Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
org/confins/10551
25 | 2015 :
Número 25
O reerguimento da Rússia, os
EUA/OTAN e a crise da Ucrânia:
a Geopolítica da nova Ordem
Mundial
Le retour de la Russie, les États-Unis / OTAN et la crise en Ukraine: géopolitique du Nouvel Ordre Mondial
The new uplifting of Russia, the US / NATO and the crisis in Ukraine: the Geopolitics of the New World Order
W M C
Resumos
Português Français English
Este texto examina aspectos importantes do cenário internacional deste início do século 21 do
ponto de vista da geopolítica, com destaque para o processo em curso de reerguimento da
Rússia como Grande Potência. A abordagem articula conhecimentos da geografia regional,
geopolítica, história e teoria das relações internacionais e procura concentrar-se na análise de
aspectos relevantes da trajetória russa, desde o período czarista, passando pelo socialismo no
âmbito da URSS, o declínio após 1991, o reerguimento a partir de 2000 e a atual política e
estratégia de poder regional e mundial, na qual são destacadas suas rivalidades com os
EUA/OTAN e os conflitos com a Ucrânia. Além da análise desse percurso, procura
compreender o modo particular de atuação das grandes potências em sua incessante luta para
manter e ampliar parcelas do poder mundial, especialmente nas duas últimas décadas.
Enfatiza, ao mesmo tempo, o notável renascimento da perspectiva geopolítica e da sua
contribuição para desvendar a complexa trama de relações da política internacional no
contexto da atual transição de uma Ordem Mundial para outra, aqui preliminarmente
designada como tripolar.
Ce texte examine des aspects importants de la scène internationale en ce début de 21e siècle du
point de vue géopolitique, mettant en évidence le processus de retour de la Russie comme
grande puissance. L'approche combine la géographie régionale, la géopolitique, l'histoire et la
théorie des relations internationales et cherche à se concentrer sur l'analyse des aspects
pertinents de l'histoire russe, de la période tsariste, via le socialisme de l'URSS, la déclin
d'après 1991, le retour à partir de 2000 et la stratégie de pouvoir politique régional et mondial
actuelle, qui sont mis en évidence dans sa rivalité avec les États-Unis / OTAN et le conflit avec
l'Ukraine. En plus de l'analyse de ce parcours, il cherche à comprendre le mode d'action
1 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
particulier des grandes puissances dans leur lutte constante pour maintenir et agrandir des
aspects de leur puissance mondiale, surtout dans les deux dernières décennies. Il souligne
dans le même temps la renaissance remarquable du point de vue géopolitique et sa capacité à
démêler le réseau complexe des relations internationales de la politique dans le contexte de la
transition actuelle d'un ordre de monde à l'autre, préalablement désigné comme tripolaire.
This paper examines important aspects of the international scene in the early 21st century
from a geopolitical point of view, highlighting the process of return of Russia as a great power.
The approach combines regional geography, geopolitics, history and theory of international
relations and seeks to focus on the analysis of relevant aspects of Russian history, from the
Tsarist period, via the socialism of the USSR, the decline after 1991, the return from 2000 and
the current regional and global political power strategy, which is highlighted in its rivalry with
the US / NATO and the conflict with Ukraine. In addition to the analysis of this journey, it
seeks to understand the particular mode of action of the great powers in their constant struggle
to maintain and extend aspects of their world power, especially in the last two decades. He
points at the same time to the remarkable revival of ther geopolitical point of view and its
ability to untangle the complex web of international relations policy in the context of the
current transition from one world order to another, previously designated as tripolar.
Entradas no índice
Index de mots-clés : géopolitique, politique internationale, grande puissance, retour de la
Russie, crise de l'Ukraine, nouvel ordre mondial, conflits et guerres
Index by keywords : geopolitics, international politics, great power, Russia's new uplifting,
Ukraine crisis, new world order, Conflicts and War
Índice geográfico : Rússia, Ucrânia
Índice de palavras-chaves : geopolítica, política internacional, grande potência,
reerguimento da Rússia, crise da Ucrânia, nova ordem mundial, guerras e conflitos
Texto integral
Visualizar a imagem
Créditos : http://voyage.gentside.com
1 O renascimento da geopolítica clássica como inspiradora de estratégias nacionais,
rivalidades e conflitos envolvendo, sobretudo, as grandes potências com impactos em
praticamente todas as regiões e povos do mundo é um dos aspectos destacáveis da
transição em curso em direção a uma nova ordem nas relações internacionais.
2 A restauração da Rússia como grande potência com projeção regional e mundial e
os rumos dominantes da sua estratégia de poder e de influência na política
internacional, como o formidável reaparelhamento das forças armadas, a recente
reaproximação com a China, a calculada movimentação que visa contrastar a
hegemonia dos EUA/OTAN e a ousada e ostensiva intervenção política e militar na
atual crise da Ucrânia, são processos e eventos emblemáticos das aceleradas
mudanças do mundo deste início do século 21 e que nos inspiram a examiná-los
pondo em relevo as concepções da antiga e sempre renovada geopolítica.
3 Neles se expressam elementos e padrões de comportamento característicos das
antigas, emergentes ou restauradas grandes potências quando protagonistas de
disputas em torno dos seus valores e interesses nacionais assentados nos seus
respectivos territórios e áreas de domínio, controle ou influência. Expressam, ao
mesmo tempo, a complexidade das eras de transição de uma ordem mundial para
2 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
3 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
4 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
graves disputas fronteiriças nos anos 1960. Esse longo ciclo de relações envolveu
diversos tratados (o primeiro é de 1689) e na sua etapa atual, claramente tendendo à
convergência entre os dois países, consolidou-se com o acordo de demarcação de
fronteiras em 1991 que estabeleceu a partilha dos territórios em contenda e com o
Tratado de 2004 que estabeleceu as fronteiras comuns, a sua desmilitarização e os
direitos de circulação e comércio4.
15 Na sua estratégia na frente ocidental, a Rússia projeta manter ou retomar sua
presença combinando diplomacia, dissuasão e ação militar em suas antigas áreas de
influência, isto é, a Europa Oriental e o Báltico e, ao sul, o Cáucaso no qual utilizou a
força militar com a invasão da Geórgia em 2008 seguida da incorporação de facto
das suas províncias da Ossétia do Sul e Abkházia. Dentre esses movimentos recentes,
entretanto, o que melhor ilustra a determinação do país de seguir o caminho traçado
para retomar sua posição de grande potência - e o que mais tem despertado a atenção
da comunidade internacional - é a sua sistemática ingerência na política interna da
Ucrânia e nesse caso em explícita confrontação com o Ocidente, a cooptação e o
apoio militar aos insurgentes de ascendência russa das províncias orientais do país e,
finalmente, a integração (do seu ponto de vista) ou a anexação (do ponto de vista
ocidental) da Criméia, em março de 2014.
16 É preciso considerar, entretanto, que além da retomada da proeminência da
Rússia, o olhar sobre a geopolítica do século XXI deve deter-se no exame da rápida
ascensão da China à posição de grande potência, país que tem a segunda maior
economia e que é o líder das exportações do mundo e que nos últimos anos tem
intensificado seu ativismo diplomático na escala global. Além do mais, é notória sua
disposição para arranjos de cooperação comercial e econômica em geral e
preferencialmente no seu Entorno Regional, que têm se ampliado rapidamente com o
comércio, os investimentos diretos e a influência política em mais de uma dezena de
países da África e da América Latina nos últimos anos.
17 Na Ásia de Sudeste e na Ásia-Pacífico essa ofensiva tem assumido natureza mais
claramente político-estratégica ou geopolítica de tipo clássico, isto é, a face agressiva
de grande potência que recorre à dissuasão militar ou ao uso da força, se necessário,
na defesa do que considera seus legítimos interesses nacionais.
18 Essa modalidade de expressão de poder da grande potência é observável tanto nos
seus antigos contenciosos, como são os casos do Tibete (sua colônia de fato) e Taiwan
(país a que ainda denomina de “Província Rebelde”), como nas suas mais recentes
reivindicações territoriais no espaço marítimo, a exemplo das disputas que mantém
com o vizinho Japão em torno das Ilhas Senkaku5 e com o Vietnã, Filipinas, Malásia,
Taiwan e Brunei tendo como alvo o Arquipélago de Spratly no Mar da China
Meridional, no contexto da complexa definição das respectivas Zonas Econômicas
Exclusivas e os decorrentes direitos de exploração das comprovadas jazidas de
petróleo e gás da região.
19 Observando esse quadro ainda que em seus traços mais relevantes, tudo indica que
é do outro lado do mundo e no imenso Bloco Euroasiático que será disputada a
grande contenda genuinamente geopolítica de escala global nas próximas décadas.
Na frente oriental desse bloco, a China será capaz de romper o cerco (o “colar de
pérolas”) que expressa plenamente a vigência do poder marítimo que lhe é imposto
pelos EUA e seus aliados ocidentais e asiáticos? Na frente ocidental, a Rússia será
capaz, com suas antigas e renovadas reservas de poder, capaz de romper as linhas da
poderosa contenção que lhe é imposta pela ação coordenada dos Estados Unidos e
seus aliados europeus agrupados na OTAN?
20 O quadro na escala do mundo sugere, também, que nessa reconfiguração
geopolítica em curso o processo de maior expressão e com poder de influência nas
próximas décadas são os vigorosos movimentos de aproximação entre a Rússia e a
China, que tem se processado primeiro pela criação de um ambiente propício à
convivência pacífica para em seguida desdobrar-se em direção a uma aliança
5 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
6 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
http://www.maquetland.com/v2/images_articles2/images/5_1689_1900.gif
7 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
expansão territorial nos séculos dezoito e dezenove fazendo uso do que Alfred Mahan
denominaria mais tarde de Poder Marítimo, estendendo seus domínios na África,
Ásia e na América, a Rússia o fez a partir de experiência baseada essencialmente no
Poder Continental ou Terrestre, na acepção de Halford Mackinder.
31 O terceiro aspecto destacável no processo de consolidação desse imenso império
decorre justamente da sua particular posição nessa enorme massa terrestre entre a
Europa e a Ásia. Até meados do século XVIII, quando seus governantes ainda
definiam como principal horizonte estratégico a expansão e consolidação dos seus
domínios sobre os territórios europeus, a Rússia assemelhava-se nos seus traços
gerais às demais experiências históricas do período no continente, inclusive porque
nessa trajetória teve que enfrentar a resistência de outras potências que com ela
disputavam as mesmas áreas de influência12.
32 Desde então, o percurso histórico do país tendeu a expressar essa sua natureza
transicional e ambivalente que o induz a adotar uma recorrente estratégia
tipicamente pendular nos processos de expansão imperial. Em sua faceta ocidental,
o país assumia plenamente sua condição de potência europeia, quando fixava seu
olhar na direção do Ocidente e dele incorporava não só a cultura, o modo de vida e
até os sistemas burocráticos de gestão pública, como também os projetos de
hegemonia – ou coloniais - no continente e fora dele13.
33 Esse processo de europeização que iniciara no século XVI com Ivan, o Terrível,
teve notável impulso sob o comando de Pedro, o Grande, no século seguinte, e de
Catarina, a Grande, a partir do início do século XVIII. Essa trajetória em direção ao
Oeste deu-se, sobretudo, durante o reinado de Pedro I, autoproclamado Czar (em
alusão aos imperadores romanos) e que foi de fato o criador do que seria conhecido
como o Império Czarista russo. Primeiro, com a criação de São Petersburgo no Golfo
da Finlândia, para a qual é transferida a Capital do país, viabilizando assim sua
estratégia de criar uma “porta para a Europa” pela qual pudesse intensificar suas
interações com seus vizinhos ocidentais. Segundo, com as guerras de expansão e as
vitórias sobre o Império Turco-Otomano e a Suécia e as anexações da Lituânia,
Estônia e Letônia no Báltico. Conquistas significativas que moldaram a Rússia
Moderna e a definiram como império europeu de fato.
34 Essa tendência tem continuidade durante o reinado de Catarina II, que além da
conquista da Criméia e a consolidação dos territórios do Báltico e do Cáucaso,
mantém o ímpeto colonizador de Pedro I com a extensão dos seus domínios para a
Sibéria e o Ártico e para além dos Urais em direção à Ásia Central e o Extremo
Oriente. Nesse percurso, e comportando-se neste aspecto específico à semelhança
dos impérios coloniais da França e da Inglaterra e, em certa medida, da Prússia, o
Império Russo atribuiu-se papel “civilizador” no processo de incorporação seguido de
abrangente política de russificação dos territórios e dos “povos bárbaros” da Ásia (os
“não europeus”), definindo-os de fato como os seus “territórios coloniais”14.
35 Por outro lado, a faceta oriental da sua natureza ambivalente impulsionou-o na
direção dos territórios meridionais tendo como rumo, primeiro, o Grande Cáucaso,
onde contrastará ali o tradicional domínio do Império Turco-Otomano e, em seguida,
o leste e o norte com o Volga-Urais, a Sibéria e o Ártico. Em seu avanço em direção à
Ásia Central e Meridional e mais especificamente quando atinge o Afeganistão,
confronta ali o domínio e a influência do Império Britânico nas fronteiras ocidentais
dos territórios da Índia colonial que então incluíam o atual Paquistão. Na progressão
rumo ao Leste, alcança o Extremo-Oriente e o Pacífico, definindo assim os confins do
seu ecúmeno político-territorial e consolidando formidável expansão territorial
simbolizada pela instalação da cidade litorânea de Vladivostok em 1860, centro
portuário comercial e base da sua frota naval do Pacífico. Finalmente, na passagem
do Século XIX para o XX, confrontar-se-á nessa região com o Japão - a potência
marítima emergente da Ásia do Pacífico - com o qual entrará em guerra em 1905 na
disputa pelas ilhas Sakalina e da qual sairá derrotado e perderá não apenas o
8 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
9 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
industrial do país durante a Segunda Guerra), mas também distribuídos pela Sibéria
Oriental, Cazaquistão e Azerbaijão.
41 Durante os anos 1930 Moscou também prioriza o povoamento do Extremo-
Oriente, isto é, a Sibéria Oriental e as regiões do rio Amour e da borda do Pacífico,
cuja imensidão contrastava com o fraco povoamento e o baixo nível de
desenvolvimento. Até o início dos anos 1940 essas regiões receberam um contingente
com cerca de dois milhões de imigrantes livres atraídos pelos programas de atração
do governo (salários diferenciados e benefícios), 500.000 militares e cerca de
300.000 prisioneiros16.
42 Esse esforço modernizante foi crucial para enfrentar e derrotar a invasão alemã na
Segunda Guerra, ainda que essa vitória tenha sido obtida à custa de estimados 20
milhões de mortos, entre civis e militares, a quase destruição da agricultura e de
muitas das suas cidades e de pesados danos à sua infraestrutura em geral. A heroica
resistência e a contraofensiva das forças armadas soviéticas à invasão nazista a partir
de meados de 1944 e a sua entrada triunfal em Berlim em maio de 1945, inaugura um
novo ciclo de consolidação e expansão do poder do país. Daí porque antes mesmo do
final da guerra, na Conferência de Yalta (fevereiro de 1945), Stalin explicitou
enfaticamente suas exigências nas partilhas da Europa centro-oriental e do Báltico.
43 Cristalizada a derrota alemã, a partilha entre os vencedores foi formalizada na
Conferência de Potsdam (julho de 1945), pela qual ficou acordado que ficaria na
órbita da U.R.S.S. o domínio (ou a influência direta) de praticamente todos os países
da Europa de Leste – desde a porção oriental da Alemanha - e dos Bálcãs, nos quais
incentivou e apoiou a implantação de estados socialistas alinhados com Moscou.
Ademais, estendeu na região sua abrangente rede de controle especificamente militar
através do Pacto de Varsóvia.
44 Enfim, no alvorecer dos anos 1960 o país já mostrava (e propagandeava) ao mundo
os sinais eloquentes da sua ascensão à posição de superpotência econômica e militar.
Conquistara terreno em setores estratégicos, tais como a implantação de sistema
universalizado de educação de base e universitário e centros de pesquisas avançadas,
a estruturação de um parque industrial de ponta (em especial o complexo
tecnológico-militar), o domínio de tecnologias sofisticadas como a aeroespacial e a
nuclear, pesados investimentos na capacitação das forças armadas para que tivessem
condições operacionais de atuação em todo o mundo e, sobretudo, tornou-se capaz
de assegurar o desenvolvimento, a produção e a posse de imenso arsenal de armas
nucleares com seu indiscutível poder de dissuasão.
45 Sob todos os pontos de vista, portanto, uma potência mundial com capacidade
suficiente para contrastar o poder dos EUA e de consolidar uma nova ordem mundial
então marcada pela bipolaridade e o permanente clima de tensões e de riscos
associados à Guerra Fria.
46 Ressalte-se, entretanto, que as tensões e riscos de escala mundial alimentados por
essa acelerada trajetória soviética à posição de superpotência não se limitaram, no
período, ao seu antagonismo com os EUA, seu principal rival como é notório. No
final dos anos sessenta também se acentuaram suas rivalidades com a China, a outra
grande potência socialista em ascensão e sua vizinha asiática com a qual compartilha
mais de 4.000 km de fronteiras.
47 Como visto, na sua expansão em direção ao Pacífico na segunda metade do século
XIX, a Rússia afetara interesses e reivindicações do Japão e da China nesses
territórios do Extremo-Oriente e a URSS atuou fortemente na sua ocupação civil e
militar após os anos 1930. No contencioso sino-soviético em tela, a área-pivô das
disputas abrange o sudeste da região do Rio Amour, próxima a Vladivostok (a base
da frota naval soviética do Pacífico) e da tríplice fronteira China-URSS-Coréia do
Norte.
48 Fracassadas as tentativas de saída diplomática para o conflito, as duas grandes
potências decidem utilizar a força militar e deslocam para as regiões fronteiriças
10 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
comuns suas respectivas tropas (por volta de 800.00 combatentes russos e 600.000
chineses) e no auge das tensões, em 1969, chegaram a enfrentar-se por diversas
ocasiões envolvendo baixas de cada lado. É certo, entretanto, que não se trataram ali
de combates abertos ou generalizados envolvendo o grosso das tropas, inclusive
porque ambas as partes sabiam que um agravamento radical nessas circunstâncias
poderia, no limite, desembocar na tragédia da guerra total e do confronto nuclear. O
nível das tensões só foi reduzido após o encontro dos chanceleres dos dois países em
Pequim, ainda que as divergências perdurassem até 1991 (ano da derrocada
soviética), com a assinatura do tratado bilateral sobre as fronteiras.
49 Henry Kissinger, Secretário de Estado norte-americano e artífice (ao lado de Chu
En Lai, seu contraparte chinês) da surpreendente reaproximação dos EUA com a
China celebrada no acordo diplomático de 1972, em seu livro sobre o tema17,
considera que o agravamento desse quadro de disputas e tensões sino-soviéticas foi
fator decisivo para impulsionar os dirigentes chineses na direção desse acordo com a
superpotência ocidental, o arquirrival da União Soviética.
50 Em suma, são eventos relevantes porque estão imbricados no complexo processo
de conformação do quadro histórico e geopolítico de grande significado para o
mundo contemporâneo (as raízes da Ordem Tripolar a que aludimos no início?) e
que se expressou em escalas e desdobramentos diversos que vão desde disputas e
escaramuças fronteiriças até o antagonismo visceral e o realinhamento entre grandes
potências até então rivais. Também relevantes, porque neles as três grandes
potências movimentaram-se sempre tendo em vista a conquista de vantagens
estratégicas de longo curso, isto é, seus respectivos projetos de futuro no mundo.
11 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
perde desse modo o controle e a influência não apenas nos países das suas regiões
circunvizinhas (as ex-Repúblicas Socialistas tornam-se independentes), bem como de
toda a Europa Centro-Oriental e dos Balcãs, processo no qual foi emblemática a
absorção da Alemanha Oriental pela Alemanha Federal.
54 A década que se seguiu ao colapso foi de difícil transição e marcada por profunda
crise da economia que além dos problemas estruturais apontados, também foi
impactada pelo encolhimento do país que envolveu os processos de independência de
13 repúblicas e respectivos territórios que somavam cerca de cinco milhões de Km².
Os impactos econômicos foram amplos e variados e abrangeram, por exemplo, as
ricas jazidas minerais e petrolíferas do Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão e as
extensas e férteis terras agrícolas da Ucrânia. Seu status quo político-estratégico
também foi duramente afetado, pois seu sistema de Segurança & Defesa foi mutilado,
já que diversos dos seus dispositivos militares (incluindo arsenais nucleares e bases
de lançamento de mísseis) restaram espalhados nos territórios das novas repúblicas
independentes, com as quais teve de encetar negociações, caso a caso19.
55 A criação da CEI – Comunidade de Estados Independentes no final de 1991,
integrada pela maioria dos países formadores da ex-URSS (as três repúblicas bálticas
não aceitaram participar), foi uma tentativa de Moscou de minorar os impactos
econômicos e preservar parte da influência política perdida no seu antigo espaço de
domínio. Mas naquele contexto de atabalhoada transição seu fôlego era curto, e a
força dos movimentos centrífugos estimulados pelos seus rivais ocidentais nas jovens
nações no oeste e no leste das suas fronteiras minou drasticamente a eficácia dessa
organização.
56 Foi uma conjuntura de crônica turbulência política, essencialmente porque se
tratava de implantar um sistema de governo assentado em pressupostos jurídicos e
políticos e institucionais radicalmente distintos do anterior. Em outros termos, o
desafio de transitar de um regime centralizador e autoritário para um liberal-
democrático e que fosse capaz, ao mesmo tempo, de impulsionar a mudança do
antigo sistema socialista para uma economia de mercado, isto é, capitalista. Após
dois séculos e meio, estava em curso mais uma tentativa de ocidentalização ou
europeização da velha Rússia que impactaria não apenas o universo da cultura e da
burocracia como ocorreu durante sua afirmação como potência imperial, mas agora
em um sentido mais abrangente e profundo, isto é, ideológico e político.
57 A reviravolta na configuração geopolítica do poder mundial decorrente do colapso
do Pacto de Varsóvia e do drástico encolhimento da influência russa teve como
contrapartida principal o fortalecimento estratégico-militar dos EUA e seus aliados
ocidentais que se consubstanciou no revigoramento da OTAN, cuja estratégia
principal passou a ser o alargamento do seu espaço de atuação direta e indireta até as
últimas fronteiras dos antigos territórios da ex-União Soviética. E essa expansão
ocidental sobre as regiões e países lindeiras da Rússia não se restringiu ao campo
especificamente estratégico-militar, como é sabido.
58 Com sua institucionalização em 1994, a União Europeia inicia vigoroso processo de
expansão no Continente, passando de 15 Estados-membros em 1990 para 25 em
2004 (total de 28 em 2013), durante o qual integrou praticamente todos os antigos
países socialistas do Leste Europeu, com destaque para as três repúblicas do Báltico
(Lituânia, Letônia e Estônia) que faziam parte da URSS. Além disso, a expansão do
seu raio de ação ainda se faz mediante acordos e bilaterais com os países da região,
como os Tratados de Livre-Comércio celebrados com a Ucrânia, a Geórgia e a
Moldávia em meados de 2014, ou o ultrassensível pacote de ajuda financeira à
Ucrânia no início da sua turbulenta crise com a Rússia.
59 Da sua parte, a OTAN deu curso à sua estratégia de alargamento a partir de 1999
no qual também incorporou a maior parte dos países do Leste Europeu e, portanto,
da órbita do antigo Pacto de Varsóvia20. Sob esse aspecto, os casos que melhor
ilustram o grave e potencial quadro de fricções que se estabeleceria nas relações dos
12 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
13 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
14 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
15 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
16 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
17 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
18 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
Considerações finais
89 A política internacional tem sido examinada atualmente pelas perspectivas de uma
miríade de antigas, novas e novíssimas disciplinas, abordagens e mesmo pontos de
vista, disponíveis em inumeráveis publicações acadêmicas de especialistas e da mídia
em geral. A geopolítica é um dos mais antigos desses campos de estudos e
claramente, no caso brasileiro, ela não é atualmente uma área de pesquisa que
desperta grande interesse da comunidade que se dedica a esses temas, sobretudo, no
que diz respeito ao meio acadêmico institucionalizado, tendência observável
especialmente na geografia, o berço da geografia política e da geopolítica.
90 Daí nossa firme disposição de retomar no presente estudo o esforço que se faz
19 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
Bibliografia
Alexander, J., The Petrine Era and After, in Freize, G.L. (ed.), Russia, a History, Oxford
University Press, N. York, 1997.
Banuazizi, A. e Weiner, M., (ed.), The New Geopolitics of Central Asia and its Borderlands.
Indiana University Press, Indianapolis, 1994.
Bassin, M., Geographies of Imperial Identity, in Lieven, D. (ed.), The Cambridge History of
Russia, Vol. II (Imperial Russia, 1689-1917), Cambridge university Press, N. York, 2006.
Bin, Y., China-Russia Relations: “Western Civil War Déjà-Vu?”, in Comparative Connections,
A Triannual E-Journal on East Asian Bilateral Relations, May, 2014.
Cohen, S. B., Geopolitics of the World System. Roman & Littlefield Publishers, Boston, 2003.
Costa, W. M., Geografia Política e Geopolítica: discursos sobre o território e o poder. Hucitec-
Edusp, São Paulo, 1994.
Costa, W. M., Projeção do Brasil no Atlântico Sul: geopolítica e estratégia, in Revista Confins,
Nº 22, 2014.
DOI : 10.4000/confins.9839
Dugin, A., A Geopolítica da Rússia Contemporânea, Versila, São Paulo, 2014, p. 3.
Filler, A., l’Identité Nationale Russe : anatomie d’une représentation, in Revue Hérodote,
(Dossier “Russie”), nº 138, 3º Trimestre, 2010.
Foucher, M., Obsessão Por Fronteiras. Radical Livros, São Paulo, 2009.
Fukuyama, F., The End of History and the Last Man. Free Press, New York, 1992.
George, P., Geografia da U.R.S.S., Difel, São Paulo, 1970.
Itoh, S., Russia Looks East: Energy Markets and Geopolitics in Northeast Asia. CSIS - Center
of Strategic and International Studies, Washington, 2011.
Kissinger, H., Sobre a China, Objetiva, São Paulo, 2011
Kolmann, N. S., Muscovite Russia: 1450-1598, in Freize, G. L. (ed.), Russia, a History, Oxford
University Press, N. York, 1997.
Kolossov, V., Les Représentations de l’Eurasie en Russie, in Foucher, M. (Directeur), Asies
Nouvelles, Belin, Paris, 2002.
Martin, J., From Kiev to Moscow: the beginnings to 1450, in Freize, G. L. (ed.), Russia, a
History, Oxford University Press, N. York, 1997.
Mukaiyama, Y., Deciphering China’s Assertiveness in Cross-Border Incidents: Lessons for the
Japanese Police. CSIS (Japan Chair Platform), September, 10-2012.
Rosenau, J., Governance without Government: Order and Change in World Politics.
(Cambridge Studies in International Relations), Paperback, New York, 1992.
Shvedov, V. e Gras, C., Extrême-Orient russe, une incessante (re)conquête économique, in,
Revue Hérodote, (Dossier “Russie”), nº 138, 3º trimestre, 2010.
SIPRI – Stockholm International Peace Research Institute. Annual Report, 2014.
20 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
Notas
1 Fukuyama, F., The End of History and the Last Man, Free Press, New York, 1992 e Rosenau,
J., Governance without Government: Order and Change in World Politics (Cambridge Studies
in International Relations), Paperback, New York, 1992.
2 Um exame exaustivo do que aqui é denominado de geopolítica clássica ou tradicional,
encontra-se em Costa, W. M., Geografia Política e Geopolítica: discursos sobre o território e o
poder, Hucitec-Edusp, São Paulo, 1992.
3 As diversas intersecções da Geografia Política com as principais escolas de pensamento da
Teoria das Relações Internacionais e, especialmente, com as obras mais destacadas dos pais
fundadores do realismo político são abordadas por Costa, W. M., Território e Política em
Tempos de Mudanças Globais, Tese de Livre-Docência, FFLCH-USP, São Paulo, 2005.
4 Esse notável movimento de aproximação entre os dois gigantes da Ásia após o início dos
anos 1990 é destacado por Foucher, M., Obsessão Por Fronteiras, Radical Livros, São Paulo,
2009. Uma das consequências dessas novas relações de cooperação entre a Rússia e a China é
a abertura das fronteiras nessas regiões comuns do Extremo-Oriente russo, incluindo a livre
circulação de mercadorias e pessoas e a criação de distritos especiais de comércio e de
produção industrial conjunta. Matérias da mídia de Moscou tem mencionado que devido ao
acelerado crescimento da economia do país vizinho nos últimos anos, estaria ocorrendo uma
“invasão chinesa” envolvendo levas de imigrantes e de mercadorias na região. Cf. Shvedov, V. e
Gras, C., Extrême-Orient russe, une incessante (re)conquête économique, in Doissier “Russie”,
Revue Hérodote Nº 138, 3º trimestre, 2010.
5 A disputa por essas ilhas ocorre no contexto da retomada de antigas e profundas rivalidades
entre as duas potências asiáticas que remontam às invasões japonesas nos anos trinta e na
Segunda Guerra. O recrudescimento dessas rivalidades tem justificado movimentos recentes
de fortalecimento da aliança entre os EUA e o Japão (novo Tratado de Cooperação Militar foi
firmado neste ano) e um expressivo programa de investimentos na ampliação e modernização
do seu arsenal de guerra, tendo como focos a força naval e a aviação de caça. Ver a respeito
Mukaiyama, Y., Deciphering China’s Assertiveness in Cross-Border Incidents: Lessons for the
Japanese Police, CSIS (Japan Chair Platform), September, 10-2012.
6 Essa política de fortalecimento dos laços do país com a China e de ampliação da sua ação
diplomática com a Ásia e países emergentes de outros continentes também inspirou a criação
dos BRICS, em 2009, envolvendo, além dos dois países, a Índia e o Brasil e (a partir de 2011) a
África do Sul. Na reunião de cúpula de 2014, no Brasil, os cinco países decidiram criar um
organismo financeiro multilateral – o Novo Banco de Desenvolvimento – voltado para
investimentos em projetos de interesse nacional de países em desenvolvimento.
7 Esse atual estágio de relacionamento entre os dois países também se expressa no plano
simbólico, como nas recentes demonstrações públicas dos seus dois dirigentes nos Jogos
Olímpicos de Inverno de Sochi na Rússia, ou no inusitado evento após os Jogos, quando as
marinhas dos dois países promoveram a primeira manobra naval conjunta e justamente em
águas do Mediterrâneo. Sobre esse novo clima de relações, ver Bin, Y., China-Russia Relations:
“Western Civil War” Dèja-Vu?”, in Comparative Connections, A Triannual E-Journal on East
Asian Bilateral Relations, May, 2014.
8 Além do novo Tratado de Cooperação Militar com o Japão, assinado em de 2014, os EUA
também renovaram recentemente suas alianças militares com Austrália, Singapura e Filipinas.
9 Dugin, Aleksandr. A Geopolítica da Rússia Contemporânea, Versila, São Paulo, 2014, p. 3
10 Martin, J., From Kiev to Moscow: the beginnings to 1450, in Freize, G. L. (ed.), Russia, a
History, Oxford University Press, N. York, 1997
11 Essa expansão em direção ao Oeste ocorreu ao longo dos séculos XVIII e XIX e foi o
resultado de vitórias nas guerras travadas com a Suécia e a Polônia. Em 1721 formaliza as
anexações da Estônia e da Lituânia e em 1809 da Finlândia. Cf. Cohen, S. B., Geopolitics of the
World System, Roman & Littlefield Publishers, Boston, 2003
12 Entre o final do século XV e o final do século XVI a Rússia esteve envolvida em mais da
metade desse período em conflitos armados no Front Ocidental (ou europeu), nos quais teve
que enfrentar a resistência a esses avanços por parte da Suécia, da Polônia e da atual Lituânia.
Cf. Kolmann, N. S., Muscovite Russia: 1450-1598, in Freize, G. L. (ed), op. cit.
13 Cf. Alexander, J., The Petrine Era and After, in Freize, G.L. (ed.), op. cit.
14 Cf. Bassin, M., Geographies of Imperial Identity, in Lieven, D. (ed.), The Cambridge History
of Russia, Vol II (Imperial Russia, 1689-1917), Cambridge university Press, N. York, 2006.
15 Cf. George, P., Geografia da U.R.S.S., Difel, São Paulo, 1970
16 Cf. Shvedov, V. e Gras, C., Extrême-Orient russe, une incessante (re)conquête économique,
op. Cit.
21 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
22 de 23 20/09/2019 16:59
O reerguimento da Rússia, os EUA/OTAN e a crise da Ucrânia: a Geop... https://journals.openedition.org/confins/10551
Autor
Wanderley Messias da Costa
Professor Titular do Departamento de Geografia da USP e especialista em Geografia Política
e Relações Internacionais, wander@usp.br
Direitos de autor
Confins – Revue franco-brésilienne de géographie est mis à disposition selon les termes de la
licence Creative Commons Attribution - Pas d’Utilisation Commerciale - Partage dans les
Mêmes Conditions 4.0 International.
23 de 23 20/09/2019 16:59