbitamente, que el capitalismo es bueno.
Los sandinistas, protagonistas de la revolución más linda
del mundo, pierden las elecciones: <<Cae la revolución en
Nicaragua>>, titulan los diarios.
Parece que ya no hay sitio para las revoluciones, como no
sea en las vitrinas del Museo Arqueológico, ni hay lugar para
la izquierda, salvo para la izquierda arrepentida que acepta
sentarse a la diestra de los banqueros. Estamos todos invitados
al entierro mundial del socialismo. El cortejo fúnebre abarca,
según dicen, a la humanidad entera.

Yo confieso que no me lo creo. Estos funerales se han


equivocado de muerto (GALEANO, 1992, p. 97).

Galeano entiende el fondo mediático y el incremento de


contradicciones del capitalismo, porque a la par de la caída de
los países con regímenes socialistas creció la distancia entre
pobres y ricos y, aunque pareciera que el marxismo era sólo
historia, se sigue observando que cada vez más gente tiene
menos y que menos gente tiene demasiado. En este contexto,
la lucha ideológica no se da ahora entre dos grandes sistemas
económicos y políticos, sino que se afinca dentro del mismo
sistema capitalista para justificar la acumulación de las riquezas
como “derechos” de inversión y, jamás, como producto de la
explotación de la mano de obra de los trabajadores y del engaño
de las posesiones ilusas que deja sin fondos los bolsillos de
los consumidores para endeudarlos –como en el feudalismo-
durante toda la vida. Son las mismas prácticas de dominación
y explotación económica, pero con distintos señores en otro
modo de producción:

El sistema productivo, convertido en sistema financiero,


multiplica a los deudores para multiplicar a los consumidores.
Don Carlos Marx, que hace más de un siglo se la vio venir,
advirtió que la tendencia a la caída de la tasa de ganancia y
318

la tendencia a la superproducción obligaban al sistema a


crecer sin límites, y a extender hasta la locura el poder de los
parásitos de la «moderna bancocracia», a la que definió como
«una pandilla que no sabe nada de producción ni tiene nada
que ver con ella (GALEANO, 1999, p. 256).

c. Población y pobreza

Una contradicción más es que la mayoría de la población


mundial en el siglo XXI vive en las ciudades y no en el campo.
La sociedad postindustrial ha generado modos de vida citadinos
con los que las ciudades suelen ser interpretadas como lugares
de oportunidades y de progreso económico, frente a la vida en el
campo que se interpreta como lugar de pobreza y de abandono,
principalmente en el África Subsahariana y en Latinoamérica.
Veamos cómo está actualmente distribuida la población
mundial. En marzo de 2017 la población en el mundo alcanza
aproximadamente los 7,505 millones 960 mil personas. (50.4%
población masculina y 49.6% población femenina)61, distribuida
en 194 países en el mundo62, de la cual el 58% vive en ciudades
(promedio mundial), cifra que en América Latina alcanza el
80%.63 Esta diferencia confirma la concepción de que el campo
es igual a pobreza y ciudad es igual a progreso.
En relación con la pobreza, la población mundial que
vive en extrema pobreza es del 12.7%. No obstante, en Asia
Meridional el porcentaje es mayor y alcanza el 18.8% y en la
África Subsahariana llega hasta niveles del 42.7% de personas
61
Fuente: http://countrymeters.info/es/World Recuperado el 20 de marzo de
2017.
62
https://www.saberespractico.com/demografia/paises-por-poblacion/
Recuperado el 20 de marzo de 2017.
63
http://www.plataformaurbana.cl/archive/2016/10/20/el-58-de-la-pobla-
cion-mundial-ya-vive-en-ciudades/ Recuperado el 20 de marzo de 2017.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 319

que viven con menos de $2.00 USD al día, cifra establecida


como criterio de medición relacionado con la necesidad de
consumo de calorías diarias para un individuo.64 Latinoamérica
alcanzó 175 millones en pobreza en el año 2015, lo cual también
aumentó la desigualdad social. Según la CEPAL y con base
en el coeficiente de Gini (donde 0 significa plena igualdad y
1 máxima desigualdad): “en 2014 el ingreso per cápita de las
personas del 10% de mayores ingresos fue 14 veces superior
que el del 40% de menores ingresos.”65 Eduardo Galeano
comentaba a finales de los años sesenta, cuando escribió Las
venas abiertas de América Latina, que “El ingreso promedio de
un ciudadano norteamericano es siete veces mayor que el de un
latinoamericano y aumenta a un ritmo diez veces más intenso”
(GALEANO, 2010, p. 17). El problema es que la distancia entre
los ricos y los pobres es cada vez mayor. Éste no es un problema
funcional, es estructural.

d. Producción, inconsciencia,
automatización

La ciudad es un cúmulo de contradicciones de toda índole.


El campo también lo es, pero las ciudades definen aún más el
rostro de la contradicción del mundo. En y con las diferencias
humanas, los hombres y las mujeres producen su propia
sobrevivencia en un sistema que los utiliza como productores
para la reproducción del sistema. En La ideología alemana
encontramos esta perspectiva: “Lo que son [los seres humanos]

65
http://www.portafolio.co/internacional/pobreza-america-lati-
na-2015-492947 Recuperado el 20 de marzo de 2017.
64
http://mansunides.org/es/observatorio/pobreza-extrema Recuperado el
20 de marzo de 2017.
320

coincide, por consiguiente, con su producción, tanto con lo


que producen como con el modo de cómo producen. Lo que los
individuos son depende, por tanto, de las condiciones materiales
de su producción” (MARX; ENGELS, 1974). El postulado del
materialismo dialéctico parte de la realidad, sin embargo en
la vida cotidiana las personas difícilmente se preguntan más
allá de las condiciones materiales de su existencia en la que
producen los medios para vivir y sobrevivir.
En la cotidianidad de las actividades humanas sucede algo
similar. El principio base del materialismo dialéctico, expresado
en La ideología alemana, es que “No es la conciencia la que
determina la vida, sino la vida la que determina la conciencia.
Desde el primer punto de vista, se parte de la conciencia como
si fuera un individuo viviente; desde el segundo punto de vista,
que es el que corresponde a la vida real, se parte del mismo
individuo real viviente y se considera la conciencia solamente
como su conciencia” (MARX; ENGELS, 1974). Vida y conciencia
están unidas en el individuo, acción y pensamiento son
indisolubles, siendo las condiciones de producción en el trabajo
–la vida- lo que generaría la conciencia.
En la ciudad hay tantos escenarios como actividades
citadinas. En ella se conjugan distintos niveles y tipos de
actividades que tiene origen en la división social del trabajo,
los cuales pueden ser conscientes o inconscientes. Sin embargo,
dada la complejidad del sistema en el que se realizan pareciera
predominar más la inconsciencia que la conciencia. ¿Podemos
afirmar que en las ciudades prevalece la automatización de
las actividades sobre la conciencia de ellas? Sin atreverse a
afirmarlo gratuitamente, puede considerarse que este punto
merece reflexiones que faciliten el entendimiento acerca de
qué ocurre como conciencia/inconsciencia de los individuos
al realizar sus actividades de subsistencia. Si las actividades no
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 321

se realizan con la conciencia del fin, entonces se automatizan.


Para el marxismo, la enajenación que sufre el trabajador al ser
separado de los productos de su propio trabajo no se muestra
sólo en el resultado, sino en el acto de la producción, dentro de
la actividad productiva misma. En los Manuscritos económicos y
filosóficos de 1844, Marx se pregunta ¿cómo podría el trabajador
enfrentarse con el producto de su actividad como con algo
extraño si en el acto mismo de la producción no se hiciese
ya ajeno a sí mismo? Para él, el producto no es más que el
resumen de la actividad que no es otra cosa que la producción.
El trabajador es despojado del producto de su trabajo, trabaja lo
ajeno y con su actividad laboral produce lo que no le pertenece,
está enajenado en la actividad del trabajo mismo:

Primeramente en que el trabajo es  externo  al trabajador, es


decir, no pertenece a su ser; en que en su trabajo, el trabajador
no se afirma, sino que se niega; no se siente feliz, sino
desgraciado; no desarrolla una libre energía física y espiritual,
sino que mortifica su cuerpo y arruina su espíritu. Por eso
el trabajador sólo se siente en sí fuera del trabajo, y en el
trabajo fuera de sí. Está en lo suyo cuando no trabaja y cuando
trabaja no está en lo suyo. Su trabajo no es, así, voluntario,
sino forzado, trabajo forzado. Por eso no es la satisfacción de
una necesidad, sino solamente un medio para satisfacer las
necesidades fuera del trabajo (MARX, 1980, p. 108-109).

Este es el principal problema del trabajo asalariado. Cuando se


habla de conciencia no se refiere exclusivamente a la conciencia
natural que se tiene para hacer las cosas, es decir, la conciencia simple
de saber que se está haciendo algo, sino a la conciencia de lo que
se realiza, la cual se obnubila por la enajenación. En la ciudad se
realizan un sinnúmero de actividades laborales, principalmente
de economía secundaria y terciaria, industrialización y servicios.
La actividad de barrer la calle, por ejemplo, puede hacerse para sí
o para otros, satisface una necesidad de sí mismo o es un medio
322

para recibir un pago y satisfacer necesidades externas al trabajo


de barrer. Lo mismo sucede con todas las actividades laborales
por más complejas o sencillas que sean.
La enajenación de las actividades también las normaliza
y la normalización también las enajena. Lo mismo sucede con
la repetición de actividades y con la frecuencia de los sucesos
que alejan la conciencia de su importancia, son sólo de índole
laboral sino como cultura social. Los mexicanos –otro ejemplo-
tal vez se han acostumbrado a tres escenarios económicos,
políticos y sociales graves: la impunidad, la corrupción y la
violencia. Quizás se han acostumbrado también al miedo. La
costumbre a vivir así los ha hecho perder la conciencia de ello
y, en consecuencia, guardan silencio, se resignan y de esta
manera se niegan y se aniquilan sin saberlo. Los sectores pobres
del país son quienes viven peor las consecuencias de estas
condiciones que se conjugan en el país. Exigir castigo a quien
delinque, denunciar la corrupción tan arraigada en los distintos
niveles de poder, luchar contra las acciones de violencia que se
ejerce contra la población son acciones emprendidas sólo por
quienes tienen conciencia de su gravedad, pero la mayoría de
la población no lo hace. El silencio y la omisión matan más que
las balas y que el hambre, porque aquellas engendran a éstas.
La conciencia de que la sociedad civil, la sociedad ciudadana,
puede cambiar las cosas es poca y, por, ende la participación
ciudadana en México es sumamente escasa. La masificación
que se vive en las ciudades puede ser causa de la apatía para
la acción, aunque la vida cotidiana de la ciudad esté plagada de
actividades. México padece ambas.
Las actividades citadinas responden a un sistema que las
crea para reproducirse por medio de un fondo ideológico que
lo sostiene. En este marco, Antonio Gramsci (1971) da a las
relaciones hegemónicas un carácter pedagógico existente
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 323

entre los distintos niveles generacionales que se reproduce y


se perpetúa en la cultura:

Esta relación existe en toda la sociedad en su conjunto y


para cada individuo respecto de los otros individuos; entre
capas intelectuales y no intelectuales; entre gobernantes
y gobernados; entre élites y adherentes; entre dirigentes
y dirigidos; entre vanguardias y cuerpos de ejército. Cada
relación de “hegemonía” es necesariamente una relación
pedagógica, y se verifica, no sólo en el interior de una nación,
entre las diversas fuerzas que la componen, sino en todo
el campo internacional, entre complejos de civilizaciones
nacionales y continentales (GRAMSCI, 1971, p. 32).

Desde esta perspectiva podría sostenerse que la inconsciencia


también puede ser enseñanza y aprendida, por lo que la
ideología dominante del sistema además de pretender la
automatización de las actividades citadinas, procura normalizar
las prácticas políticas de sometimiento, injusticia y opresión.
En contraparte, en el hacer ciudad se le oponen acciones de
individuos y colectivos organizados de la sociedad civil. Es
decir, la ciudad se construye de manera activa o pasiva, porque
la apatía política también es una postura política que ejerce
el poder al otorgarlo gratuitamente a los privilegiados del
sistema. Las acciones de los organismos no gubernamentales,
más que intervenir para solucionar problemas sociales -que sí
lo hacen- cobran relevancia contestataria, por lo que han de ser
considerados como grupos activos de pensamiento crítico y de
construcción social.

e. Centro y periferia

Las categorías espaciales de centro y periferia con las que


Enrique Dussel (1995) interpreta la opresión/liberación, se
324

aplican a los centros y periferias de las ciudades. Los espacios


socioeconómicos se vinculan en relaciones unilaterales de
proveeduría y consumismo, de dominación y de pensamiento
crítico liberador. Las periferias proveen medios de vida a los
centros: producen alimentos, construyen casas, cosen vestidos,
fabrican calzado... Los habitantes periféricos manejan los autos
de los señores y señoras, sirven en las casas y en los restaurantes
del centro, cuidan la casa de los patrones, sacan a pasear a las
mascotas de estos, reparan y lavan los autos de los propietarios...
Pero quienes viven en las periferias tienen hambre -ellos y sus
hijos-, no son dueños de las casas donde viven, suelen pasar frío,
a veces andan descalzos, descuidan sus casas para ir a cuidar
las casas de los privilegiados, caminan o utilizan el transporte
público - apretujados, cansados, malolientes- para ir o venir de
su trabajo. Condiciones de vida que perpetúan la gran división
social del trabajo que constituye las ciudades actuales. Las
periferias consumen, sin saberlo –pero pueden saberlo-, los
modos de vida de los centrales. Los centros suponen que las
periferias viven gracias a ellos, sin conciencia de que el centro
sólo puede ser entendido desde la periferia: “Al fin y al cabo,
tampoco en nuestros tiempos la existencia de los centros ricos
del capitalismo puede explicarse sin la existencia de la periferia
pobres sometidas: unos y otros integran el mismo sistema”
(GALEANO, 2010, p. 49). Los centros consumen ya no solamente
obreros, sino servidores, empleados y comerciantes.

f. Espacios y poder

Las ciudades tienen el rostro-escenario que capitaliza la


expresión más grande de la posesión del espacio y de los espacios.
El espacio público se privatiza cada vez más y, por lo mismo,
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 325

se reduce. El espacio privado se encierra y se hace inaccesible,


“barrios cerrados, en este sentido, son barrios con dos y más casas o
departamentos separados, que cuentan con una infraestructura
común y son separados del espacio público por un muro, un
cercado y puertas (BORSDORF, 2012, p. 323). El acceso, otrora
libre para los habitantes de la ciudad, ahora cuesta, tiene precio;
tienen que pagar por el uso de los espacios otrora públicos.
Las construcciones y la arquitectura también son manifestaciones
del poder vertical y horizontal en las ciudades: edificios habitacionales
de gran altura que se identifican por sus balcones, en tanto que los
grandes edificios corporativos se identifican por sus paredes de cristal
como muestra del poder financiero que los sostiene y los respalda. Pero
no sólo el poder habitacional crece verticalmente, también lo hace
de manera horizontal. Son cada vez más las zonas exclusivas que se
expanden vía del despojo para construir espacios privilegiados, las cuales
se constituyen como pequeñas ciudades dentro de las ciudades. Clubes,
jardines, centros comerciales, gimnasios, iglesias, escuelas, canchas
deportivas, casetas de control de ingreso. Por ser espacios exclusivos
son por sí mismo excluyentes. La vecindad entre sus habitantes es
espacial porque se vive en el mismo lugar habitacional encerrado por las
bardas-muros que los limitan y los terrenos o jardines son colindantes,
pero el encuentro social está ausente y su compromiso mutuo en
favor del espacio común es nulo o está extremadamente reducido.
La ciudad en su conjunto ha dejado de ser el espacio público
del encuentro social y de las responsabilidades ciudadanas
comunes y poco a poco se ha convertido en zonas suburbanas
en donde sus habitantes viven hacia adentro de sus casas,
duermen en ellas, pero el sentido de pertenencia al lugar social
del espacio habitacional está en decremento, con la consecuente
reducción del compromiso por, en, y con el otro para construir
una ciudad “nuestra y de nosotros”, mucho menos una ciudad
“de y para todos”.
326

Los intereses económicos que tienen los corporativos en las


ciudades también afectan el equilibrio ecológico. La ciudad no
sólo invade, sino que destruye el equilibrio ecológico. Escenario
contradictorio de vida y muerte. No importa si es en Cancún
(México) o si es en la ciudad de Panamá donde se destruye un
manglar para construir una cadena hotelera o una autopista, si
con ello se favorece el descanso y la diversión de los privilegiados
o el traslado de los tenedores del capital de la ciudad hacia
el aeropuerto -porque el tiempo de ellos vale oro, no así el
equilibrio ecológico-, o que se pretenda despojar de la tierra a los
pescadores que la habitan cerca de las playas mediante el pago
de precios irrisorios sólo por haber quedado en medio de los
grandes edificios hoteleros o de los bancos y financieras cuando
este crecimiento las invadió y por su misma voracidad elevó el
precio de esas tierras que pretenden pagar al precio de la quinta
parte de su valor o menos. En Hato Rey, en San Juan, Puerto Rico,
hay una zona de vivienda popular atrapada por los edificios
corporativos; los habitantes de esas cuarenta casas las defienden
con todos los recursos legales y legítimos posibles.

g. Clases sociales

La interpretación de la ciudad como reproductora de los modos


de producción lleva a entenderla como el lugar de contradicción
entre la burguesía y el proletariado o como clases sociales dominante
y dominada, respectivamente. La industrialización es solamente
uno de sus componentes sustanciales más contradictorios,
porque en la interpretación de la ciudad hay que considerar los
componentes del funcionamiento del sistema financiero, de los
enormes centros comerciales y hasta del crimen organizado. Si
bien los propietarios del capital y de los medios de producción
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 327

siguen siendo capitalistas, ¿en el sistema financiero, en el


comercial y en el crimen organizado quiénes constituyen la clase
social dominada? ¿Cabe, incluso, hacer este planteamiento? ¿Es
posible hablar de clases sociales en la tejedura de estos sistemas?
¿La convivencia actual del sistema financiero y del crimen
organizado es la expresión extrema del neoliberalismo total?
Desde el marxismo se interpretaría como un capitalismo extremo,
pero ¿cuál sería la clase social antagónica del comercio del dinero?
Estas cuestiones que pudieran parecer retóricas son apenas
planteamientos de inicio para reflexiones posteriores sobre el
tema. Sin embargo, parece que el gran comercio internacional en
todas sus ventas de productos tangibles e intangibles, así como la
acumulación sin tope del capital mediante los núcleos financieros
locales, nacionales y mundiales, además del afianzamiento del
crimen organizado que afecta a miles de personas hora tras hora
en el planeta y le reditúa miles de millones de dólares al día,
no constituyen un modo de producción, pero sí representan el
neoliberalismo capitalista en extremo, porque tienen como fin la
acumulación del dinero en sí mismo y se sirven del engaño de la
publicidad, el endeudamiento ilimitado, el dolor humano, la sangre
y la muerte. La ciudad neoliberal capitalista se complejiza en los
escenarios que la conforman, en sus componentes, interacciones y
contradicciones, en las formas y fondos que corresponde analizar
para interpretarla y entenderla.
Uno de los pensadores latinoamericanos que ha sabido
plasmar en su obra las grandes contradicciones del capitalismo,
es Eduardo Galeano. Con base en la exposición de estas
reflexiones, en el siguiente apartado se pretende exponer su
visión sobre las complejidades de los distintos escenarios que
hacen la ciudad en la vida ordinaria de los pobres y desposeídos.
328

La ciudad en la mirada
de Eduardo Galeano

En estas páginas se introdujeron fragmentos y extractos


relativos a la ciudad contenidos en diversos textos de Galeano,
con el consabido de que esta pequeña inclusión no agota el tema
de la ciudad en su obra, pero sí da cuenta de su postura frente
a ella. Las citas textuales son extensas porque así lo requiere la
comprensión del contenido. El criterio de selección se hizo con
base en la narración de la lucha por la vida de los habitantes
de las ciudades, mujeres y hombres en la vida cotidiana, cuyo
contenido tiene relación con los temas expuestos en el primer
apartado. Así, se alternarán las narraciones de Galeano con
los comentarios de los autores de este texto y viceversa. Se
intentó respetar el estilo de las transcripciones tal como fueron
editadas en las publicaciones, de ahí la diversidad de formas en
las estructuras de los párrafos que se encontrarán en el texto.
Eduardo Galeano es el gran sabio uruguayo, latinoamericano
y planetario que irradió luz y la heredó al mundo del que se sentía
parte: “el tercer mundo” -ese que llamaron así los del primero,
los de allá, en los tiempos de la guerra fría del siglo XX-, heredó
la luz de su mirada para que los ciegos del primero lo pudieran
ver a pesar de su ceguera y los del tercero no se olvidaran de
sí mismos. A Galeano le encantaba escribir las historias de los
pobres, de los débiles, de los vulnerables y desvalidos, de los
invisibles del mundo, para que ellos fueran vistos y el corazón
de los otros sintiera, siquiera, algo del olor de la pobreza
aunque su latido no les perteneciera. Pero como Eduardo era
un ser humano -de esos a los que les dicen verdaderos-, era
incluyente, también contaba lo que les sucedía a los de arriba, a
los del norte, a los del primer mundo, en sus locuras de dominar
al mundo. A ellos les contaba cómo viven los del mundo tercero,
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 329

los últimos, los del final; les contaba cómo vivían y viven los
de ese mundo del que los del norte también se sienten dueños
porque se lo apropiaron con el supuesto derecho del despojo
que consideran inherente a ellos:

La amnesia no es el triste privilegio de los países pobres. Los


países ricos también aprenden a ignorar. La historia oficial no
les cuenta, entre muchas cosas que no les cuenta, el origen
de su riqueza. Esa riqueza, que no es inocente, proviene en
gran medida de la pobreza ajena, y de ella se alimenta más y
más. Impunemente, sin que le duela la conciencia ni le arda la
memoria. Europa puede confirmar, cada día, que la tierra no es
redonda. Razón tenían los antepasados: el mundo es un plato
y, y más allá se abre el abismo. Al fondo de ese abismo, yace
América Latina, y todo el resto del Tercer Mundo (GALEANO,
1992, p. 12).

Eduardo se fue pronto, no para huir sino porque así sucede.


Se fue en 2015 e hizo sentir el dolor por su partida a los utopistas
y humanistas que se re-humanizaban con el pensamiento
de sus palabras. Se fue por las Venas abiertas de América Latina
hasta llegar a los “Garabatos” que fueron incluidos –según los
editores- en El cazador de historias. Se fue el cuerpo y se quedó
el espíritu, porque a los grandes hombres como él nunca se les
va el espíritu; también se quedó su inteligencia entre los vivos,
porque la inteligencia de quienes han visto las contradicciones
del mundo con los ojos de las cotidianidades iluminan las
cegueras de lo inmediato, de aquello que de tan próximo se
vuelve invisible en las oscuridades de la normalidad. Los pies de
Galeano anduvieron menos de lo que sus ojos vieron ¡y vaya que
sus pies caminaron miles de senderos por los países del mundo!
Sus ojos vieron lo que tantos ojos ni siquiera percibieron en
las ciudades y en los campos, porque él sintió el latido y miró
los distintos rostros del corazón y de la condición humana tan
llena de muros y contradicciones.
330

La mirada de Galeano sobre la ciudad no es descriptiva sino


histórica y didáctica. Su mirada es metafórica al hacer hablar
a los acontecimientos, de los cuales recupera sus enseñanzas
por encima de las anécdotas limitadas de la descripción de
lo sucedido, por ejemplo, así lo expresa en el texto de Tierra
indignada:
En mayo del año 2013, por primera vez en la historia de
Guatemala, un exterminador de indios fue sentenciado por
genocidio racista. Un tribunal del fuero común lo sentenció a
ochenta años de cárcel.

El general Ríos Montt había sido el penúltimo de una serie de


dictadores especializados en la matanza de indígenas mayas.
Poco después de la sentencia, estalló un terremoto. La tierra,
la madre de todos los asesinados, tembló y siguió temblado
sin parar.
Temblaba de ira. Ella sabía que iba a ocurrir lo que ocurrió:
la condenación del verdugo fue postergada por las más altas
autoridades judiciales del país. La tierra se alzó, furiosa, contra
la impunidad de siempre (GALEANO, 2016, p. 48).

Galeano hace hablar a la tierra, recupera los sentimientos


de dolor e ira que la tierra tiene por sus hijos muertos. La
metáfora maternal sacude la conciencia por los muertos del
país en la ciudad que lo encabeza. En la historia recuperada
en este breve texto aparece abierta la denuncia contra la
injusticia que contiene la impunidad. Esta historia se prolonga
en los hijos, madres y padres de cientos de ciudades del mundo,
principalmente de las ubicadas en el sur económico donde la
impunidad y la corrupción parecen no tener fin, como tampoco
parece tener fin la injusticia que las alimenta.
El pueblo sufre y goza, pero el sistema lo oprime. El pueblo
es la ciudad, pero la ciudad no es el pueblo. La fiesta es una
diversión para olvidar el dolor, pero también para reconstruirse.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 331

No es el circo que ofrecen los comerciantes del espectáculo de


la carne, sino el espectáculo del pueblo que hace el carnaval.
La ciudad es del pueblo, de los que visten sus diseños de fiesta,
de alegría, de pocos días de alegría para resistir los muchos de
penurias. El pueblo se disfraza de carnaval. Al final “la policía
se lleva preso a quien siga disfrazado”, pero quién se lleva
presa a la policía que todos los días actúa disfrazada de órgano
de represión en las ciudades: “Pieles negras, pelucas blancas,
coronas de luces, mantos de seda y pedrería: en el carnaval
de Río de Janeiro, los muertos de hambre sueñan juntos y son
reyes por un rato. Durante cuatro días, el pueblo más musical
del mundo vive su delirio colectivo y el miércoles de cenizas,
al medio día, se acabó la fiesta. La policía se lleva preso a quien
siga disfrazado… (GALEANO, 1992, pp. 108).

a. Miseria y economía

En las ciudades latinoamericanas la lucha por la supervivencia


empieza en la infancia, ser niño pobre en América latina es estar
desafiando la muerte en cada instante. Ocho ciudades como
botones de muestra. Bogotá, Córdoba, Medellín, México, Río de
Janeiro y Montevideo, Buenos Aires y San Francisco de Macorís:

La sociedad de consumo consume fugacidades. Cosas,


personas: las cosas, fabricadas para no durar, mueren poco
después de nacer; y hay cada vez más personas condenadas
desde que se asoman a la vida. Los niños abandonados de
las calles de Bogotá, que antes se llamaban gamines, ahora
se llaman desechables y están marcados para morir. Los
numerosos nadies, los fuera de lugar, son «económicamente
inviables», según el lenguaje técnico (GALEANO, 1999, p. 100).


Niños que para sobrevivir se hacen uno con otros en la
332

ley de nadie: “Bajo el asfalto, en las cloacas, tienen su casa


las bandas de niños abandonados de la ciudad argentina de
Córdoba. De vez en cuando emergen a las calles y arrebatan de
un manotazo carteras y billeteras. Si la policía no los atrapa y
los muele a golpes, con su botín compran y comparten pizza y
cerveza. Y también compran tubos de pegamento, para inhalar”
(GALEANO, 1999, p. 241).
El crimen recluta a cambio de explotar la miseria y la
necesidad: “En Medellín, funcionan algunas escuelas de sicarios,
que ofrecen dinero fácil y emociones fuertes a niños de quince
años. Esos niños, instruidos en las artes del crimen, matan a
veces, por encargo, a otros niños tan muertos de hambre como
ellos. Pobres contra pobres, como de costumbre: la pobreza
es una manta demasiado corta, y cada cual tira para su lado”
(GALEANO, 1999, p. 91).
La economía capitalista genera desigualdades. En la ciudad
contradictoria que produce multimillonarios y multipobres:

La economía latinoamericana es una economía esclavista que


se hace la posmoderna: paga salarios africanos, cobra precios
europeos, y la injusticia y la violencia son las mercancías que
produce con más alta eficiencia. Ciudad de México, 1997, datos
oficiales: ochenta por ciento de pobres, tres por ciento de ricos
y, en el medio, los demás. Y la ciudad de México es la capital del
país que más multimillonarios de fortuna súbita ha generado
en el mundo de los años noventa (…) un solo mexicano posee
una riqueza equivalente a la que suman diecisiete millones de
mexicanos pobres (GALEANO, 1999, p. 30).

A más de veinte años del siguiente relato, la vida no ha


cambiado, no ha mejorado, ha empeorado: “Ahora, las favelas
de Río son más de quinientas. Allí vive mucha gente que trabaja,
brazos baratos que sirven la mesa y lavan los autos y las ropas
y los baños en los barrios acomodados, y también viven en las
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 333

favelas muchos excluidos del mercado laboral y del mercado de


consumo que, en algunos casos, reciben de las drogas dinero o
alivio” (GALEANO, 1999, p. 99).
Los infelices, los desposeídos, los consumidores. Tres
maneras de vivir para el dinero:

Gente infeliz, la que vive comparándose», lamenta una mujer


en el barrio del Buceo, en Montevideo. El dolor de ya no ser,
que otrora cantara el tango, ha dejado paso a la vergüenza
de no tener. Un hombre pobre es un pobre hombre. «Cuando
no tenés nada, pensás que no valés nada», dice un muchacho
en el barrio Villa Fiorito, de Buenos Aires. Y otro comprueba,
en la ciudad dominicana de San Francisco de Macorís: «Mis
hermanos trabajan para las marcas. Viven comprando
etiquetas, y viven sudando la gota gorda para pagar las cuotas
(GALEANO, 1999, p. 259-260).

b. Los olvidados

Los olvidados de la vida, de las ciudades, de la memoria.


Aquellos que solos existen porque se miran a sí mismos y saben
que son su sola compañía. La ciudad es sorda a sus palabras y su
presencia es imperceptible a los que sí oyen y sólo tienen ojos
para ver a los que son considerados ciudadanos de verdad:

“Nochebuena
FERNANDO Silva dirige el hospital de niños, en Managua.
En vísperas de Navidad, se quedó trabajando hasta muy tarde.
Ya estaban sonando los cohetes, y empezaban los fuegos
artificiales a iluminar el cielo, cuando Fernando decidió
marcharse. En su casa lo esperaban para festejar.
Hizo una última recorrida por las salas, viendo si todo
quedaba en orden, y en eso estaba cuando sintió que unos
pasos lo seguían. Unos pasos de algodón: se volvió y descubrió
que uno de los enfermitos le andaba atrás. En la penumbra, lo
reconoció. Era un niño que estaba solo. Fernando reconoció
su cara ya marcada por la muerte y esos ojos que pedían
334

disculpas o quizá pedían permiso.


Fernando se acercó y el niño lo rozó con la mano:
-Decile a… -susurró el niño-. Decile a alguien que yo estoy aquí.”
(GALEANO, 2009, p. 58).


Galeano es la memoria de los desmemoriados. Su vida
consistió en rememorar a los olvidados y a recordar a los
desmemoriados la historia de la opresión, a no dejar morir
la existencia de quienes sostienen al sistema que los asesina
y sepulta con el olvido a los muertos que dieron su vida para
dignificar la vida de sus hermanos y de sus hijos. Pero ya
muertos están vivos en la memoria de la historia:

La desmemoria/4
Chicago está llena de fábricas. Hay fábricas hasta en pleno
centro de la ciudad, en torno al edificio más alto del mundo.
Chicago está llena de fábricas, Chicago está llena de obreros.
Al llegar al barrio de Heymarket, pido a mis amigos que me
muestren el lugar donde fueron ahorcados, en 1886, aquellos
obreros que el mundo entero saluda cada primero de mayo.
- Ha de ser por aquí -me dicen. Pero nadie sabe.
Ninguna estatua le ha erigido en memoria de los mártires de
Chicago en la ciudad de Chicago. Ni estatua, ni monolito, ni
placa de bronce, ni nada.

El primero de mayo es el único día verdaderamente


universal de la humanidad entera, el único día donde coinciden
todas las historias y todas las geografías, todas las lenguas y las
religiones y las culturas del mundo; pero en los Estados Unidos,
el primero de mayo es un día cualquiera. Ese día, la gente trabaja
normalmente, y nadie, o casi nadie, recuerda que los derechos
de la clase obrera no han brotado de la oreja de una cabra, ni de
la mano de Dios o del amo (GALEANO, 2009, p. 103).
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 335

c. Injusticia de género

Las mujeres objeto, las abusadas, las marginadas, las


disminuidas son engrandecidas en las letras de Galeano. En
cada letra una denuncia contra el abuso del poder, contra el
abuso del sistema:

En su mayoría, las violadas callan por miedo. Muchas niñas,


violadas en sus casas, van a parar a la calle: hacen la calle,
cuerpos baratos, y algunas encuentran, como los niños de la
calle, su morada en el asfalto. Dice Lélia, catorce años, criada a
la buena de Dios en las calles de Río de Janeiro:
-Todos roban. Yo robo y me roban (GALEANO, 1999, p. 73).

Al igual da la palabra y eleva la voz con ellas:

Dice Angélica, dieciséis años, arrojada a las calles de la ciudad


de México:
-Le dije a mi mamá que mi hermano había abusado de mí, y ella me
corrió de la casa. Ahora vivo con un chavo, y estoy embarazada. Él
dice que me va a apoyar, si tengo niño. Si tengo niña, no dice.
«En el mundo de hoy, nacer niña es un riesgo», comprueba la
directora de la UNICEF (…) En 1995, en Pekín, la conferencia
internacional sobre los derechos de las mujeres reveló que
ellas ganan, en el mundo actual, una tercera parte de lo que
ganan los hombres, por igual trabajo realizado” (Galeano,
1999, p. 74).
Son las mujeres las que hacen la lucha, las que tienen el coraje
hasta la muerte. En México, cerca de treinta mil desaparecidos
en la guerra intestina que lo azota. En toda Latinoamérica, las
madres viven por sus hijos y los hacen presentes en ellas:
“Las madres de Plaza de Mayo. 1977. Buenos Aires.
Las madres de Plaza de Mayo, mujeres paridas por sus hijos,
son el coro griego de esta tragedia (…)
-Me despierto y siento que está vivo- dice una, dicen todas-.
(…) Las llaman locas. Normalmente no se habla de ellas (…)
(GALEANO, 2015, p.30)
336

d. Autoridades sordas y ciegas

A las 10:05 hrs., del 22 de abril de 1992 –miércoles de


Pascua- un colector drenaje del sector Reforma de la ciudad
de Guadalajara, México, explotó porque en sus entrañas se
había vertido gasolina desde días antes por un orificio de ocho
milímetros de diámetro en el poliducto Salamanca-Guadalajara.
A pesar del riesgo constante de explosión, las autoridades no
desalojaron porque no pasaría nada –dijeron-. Cientos de casas
destruidas y desaparecidos de todas las edades; sólo doscientos
diez los muertos, cifras oficiales. No había motivo de alarma, ni
entonces en Guadalajara ni siete años antes en Armero:

Al amanecer de un día de fines de 1985, las radios colombianas


informaron:
- La Ciudad de Armero ha sido borrada del mapa.
El volcán vecino la mató. Nadie pudo correr más rápido que
la avalancha de lodo hirviente: una ola grande como el ciclo
y caliente como el infierno atropelló a la ciudad, echando
humo y rugiendo furias de mala bestia, y se tragó a treinta mil
personas y a todo lo demás.
El volcán venía avisando desde hacía un año. Un año entero
estuvo echando fuego, y cuando ya no podía esperar más,
descargó sobre la ciudad un bombardeo de truenos y una
lluvia de ceniza, para que escucharan los sordos y vieran los
ciegos tanta advertencia. Pero el alcalde decía que el Superior
Gobierno decía que no hay motivos de alarma, y el cura decía
que el obispo decía que Dios se está ocupando del asunto, y los
geólogos y los vulcanólogos decían que todo está bajo control
y fuera de peligro.
La ciudad de Armero murió de civilización. No había
cumplido, todavía, un siglo de vida. No tenía himno ni escudo”
(GALEANO, 2009, p. 118).

La historia se repitió en la ceguera-sordera del gobierno. La


cuenta sigue.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 337

e. Contaminación del ambiente

El gran tema de las grandes ciudades del mundo: el aire


viciado del ambiente, la tierra y el agua envenenadas no puede
ser un tema eludido por Galeano:

Algunas de las mayores ciudades latinoamericanas viven


pendientes de la lluvia y del viento, que limpian el aire o se
llevan el veneno a otra parte. La ciudad de México, la más
poblada del mundo, vive en estado de perpetua emergencia
ambiental (…) Actualmente, en la ciudad que se llamó
Tenochtitlán, sitiada por la contaminación, los bebés nacen
con plomo en la sangre y uno de cada tres ciudadanos padece
frecuentes dolores de cabeza (GALEANO, 1999, p. 244-245).

Pekin, Nueva York, Los Ángeles… Sao Pablo, Santigo y


Buenos Aires:

Mil autos nuevos aparecen cada día en las calles de San Pablo.
Pero San Pablo respira los domingos y se asfixia el resto de la
semana; sólo los domingos se puede ver, desde las afueras, a
la ciudad habitualmente enmascarada por una nube de gases
(…) En Santiago de Chile, han denunciado los ecologistas, cada
niño que nace aspira el equivalente de siete cigarrillos diarios,
y uno de cada cuatro niños sufre alguna forma de bronquitis.
La ciudad está separada del cielo por un paraguas de
contaminación, que en los últimos quince años ha duplicado
su densidad mientras se duplicaba, también, la cantidad de
automóviles.
Año tras año se van envenenando los aires de la ciudad
llamada Buenos Aires, al mismo ritmo en que va creciendo el
parque automotor, que aumenta en medio millón de vehículos
por año (GALEANO, 1999, p. 245-247).

Según JATO Dynamics, de enero a marzo de 2016, fueron


vendidos 20.44 millones de vehículos en el mundo. 2.8 por
ciento más que en el mismo período de 2015. ¿Cuáles son las
consecuencias? Arriba están consignadas, entre otras. Sin
338

embargo, aún es tiempo de remediar y de ver que es posible


recuperar o mantener la belleza de la ciudad:

Una respuesta posible


La ciudad tiene condiciones. Hay mucha vida de barrio, y
hay vínculos comunitarios bien fuertes, que la dictadura
lastimó pero no pudo romper. A diferencia de otras ciudades
latinoamericanas, Montevideo no es todavía una máquina
para enloquecer ciudadanos. Las estrellas están a la altura de
los ojos y no hay que desnucarse para encontrarlas; el aire
no está envenenado, el silencio no es una mercancía de lujo
y todavía la gente encuentra tiempo para perder el tiempo
(GALEANO, 1992, p. 83).

f. Sureños norteados, orientales


occidentalizados

Los rostros feos de las ciudades son los rostros de los pobres
en las calles. Los rostros hermosos de las ciudades son los que
viven mirando hacia el norte, hacia Miami.

Crónica de la ciudad de Santiago


Santiago de Chile muestra, como otras ciudades
latinoamericanas, una imagen resplandeciente. A menos de un
dólar por día, legiones de obreros le lustran la máscara. En los
barrios altos, se vive como en Miami, se vive en Miami, se miamiza
la vida, ropa de plástico, comida de plástico, gente de plástico,
mientras los vídeos y las computadoras se convierten en las
perfectas contraseñas de la felicidad (GALEANO, 2009, p. 21).

Lo superfluo parece lo profundo, lo frágil se confunde con


lo sólido y lo efímero se consume como lo permanente y valioso.
Cuando alguien está confundido en su propia geografía se dice
que está norteado, que perdió la orientación, el oriente, y ve al
norte. Las ciudades del sur se nortean con facilidad:
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 339

La alienación/2
Creen los que mandan que mejor es quien mejor copia (...)
La alienación en América Latina: un espectáculo de circo.
Importación, impostación: nuestras ciudades están llenas
de arcos de triunfo, obeliscos y partenones. Bolivia no tiene
mar, pero tiene almirantes disfrazados de lord Nelson. Lima
no tiene lluvia, pero tiene techos a dos aguas y con canaletas.
En Managua, una de las ciudades más calientes del mundo,
condenada al hervor perpetuo, hay mansiones que ostentan
soberbias estufas de leña, y en las fiestas de Somoza las damas
de sociedad lucían estolas de zorro plateado (GALEANO, 2009,
p. 147).
Por eso se adoptan nombres extranjeros, porque el rechazo
del origen lleva al rechazo de sí mismo. Nombres de ciudades
del norte en barrios pobres de una ciudad del sur:

La geografía. En Chicago, no hay nadie que no sea negro.


En pleno invierno, en Nueva York, el sol fríe las piedras. En
Brooklyn, la gente que llega viva a los treinta años merecería
una estatua. Las mejores casas de Miami están hechas de
basura. Perseguido por las ratas, Mikey huye de Holywood.
Chicago, Nueva York, Brooklyn, Miami y Hollywood son
nombres de algunos barrios de Cité Soleil, el suburbio más
miserable de la capital de Haití (GALEANO, 2008a, p. 200).

La otrora ciudad símbolo del socialismo, está


occidentalizada, capitalizada, porque volteó los ojos al
occidente para admirar sus luces y atraer su economía: “Moscú
tiene ahora el doble de casinos que Las Vegas, mientras los
salarios caen a la mitad y en las calles la delincuencia crece
como los hongos después de la lluvia” (GALEANO, 1999, p. 327).

g. Voces en las paredes periféricas

Las pintas son las expresiones duraderas de la gente


periférica, como las lonas y carteles lo son en una manifestación.
“Escribo tu nombre en las paredes de mi ciudad. Tu nombre
340

verdadero, tu nombre y otros nombres que no nombro por


temor” (Gian Franco Pagliaro):

En Buenos Aires, en el puente de La Boca:


Todos prometen y nadie cumple. Vote por nadie.
En Caracas, en tiempos de crisis, a la entrada de uno de los barrios
más pobres:
Bienvenida, clase media.
En Bogotá, a la vuelta de la Universidad Nacional:
Dios vive.
Y debajo, con otra letra:
De puro milagro.
Y también en Bogotá:
¡Proletarios de todos los países, uníos!
Y debajo, con otra letra:
(último aviso) (GALEANO, 2009, p. 87).

Son letras que hacen hablar a las paredes, son muros que
gritan a los paseantes, pero no dividen, unen a la gente con
destinatarios definidos.

h. Religión
El arzobispo Desmond Tutu se refiere al África, pero también
vale para América:
-Vinieron. Ellos tenían la Biblia y nosotros teníamos la tierra,
Y nos dijeron: <<Cierren los ojos y recen>>. Y cuando abrimos
los ojos, ellos tenían la tierra y nosotros teníamos la Biblia
(GALEANO, 1992, p. 22).


Para Marx, “la miseria  religiosa  es, al mismo tiempo,
la expresión de la miseria real y la protesta contra la miseria
real. La religión es el suspiro de la criatura atormentada, el alma
de un mundo desalmado, y también es el espíritu de situaciones
carentes de espíritu. La religión es el opio del pueblo” (MARX,
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 341

2005, p. 50). Estos dos sentidos que Marx da a la religión se


constatan en la fe y en la esperanza de la gente:

Crónica de la ciudad de Río


En lo alto de la noche de Río de Janeiro, luminoso, generoso,
el Cristo del Corcovado extiende sus brazos. Bajo esos brazos
encuentran amparo los nietos de los esclavos.
Una mujer descalza mira al Cristo, desde muy abajo, y
señalándole el fulgor, muy tristemente dice:
- Ya no va a estar. Me han dicho que lo van a sacar de aquí.
- No te preocupes -le asegura una vecina. No te preocupes: Él
vuelve.
A muchos mata la policía, y a muchos más la economía. En
la ciudad violenta, resuenan balazos y también tambores: los
tambores, ansiosos de consuelo y de venganza, llaman a los
dioses africanos. Cristo sólo no alcanza (GALEANO, 2009, p. 66).

La teología de la liberación reconcilia la espiritualidad


con la lucha por acabar con la opresión. Espiritualidad para la
reivindicación.

i. Los activistas

Las luchas de los activistas casi nada cubiertas por los


medios, porque no son noticia morbosa ni espectacular, son
vistas por Galeano como luchas organizadas, bases necesarias
para el cambio social. Él recoge las acciones que interpelan, las
voces que se rebelan, las manos que se levantan:

En América latina, son una peligrosa especie en expansión: las


organizaciones de los sin tierra y los sin techo, los sin trabajo,
los sin; los grupos que trabajan por los derechos humanos;
los pañuelos blancos de las madres y las abuelas enemigas
de la impunidad del poder; los movimientos que agrupan a
los vecinos de los barrios; los frentes ciudadanos que pelean
por precios justos y productos sanos; los que luchan contra la
342

discriminación racial y sexual, contra el machismo y contra


la explotación de los niños; los ecologistas; los pacifistas;
los promotores de salud y los educadores populares; los
que desencadenan la creación colectiva y los que rescatan
la memoria colectiva; las cooperativas que practican la
agricultura orgánica; las radios y las televisiones comunitarias;
y muchas otras voces de la participación popular, que no
son ruedas auxiliares de los partidos, ni capillas sometidas a
ningún Vaticano. Con frecuencia, estas energías de la sociedad
civil sufren el acoso del poder, que a veces las combate a bala.
Algunos militantes caen, acribillados, en el camino. Que los
dioses y los diablos los tengan en la gloria: son los árboles que
dan frutos los que sufren las pedradas (GALEANO, 1999, p. 332).

Galeano mira a todos los lugares del mundo, por más


recónditos que se encuentren. El sur y el sub son el origen y la
raíz de su geografía, es el punto cardinal de su perspectiva:

Está ocurriendo en muchos lugares del mapa latinoamericano:


contra los gases paralizantes del miedo, la gente se une y,
unida, aprende a no achicarse. Como dice el Viejo Antonio,
«cada cual es tan pequeño como el miedo que siente, y tan
grande como el enemigo que elige». Esa gente, desachicada,
está diciendo lo suyo (…) Por poner otro ejemplo mexicano, el
subcomandante Marcos expresa a los sub: los subdesarrollados,
los subalimentados, los subtratados, los subescuchados.
Las comunidades indígenas de Chiapas discuten y
deciden, y él es boca de sus voces (GALEANO, 1999, p. 333).

También en México, el activista social Marco Rascón


Córdova creó a un personaje enmascarado llamado Superbarrio
que lucha por la vivienda en la ciudad de México. Sus orígenes
datan de 1985. Su vestimenta es la de un luchador de arena.
Lleva en su pecho una insignia S como la que lleva Superman y
la B del barrio. Este personaje se convirtió en un emblema de la
lucha urbano-popular y de otras luchas sociales y políticas como
representar a los arrendatarios de los barrios pobres y apoyar
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 343

los movimientos políticos de izquierda. Eduardo Galeano lo


describe así en comparación con el “héroe” del norte:

Crónica de la ciudad de México


Medio siglo después del nacimiento de Superman en Nueva
York, Superbarrio anda por las calles y las azoteas de la ciudad
de México. El prestigioso norteamericano de acero, símbolo
universal del poder, vive en una ciudad llamada Metrópoli.
Superbarrio, cualunque mexicano de carne y hueso, héroe del
pobrerío, vive en un suburbio llamado Nezahualcóyotl.
Superbarrio tiene barriga y piernas chuecas. Usa máscara
roja y capa amarilla. No lucha contra momias, fantasmas ni
vampiros. En una punta de la ciudad enfrenta a la policía y
salva del desalojo a unos muertos de hambre; en la otra
punta, al mismo tiempo, encabeza una manifestación por los
derechos de la mujer o contra el envenenamiento del aire; y
en el centro, mientras tanto, invade el Congreso Nacional y
lanza una arenga denunciando las cochinadas del gobierno
(GALEANO, 2009, p. 112).

j. Las utopías…

Galeano decía que las utopías sirven para caminar. Éstas


tienen sentido al ser la superación de realidades inaceptables, la
negación dialéctica del ahora injusto. Volver al pasado, volver
a ser la tierra paradisiaca de la naturaleza y de la convivencia
humana. Construir desde el hoy el amanecer ya comunitario del
mañana:

Las tradiciones futuras


Hay un único lugar donde ayer y hoy se encuentran
y se reconocen y se abrazan, y ese lugar es mañana.
Suenan muy futuras ciertas voces del pasado americano muy
pasado. Las antiguas voces, pongamos por caso, que todavía
nos dicen que somos hijos de la tierra, y que la madre no se
vende ni se alquila. Mientras llueven pájaros muertos sobre
la ciudad de México, y se convierten los ríos en cloacas,
344

los mares en basureros y las selvas en desiertos, esas voces


porfiadamente vivas nos anuncian otro mundo que no es
este mundo envenenador del agua, el suelo, el aire y el alma.
También nos anuncian otro mundo posible las voces
antiguas que nos hablan de comunidad. La comunidad,
el modo comunitario de producción y de vida, es la más
remota tradición de las Américas, la más americana de
todas: pertenece a los primeros tiempos y a las primeras
gentes, pero también pertenece a los tiempos que vienen
y presiente un nuevo Nuevo Mundo. Porque nada hay
menos foráneo que el socialismo en estas tierras nuestras.
Foráneo es, en cambio, el capitalismo: como la viruela,
como la gripe, vino de afuera” (GALEANO, 2009, p. 121).

Utopía es un lugar que no existe, pero puede existir, porque


es un proyecto a realizar. Debajo de la opresión, del abuso, de
la explotación, hay semillas que emergen y se alimentan del
mañana. Es posible recuperar las ciudades con las acciones
coloridas de sus habitantes:

Soñando en voz alta


Yo me la imagino de colores. ¿Por qué no? De colores era,
hasta que hace un siglo se agrisó. Y se agriso por bobería,
porque nuestros civilizados doctores pretendieron copiar a
Londres y a París. ¿Por qué no recuperar, ahora, los perdidos
colores? ¿Por qué no inventar una nueva ciudad de colores?
¿Por qué no formar Brigadas de Colores, que ayuden a los
vecinos a cambiar las caras de sus casas, para que las casas
canten? Lo hicieron los muchachos de Bellas Artes, hace
algunos cuantos años, en el Barrio Sur. Los vecinos pintaron,
los estudiantes ayudaron. Y en unas pocas cuadras el Barrio
Sur se transformó. Fue una experiencia minúscula y fugaz,
pero lindísima. ¿Por qué no hacerlo ahora en toda la ciudad?
¿Cuántos jóvenes se prenderían en la aventura? Quizá ésta
sea una necesidad cultural tan urgente como el rescate de los
museos y las bibliotecas (GALEANO, 1992, pp. 82-83).

Es posible, se puede, usando el pleonasmo de la posibilidad


y la tesonería del golpe de la maza. Utopíando. Como lo
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 345

soñó José Martí en La Habana y con Cuba entera, sí, “aquel


peligroso señor, el flaquito, el calvo, el que caminaba como si
estuviera llegando tarde, [que] se llamaba José Martí. Era hijo
de españoles el más cubano de los cubanos, el que denunció:
-Éramos una máscara, con los calzones de Inglaterra, el chaleco
parisiense, el chaquetón de Norteamérica y la moneda de
España (…)” (GALEANO, 2008b, p. 231). Y José Martí encabezó la
independencia de Cuba, porque soñó como sueñan los poetas…
Eduardo Galeano es uno de los escritores a quien la
humanidad no debería dejar de leer. Así, con el imperativo de la
memoria, porque el olvido llega pronto en la normalización con
la que se asume la cotidianidad de la explotación económica
y de la opresión ideológica y política. Sus textos asombran y
despiertan la conciencia; de ahí que hay que leerlos y releerlos
como las grandes obras que en cada lectura descubren cosas
ocultas o desapercibidas en las anteriores. Hay que leerlo para
recordar y para no olvidar que Latinoamérica, sus ciudades
y sus habitantes –dueños originarios de la tierra- tienen una
historia de opresión, un presente de ignominia para superar y
sueños y utopías para soñar y caminar.
346

Referências

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personal/borsdorf/pdfs/la-ciudad--antecedentes-y-nuevas-
perspectivas-.pdf
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 349
350

As autoras e os autores

Adriano de Souza Viana


Professor licenciado em Filosofia pela Faculdade Católica Sale-
siana de Vitória-ES, com especialização em Assessoria Bíblica
pela Faculdades EST (Escola Superior de Teologia) de São Leo-
poldo-RS. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ensino
de Humanidades o Instituto Federal do Espírito Santo, IFES, Vi-
tória-ES.

André Luiz Neves Jacintho


Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Huma-
nidades do Ifes – Campus Vitória, com Especialização em Es-
tudos da Linguagem e docente da rede estadual de ensino do
Espírito Santo.

Antônio Donizetti Sgarbi


É graduado em Filosofia e Pedagogia pela Faculdade Salesiana
de Filosofia Ciências e Letras de Lorena (1977). É especialista
em Psicopedagogia pela Universidade de Taubaté (1995). Tem
Mestrado (1997) e Doutorado (2001) em Educação pela Pontifí-
cia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). É professor do
Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Mate-
mática (Educimat) e coordenador do Mestrado Profissional em
Ensino de Humanidades (PPGEH) do Instituto Federal do Espí-
rito Santo (Ifes). Leciona, também, em cursos do Ensino Médio
Integrado, nas Licenciaturas de Matemática e Letras.

Dina Lúcia Fraga


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Hu-
manidades do Ifes, Vitória, graduada em Pedagogia pela Uni-
versidade Federal do Espírito Santo e pós-graduada em Psico-
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 351

pedagogia pela Faculdade Saberes. Pedagoga da Rede Municipal


de Ensino de Vitória desde o ano de 1983, atuando em diversos
Centros Municipais de Educação Infantil. Exerceu o cargo de
diretora nos CMEIs Santa Rita de Cássia, Lídia Rocha Feitosa e
Rubem Braga e também a Coordenação de Formação e Acom-
panhamento à Educação Infantil, na Secretaria Municipal de
Educação. Atualmente é professora no curso de Pedagogia da
Faculdade Estácio de Vila Velha e Coordenadora de Desenvolvi-
mento Curricular da Educação Infantil na Secretaria Municipal
de Educação de Vitória.

Dilza Côco
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), mestre e doutora em Educação pela UFES. Pro-
fessora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humani-
dades do Instituto Federal do Espírito Santo (Campus Vitória)
e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de
Humanidades (Gepech).

Gabino Cárdenas Olivares


Licenciado en Filosofía, Máster y Doctorado en Educación.
Profesor en el Departamento de Letras de la Universidad de
Guadalajara, México. Sus líneas de investigación son Docencia,
actores y procesos educativos. Es miembro del Cuerpo
Académico Docencia y Calidad Educativa. Ha publicado libros
en coautoría sobre temas educativos y latinoamericanos, así
como numerosos artículos en revistas especializadas.

Israel Frois
Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Espíri-
to Santo (UFES), especialista em Informática na Educação pelo
Instituto Federal do Espírito Santos (IFES) e Mestre em Ensino
352

de Humanidades também pelo IFES. Atualmente é professor do


ensino superior no curso de Pedagogia e do ensino médio, em
ambos os casos, na rede privada da Grande Vitória. Atua, prin-
cipalmente, nos temas: pedagogia histórico-crítica, educação
ambiental crítica, direito à cidade e formação de professores.

Larissa Franco de Mello Aquino Pinheiro


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Huma-
nidades do Ifes (Campus Vitória). Mestre e licenciada em Ciên-
cias Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Experiência em espaços não formais de educação.

Letícia Queiroz de Carvalho


Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Institu-
to Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
(IFES), com atuação na Área de Letras e Educação, nos Cursos de
Graduação em Letras – Presencial e a distância e nos Programas
de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH) e Mes-
trado Profissional em Letras (PROFLETRAS) do campus Vitória.
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito
Santo - UFES (2012); Mestre em Estudos Literários pela UFES
(2004) e Licenciada em Letras-Português pela UFES (1999).

María Estela Martínez Castro


Licenciada en Comunicación y Maestra en Educación, ambas
por la UNIVA. Investigadora del Departamento de Estudios
de la Comunicación Social, Profesora en el Departamento de
Letras y Miembro del Cuerpo Académico Docencia y Calidad
Educativa de la Universidad de Guadalajara. México. Líneas
de investigación: Actores, Procesos y Prácticas Educativas.
Procesos Didácticos en lengua y literatura.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 353

Nelson Martinelli Filho


Doutor em Letras (área de concentração: Estudos Literários)
pela Universidade Federal do Espírito Santo (2016), Mestre em
Letras (Ufes, 2012) e graduado em Letras-Português (Ufes, 2010).
Professor do ensino básico, técnico e tecnológico do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo –
Ifes, atuando nos cursos de Graduação em Letras (presencial
e a distância) e no Programa de Pós-graduação em Ensino
de Humanidades (PPGEH). É Coordenador da Editora do Ifes
(Edifes), Coordenador Geral de Extensão do campus Vitória/Ifes
e Coordenador do Programa Institucional de Difusão Científica
(Prodif/Ifes).

Patrícia Guimarães Pinto


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Hu-
manidades do Instituto Federal do Espírito Santo, possui espe-
cialização em Educação de Jovens e Adultos sendo graduada em
História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Estuda as
transformações ocorridas na paisagem da cidade de Vitória ao
longo dos séculos abordando suas contradições e os conflitos
sociais envolvidos no processo de modernização.

Priscila de Souza Chisté Leite


Licenciada em Educação Artística (2002) pela Universidade Fe-
deral do Espírito Santo (UFES), mestre (2007) e doutora em Edu-
cação (2013) pela UFES. Professora do Programa de Pós-Gradua-
ção em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do Espírito
Santo (Campus Vitória) e coordenadora do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Ensino de Humanidades (Gepech).

Sandra Soares Della Fonte


Mestre em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba
354

(UNIMEP) e doutora em educação pela Universidade Federal de


Santa Catarina (UFSC). É professora efetiva da UFES desde 1997
e professora permanente do Mestrado Profissional em Ensino
de Humanidades do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia
(IFES campus Vitória). Co-autora de livros com Indústria cultural
em tempos pós-modernos e Arte, conhecimento e paixão na formação
humana: sete ensaios de pedagogia histórico-crítica. Tem artigos
e capítulos de livros publicados, como Fundamentos teóricos da
pedagogia histórico-crítica, Escola, unidade e diversidade: reflexões a
partir de Karl Marx, Planejamento educacional: de sua centralidade
ao seu esvaziamento, A formação humana em questão, entre outros.
Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de
Humanidades (Gepech).

Simone Oliveira Thompson de Vasconcelos


Mestre pelo programa de pós-graduação em Educação em Ciên-
cias e Matemática (Educimat) do Instituto Federal do Espírito
Santo (Ifes), licenciada em Letras-Português pelo Instituto Fe-
deral do Espírito Santo (2015), bacharel em Farmácia e Bioquí-
mica pela Universidade Federal do Espírito Santo (2001). Possui
experiência na área de saúde atuando 10 (dez) anos como far-
macêutica e na área de educação como servidora do Instituto
Federal do Espírito Santo (Ifes) desde 2011.

Swami Cordeiro Bérgamo


Mestre do curso em Ensino de Humanidades, Instituto Tecno-
lógico Federal do Espírito Santo (IFES). Graduado em Licencia-
tura em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Colatina (1997), especialista em História do Brasil pela Uni-
versidade Federal do Espírito Santo (2000) e em Gestão Pública
pelo IFES (2015). Atualmente é professor efetivo do estado do
Espírito Santo, Brasil.
Educação na cidade: conceitos, reflexões e diálogos 355
356

Este livro foi composto com as famílias tipográficas


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