Rio de Janeiro
Agosto de 2001
AGRADECIMENTOS
Aos amigos José Luiz Castro, Sergio Chamorro e Evangelina Manzur, com quem
desfrutei algumas horas de descanso ao longo deste trabalho.
ÍNDICE
Introdução.........................................................................................................................................6
Bibliografía...................................................................................................................................187
Anexos..........................................................................................................................................195
I. O pragmatismo e a Escola de Chicago.......................................................................195
II. Norbert Elías e John Dewey: uma pequena aproximação.........................................212
Introdução
idéia de que um modelo de cultura, uma paidéia, pode funcionar deliberadamente como
princípio formativo de uma sociedade. Tendo os gregos da era clássica formado uma
sociedade plena de artistas e pensadores, a mais importante obra de arte que eles se
propuseram criar parece ter sido o próprio ser humano. Tal como um escultor que corta
a pedra ou o oleiro que modela a argila, para lhes dar as formas almejadas, a ação
pedagógica começou ali a ser vista como um processo pelo qual se configura o
educação era uma espécie de laboratório onde as idéias são postas à prova, tornando
efetivos os valores a elas associados. É desta perspectiva que interpreto a sua afirmação
Como todo ato de pensar, a filosofia se dá por tentativa; não é um mero registro
de fatos ou idéias, mas a sua visão em perspectiva. Assim, se a filosofia for definida
em que as idéias se efetivam, tornando-se hábitos e ações. Isto parece supor que a
filosofia da educação seria então esse pensar sobre a própria prática (da educação),
entendida esta como processo pelo qual são desenvolvidas nos seres humanos
disposições intelectuais, morais, emocionais, estéticas e físicas que os constituem como
gerações adultas sobre as gerações que se preparam para a vida social; ações estas que
sociedade como um todo e pelo meio específico no qual estão inseridos os educandos
que vai além do treino das faculdades mentais e/ou da transmissão de conteúdos. Neste
sentido, tanto Durkheim quanto John Dewey abriram espaços para o desenvolvimento
da sociologia como uma das ciências da educação. Antônio Cândido (1985), no texto
“filosofia sociológica dos fatos educacionais” que elabora uma “reflexão sobre o caráter
social dos processos educativos”. Cândido (1985) indica que é possível reconhecer aí o
ponto de partida da sociologia educacional, mas critica a importância conferida por esta
vertente aos aspectos mais gerais da educação, o que não favoreceria o aparecimento de
uma “sociologia especial dos fatos educacionais”, conduzindo a um ponto de vista que
parece não ter anulado a necessidade de se tentar compreender como esse processo se
1
Esta expressão é utilizada por Norbert Elias (1994) em A sociedade dos indivíduos, de 1939.
como a sociologia, a psicologia e a antropologia, a relação entre indivíduo e sociedade
básico das ciências humanas, tendo já sido discutido de distintas formas. Elias (1995),
em Was ist Soziologie? [1970], e, mais recente, Corcuff (1998), em Les nouvelles
primórdios. Durkheim foi muito enfático ao definir a sociologia como uma ciência que
deveria estudar a sociedade, através da análise dos fatos sociais, deixando para a
indivíduo e sociedade aparece como uma das questões centrais. Este tema foi algo que
me chamou a atenção desde que comecei a conhecer a tradição pragmatista através dos
trabalhos do educador brasileiro Anísio Teixeira (1900-1971), que estudara com Dewey
1904 ele ali trabalhou e desenvolveu, junto com George Herbert Mead, Ella Flagg
Young, James Hydden Tufts, James Rowland Angell e outros, algumas experiências
pedagógicas que combinavam antigas questões filosóficas com a visão de saberes, como
autônomas. Considero que foi neste período de sua carreira e a partir dessas
O objetivo inicial desta pesquisa, que agora apresento em forma de livro, era
tendo como base de análise a obra de John Dewey. O trabalho foi realizado basicamente
trabalhos de Dewey e de outros autores (Mills, Joas, Elias, Bourdieu, etc.) que discutem
Com este trabalho, tenta-se manter viva a discussão de uma questão geral - a
americano. Isto quiçá também nos ajude a compreender um pouco mais o próprio
campo da educação no Brasil e a ação de certos agentes que nele trabalharam, como
como aparece na obra de John Dewey, sugere aproximações com certas reflexões
Durkheim (1978), Joas (1993), Mills (1968) Elias (1994), e Bourdieu (1996), por
2
Anísio Teixeira tem sido para meus estudos no campo educação o principal ponto de referência. Foi a
partir de uma pesquisa sobre a identidade do campo educacional brasileiro nas décadas de 50 e 60,
época em que Teixeira teve atuação marcante à frente do INEP e da CAPES, que articulei as hipóteses
gerais da dissertação de mestrado (Anísio Teixeira: Ciência, Progresso e Educação. PUC-Rio,
Departamento de Educação, 1995). Esta tese de doutorado pode ser lida como mais um desdobramento
daquela pesquisa, cujos resultados foram publicados no livro Por que não lemos Anísio Teixeira?,
organizado por Zaia Brandão e Ana Waleska P. C. Mendonça (1997).
exemplo, e o diálogo com a orientadora de minha tese de doutorado (Zaia Brandão)
geraram um contexto teórico a partir do qual fui elaborando as questões que perpassam
Ainda que esses autores acima referidos não partam de uma mesma matriz de
pensamento, pelo menos uma questão torna possível a referida aproximação com o tema
interpretam o mundo. Desde Aristóteles até os dias atuais, passando por Kant e
várias para essa questão. Relacionar indivíduo e sociedade tendo como foco de análise a
educação parece sugerir uma abordagem cognitiva. Esta é uma questão presente nesse
trabalho, tendo em vista que Dewey também elaborou sua filosofia em diálogo com
com as ciências sociais foi indicada por Durkheim em um curso ministrado pelo
sociólogo francês entre 1913 e 19143. Também o sociólogo alemão Hans Joas (1993),
Chicago.4 Assim, além do fato de serem produtos de uma mesma época, como bem
sobre uma base histórica (Joas, 1993:57). Neste sentido, tanto Dewey, Mead e os
3
Este curso foi transcrito por seus alunos e posteriormente publicado em 1955 com o título
Pragmatisme et Sociologie. Na edição portuguesa aparece com o título de Sociologia, Pragmatismo e
Filosofia (s/d).
4
Apresento nos Anexos um texto que contém alguns esclarecimentos sobre as relações entre o
pragmatismo e a tradição sociológica que se desenvolveu em Chicago no início do século XX.
sociólogos de Chicago (Thomas, Park, etc.), quanto Durkheim, Elias e Bourdieu foram
e são importantes porque suas obras nos ajudam a entender a questão das categorias
de como essas condições emergem na mente dos indivíduos que vivem em sociedade
(Joas, 1993). Penso não ter sido obra do acaso que a educação tenha sido tomada como
sociólogos. Neste sentido, não parece inconsistente colocar a noção de hábito (habit)
processos sociais como a educação exige das ciências que os investigam ferramentas
que dêem conta de sua complexidade e ambigüidade. Assim, obras de autores como
Dewey, Mead, Elias e Bourdieu, com seus respectivos conceitos de hábito, me, rede e
Natureza e sociedade
grandes ramos da ciência. A força do positivismo fez com que na França as ciências
naturais se colocassem de uma forma geral como modelo para todos os outros saberes,
tendo como paradigma a Física. Na Alemanha, o que se mostrou foi uma distinção mais
“ciências do espírito” foram colocados por Dilthey, tendo como disciplina central a
história. 5
5
Herbert Mead, companheiro de John Dewey na Universidade de Chicago, passou dois anos (1889-91)
estudando na Universidade de Berlim e tendo Dilthey como seu supervisor de tese.
Em 1879, Wilhelm Wundt fundou em Leipzig (Alemanha) um laboratório para
processos sensoriais básicos, Wundt considerava que a psicologia era apenas em parte
“àqueles produtos mentais que são criados por uma comunidade humana e são, por
pressupõem uma ação recíproca” (Wundt apud Farr, 1998:47). Exemplos desses
sentido, alguns trabalhos de Wundt e questões postas por sua extensa obra tornaram-se
dos cientistas que absorveram algo da obra de Wundt ou estudaram diretamente com ele
em Leipzig.
mais apropriado para as ciências humanas e sociais também chegaram aos Estados
Unidos, principalmente através dos milhares de americanos que no século XIX foram
sociais. Estes, ao menos na tradição anglo-americana, não tiveram uma visão clara da
que ela também fosse uma Geistwissenschaft (Farr, 1998:58). Assim, foi o enfoque
partir dos trabalhos de John Dewey e Herbert Mead o que se configura é uma “teoria
6
Alguns anos antes, em 1875, William James organizara em Harvard (USA) um laboratório de
psicologia.
social da mente”, principal resultado de uma psicologia social que se voltou
Dewey e o pragmatismo
filosófica que se originou nos Estados Unidos no final do século XIX, e que se
desenvolveu tendo como autores principais Charles Sander Peirce (1839-1914), Wlliam
James (1842-1910) e John Dewey. Trabalhando em áreas de estudo próximas, ainda que
senão uma visão de mundo. 7 Richard Rorty (1931-) e Stanley Cavell (1926-) são os
como neopragmatismo.
O termo pragmatism foi utilizado inicialmente, por volta de 1870, por Peirce, e
teve o seu significado rapidamente ampliado e modificado até chegar a caracterizar uma
filosofia social, que foi elaborada principalmente por John Dewey, George Herbert
da qual fazem parte Dewey e Mead contribuiu muito para “articular uma ética social e
Kant. 8 Conforme a leitura que fez Peirce, Kant (1724-1804) utilizara aquela palavra
para designar um tipo de crença que, embora contingente, fornece condições para a
7
Durkheim foi muito irônico ao tentar encontrar uma definição para o pragmatismo. Citando René
Berthelot, ele diz o seguinte: “O pragmatismo é como a nuvem que Hamlet mostra a Polônio, por uma
das janelas do castelo de Elsenor, nuvem esta que ora se parecia com um camelo, ora com uma
doninha, ora com uma baleia” (Durkheim, s/d, p.21).
8
Marcondes (2000) esclarece que “o termo “pragmática” é derivado do grego pragma, significando
coisa, objeto, principalmente no sentido de algo feito ou produzido, sendo que o verbo praxein,
significa precisamente agir, fazer” (p.38). Em termos de corrente de pensamento, podemos distinguir a
pragmática, enquanto um campo de estudos da linguagem, do pragmatismo, a corrente filosófica que se
originou no século XIX e se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos.
seleção de meios adequados à execução de certas ações (Levine, 1997). Como veremos
determinada e se refere a algo; ela faz com que nos esforcemos para chegar a um estado
hábito. O sentido da crença reside, portanto, no sentido do hábito que essa mesma idéia
diferentes modos de ação a que dão lugar (Sini, 1999:26). Peirce estabeleceu então uma
nova teoria do significado, segundo a qual a idéia de algo é a idéia de seus efeitos
sensíveis. Assim, “o significado passou a ser relacionado aos efeitos práticos que podem
mesmas. Contudo, no que diz respeito à ciência, isto não significa inviabilizá-la, posto
que uma teoria pode ser considerada como um “modelo explicativo” ou um conjunto de
James. Dewey compartilha com este autor a orientação prática para o conhecimento,
que contrasta com a maior ênfase dada por Peirce à teoria, e o resgate do elemento
de Chicago entre 1894 e 193110 representou, de uma forma geral, uma importante
transformação no clássico dualismo que põe o mundo como uma realidade externa e a
9
Para uma discussão sobre a oposição dentro do pragmatismo entre nominalismo e realismo, ver o
estudo de Lewis e Smith (1980), American Sociology and Pragmatism.
10
Estas datas se referem à formação e dissolução de um grupo de professores de filosofia, psicologia, e
educação pioneiros naquela universidade (Tufts, Dewey, Mead, Angel e outros). Já em 1904 John
Dewey foi lecionar na Universidade Columbia (Nova York), de onde não mais retornaria. Os outros
continuaram trabalhando em Chicago, mas por motivos vários (transferência, falecimento, etc.) o grupo
foi sendo desfeito. A data limite (1931) é uma indicação de Rucker (1969:26), em seu estudo The
Chicago Pragmatists, e provavelmente se refere à saída de Herbert Mead.
mente como algo completamente distinto, uma realidade interna. Mente, pensamento e
organismo e mundo. É como nos explica Joas (1993), ao afirmar que Dewey e Mead
Rucker (1969) assinala que para os pragmatistas de Chicago o processo que faz
surgir o ser humano é justamente a atividade social; daí a idéia de sujeito como agente
social:
ao mesmo tempo àquilo que é biológico e psicológico. É a atividade que nos leva a
progressivamente.
considerava que o pensamento emergiu da interação dos seres vivos com o mundo. Ao
invés de tomar o pensamento como um elemento próprio para a contemplação, ele o via
que falta, modificar a realidade. Neste sentido, o conhecimento é algo sempre vinculado
como “verdadeiro” e “certo” não em relação a coisas como a “vontade de Deus”, a “Lei
11
O pensamento desse grupo de Chicago pode ser relacionado com o desenvolvimento da psicologia
nos Estados Unidos, justo na época em que esta começava a se distinguir da filosofia, deixando de ser
um saber apenas especulativo e incorporando o aspecto experimental.
solução de um dado problema. O educador brasileiro Anísio Teixeira, em um
comentário sobre a filosofia de Dewey, indicou que este rejeitava a obsessão dos
aberta pela obra de Darwin. O naturalista inglês afirmara que as estruturas da vida não
questões são marcas da filosofia da educação de Dewey. Ele deu prioridade aos
Dewey, “a inteligência não impõe ex-nihilo uma unidade transcendente sobre os fatos,
mas se integra nas condições fáticas para reconstruir seu significado e seu valor”
(Esteban, 1996:29).
seguiu Herbert Mead, como professor assistente de filosofia. Dewey convidou James
experimental. Junto com James H. Tufts, que seguira anteriormente para Chicago, eles
formaram um núcleo de estudo naquela universidade. 12 Do grupo de pragmatistas de
Chicago, Dewey foi a figura mais eminente. Ao contrário de Mead, sua disposição para
expor, discutir e publicar suas idéias possibilitou grande visibilidade nos campos em
que atuou.
estado de ebulição, ativado pelas idéias dos que acreditavam na necessidade de mais
liberdade para as crianças: liberdade para investigar, para interrogar, para experimentar.
Para Dewey, não se tratava de uma liberdade selvagem e sem controle, mas esforço e
significativo que a educação escolar tenha ocupado um espaço crucial nas experiências
observar não apenas como o conhecimento se desenvolve nos seres humanos, mas
que surgiram no seu funcionamento parecem algo bastante coerente com a opção feita
por Dewey de desenvolver “uma filosofia voltada para a prática, no sentido ético e
operam na prática educativa quando influem sobre ela, as situações que elas formulam
12
A idéia de uma Chicago School (Escola de Chicago) foi tornada pública pela primeira vez por
William James em um artigo publicado em Psychological Bulletin (January 15, 1904), no qual ele
comentava o livro Studies in Logical Theory, publicado pela Universidade de Chicago um ano antes
(Rucker, 1969).
Do ponto de vista político, Dewey foi durante toda a sua vida um liberal
humanista e um democrata radical. Quiçá por isso mesmo ele não tenha deixado de
questionar aspectos restritivos do velho liberalismo, que desde o final do século XIX
âmbito político, é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para consolidar a
democracia como uma “forma de vida” e princípio educativo. Forma de vida pode ser
exercer uma certa “modelagem social”, ela não poderia ser vinculada diretamente à
hábito e socialização, e entre ciência e democracia? Estas são algumas das questões
teve início a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ampliando-se nas duas
nos Estados Unidos. Isto significa que quando ele passou a escrever sobre questões
noção de hábito. Os principais textos por mim analisados, como os ensaios escritos
entre 1894 e 1904 e os livros School and Society [1899], How we think [1910] e
que Dewey viveu e escreveu a sua obra no curso de uma longa vida - que testemunhou
a ascensão do capitalismo monopolista ainda no século XIX, o impacto da Primeira
Contudo, tenho como hipótese que a idéia de democracia como modo de vida, a noção
certos valores e modos de vida, é que fornecem a Dewey uma base consistente para ele
formular críticas ao velho liberalismo e à democracia formal. Isto faz com que, do
ponto de vista aqui adotado, a filosofia da educação ocupe um lugar central em sua obra
e não exatamente por ser anterior aos trabalhos específicos sobre política, mas pela
importância heurística na análise da dinâmica social. Dewey, como Platão, sabia que a
educação não era um fator de menor importância nos campos filosófico e político, mas
bibliografia. Está composto de dois pequenos textos que são em parte produtos
paralelos desse estudo da filosofia da educação de Dewey. Digo “em parte” porque a
Hans Joas (1993). É uma primeira tentativa de aproximar minhas reflexões sobre a
devo lembrar que as leituras que realizei de textos de John Dewey e de outros autores
também se situam em um horizonte interpretativo, pois deste “círculo” parece que não
temos como escapar. Umberto Eco (1993) propõe a noção de “intenção do texto”
problemáticas. Ele adota uma espécie de princípio popperiano, segundo o qual se não
há regras que possam definir as “melhores” interpretações ao menos deve existir algum
critério para indicar as que são “más”. Trata-se da busca de coerência para as
interpretações, algo que possa moderar as intenções do leitor. Não tento, com isto,
O caminho que segui neste estudo do pragmatismo pode ser definido como um
exercício de ler textos, relacionando-os aos contextos em que eles e as idéias que neles
educacional de John Dewey tendo como referência uma questão básica: como indivíduo
e sociedade podem ser relacionados na educação? Mas lançar mão do contexto, por
mais profunda que seja a sua reconstrução, não responde imediatamente a todas as
questões de uma interpretação, e pode se tornar uma estratégia enganosa, já que nunca
elas formassem mais um sistema filosófico no grande cortejo da história da razão. Não
se considera aqui que o pensamento seja uma espécie de novelo que vem sendo
estendido no curso da história em uma linha do tempo, podendo esta ser representada
como reta e com um único sentido, e onde cada segmento que se acrescenta já está
construída com o apoio teórico de uma noção mais ampla de contexto e tendo como
referência uma questão, que serve para fazer pontes entre a educação, enquanto prática
contexto em que se formaram as idéias como uma espécie de pano de fundo de uma
ópera, em que o autor é algo completamente distinto do mesmo. Por outro lado, não é
um mecanismo demoníaco onde o agente/autor não existe enquanto tal, justamente por
O objetivo deste livro é tentar encontrar respostas para uma dada questão,
relacionando-a aos contextos em que um autor (Dewey) e sua geração (os pragmatistas
14
Seguindo a visão de Dewey, Anísio Teixeira (1977) indicou que a sociologia, a psicologia e a
antropologia funcionariam como as “ciências-fonte” da educação.
fundamental para aqueles que tentam compreender a história das idéias fora da ilusão
positivista de uma racionalidade semelhante para todas as ciências, mas que também já
LaCapra (1998) indica que os textos podem ser tomados quase como um cenário
de conflitos e contestações; também sugere que não há lugar para um contexto que seja
algo fora do texto, pois não há contexto que de alguma forma já não tenha sido
“textualizado”:
“A vida social e individual podem ser vistas de uma forma frutífera segundo
a analogia do texto, implicadas em processos textuais que freqüentemente
são mais complicados do que a imaginação histórica está disposta a admitir”
(LaCapra, 1998:241).
Penso que a ênfase dada por LaCapra à “textualidade” é bastante útil na medida
em que pode tornar a noção de “realidade” menos dogmática, pois aponta para o fato de
sempre estejamos atentos para o fato de que, seja para o filósofo, para o historiador,
Feffer (1993) sugere que o leitor familiarizado com os métodos da história intelectual
reconheceria naquele livro um tipo de “radical contextualism”. Este livro foi uma das
principais fontes utilizadas por mim para compreender as condições gerais da sociedade
americana na qual Dewey trabalhou e para obter informações sobre a relação entre o
Penso que também foi importante nessa leitura que fiz da obra de John Dewey a
visão de LaCapra (1994) de que podemos trabalhar com dois aspectos dos textos: o
aspecto documental, que situa o texto na dimensão dos fatos, “implica a referência à
realidade empírica e transmite informações sobre ela”; e um outro aspecto, que implica
Considero que estes dois aspectos podem ser muito úteis para se compreender o
modo como Dewey opera em certos textos. The School and Society [1899], How we
think [1910] e Democracy and Education [1916], por exemplo, são obras que, em
parte, constatam, descrevem, documentam processos. Por outro lado, o discurso contém
um aspecto “performativo”, que não apenas gera uma teoria sobre o conhecimento e a
educação, uma filosofia da educação, como também sugere transformações naquilo que
é descrito. Penso que aí podemos flagrar a expressão mais clara do veio reformista de
John Dewey, que é também uma característica da escrita de alguns autores do campo
educacional.15 Para o leitor ou intérprete fica a difícil tarefa de saber exatamente quando
Dewey está descrevendo um processo ou indicando o modo como ele deveria ser. Entre
semelhanças com análises sociológicas. Neste sentido, Dewey faz justiça à perspectiva
15
Nos textos de Anísio Teixeira e Paulo Freire, por exemplo, este duplo aspecto da linguagem é
bastante evidente.
pensar sobre o próprio pensamento. Ainda que questões filosóficas perpassem toda sua
obra, como ocorre com a obra de alguns sociólogos - Durkheim e Bourdieu, por
Dewey é uma de sua principais referências no que diz respeito à educação escolar. Isto
não é novidade e já fora indicado de uma forma ou de outra em vários estudos sobre
Mendonça, 1993). Muito já se falou dessa influência e quase não há dissertação ou tese
sobre Anísio Teixeira que não mencione algo a respeito de John Dewey. Este mesmo
divulgadas no Brasil até os anos 70, basicamente por iniciativa de Anísio Teixeira. Ele
foi certamente o principal propagador entre nós das idéias desse filósofo americano.
Com a morte de Teixeira em 1971, textos de Dewey deixaram de ser publicados e até
mesmo apresentados no Brasil como fontes “positivas” para o campo educacional. Mais
passou a ser questionado desde a década de 70, seja através da crítica à ideologia
(1989) elaborou uma crítica da ideologia liberal no que diz respeito à educação,
problemática a associação feita (ainda que com ressalvas) pelo autor no primeiro
ditadura militar implantada em 1964. Contudo, esta interpretação pode ser melhor
aborda este tema, pois em “Tendências e correntes da educação brasileira”, de 1981, ele
sociais e a teoria política” onde aparece um comentário sobre esse “esquecimento” do pragmatismo:
“Durante décadas, o pragmatismo manteve-se confinado em um círculo restrito. Na Europa, assim
como no Brasil, as linhas hegemônicas de pensamento, tanto na filosofia quanto nas ciências sociais,
negligenciaram sua importância. Leituras banalizantes do pragmatismo combinaram estigmatização
política com desprezo epistemológico. Os vínculos de Dewey com o liberalismo expressavam, do ponto
de vista da intelligentsia marxista, por exemplo, um compromisso inaceitável. As classificações
reducionistas confundiam pragmatismo com empirismo, realismo político, ética utilitária ou,
simplesmente, com oportunismo: a ‘doença infantil do individualismo liberal predador’” (Soares,
1994:136). Os grifos são meus.
18
Em um evento comemorativo ao centenário de nascimento de Anísio Teixeira, Saviani (2000)
afirmou se surpreender quando alguém contrapõe o seu trabalho ao de Anísio Teixeira: “Isto
provavelmente se deve ao fato de, num certo momento de minha produção, eu ter colocado em
evidência a polêmica com a Escola Nova” (p. 165). Não há, é verdade, em suas duras críticas à Escola
Nova, feitas no final dos anos 70 e início dos 80’, alusões específicas a Anísio Teixeira. Mas em tais
textos Saviani também não diz de que “escola nova” estava falando, quiçá esquecendo da advertência
que fizera Fernando de Azevedo (1958), em A Cultura Brasileira, sobre essa expressão “vaga e
imprecisa em seu conteúdo” (p. 179).
nas escolas oficiais (Saviani, 1994:29). Neste texto, Saviani termina reconhecendo que
Não há, pelo menos até agora, provas convincentes de que o ideário
escolanovista tenha penetrado de forma tão significativa, como alegara Saviani, nas
“amplas redes oficiais organizadas na forma tradicional” no Brasil, e nem mesmo nos
para prejudicar a educação das camadas populares. Mas essa visão de uma influência
negativa das idéias da “escola nova” não foi exclusiva de educadores brasileiros. As
propostas educacionais de John Dewey para uma “nova educação” também foram alvo
19
No livro The Chicago Pragmatists, Rucker (1969) comenta que “a absurda idéia, freqüentemente
atribuída a Dewey em particular e à educação progressiva em geral, de que as crianças podem ser
educadas quando soltas em um meio atrativo para que liberem seus impulsos de forma desordenada não
faz sentido à luz da psicologia e teoria social dos filósofos de Chicago” (p. 88). Ver também
Langemann (1996).
Em ambas as interpretações acima referidas, o contexto em que elas foram feitas
a idéia de uma organização política democrática para o país não passava efetivamente
algo tão distante, não haveria um bom motivo para estudar, divulgar ou ao menos não
“esquecer” de autores como Anísio Teixeira e John Dewey, que consideram democracia
americano poderia também contribuir, ainda que de uma forma indireta, para uma
relações entre estas e os textos; a força dos quadros teóricos utilizados; a relação entre
as vidas dos intérpretes e os textos que eles querem criticar; um certo esquecimento
voluntário ou involuntário que uma época pode ter de certos autores, de suas idéias e de
determinadas matrizes filosóficas e políticas. Quiçá tudo isso torne mais complexo o
sentido das interpretações. Por outro lado, poder-se-ia pensar no contexto apenas como
algo externo aos intérpretes e aos próprios textos, ainda que considerado como as
seria possível atribuir ao contexto alguns problemas das interpretações sobre o legado
Brasil desde a década de 70? E não seria então mais fácil explicar, por exemplo, o
20
Sobre a questão dos quadros teóricos na área de educação no Brasil, ver o ensaio de Brandão (1992),
A teoria como hipótese.
desaparecimento dos textos de John Dewey e de Anísio Teixeira das salas de aula neste
mesmo período?
1991; Brandão, 1992; Cunha, 1992; Mendonça, 1993). Combinando uma leitura
contínua dos textos de Anísio Teixeira desde 1993 com essas novas interpretações, fui
autor, recorrendo àquilo que por hipótese seriam os fundamentos de sua visão de
mundo.
Uma outra questão mais específica, do ponto de vista teórico, que se encontra na
escola centrada na criança. De uma forma geral, a preocupação de alguns autores, como
parece ser o caso de John Dewey, com o horizonte da sociedade, com a idéia de
socialização e as complexas relações que a educação escolar mantém com o meio social
escolanovistas brasileiros foi retomada por Marcus Vinícius da Cunha (1992), em sua
(Brandão e Mendonça, 1997), que de fato foi o primeiro esboço deste texto que agora
desde 1998. Contudo, a filosofia da educação de John Dewey continua sendo entre nós
Não posso deixar de assinalar que este livro também se insere em uma
perspectiva indicada por Hans Joas, que visa alimentar as discussões em torno da
leituras que viraram cânones. Para Joas (1998), “o pragmatismo poderia servir como
destituída de uma teoria da democracia pudesse ser integrada com uma filosofia em cuja
estrutura a democracia tem um papel crucial” (p. 191). No caso de Habermas, por
exemplo, é visível a influência das idéias de Herbert Mead na sua obra Teoria da ação
Habermas teria ajudado na recepção da obra desse americano na Alemanha e até mesmo
nos EE. UU., e lembra que se trata de um correlato da importância dada na atualidade
que serve também para esclarecer algumas aproximações que este trabalho sugere entre
Educação”, ministrada pela professora Zaia Brandão, que desenvolve pesquisas na área
dos artigos escolhidos, como tal questão tinha sido trabalhada de uma forma geral pelos
Manifesto dos Pioneiros de 1932 e textos de Anísio Teixeira. A base teórica para pensar
professora Zaia Brandão, estudamos o modo como Durkheim explicou a origem das
Aristóteles percorre a filosofia. A partir daí, retomei a leitura de textos de John Dewey
para ver se a relação entre indivíduo e sociedade tinha sido um tema por ele abordado
direta ou indiretamente e se seria possível encontrar algo relevante em sua obra a esse
pelo fato de que foi em Chicago que ele desenvolveu experiências substanciais na área
ensaios escritos na época de Chicago, de seu livro The School and Society e das
reflexões do sociólogo alemão Hans Joas (1993)22 pareciam ratificar a idéia de que a
questão escolhida como núcleo da pesquisa era passível de ser investigada em sua obra.
21
Richard Rorty discute o problema de se encontrar ou construir questões no texto Relativismo:
encontrar e fabricar (1994).
22
Devemos a descoberta dos textos de Hans Joas, que foram fundamentais para o andamento deste
trabalho, ao professor José Maurício Domingues, do IUPERJ.
Hoje reconheço que pouco ainda conhecemos da filosofia de John Dewey. Este
trabalho é a minha modesta contribuição para manter viva a discussão sobre as relações
Dewey, uma ferramenta intelectual importante para a compreensão dos vínculos entre
educação e democracia.
1. Introdução
4. Um doutor americano
Capítulo I
1. Introdução
Após a guerra civil que dividiu os Estados Unidos no século XIX, a chamada
e social. O país que se tornaria a grande potência industrial do século XX recebia então
uma enorme quantidade de imigrantes e via sua população se multiplicar junto com
seguinte:
Essas transformações por que passou a sociedade americana podem também ser
Wright Mills em sua tese de doutorado 23, publicada em 1963 com o título de Sociology
and Pragmatism: A Study in American Higher Learning. Este trabalho tinha como
das doutrinas filosóficas e a cambiante estrutura social. Segundo este autor, “a história
(Mills, 1968:37).
referência aspectos da vida de um agente e o contexto em que ele viveu e trabalhou até
23
Esta tese foi escrita por C. Wright Mills (1916-1962) no final da década de 1930 na Universidade de
Wisconsin, e tinha como título original A Sociological Account of Pragmatism.
(Vermont), em 1859, até 1904, ano em que ele deixou a Universidade de Chicago e foi
Se Dewey ficou famoso como filósofo da educação, esta não foi a primeira nem
a sua única área de estudo. Ele também escreveu sobre lógica, ética, política, arte e
americanas, ele nunca deixou de ser um crítico da filosofia acadêmica (Jacoby, 1990). 24
O que parece caracterizar de uma forma geral o seu percurso intelectual é algo como
delas. No caso da filosofia da educação, esta não parece ter sido algo definido por
Dewey desde o início dos estudos universitários como uma área do conhecimento que
trajetória. É justamente por isso que penso ser importante tentar apreender o contexto
fazendo com que Dewey chegasse a ser o mais importante pensador da educação nos
uma área em permanente transformação, cujas formas gerais e limites não podem ser
24
Se seguirmos a tese de Russel Jacoby (1990), podemos considerar Dewey como um dos últimos
intelectuais públicos, um filósofo que pensava poder levar a filosofia para a vida cotidiana. Porém, ele
e a geração a que pertenceu viram o “triunfo do profissionalismo” e a transformação da filosofia
americana em uma atividade restrita ao público acadêmico (p. 163).
que daí surge é provisório, sujeito a críticas e refutações, por mais detalhado e completo
onde teve início a colonização que deu origem aos Estados Unidos. Naquela época, a
conservar até a primeira década do século seguinte seu caráter agrícola e uma
composição social bem equilibrada. Não havia ali muitos casos de pobreza extrema nem
que a maioria dos cidadãos estava livre de passar necessidades. Em Burlington nasceu
Filho da classe média americana, John Dewey estudou em uma public school,
junto com seus irmãos e quase todos os filhos daquela cidade, independente da origem
private schools eram vistos de forma estranha por uma comunidade acostumada com a
25
Sobre a questão da teoria como hipótese, ver o texto de Brandão (1992); sobre a idéia de mapa e
observatório na escrita científica, ver Passeron (1991).
26
As anotações que fiz sobre certos aspectos da vida de John Dewey e de algumas das diferentes etapas
de seu desenvolvimento intelectual têm como fonte principal a biografia editada por sua filha Jane M.
Dewey (1989), que abre o volume dedicado ao filósofo americano na coleção The Library of Living
Philosophers, organizado por Paul Arthur Schilpp e Lewis Edwin Hahn [1939]. Esta sintética biografia
foi escrita a partir de temas e dados fornecidos pelo próprio Dewey. A ênfase posta em certas
influências filosóficas, por exemplo, pode ser tomada como declarações autobiográficas. Contudo, os
aspectos que considerei relevantes e que estão aqui anotados dizem respeito apenas a alguns dos fatos
ali descritos e estão relacionados a questões que venho tentando esclarecer a partir da leitura de sua
obra. Outros textos, como a biografia de John Dewey escrita por Sidney Hook ( An intelectual portrait,
de 1939) e o referido texto de Wright Mills (1968), também foram utilizados para ampliar este mapa
em construção.
democracia, no sentido da observação da eqüidade, esta disposição de reconhecer
escolas públicas de ensino fundamental e médio. Em 1906 Max Weber escreveu que a
ausência de uma antiga aristocracia na Nova Inglaterra serviu para eliminar as tensões
das condições econômicas modernas (Weber apud Mills, 1968:43). Isto criou uma
espécie de “selo histórico” impresso nas instituições sociais, entre elas a escola pública
laica.27
Nova Inglaterra. Data do século XVII a chegada dos primeiros membros da família
comércio. Sua baixa escolaridade foi de certa forma suplementada pela leitura,
indagado sobre a ocupação profissional dos filhos, normalmente ele respondia que
esperava que pelo menos um deles se tornasse mecânico (Jane Dewey, 1989:6). No caso
de John Dewey, a idéia de uma escolarização longa parece mais próxima da influência
materna.
27
No referido estudo de Mills encontramos a seguinte observação sobre este tema: “A secularização das
escolas [norte-americanas] foi favorecida pela forte competição entre as muitas seitas protestantes, cada
uma das quais desejava difundir entre os alunos determinada versão de Deus, do credo e da salvação. O
acordo era possível unicamente aceitando as escolas sustentadas com fundos públicos, liberadas
completamente do controle clerical direto” Em 1838, no First Report à Comissão de Educação de
Massachusetts, Horace Mann indicava , conforme o estatuto de 1826, que em nenhuma escola pública
poderiam ser utilizados textos que favorecessem uma seita ou congregação religiosa em particular
(Mills, 1968:44).
Lucina Artemisia Rich, a mãe, vinha de uma família mais próspera. Seu pai era
juiz e proprietário de terras; ela também teve um avô que fora membro do Congresso. A
influência da mãe de Dewey sobre o seu núcleo familiar foi considerada algo
fundamental por sua neta Jane Dewey, filha de John Dewey, no sentido de construir
Criado em uma família evangélica Congregacionalista, mas sem os rigores ascéticos dos
educação pela vida e pelo trabalho, que era uma regra usual em sua família, onde os
podem também ser úteis para se compreender traços gerais de uma época em que a
por questões puramente teológicas para temas mundanos por volta de 1890 é
considerado por alguns historiadores como uma linha divisória na história das idéias
nos Estados Unidos. Neste contexto estava inserido Dewey e é a partir daí que podem
formação Dewey parece ter sofrido a influência dos ataques religiosos contra a ciência
leigos, professores de filosofia que já não eram mais clérigos. Isto é vital para a
mesmo tendo o controle da estrutura de poder das universidades, essas ordens não
Além disto, na segunda metade do século XIX grandes capitalistas investiram seus
(Mills, 1969).
Dois anos após o nascimento de John Dewey teve início a Guerra de Secessão,
causa moral, o fim da escravatura, que foi incentivado por um dos principais foros
Neste ambiente ele recebeu uma educação religiosa e moral de cunho liberal e com um
forte sentido de justiça social. Porém, uma das marcas dessa evangelização teria sido o
dualismo, que Dewey iria rechaçar posteriormente: a radical separação entre aquilo que
uma pessoa é e o ideal de santidade, o dever ser. Este era um problema a mais para se
valores, a separação entre o ideal e o real, a natureza e Deus” (Esteban, 1996:21). Para
Wright Mills (1968), Dewey parece ter deslocado seu anseio de fundir emoção e
com problemas da cultura moderna e da era industrial. Dewey manteve em seu discurso
incorporou uma outra crítica, que não se dirigia apenas ao individualismo de alguns
religiosos, mas contra as igrejas estabelecidas. É como se seu discurso fosse sofrendo
estavam ocupando nesta época espaços que anteriormente eram do domínio das igrejas,
reflexão filosófica. A noção de orgânico, por exemplo, abria a perspectiva para pensar a
organismo humano descrito no estudo de Huxley” (p. 148). Ele confessa o impacto
causado pela leitura desse texto, que o estimulou mais do que qualquer outro com o
qual tivera contato; afirma ainda que foi nesta época que ele desenvolveu um nítido
pode servir, por exemplo, como crítica a uma visão estática e aos dualismos tradicionais
questão da relação entre o saber das ciências naturais e as crenças tradicionais. A leitura
questões.
da filosofia alemã. Tendo concluído o college em Vermont em 1879, ele trabalhou dois
28
O ano da publicação (1859) na Europa de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, é também o
ano de nascimento de John Dewey nos Estados Unidos.
anos como professor em escolas secundárias e iniciou o doutorado 29 na Universidade
Johns Hopkins:
Mas no que dizia respeito à vida profissional, ser professor de filosofia era ainda
uma escolha arriscada. Dewey (1984) relaciona a sua decisão de seguir esta carreira em
parte aos estudos e à gratificante convivência com o professor Torrey. Ainda sem ter
quanto a publicação dos artigos foram as palavras de incentivo do referido editor; elas
(Dewey, 1984:150).
pelas idéias de Hegel. Ao fazer comentários sobre esta época, ele indica que seria difícil
que um jovem estudante, ainda não decidido a aderir a nenhum sistema de pensamento
que satisfizesse sua mente e seu coração, não fosse afetado pelo entusiasmo e devoção
com que aquele professor apresentava a obra do filósofo alemão (Dewey, 1984). Morris
fazia parte de um amplo movimento de retomada das idéias de Hegel entre acadêmicos
29
Sua tese sobre a Psicologia de Kant é um trabalho que não foi publicado e sobre o qual não há
indicações substantivas nas fontes consultadas. Em Alan Ryan (1995), que escreveu uma detalhada e
bem documentada biografia de John Dewey, encontramos o seguinte comentário sobre o tema: “Ao
final do segundo ano acadêmico [na Johns Hopkins University] ele apresentou a tese titulada “Kants’s
Psychology”, agora perdida. Ele fez uma impressionante defesa oral de sua tese e foi devidamente
agraciado com o título de Doctor of Philosophy” (p. 77).
(1984), tratava-se de uma reação do pensamento anglo-americano ao empirismo
predominantes. Mas ele afirma que tinha também motivos de ordem subjetiva para se
juventude:
Atlântico. Dewey parece ter encontrado nas reflexões daquele filósofo elementos para
1995:14). Neste sentido, Dewey veio a reconhecer, por exemplo, que “qualquer
interpretada nesta época de uma forma positiva, e não como sintoma de decadência
30
O termo sensacionalismo é utilizado como sinônimo de empirismo pelo próprio Dewey (1959), que
apresenta a seguinte explicação: “Como em geral eram denominadas sensações as impressões causadas
no espírito pelos objetos, o empirismo tornou-se a doutrina sensacionalista - isto é, uma doutrina que
identificava o conhecimento com a recepção e a associação das impressões sensoriais” (p. 294).
31
Essa combinação de otimismo e decrescente interesse pelos fenômenos religiosos não permaneceu,
segundo Joas (1998), incólume por muito tempo. Transcrevendo um comentário de Steven Rockefeller
(John Dewey: Religious Faith and Democratic Humanism, 1991) sobre a questão, ele indica que após a
I Guerra Mundial (1914-1918) e o crash econômico de 1929 com suas devastadoras conseqüências,
Dewey se convenceu de que as mentes e os corações dos americanos não poderiam ser unidos em torno
de uma filosofia construtiva, como a que ele propunha, sem que seus sentimentos e compromissos
religiosos estivessem nela envolvidos (Joas, 1998:195).
uma forma não-puritana de religiosidade foi um dos motivos que dirigiram Dewey para
democracia.
Hegel e a formação de John Dewey o mais significativo teria sido o fato deste
concentrar a atenção nos problemas sociais e psicológicos. Não é surpresa que Dewey
tenha confessado o impacto que sobre ele exerceu o tratamento dado por Hegel à
formação. Dewey manteve viva essa idéia da influência exercida pela cultura na
conformação das crenças e atitudes dos seres humanos. Isto fazia com que ele pudesse
desconfiar de uma suposição da filosofia e da psicologia que tomava a razão como algo
Ele tentou, por fim, conciliar o modelo hegeliano com certos aspectos da
não apenas as relações entre a mente e as coisas, mas também com as instituições
aberta pela psicologia experimental, Dewey terminou tecendo críticas à visão idealista,
32
Kant havia estabelecido uma divisão entre o cognoscível, o campo dos fenômenos, e o incognoscível
ou a coisa-em-si. Hegel elaborou uma crítica a esta separação estabelecida por Kant, pois a experiência,
segundo Hegel, não necessitaria de uma coisa-em-si constituída de forma independente para sustentar a
realidade daquilo que se pode conhecer. Assim, sujeito e objeto passaram a ser concebidos como
aspectos da consciência-de-si atuando em um mundo finito. Ao invés de se preocupar com as imutáveis
categorias do conhecimento, com Hegel a filosofia pôde voltar-se para os desdobramentos das “formas”
do espírito, pondo em discussão a história. É neste sentido que a perspectiva hegeliana reconhece a
cultura como uma objetivação do espírito, sendo a história a sua evolução (Feffer, 1993; Singer, 1986).
ao mesmo tempo em que elaborava uma noção pragmática de experiência. Sobre este
age, goza, sofre, e muito de sua vida consiste em experiências que não são inicialmente
papel na vida humana, Dewey sugeriu que se poderia apreciar sua emergência em um
contexto não reflexivo da experiência. Ele de certa forma tentou “naturalizar” aspectos
da filosofia de Hegel com uma teoria da mente marcada pela biologia e uma análise
posteriormente artificiais, ainda que no conteúdo suas idéias fossem quase sempre
profundas:
principalmente com a obra de Hegel, ocorreu através de seu professor e depois colega
relação não foi algo pontual e isolado, pois ocorria em um contexto de significativa
humanas estavam no centro de seus estudos e escritos em torno de 1890. Em The Study
as conseqüências de seu uso, ele já dava mostras de uma perspectiva pragmática (Jane
interesse por um certo tipo de lógica. Morris considerava que havia uma lógica real em
contraste com outra puramente formal. Para Dewey, o que se tornou importante foi a
idéia de uma “lógica dos processos” através dos quais o conhecimento é alcançado.33
filosofia, era parte dela. Mas no final do século XIX a psicologia deu grandes passos
questionamento de suas antigas relações com a filosofia e abriu espaço para uma
[1930], Dewey indica que, em geral, as forças que o influenciaram vieram mais de
pessoas e situações do que dos livros. Não se tratava de desprezo pela teoria, mas do
nas quais estivera envolvido. A grande exceção a isto foi exatamente o referido livro de
James, que causara um grande impacto sobre o seu modo de pensar. Dewey (1984)
destaca naquela obra uma tensão entre duas tendências irreconciliáveis: por um lado, a
33
Ver no capítulo III o item 7. Pensar como arte.
antigo vocabulário34; por outro, uma perspectiva objetiva, que teria suas raízes “em um
retorno à antiga concepção biológica de psyche, mas um retorno com uma nova força e
valor devido ao imenso progresso feito pela biologia desde a época de Aristóteles” (p.
157). Dewey considera que esta abordagem agiu em suas idéias como um fermento,
Ele encerrou seu doutorado na Universidade Johns Hopkins 1884 e seguiu para a
1880 e 1890 a Universidade de Michigan foi uma das instituições educacionais mais
educação que enfatizava a participação ativa dos estudantes desde os anos iniciais de
do Ensino Médio da universidade. Dewey foi membro deste clube tendo visitado como
Arbor (Michigan) produziu impressões fortes, que apareceriam de certa forma em sua
34
Segundo Dewey (1984), “a dificuldade em encontrar um vocabulário que transmita adequadamente
uma nova e genuína idéia é talvez o obstáculo que mais retarda o progresso da filosofia” (p.157).
profissional: James H. Tufts e George Herbert Mead. Tufts também era descendente de
Windelbanb. Com Tufts, Dewey estabeleceu uma sólida relação intelectual e pessoal,
que tornou possível a sua ida para Chicago em 1894 e a publicação, em 1908, de uma
Michigan quando fazia o seu doutorado em Berlim. Ele veio substituir James H. Tufts,
da década de 1890, Mead se tornou a figura mais próxima de Dewey, tanto em amizade
publicado poucas coisas em vida, sua influência sobre Dewey parece ter sido produto da
intensa convivência, que incluía estreitas relações familiares. Ele seguiu com Dewey
para trabalhar em Chicago em 1894. A marca mais visível do trabalho de Mead iria
1886. A senhora Chipman era natural de Vermont, mas fora criada em Michigan e,
como Dewey, era descendente de uma família de pioneiros da Nova Inglaterra. Ela é
descrita por sua filha Jane como uma mulher de caráter forte, que ficara órfã cedo,
tendo sido criada pelos avós com uma mentalidade independente. Tal comportamento
críticas em relação às injustiças sociais e políticas. Jane Dewey atribui a ela um certo
alargamento dos estudos filosóficos de seu pai: “Coisas que tinham sido consideradas
como questões teóricas adquiriram através de seu contato com ela um vital e direto
A observação dos três primeiros filhos também serviu para realçar em Dewey o
interesse por questões referentes à aprendizagem das crianças. Tudo isto foi
algumas de suas reflexões filosóficas. Jane Dewey (1989) fez a seguinte observação
educação nova para seus filhos ajudou financeira e moralmente a organizar e manter
professor, Dewey pôde então desenvolver melhor suas idéias, contando com a
colaboração de Mead, Tufts e também de novos colegas, como a professora Ella Flagg
The School and Society [1899], How We Think [1910], Democracy and Education
[1916] e mesmo Human nature and conduct [1922]35 - estes três últimos livros escritos
Dewey pelo campo educacional. A primeira delas foi a sua esposa e mãe de seus filhos,
Alice Chipman Dewey. Ela era professora e foi uma das coordenadoras da Escola
talvez algumas reflexões de John Dewey sobre educação não tivessem alcançado a
personalidades femininas. Ela foi a organizadora e líder da Hull House, um espaço que
congregou ações voluntárias no campo social na cidade de Chicago36. Estas figuras são
importantes para se compreender não apenas o entusiasmo de Dewey com a luta pela
ampliação dos direitos das mulheres, mas também a sua idéia de democracia como um
modo de vida.
35
Este livro, publicado pela primeira vez em 1922, é composto de uma série de conferências dadas por
Dewey em 1918 na West Foundation da Universidade Stanford (Califórnia).
36
A Hull House era uma espécie de ONG, que se envolveu diretamente com o problema da assimilação
dos imigrantes na cidade de Chicago. Este tipo organização era também conhecida como settlement
house.
4. Um doutor americano
ser mantidas pelo próprio Estado ou com recursos vindo diretamente da sociedade
expansão da fronteira para o Oeste, foram desde a sua fundação instituições estatais de
ensino. Isto possibilitou, já a partir do terceiro quartel do século XIX, o aumento das
chances para que filhos de agricultores e de certos tipos de trabalhadores nascidos nas
suprir com mão de obra qualificada os cargos abertos com a expansão industrial:
época nos Estados Unidos e não se limitava às ciências naturais. À medida que o país se
fazia menos rural e mais urbano, a estrutura econômica e social passou a sofrer o
influxo cada vez maior das vocações comerciais e industriais, ao mesmo tempo em que
associadas a uma escolaridade mais extensa. Como assinala Mills (1968), “o valor
de Doutor em Filosofia (Ph. D.), que apenas no início do século seguinte passou a ser
título de pós-graduação mais comum nos Estados Unidos era o de Doctor in Divinity
(Doutor em Teologia). Outros títulos eram raros e quase sempre honorários ou obtidos
obtenção de títulos como o de Master of Arts e Ph. D., e estes passaram então a ter
Outro aspecto relevante é que nesta época a universidade alemã tinha uma
especialização estava sendo transmitido por aqueles que tinham estudado na Europa e
por professores alemães que ensinavam em universidades dos Estados Unidos. Até o
final do século XIX este intercâmbio se manteve intenso: “Depois da década de 1860 a
direção do ensino superior americano esteve sobretudo nas mãos desses homens. Salvo
estrutura universitária. Com eles vieram também outros conteúdos, que iam desde
críticas filosóficas e históricas da Bíblia até a tradição socialista, passando pela questão
diminuir continuamente.
A despeito dessa influência alemã na vida acadêmica americana, foi Dewey, que
Universidade de Chicago. Ele venceu uma “disputa” com Julia Bulkley, que se
instituição foi fundada em 1892 pela American Batist Education Society39, tornando-se
tempo em que a cidade em sua volta se constituía num vasto laboratório social:
past que foi muito importante para o desenvolvimento de certas tradições de pesquisa
distintas da herança européia. Além disso, os saberes que começaram a ser gerados
cidades foi intenso durante o século XIX. Em 1890 apenas 35% dos americanos ainda
viviam no campo e os contrastes sociais se tornavam cada vez mais evidentes. O país já
se transformara em uma potência industrial, mas também era líder mundial em número
de acidentes de trabalho. Havia uma forte tendência para concentrar o controle das
século seguinte foi um período mais de lutas e esperanças para a classe média
Millen, 1985).
significou apenas a criação de uma grande quantidade de fábricas, mas também intensas
crianças, quase sempre treinados apenas para tarefas “mecânicas” e recebendo baixos
contribuir para o declínio do mundo do trabalho. Ao analisar este contexto, no livro The
Porém, um dos produtos dessas transformações foi a organização de uma aguerrida luta
sindical nos Estados Unidos com históricas greves, como a da indústria de aço em
forma substancial. Em 1890, 78% dos que lá residiam tinham parentes estrangeiros
incontáveis línguas e era possível que alguém caminhasse por alguns distritos sem ouvir
o Inglês nas ruas (Feffer, 1993). Tudo isso acarretava efeitos sobre a cultura e o sistema
pesquisa e ensino nos primeiros anos da década de 1890, tendo em torno de si uma
sociedade que passava por transformações radicais. Não foi por acaso que muitas
pesquisas sobre mudanças de costumes, conflitos raciais, questões urbanas, etc., tenham
Guerra Mundial foi marcado nos Estados Unidos por grandes conflitos sociais e um
40
Ver Anexos.
forte clamor por reformas. Trata-se do que ficou conhecido como Era Progressista ou
progressivismo:
Henry Ford, havia razão para acreditar que as vastas mudanças demográficas e
temos tentado administrar uma nova civilização no velho estilo. Está na hora de
dos setores médios urbanos. Neste sentido, a antiga ordem social, predominantemente
rural e agrícola, estava sendo desafiada pela necessidade de formação direcionada para
novas profissões, que exigiam cada vez maior nível de escolarização. O público
estava se deslocando dos mais antigos estratos formados por pequenos comerciantes e
41
Os grifos são meus.
empresários para profissionais mais modernos e grupos especializados. Assim, a
formando o seu primeiro público entre aqueles que estavam conquistando posições
justamente tendo como base essas duas pautas (Mills, 1968:64). Esperança e crítica,
engajamento social e político que pode ser associado aos aspectos reformistas do
Calvinismo ortodoxo. Ao mesmo tempo em que isso ocorria, novas disciplinas dos
republicanism, algo que, por um lado, guarda semelhanças com a ética protestante, na
medida em que vincula a ordem social ao trabalho diligente; por outro lado, afastava-se
1776. Tratava-se de uma perspectiva política que se identificava com as virtudes cívicas
uma elite herdeira e não produtiva” (Feffer, 1993:102). A defesa desses valores foi
combinada com idéias que estiveram presentes nos movimentos políticos da Europa
continental em torno de 1848 e que foram trazidas pelos imigrantes. O resultado desse
de alguns capitalistas terem emergido das classes trabalhadoras. Ainda segundo Feffer
casos, o que funcionava como paradigma era a figura do homem que produz
conviver com uma crônica miséria urbana. Em 1882, por exemplo, metade das crianças
condições sanitárias (Feffer, 1993:108). Não era difícil encontrar fábricas em que 12 ou
14 horas de trabalho eram obrigatórias e que empregavam crianças como mão-de-obra.
Muitas instituições voltadas para a ação social foram fundadas nesta época. Era um tipo
ressalta o caráter pacífico dessas instituições, que evitavam o incentivo aos confrontos
na ação política, ainda que atraíssem militantes socialistas e anarquistas para os fóruns
de discussão.
Hull House, fundada em 1889 por Jane Addams. Nesta época, já prevalecia para ele a
visão de que a educação é por excelência um método de reconstrução social, ainda que
não seja o único. Em um livro comemorativo dos dez anos de atividades daquela
instituição, Jane Addams, que pertencia à seita Quaker e era filha de um rico senador,
afirmou que a Hull House fora criada com base na teoria de que “a dependência das
senhora Addams se tornaram grandes amigos, e não foi por acaso que uma das filhas do
que instituições como a Hull House tinham um significado político para os pragmatistas
bem mais amplo do que muitas vezes se atribui às instituições beneficentes. Para Mead,
por exemplo, elas incorporavam o ideal de uma ciência socialmente engajada, guiada
42
Alguns desses centros de assistência social foram eventualmente incorporadas ao sistema público.
por hipóteses e nas quais o conhecimento era considerado algo provisório, ao invés de
dogmático (Feffer, 1993:114). Ao lado dos sindicatos, essas organizações eram vistas
trabalho social [1893], quando o sociólogo francês faz uma defesa das corporações de
assistencialista, algo que também se encontra nas corporações de uma forma geral,
John Dewey, Herbert Mead, Ella Flagg Young, Jane Addams e outros foram
Chicago. Neste sentido e tomando como referências textos de John Dewey escritos na
época em que ele trabalhou nessa cidade e aqueles em que ele retoma diretamente
aparece como um tema crucial para se tentar compreender a relação entre indivíduo e
sociedade.
Universidade de Chicago era que a escola deveria investir no interesse dos alunos e
boa educação, e não o oposto do esforço e de uma educação rigorosa (Dewey, 1965). É
necessário marcar aqui essa suposta oposição, pois a idéia de uma “educação centrada
indisciplina.
determinado modelo de educação, que separa os fins dos meios pelos quais eles podem
ordem psicológica e ética. Dewey de certa forma chama a atenção para a alienação
oposição a isto, a arte e o jogo aparecem tanto para ele quanto para Herbert Mead
inteiramente.45 Penso que esta é uma leitura pertinente da crítica de Dewey à escola
45
Ver no capítulo III o item “O jogo e o trabalho”.
tradicional, embora pareça uma transposição direta para o campo da educação de certa
dependente e relacionado aos campos econômico e político, tem uma dinâmica própria,
escolas americanas, um tema polêmico no final do século XIX, serviu para Dewey
Mas a aposta nas atividades e ocupações nas escolas não estava longe de controvérsias,
currículos especiais para as crianças das classes trabalhadora (Bowles e Gintis, 1982).
desde a segunda metade do século XIX, servindo a objetivos distintos conforme o grupo
social e econômico que a fomentasse. Para os proprietários dos meios de produção ela
Este debate também esteve presente no Brasil na década de 1930 através do educador
46
Anísio Teixeira quando ele dirigia a Instrução Publica do Distrito Federal (1931-1935).
Deste autor e sobre este tema, ver o livro Educação para a democracia.
virtudes cívicas e de resgatar algo do ethos do artesão, do trabalhador devotado ao seu
labor e que mantinha com este uma relação bem mais complexa do que a necessidade
de receber salário.
Para Dewey, como veremos, a discussão era ainda mais ampla. Ela passa pela
crítica aos dualismos clássicos da filosofia, pela defesa no moderno método científico
trabalho). Desta perspectiva, tanto Dewey em Chicago, no final do século XIX e início
do século XX, quanto Anísio Teixeira na década de 1930 no Brasil - este certamente
por influência das idéias daquele - tentaram pensar como, através da educação escolar,
superar a distinção hierárquica entre trabalho mental (mind work) e trabalho manual
deles, podemos pensar também na nostalgia de uma América do Norte rural, sem
socialização. Tudo isto tendo como referência uma organização política comunal, que
em Democracia na América.47 Segundo este autor, na maior parte das nações européias
o exercício da política teve início pelas partes altas da sociedade e, pouco a pouco, foi
contrário, a comuna foi a base da organização política, sendo ela anterior ao condado,
este que por sua vez foi criado antes dos estados, os quais se formaram primeiro que a
47
Alexis de Tocqueville (1805-1859) nasceu na França, foi magistrado, historiador, político e um dos
precursores da sociologia. Em 1831 ele esteve nos Estados Unidos a serviço do governo francês. A
partir de observações e estudos realizados naquele país, Tocqueville escreveu uma das mais importantes
obras da ciência política moderna, A Democracia na América. É um livro composto de duas partes: a
primeira, de 1835, é uma espécie de etnografia onde são analisadas algumas instituições sociais dos
Estados Unidos. A segunda, de 1840, traz uma teoria do Estado democrático (Tocqueville, 1987).
da comuna em um dos estados da Nova Inglaterra, afirmou o seguinte sobre essa
mais complexa. Assim, não nos deve surpreender que a educação escolar - um meio
próprio para a formação de hábitos - tenha sido pensada por Dewey como algo vital no
1. Introdução
5. Um tema organizador
6. Cooperação e reflexão
7. As mãos e a mente
8. Educação, ética e cidadania
Capítulo II
1. Introdução
John Dewey fez esta declaração por volta de 1936 a Katherine C. Mayhew e
Anna C. Edwards, autoras do primeiro livro sobre a escola experimental que ficou
conhecida como Laboratory School ou Dewey School.48 Como foi indicado, esta escola
nos moldes da escrita etnográfica. As descrições têm a função de situar o leitor, pois foi
a partir das experiências empreendidas naquela escola que Dewey começou a elaborar
48
O livro se chama The Dewey School - The Laboratory School of the University of Chicago (1896-
1903) [1936]. As autoras, que tinham sido professoras daquela instituição, contaram com o apoio
fundamental do próprio Dewey para escrevê-lo. O livro contém várias reflexões do filósofo sobre a
Escola Laboratório, inclusive um apêndice (“The theory of the Chicago experiment”) escrito por ele, em
que faz comentários sobre a filosofia da educação presente naquela escola experimental.
49
O referido departamento foi organizado inicialmente congregando pesquisadores nas áreas de
filosofia, psicologia e pedagogia. Em 1905, foi criado um departamento de psicologia.
uma reflexão sistemática sobre educação, uma episteme. Algumas questões presentes na
organização da Escola Laboratório eram ainda hipóteses sobre uma “nova educação”
nos Estados Unidos. O objetivo deste capítulo é reconhecer e comentar algumas das
idéias elaboradas por Dewey e o grupo de professores que com ele trabalhou em
Chicago, principalmente naquilo que se referem à questão central deste livro, a relação
próprio Dewey em livros como The School and Society [1899], How we think [1910],
Democracy and education [1916], Human nature and conduct [1922] e Experience and
obras completas de Dewey50. A estratégia que adotei neste trabalho foi tentar
acompanhar o processo de elaboração daquilo que seria a sua filosofia ou teoria geral da
educação, como o próprio Dewey chama, partindo de textos escritos por ele durante o
Dewey lembrou que no início das atividades ele não tinha idéias e princípios prontos,
que e como se poderia fazer para criar uma relação de proximidade entre a escola e a
vida doméstica (casa e vizinhança) das crianças?; 2) O que poderia ser feito no sentido
significado efetivo para a vida dos alunos?; 3) Como o ensino formal de habilidades
como ler, escrever e usar figuras poderia ser levado a cabo com experiências do dia-a-
50
A publicação das obras completas de John Dewey foi o resultado de um projeto de pesquisa
desenvolvido na Southern Illinois University e tendo como editora geral a professora Jo Ann Boydston.
dia, de uma forma que as crianças sentissem que tais habilidades são realmente
(Dewey, 1980:59).
preocupação com as implicações morais da ação (Mayhew & Edwards, 1936). 51 Foi da
análise dessas questões no campo da educação que se formou aquilo que neste trabalho
seja, algo distinto de uma especulação teórica sem vínculos com as ações na vida social.
desenvolver uma reflexão sistemática sobre a educação. Dois aspectos começaram então
aspecto era a preocupação com o valor social dos hábitos que a educação escolar pode
Estes são dois grandes temas abordados em algumas de suas obras publicadas depois de
1904, mas escritas com base em reflexões elaboradas no período de Chicago. Se no que
diz respeito ao primeiro aspecto (o desenvolvimento infantil) a obra de Dewey não é tão
detalhada quanto, por exemplo, à de Piaget, no que se refere à relação entre hábito,
51
Dewey publicou Psychology, em 1887, e Outline of Ethics, em 1891.
Desde o final do século XIX estavam sendo configuradas novas idéias sobre
recomendados para outras escolas (Dewey, 1972:244).52 Não se tratava de uma escola
afirmando que, exceto aquela experiência que apenas se iniciava, não existiam nos
cursos de Pedagogia:
para o corpo docente das escolas primárias e secundárias americanas, sobre quem
sistema escolar, mas que era deixado excessivamente a mercê do acidente, do capricho
52
A pedagogical experiment, 1896.
53
Cargo que no Brasil é equivalente ao de reitor.
54
The need for a Laboratory School, 1896.
e da rotina. Indicou então que a Escola Laboratório seria um espaço para estudos
avançados sobre ensino, direção e supervisão. Para Dewey, a liderança das forças
propósitos com que fora criada a Universidade de Chicago, há apenas quatro anos antes
filosofia da educação presente na Escola Laboratório também pode ser lida tendo em
americano, pois a escola não poderia ficar alheia às transformações de uma sociedade
que mudava continuamente, devendo ser integrada nesse processo (Cambi, 1999).
econômica, etc.), por que vinham passando os Estados Unidos da América do Norte
desde meados do século XIX, aconteciam associadas a mudanças nos hábitos das
importância da escola primária se insere justamente aí, porque ela é uma das
como designou o sociólogo Norbert Elias (1994). Neste sentido, um dos propósitos da
55
The need for a Laboratory School, 1896.
56
Ver o capítulo I.
Escola Laboratório era encontrar novas práticas para a escola elementar ou primária,
desenvolvendo uma educação escolar adequada àquilo que Dewey chama de uma
Porém, no final do século XIX e início do século XX, uma visão tradicional da
educação escolar era ainda hegemônica nos Estados Unidos, mantendo sua influência
intelectual. Ele considerava que a educação escolar poderia ser algo mais do que o
título foi “A escola como um centro social” (The school as a social centre), Dewey
indicou que a idéia de transformar a escola pública em uma instituição voltada para
exercitar a cidadania era uma questão muito mais relacionada à prática do que à teoria:
os governantes e poder ocupar cargos no Estado - para uma noção ampliada. Como
conteúdos escolares não eram suficientes, e sim novas práticas voltadas para a
“A idéia mais antiga de escola era que a sua primeira preocupação seria com
a inculcação de certos fatos e verdades, do ponto de vista intelectual, e a
aquisição de certas habilidades. Quando a escola se tornou pública ou
comum, esta noção foi ampliada para incluir o que poderia fazer do cidadão
um eleitor e legislador mais capaz e correto; mas ainda se pensava que este
objetivo seria alcançado pela linha do treino intelectual” (Dewey, 1976:83).
Mas o propósito de Dewey era fazer com que as crianças incorporassem hábitos
a vida escolar seria capaz de suprir em termos de educação algo do que estava sendo
perdido com as mudanças na ordem social. Daí a idéia de que a escola deveria ser
organizada como uma comunidade ou uma “embryonic society”, uma das questões
Dewey e a escola antes dele vir a ser um filósofo da educação. Pensemos em Vermont,
sua terra natal, região da chamada Nova Inglaterra (EUA), em torno de 1859. Nesta
época, os Estados Unidos da América do Norte ainda eram uma nação agrária, embora
57
Como indicamos no capítulo I, no século XIX os Estados Unidos sofreram mudanças em sua estrutura
econômica e social, deixando de ser uma país agrário para se transformar, de um modo geral, em um
país industrializado e com a maioria da população vivendo nas cidades.
escolas, de um modo geral, faziam uso de procedimentos tradicionais (recitar, repetir,
copiar, memorizar, relembrar, etc.) para ensinar a ler, escrever e usar os números. As
recordações desse tipo de escola, que despertara pouco interesse no jovem Dewey,
foram compensadas de certa forma pelo importante papel que para ele desempenharam
instituição social e esclarece como fora dela se dá o processo de socialização. Para ele, a
idéias que desde o século XVIII vinham transformando a educação na Europa. Entre os
pioneiros de uma nova escola podemos incluir Jean Jacques Rousseau (1712-1778),
fazer comentários sobre o romantismo pedagógico alemão, Cambi (1999) lembra que
Como assinala o próprio Dewey (1959), a partir da obra de Rousseau ficou clara
58
The University School, 1896.
termos de educação considerar as características próprias das crianças e as suas
qual, além das aulas regulares, os alunos aprendiam a cozinhar, tecer, costurar,
Gertrudis ensina a seus filhos [1801], Pestalozzi fez ilações que lembram muito certas
Essa nova visão da educação foi assimilada por Fröebel e a ênfase na atividade
levada adiante. Ele passou a utilizar os jogos como atividades pedagógicas voltadas
para o desenvolvimento das crianças.59 Essas idéias se espalharam pela Europa e não
demoraram a chegar aos Estados Unidos. Deu-se início então à criação daquilo que
atividades das crianças, contando com professores para orientar o processo. O jogo e as
Estados Unidos -, quase sempre se indica que uma de suas principais características foi
ter trazido o aluno para o centro do processo de educação escolar. Nos Estados Unidos
59
Como veremos no capítulo III, Dewey também teceu críticas ao método de Fröebel.
educadores passaram a advogar que o aluno precisava ser analisado e conhecido pelas
acompanhado em sua singularidade. Mas esta visão não emergiu sem grandes
educacional americano estava dominado pela luta entre dois grandes grupos que
escolar. Cada um dos lados era liderado por uma figura importante no cenário
intelectual da época. O curioso é que ele tivera em sua formação contato com ambas as
filosófico em um período decisivo de sua vida. De outro lado, Granville Stanley Hall,
desenvolveu o referido debate. Se Dewey não foi um mero espectador dessa verdadeira
batalha em torno do currículo, também não tomou partido explicitamente por nenhuma
William T. Harris ajudou a construir uma plataforma para o segmento que resistia à
idéia de grandes mudanças no sistema escolar. Mudanças estas que eram justificadas
pelas enormes transformações por que vinha passando a sociedade americana como um
partir das “cinco janelas da alma” (gramática, literatura e arte, matemática, geografia e
sua persistente ênfase na racionalidade o colocava em conflito direto com aqueles que,
como Stanley Hall, advogavam uma educação de acordo com a natureza da criança (p.
36).
tomou parte Dewey, e depois liderados por Stanley Hall, estavam aqueles que
suas propostas a figuras como Pestalozzi, Fröebel e Rousseau, mas a idéia de que a
“chave” do currículo estava no estudo da criança não alcançou âmbito nacional nos
Estados Unidos antes do final do século XIX (Kliebard, 1986). Foi Hall, ao retornar da
Ele fez aparecer a hipótese de que os impulsos naturais da criança poderiam ser usados
para dirigir as questões do ensino (Kliebard, 1986:43). Tendo publicado em 1883 The
que até então vinha sendo uma espécie de mentor intelectual de Dewey. Com Stanlley
Hall, o “movimento pelo estudo da criança” foi identificado como algo científico,
realizações da cultura ocidental era visto como ultrapassada especulação. Uma das
questões básicas dos que passaram a enfatizar o desenvolvimento da criança era que a
60
Fundada em 1895 como um grupo dissidente da National Education Association, a National Herbart
Society congregou educadores americanos - muitos dos quais tinham estudado na Alemanha e se
consideravam como portadores de uma visão científica - que se opunham ao conservadorismo
representado pela corrente pedagógica que defendia a manutenção do tradicional currículo humanista
(Kliebard, 1986:18).
escola tradicional frustrava as suas demandas básicas por atividades, tratando-a como
positiva a perspectiva de realizar estudo científico sobre a criança, mas manteve uma
exigências práticas da sala de aula. No final da década de 1920 Dewey escreveu o texto
ciências que lhe servem de fonte de conhecimento. Ele indica que a educação estava em
Nos Estados Unidos, já antes de Hall se tornar uma figura de destaque do campo
Mann ficou conhecido como “the father of American public education” e Francis
escola pública americana. Originário da Nova Inglaterra, como Dewey, Francis Parker
se dedicou a procurar novos caminhos para a escola que livrassem as crianças do clima
sombrio e de tédio que reinava nessa instituição. Após a Guerra de Secessão (1861-
1865), Parker passou três anos na Europa, onde entrou em contato com novas teorias
61
Dos estudos com discípulos alemães de Herbart, Hall trouxe a idéia de aplicar uma culture-epochs
theory à pedagogia, ou seja, a visão de que a criança repete em seu desenvolvimento os estágios que a
“raça humana” atravessou no curso da história. A proposição geral dessa teoria era que “a ontogênese
recapitula a filogênese” (Kliebard, 1986:45).
62
Esta foi uma questão também tratada com muita acuidade pelo educador brasileiro Anísio Teixeira
em “Ciência e arte de educar”, um trabalho de 1957 em que ele retoma as idéias que Dewey expusera
no referido texto da década de 20.
(self-development), aprender fazendo coisas e não apenas ouvindo, recitando, repetindo
e relembrando as lições, estas foram algumas das idéias que Parker tentou pôr em
prática. Segundo ele, a criança teria que ser considerada como alguém que se interessa
escola. Em 1883, Parker foi trabalhar perto de Chicago, em Cook County, dirigindo
uma Escola Normal. Ali suas idéias começaram a ser empregadas diretamente na
formar uma nova geração de professores mais abertos à perspectiva experimental. Ele
Alguns anos depois, Dewey usaria palavras semelhantes a estas para definir a escola
como uma “embryonic society”. Segundo DePencier (2000), “Parker uma vez disse que
ele e John Dewey compartilhavam as mesmas idéias, mas que Dewey podia expressá-
Chicago, que contava ainda com a contribuição das novas ciências-fonte da educação,
fatores fundamentais. Como alguns intelectuais de sua época, ele também leu na teoria
63
Em A Rebelião das elites, Christhopher Lasch (1995) dedica um capítulo à análise das idéias de
Horace Mann sobre educação - defesa do realismo histórico, crítica à imaginação, abandono de uma
postura guerreira, idéia de que a educação só pode acontecer na escola, etc. - que teriam tido efeitos
negativos na vida política dos Estados Unidos. Contudo, Lasch (1995) reconhece aspectos do ideário
pedagógico de Mann que nos remetem a Dewey: a construção de “um sistema de escolas públicas
freqüentadas por todas as classes da sociedade”; a rejeição do modelo europeu, “que proporcionava
uma educação liberal para as crianças privilegiadas e treinamento profissional para as massas”; a
abolição do trabalho de menores e a “nítida separação entre igreja e Estado, protegendo as escolas de
influências sectárias”, etc. (p. 173).
são infinitas. Mas Dewey não acreditava que as leis da natureza garantissem a perfeição
Era justamente esse método que deveria reger a Escola Laboratório da Universidade de
Chicago.
A idéia de escola como uma “sociedade em miniatura” significava que ela seria
humana resolvendo problemas. Esta era uma concepção efetivamente distinta da escola
tendo como fundamento de sua organização a hierarquia. Assim, a visão geral de escola
transformação.
pois dariam expressão a uma nova filosofia da educação. Se as turmas tivessem que ser
necessário e se um novo tipo de organização escolar tivesse que ser adotado, tudo isto
64
Com “darwinismo social” quero me referir à visão de Herbert Spencer, que fizera com enorme
sucesso em 1882 uma série de conferências nos Estados Unidos para divulgar suas idéias. Um dos
argumentos básicos de Spencer era que haveria um paralelo no âmbito social das leis que Darwin
utilizava em termos de seleção natural. Em outras palavras, “survival of the fittest” ou a sobrevivência
do mais apto seria uma lei não apenas da selva, mas também da civilização. Nos Estados Unidos, foi
Lester Frank Ward, botânico, geólogo e autor de Dynamic Sociology [1883], quem se destacou como
crítico das idéias de Spencer. Para Ward, o “darwinismo social” era uma corrupção da teoria de
Darwin, porque o ser humano tem a possibilidade de intervir pelo uso da inteligência, quaisquer que
sejam as circunstâncias, nas forças cegas da natureza, mudando o curso do progresso social. Devido a
uma “fé prática” ou apenas a uma ilusão, o fato é que Ward dividia com Dewey a visão de que a
educação pode promover a justiça social (Kliebard, 1986:26).
Chicago e dos Estados Unidos necessitavam de reformas substancias, e foi a essa
desde a segunda metade do século XIX. No caso da Universidade de Chicago, ela fora
criada tendo como meta fazer da pesquisa o principal motor da instituição (Mills, 1968;
Dykhuizen, 1973). Desde os seus primeiros dias essa universidade emergiu como centro
perspectiva experimentalista era bem adequada ao contexto institucional; isto pode ter
sido algo decisivo na disputa que ele travou com Julia Bulkley para o cargo de diretor
Laboratory School - Lessons for today, a mais importante lição da Dewey School foi a
voltados para a construção de uma sociedade democrática. Foi o próprio filósofo quem
Universidade de Michigan, uma instituição com fortes vínculos com o sistema público
sugeriu a criação da Escola Laboratório. Como observou sua filha Jane Dewey, que
seus estudos de Ética e tentava observá-las na prática educacional. Como ele mesmo
declarou a Katherine Mayhew e Anna Edwards (1936), “o objetivo era testar certas
idéias, que eram usadas como hipóteses de trabalho. Estas idéias eram derivadas da
da psicologia”(p. 464).
foi o fato de nenhum deles considerar o psicológico como algo puramente individual.
ponto de vista do indivíduo, isto não significa que tais processos sejam necessariamente
ou impulsos das crianças e tomá-los como o alicerce do método educacional. Mas uma
questão se colocava: como utilizar essas tendências ou impulsos dos indivíduos como
para a família e para os outros as experiências de seu ainda limitado mundo. Trata-se de
próximo, mas que serve como chave de sua vida intelectual, pois é o impulso para dizer
65
Tanner (1997) ressalta que, “por psicologia contemporânea, Dewey entendia psicologia do
desenvolvimento, não behaviorismo” (p. 15). Sobre esta questão, ver no capítulo III o item 5. O
pensamento e a ação.
algo sobre as coisas, de mostrar suas idéias aos outros. Neste sentido, observou Dewey,
construtivo, aquele dirigido a fazer coisas e que encontra sua primeira expressão no
hipótese de que as crianças fazem coisas justamente para ver o que acontece; ao
professor caberia então fazer com que uma atividade levasse a outra ainda mais
expressão maior destes. Assim, utensílios e materiais necessários para expressar idéias
deveriam estar sempre disponíveis nas atividades (Dewey, em Mayhew & Edwards,
1936:41). Estes quatro impulsos ou tendências seriam as fontes primárias para a ação. A
questão do currículo a ser desenvolvido na Escola Laboratório pode ser vista associada
processo de educação. Até então não havia experiências escolares atentas às condições
como guia apenas alguns princípios gerais formulados por Dewey. Ou seja, não havia
organização específico para a escola.66 Neste sentido, a experiência acumulada nos seis
como base os êxitos e particularmente as falhas nas tentativas, foi sendo construído um
66
Este foi um dos motivos por que optamos por tentar “reconstruir” como emergiu na obra de Dewey
aquilo que se chama de uma filosofia ou teoria geral da educação.
conhecimento da criança, de seu comportamento geral, de suas forças e interesses, ao
manteve: dar a cada criança a oportunidade e um método para fazer coisas que
cada fase do processo de crescimento. Três períodos foram demarcados: o primeiro, que
se estende dos quatro aos oito anos de idade, é aquele em que as conexões entre a escola
e a vida doméstica são mais necessárias. Neste estágio, o fazer e o dizer são formas de
usar os números. Mas estas não eram consideradas importantes em si mesmas, senão
mais consciente era então exigida na forma de fazer as coisas, algo distinto do simples
fazer por fazer. Este é um período considerado crucial para se assegurar o conhecimento
de regras e técnicas. O terceiro estágio no desenvolvimento das crianças ia dos dez aos
com a diferenciação das diversas linhas de trabalho ou das distintas ciências (Mayhey &
Edwards, 1936:54). Dewey indicou a necessidade da escola adequar os conteúdos do
“Nós temos que fixar a atenção primeiramente na criança para descobrir que
tipo de experiência é apropriada para ela, em um período selecionado; para
descobrir, se possível, o que constitui a característica especial da
experiência da criança naquele período; e por que aquela experiência toma
certa forma e não outra. Isto significa observar em detalhes que experiências
são mais significativas e têm maior valor para a criança, e que atitude esta
assume com respeito a elas. Nós procuramos pelo ponto ou foco de interesse
nessas experiências” (Dewey, 1972:172).67
para se pensar em algo mais do que nas estruturas gerais da mente. Com os saberes de
que dispunha, ele tentou esclarecer como seria possível realizar uma educação que
partisse da experiência do aluno, que utilizasse o seu interesse como mola propulsora,
individual e o social.
polêmicas e equívocos. Uma delas foi justamente a ênfase posta no interesse das
crianças. Vejamos o que disse sobre isso o próprio Dewey, em The School and Society
[1899]. Ele lembra da diferença a ser observada entre, por um lado, despertar o
interesse e, por outro, ser indulgente com o aluno em um dado processo. Ao comentar
uma atividade realizada com desenhos feitos com lápis e papel por crianças de 7 anos
de idade, Dewey ressalta que não se deve perder de vista o geral em um fenômeno
singular. A partir de uma discussão sobre as condições de vida dos seres humanos
através de formas e cores; se ela segue indefinidamente nessa tarefa, seu crescimento
67
The psychological aspect of the school curriculum, 1897.
não é mais que acidental. Porém, se deixarmos que ela dê expressão aos impulsos e,
através da crítica, de questões e de sugestões, lhe for dada a “consciência” do que foi
feito e do que ainda precisa ser feito, o resultado será bem diferente. É importante
destacar nesta explicação a idéia de que se uma boa educação não se dá apenas pela
transferência de conhecimentos, também não pode ser confundida com o laisser faire.
como uma de suas referências básicas alguns princípios gerais da organização social dos
ser uma espécie de “introdução à vida social”, onde os alunos seriam impregnados de
direção.
deles, significa que o trabalho de cada um pode contribuir para objetivos comuns.
sentido oposto ao desta visão, quanto mais isolados os indivíduos ou quanto mais
sociedade democrática.68
que o aprender é uma experiência social. Este é um ponto fundamental para a nossa
discussão, pois diz respeito à questão central deste trabalho. Escutemos então o que nos
indicou que uma das críticas que se fazia à psicologia tradicional era por considerar que
com as coisas.
Contudo, havia razões para que fosse considerada a idéia de que a Escola
68
Ver capítulo IV.
passividade: “Inconscientemente, tais visitantes identificavam o fator “social” em
que eles encontravam naquela Escola Laboratório de Chicago era um ambiente onde a
atividade e a mobilidade faziam parte das regras, e a imagem que ficava era então a de
que, principalmente nos dois primeiros anos, a Escola Laboratório deixou realmente
mais livre e visível o lado individual, tendo em vista acumular informações sobre
crítica é que a separação rígida entre as diversas áreas do conhecimento pode criar
profissional. A sugestão dada por Dewey parecia algo muito simples: se as matérias
pudessem ser desenvolvidas em conexão ativa e concreta com o mundo, elas poderiam
organizassem em torno de temas relativos à vida dos alunos - que é sua origem e
69
Dewey fazia algumas restrições ao uso do livro-texto. A dependência deste poderia fazer com que a
criança o considerasse como a principal, talvez a única, forma de obter informações, ao invés de
desenvolver o hábito de pesquisar.
Dando início ao processo de ensino e aprendizagem através de algo familiar às
como ler, escrever e contar. A idéia era que estas habilidades emergissem gradualmente
das atividades que integravam o currículo. Ao invés de partir da teoria e vê-la aplicada
crianças aprenderiam a usar tais ferramentas como quaisquer outras. Neste sentido,
Dewey chegou a afirmar que nenhum esforço especial seria feito naquela escola para
que as crianças aprendessem a ler aos seis anos, sem que antes elas tivessem percebido
de alguma forma que necessitavam alcançar tal objetivo, dominar tal ferramenta:
língua como um meio para descobrir coisas, que de outra forma permaneceriam
desconhecidas, e compartilhar com os outros aquilo que ela tinha descoberto. Assim, ela
aplicação: “O divórcio entre aprender e o seu uso é o mais sério defeito de nossa atual
educação”, declarou Dewey (Mayhew & Edwards, 1936:33). A ênfase posta pela
estava relacionada ao fato de que tais ocupações poderiam ser conectadas com a vida
dos alunos. Era também uma forma considerada eficaz de assegurar a atenção das
cooperação. Dewey defendia o uso das mãos como um instrumento para criar hábitos de
construção. Neste sentido, ele pôde advogar com firmeza e tranqüilidade a importância
alunos atividades que pudessem ser utilizadas para a apresentação dos conceitos
científicos. Por trás desta estratégia estava, como indicamos, a idéia de que a
70
A noção de desenvolvimento genuíno, opondo-se à de desenvolvimento artificial, está associada à
extensão com que a criança reconhece na escola relações semelhantes às que obtém fora dela. Dewey
utiliza esta noção tanto para o desenvolvimento intelectual quanto para o moral (Mayhew & Edwards,
1936:32).
Em The Psichological Aspect of the School Curriculum [1897] Dewey (1972)
indica que uma matéria pode ser considera sob dois aspectos: o lógico e o psicológico.
De um ponto de vista lógico, uma matéria é um corpo ou sistema de fatos tidos como
válidos e que se sustentam por certos princípios internos de relação. Sob este ponto de
matéria (ou tema de estudo) é tratada de um ponto de vista objetivo e o que está em
de viver uma experiência. Neste sentido, a geografia, por exemplo, não é apenas um
caminho através do qual os indivíduos podem pensar e sentir o mundo, um país, uma
região, etc.. Para Dewey, é deste último ponto de vista que a matéria deveria ser
primeiro apresentada.
XIX estava no fato das matérias do currículo serem selecionadas e determinadas, como
um todo e em seus vários estágios, tendo como referência apenas uma base lógica ou
Dewey já reconhecia aquilo que ele chamou em The School and Society [1899] de “uma
através dessa instituição social chamada escola, teria que abandonar de certa forma a
acima dos alunos. Dewey (1980) sintetiza suas críticas à “velha escola” observando que
nela o centro de gravidade estava fora da criança: “[Ele] estava no professor, no livro-
texto, em qualquer lugar que você queira, exceto nos instintos imediatos e nas
atividades das crianças” (p. 23). A “escola nova” teve como um de seus princípios
considerar como prioritário o aspecto psicológico, ele chamava a atenção para a relação
que as matérias devem manter com “a experiência que a criança já tem, que pode ser
relações ou interações do indivíduo com o mundo, que inclui outros indivíduos. Neste
escolares, tema polêmico nas propostas de Dewey, ele repete em vários textos que isto
não significava que tais interesses estabelecessem o padrão final para o trabalho escolar.
Levar em conta os interesses das crianças significa que nenhum método de ensino pode
ser cogitado sem que as experiências dos alunos sejam consideradas: “Estes interesses,
experiências e impulsos nativos e atuais formam todos a força de uma alavanca com a
qual o professor deve trabalhar, com a qual ele tem de se relacionar ou fracassa
falta de interesse, por exemplo, seria um indício de que o aluno não está sendo capaz de
“Somente quando o indivíduo tenha passado por certas experiências, que ele
reconhece como de vital importância, ele estará preparado para considerar o
ponto de vista lógico e objetivo, pronto para enfrentar e analisar os fatos e
princípios envolvidos” (Dewey, 1972:168).72
Segundo Dewey, ao trabalhar com crianças o professor deve ter como referência
dos alunos ou o escopo de experiências que eles podem facilmente captar com o
diz respeito aos conhecimentos necessários para que o professor estabeleça relações
entre as experiências das crianças e as matérias; relações que se referem não apenas à
criança em geral, mas as suas características específicas, como a idade, gênero, a casa,
os contatos sociais etc. (Dewey, 1972:170). Desta perspectiva, temos que reconhecer
que não há fatos ou matérias relevantes em si. Além disso, um dado aspecto da
realidade pode ser abordado de distintas formas, de acordo com aquilo que se tem em
vista. Um mesmo território, por exemplo, pode ser analisado do ponto de vista da
atividades (cultivar um jardim ou visitar uma fazenda, por exemplo) que servissem para
apresentar os conceitos através de uma gradual diferenciação das matérias. Desta forma,
sistematizados (Tanner, 1997:45). Para Dewey, a criança parte de uma perspectiva mais
72
The psychological aspect of the school curriculum, 1897.
geral e só aos poucos vai abstraindo o específico. Ele considerava que a matéria
estudada só funciona de uma forma ativa se o aluno partir de questões e tentar resolvê-
pragmatista de que o conhecimento é o produto da relação entre uma questão que surge
e a atividade que a soluciona ou explica. Neste sentido, era preciso criar com os alunos
interesse seria o motor desse processo. Supunha-se que todas as crianças são
abastecimento d’água daquela cidade, foram utilizados para gerar discussões que
alguns relatos dos professores apresentados por Tanner (1997), uma aula de culinária
podia ser realizada junto com uma aula de Francês. Trabalhos na oficina de metais
serviam tanto para uma aula de ciência quanto para uma de história. Estas combinações
estavam relacionadas com a hipótese de que a conexão entre atividades e matéria é uma
5. Um tema organizador
Laboratório enfrentou dificuldades para empregar a teoria geral da educação que vinha
73
Os grifos são meus.
tema geral (organizing theme) foi então sugerido, tornando-se um fator importante para
analisar a complexa estrutura social que existe na produção de casas, alimentos, etc.,
das cavernas pré-históricas, passando pela Idade da Pedra e dos Metais, até à civilização
suas capacidades).
Um dos problemas desta estratégia era a falta de foco do referido tema, pois
surgiu a idéia das ocupações (social occupation), consideradas por Dewey como
atividades básicas da vida social, tornando possível o contato gradual das crianças com
criando condições para que elas se expressassem através das atividades, exercitando o
controle de suas próprias forças. Um currículo assim organizado parece tentar criar uma
ponte entre os fins social e individual, que para Dewey era o problema central a ser
74
Plan of organization of the University Primary School, 1895(?).
poderiam aprender como a sociedade vem se desenvolvendo para ser o que é. Mas nem
todas as atividades poderiam ser utilizadas de forma prática em uma escola de ensino
algumas delas pareciam ter um maior alcance, no sentido de mostrar esse processo e
estimular a curiosidade das crianças. A atividade têxtil foi uma das escolhidas. Ela
condições mais primitivas até às moderna fábricas com seus sofisticados maquinários e
Laboratório não eram exatamente as fases do curso da história, senão etapas na forma
como o ser humano adquiriu controle do mundo através do uso da inteligência, etapas
possíveis entre as matérias que seriam estudadas, e Dewey participava desses encontros
em que se dividiam insights e experiências (Tanner, 1997: 48).75 Como já foi indicado,
a relação entre as matérias foi algo objetivamente proposto por Dewey tendo em vista a
idéia de um currículo integrado. “[Ele] começou com uma concepção total em mente ao
75
Tanner fez estes comentários a partir da análise do boletim University Record, em que se encontram
registrados aspectos do funcionamento daquela Escola Laboratório.
invés de tentar combinar duas ou três matérias” (Tanner, 1997:58). Para Dewey, o
integravam justamente através do tema geral e pela contínua troca de experiência entre
6. Cooperação e reflexão
Pela análise que fez deles, Tanner (1997) afirma que os professores fornecem provas
seu próprio caminho. Esta perspectiva era justamente o que Dewey queria evitar. Mas,
por outro lado, não era seu intuito criar amarras para os professores. O problema que
76
A troca do professor generalista (all-round teacher) pelo especialista em cada disciplina foi uma das
primeiras reformulações empreendidas na Escola Laboratório. O rápido desenvolvimento do conheci-
mento científico e o processo de especialização em todos os campos disciplinares tornavam o trabalho
do generalista inadequado para desenvolver com as crianças atividades voltadas para a introdução do
método científico. É como se faltasse ao professor generalista conhecimentos mais aprofundados das
diversas matérias que ele tinha que ministrar. “Dewey não tinha nenhuma ilusão de que um professor
sem conhecimento especializado em um dado campo pudesse desenvolver conceitos e atitudes positivas
das matérias” (Tanner, 1997:100)
77
As linha gerais desse relatórios ou boletins semanais (weekly reports) eram as seguintes: o que
estavam estudando; a razão de estudar isto ou aquilo; o modo como o objetivo foi ou não alcançado.
Vários trechos desses relatórios estão reproduzidos no livro de Tanner (1997).
então se colocou para Dewey foi o seguinte: que liberdade e responsabilidade deveriam
ter os professores na seleção dos temas das matérias e no modo como estes seriam
apresentados às crianças? Sua resposta foi que deveriam ser evitados os extremos a que
fica exposta uma escola. De um lado, a permanente improvisação, que pode destruir a
1936:366).
errar, que o erro estivesse sempre na direção de mais liberdade. Porém, a liberdade a
que ele se referia estava associada ao uso criativo da mente quando engajada no
(Tanner, 1997:72). Neste sentido, uma importante lição parece ter sido aprendida por
Dewey na Escola Laboratório: não se deve considerar algo garantido que os professores
tenham a base intelectual adequada para utilizar efetivamente uma nova abordagem de
ensino.
corpo docente quanto para os alunos. Segundo Dewey, não seria correto exigir dos
alunos aquilo que os próprios professores não conseguem realizar. A escola funcionava
Por trás dessa visão estavam as idéias e a ação de Ella Flagg Young. Esta
professora, que foi também orientanda de John Dewey, advogava o respeito e a atenção
Ella Flagg Young78 era mais velha que Dewey e, embora não tivesse nenhum
título acadêmico quando chegou à Universidade de Chicago, contava com muitos anos
Ela foi admitida no doutorado daquela universidade e concluiu sua pesquisa em 1900,
Sua tese, publicada em 1906 pela editora da Universidade de Chicago com o título de
aristocracia” (Young apud Tanner, 1997:95). As duas classes a que Young se refere são
sistema de organização da escola parecem bem coerentes com a perspectiva ética que
Dewey imaginava para educação. Segundo Tanner (1977), Dewey aprendeu com
educação:
“Foi com ela que eu aprendi que liberdade e respeito pela liberdade
significam considerar o processo de indagação e reflexão dos indivíduos, e
aquilo que ordinariamente passa por liberdade - liberdade de restrições
externas, espontaneidade na expressão, etc. - só tem significado em conexão
com as operações do pensar” (Dewey apud Tanner, 1997:111).
com uma estrutura rígida e hierarquizada? Neste sentido, é importante pensar na relação
entre organização da escola e currículo, pois uma organização escolar inadequada pode
eles mesmos tinham que trabalhar dentro de uma linha participativa e cooperativa. Nos
natureza prática. Mas observações do próprio Dewey nos levam a crer que a cooperação
deveria ter, não obstante, uma acentuada qualidade intelectual na troca de experiências
bem a ênfase dada por Dewey ao caráter social do aprender. Assim, o tipo de
empreendida.
7. As mãos e a mente
tornou uma questão polêmica nas discussões sobre educação no final do século XIX nos
Estados Unidos. Alguns advogavam essa forma de ensino porque seria necessário
Embora tivesse uma visão distinta desta questão, como se pode ler em The School and
Society79 e em outros textos, Dewey fez uma ampla defesa da incorporação dos
filosóficas e políticas.
79
Em 1899, no terceiro ano de funcionamento da Escola Laboratório, Dewey proferiu três conferências
para os pais dos alunos, com o propósito de explicar as idéias gerais presentes naquela escola e o que
ele entendia por “New Education”, além de tentar refutar certas críticas. À transcrição dessas
conferências foram adicionados outros textos que formam o livro The School and Society.
A discussão nos remete a um tema que perpassa a história do Ocidente e que em
última instância nos remete a Platão: a hierarquia em que o trabalho intelectual aparece
sociedade. Para tal distinção se encontram justificativas no campo filosófico e elas vêm
sendo utilizada ao longo de mais de dois mil anos. Contudo, Dewey se opunha a esta
perspectiva. Ele construiu sua crítica partindo da história das idéias no Ocidente, desde
saber e fazer teve origem nas mesmas condições sociais que geraram a oposição entre
“trabalho para ganhar a vida” e o “gozo de lazeres”. A esta separação entre as atividades
visa a preparação para profissões “práticas”, em que nem sempre há por parte do
educando um interesse ativo pelos fins a que obedece a ocupação. A educação liberal
oposição entre estes dois termos é relacionada por Dewey (1959) ao fato da filosofia
ateniense, principalmente a elaborada por Platão, ter começado como uma crítica aos
sociedade” (p. 289). Na busca por algo que substituísse as incertezas de uma sociedade
vinculava-se também aos costumes, ao saber adquirido na prática, mas não baseado no
conhecimento dos princípios. Inferia-se então que a razão era algo distinto e superior à
experiência: “A razão era a faculdade com que se apreendiam o princípio e a essência
Ocidente, que são visíveis ainda hoje: a desconfiança e mesmo o desprezo pelas
mais alto quanto mais se aplique ao exame das próprias idéias, a superioridade atribuída
artes e ofícios como meios de educação intelectual (Dewey, 1959). Tudo isto se
faculdade remota e ideal, passando a ser vista como um instrumento por meio do qual a
conhecimento: “Quando o ato de tentar ou experimentar deixa de ser cego pelo instinto
ou pelo costume, e passa a ser orientado por um objetivo e levado a efeito com medida
e método, ele torna-se razoável - racional” (Dewey, 1959:300). Esta seria a noção de
descobrir algo, necessitam da ação. Isto seria uma prova de que a atividade pode ser
intelectualmente fecunda e em nada inferior ao puro pensar. Pode parecer evidente que
tal visão deveria ter posto em cheque a oposição entre estudos puramente intelectuais e
pragmatistas de Chicago como muito mais do que uma forma de treinamento mecânico:
Para Dewey e Mead, a segregação entre estas duas formas de ensino era um
terem sido consideradas por muito tempo como atividades destinadas às classes
nas escolas foi também uma tentativa por parte dos pragmatistas de Chicago de fazer
Se até então havia uma nítida e consentida distinção entre, por um lado, a
para refutar hipóteses que davam sustentação à referida hierarquia. É neste ponto que a
80
Os grifos são meus.
do relativo valor das coisas, não um exato conhecimento de caminhos
aceitáveis” (Rucker, 1969:99).81
de uma visão ampla, porque as modificações nos currículos e métodos de educar são
pudesse ser feita, esta perderia o seu caráter isolado, deixaria de ser concebida como
algo que procedia apenas de engenhosas mentes de pedagogos lidando com certas
Assim procedendo, a primeira grande questão que é levada em conta por Dewey
grande escala as forças da natureza. Junto a este processo, milhões de pessoas foram
processos no final do século XIX. Neste contexto, indagava Dewey, por que a educação
81
Esta noção de inteligência se aproxima daquilo que Bourdieu chama de “razão prática”, “senso do
jogo” ou “senso prático”.
produzir” (p. 8). Este é um ponto importante a ser enfatizado porque, segundo Dewey
matemática, por exemplo, “nenhum treinamento dos órgãos dos sentidos na escola,
“senso de vida” que vem através do contato e participação diários em ocupações que
são familiares” (p. 8). O problema é que a indústria e a divisão do trabalho tinham
teriam que desempenhar no futuro em suas próprias vidas. Tais razões não são
subestimadas por Dewey, mas sua argumentação ia além. O que nos interessa aqui
reforçar é que, para ele, trabalhar em madeira ou em metal, tecer ou coser deveriam ser
Esta defesa dos trabalhos manuais estava associada a uma crítica à determinada
82
Os grifos são meus.
aprendizagem; não aos nossos impulsos e tendências para fazer, criar,
produzir, seja em forma de arte ou de algo útil”(Dewey, 1980:18).
por Dewey podem ser vistas até hoje na divisão hierárquica entre “cultured” people e
“workers” ou na rígida separação entre teoria e prática (Dewey, 1980:18). Ele também
chamou a atenção para o fato de que em grande parte dos seres humanos o interesse
material escolar: “I’m afraid we have not what you want. You want something at which
the children may work; these are for listening” (Dewey, 1980:21). A diferença posta aí
entre trabalhar (work) e ouvir (listening) não parece ser um mero jogo de palavras.
Dewey toma esta história para ilustrar a discussão sobre um certo modelo de escola, em
que quase tudo estava desenhado para que os alunos ouvissem e assimilassem os
para ajustes, conforme as variadas demandas (Dewey, 1980:23). Dewey descreve com
doing parte da crítica a certos dualismos da filosofia e tem implicações nos campos do
maior. Para o que estamos tentando demonstrar, a questão das ocupações na escola
hábitos:
A escola tradicional que estava sendo questionada por Dewey tinha como núcleo
de sua dinâmica a transmissão de conhecimentos teóricos. Mas no que diz respeito aos
princípios éticos, ele supunha que era pouco consistente transmitir teorias sobre os bons
costumes ou teorias morais: “Não há nada na natureza das idéias sobre moralidade, nas
84
Em sua tese de doutorado sobre Anísio Teixeira, Mendonça (1993) alerta para a crítica de Dewey ao
modelo fabril de escola.
informações sobre honestidade, pureza ou bondade que converta tais idéias em bom
educação moral deveria permear todos os aspectos do currículo e da vida escolar. Isto é,
“Os valores sociais são abstratos até que eles tomem parte e se manifestem
na vida dos alunos. Temos que perguntar, portanto, o que eles significam
quando traduzidos em termos de comportamento dos indivíduos... Temos
que considerar a criança como agente (agent) ou executante (doer), e os
métodos pelos quais ela reproduz em sua própria vida os conteúdos da vida
social” (Dewey, 1972:76).85
manter uma visão estreita do próprio processo de aprendizagem. Ele afirma que não
deve haver dois conjuntos de princípios éticos ou duas formas de teoria ética, uma para
a vida dentro da escola e outra para fora dela. Porém, assinala que toda teoria ética tem
duas faces, pois ela pode ser considerada de dois diferentes pontos de vista, um social e
outro psicológico. Trata-se de uma distinção importante, pois para se abranger toda a
esfera da conduta é necessário estar atento a esses dois aspectos. Isto acontece porque
de indivíduos. Assim, não há o indivíduo por si mesmo, pois ele vive em, para e por
uma sociedade. Por outro lado, uma sociedade não existe exceto nos e através dos
indivíduos que a constituem (Dewey, 1972:55). Desta perspectiva, uma questão clássica
da ética - dizer a verdade, por exemplo - pode ser abordada tanto de uma perspectiva
social quanto psicológica. Esta diz respeito ao indivíduo em particular e aquela se refere
dois aspectos. Por um lado, ela é ação, um modo de operar, é alguma coisa que alguém
faz, pois só há ação quando há agente. A conduta é um processo com uma forma ou
85
Ethical principles underlying education, 1897.
modo específico, a realização de um agente. A psicologia fixa assim o como (how) da
conduta, como o indivíduo age ou opera. Por outro lado, há algo que é feito, há fins,
realizações, resultados, do mesmo modo que há meios e processos. Este seria o aspecto
que age, mas a uma situação, o que (what) o indivíduo faz ou necessita fazer tendo em
sociedade e deve ser pensada e cuidada como tal. A escola é fundamentalmente uma
instituição montada pela sociedade para realizar determinado trabalho ou exercer certa
função de manter a vida e fazer avançar o bem-estar social. Para Dewey (1972), o
sistema educacional que não reconhece este fato como algo relacionado a uma
responsabilidade ética está abandonado. É neste sentido que ele critica a limitada função
capacidade para votar e cumprir as leis. Educar para a cidadania era e ainda é uma das
funções normalmente atribuídas à escola. Por pensar a criança como um todo orgânico -
que inclui os aspectos intelectual, moral e físico -, Dewey sugeriu que os princípios
éticos que regem o trabalho escolar fossem considerados de uma perspectiva também
orgânica. Assim sendo, não basta olhar para a criança apenas como eleitor e sujeito da
lei, pois ela é também membro de uma família, será trabalhador(a) engajado(a) em
Para a criança ocupar um lugar relacionado a todas estas funções e a outras mais, é
preciso que ela seja educada em ciência, arte, história, que maneje ferramentas de
É importante notar neste texto citado, bem como em vários de seus textos sobre
educação, o fato de John Dewey está se referindo às crianças de uma sociedade definida
obediência, para ter auto-direção e poder dirigir outras, sendo hábeis para assumir
liderança era algo importante tanto para o campo político quanto para o industrial.
impossível educar alguém para posições fixas na vida. Neste sentido, a escola teria que
morais na escola era algo formal e mesmo patológico, exceto se a própria escola fosse
concebida como uma comunidade. Esta foi a opção adotada pela Escola Laboratório. O
ensino de princípios morais é patológico se a ênfase está posta na correção do que foi
feito de forma errada pois a preocupação com a vida moral dos alunos consistiria em
ficar atento aos seus desvios em relação às regras e à rotina da escola, ao invés de visar
a formação de hábitos positivos (Dewey, 1972:62). Por outro lado, considerar o ensino
86
Ethical principles underlying education, 1897.
na escola são criados ad hoc. Pontualidade, regularidade, aplicação, não-interferência
no trabalho do outro, todos estes hábitos normalmente destacados pela escola são
formas, as quais tendem a ser preservadas. Porém, Dewey (1972) afirma que a
comunidade”.87 Seria possível aplicar “esta concepção de escola como uma comunidade
social, que reflete e organiza de uma forma típica princípios de toda a vida comunitária,
No que diz respeito ao método, este princípio significa, como já foi indicado,
atividades, o que atrofia gradualmente o espírito social. Ele nos interroga se em tal
processo a falta de cultivo moral não é tão grande quanto a falta de cultivo intelectual.
Mais grave ainda é que isto estava e ainda está vinculado a padrões individualistas de
a emulação. Quando todos os alunos fazem uma só tarefa isoladamente, eles são
padrão puramente “lógico”. Assim, o aluno mais “fraco” gradualmente vai aceitando a
87
No ensaio Ethical principles underlying education, Dewey utiliza alternadamente e sem uma
distinção nítida as expressões moral habits e ethical habits.
88
Este parece ter sido um aspecto menosprezado pelas correntes pedagógicas chamadas de
“conteudistas”. Isto serve para assinalar não apenas a distância que tais correntes mantêm da filosofia
da educação de John Dewey, mas também de uma reflexão sociológica e de aspectos do pensamento de
Paulo Freire, cujas semelhanças com a obra de Dewey não podem ser dissimuladas, ainda que tenham
sido pouco exploradas em estudos feitos no Brasil.
sua posição de contínua e persistente inferioridade, enquanto o mais “forte” se destaca.
Uma das hipóteses formuladas por Dewey era que os métodos que utilizam as
solitária e egoísta - para atividades essencialmente sociais. Ora, segundo Dewey (1959),
“as qualidades moral e social do procedimento são, em última análise, idênticas uma à
caráter, e que podemos perceber o significado disto através das ações dos alunos. Em
outras palavras, significa a modelagem dos impulsos, os quais devem ser organizados
tarefa dos educadores, pais ou professores, era tornar possível que as idéias adquiridas
pelas crianças e jovens fossem assimiladas de um modo que conduzissem à ação, como
curiosa no que diz respeito a uma abordagem científica. Ao invés de isolar o estudo
valores.
Edwards, 1936:426).
experimentar algo que servisse de modelo para uma nova educação escolar o que estava
por trás da Escola Laboratório da Universidade de Chicago. Ele lembrou que havia
conexões entre teoria e prática desenvolvendo pesquisas nessa direção. Uma das
exceções era justamente a Universidade Columbia, em Nova York, para onde ele
Dewey alertou que o laboratório não poderia ser confundido com os próprios
empreendimentos: “Há uma diferença entre ensaiar e testar uma nova verdade ou
1980:56). Ele não esperava que escolas imitassem literalmente a Laboratory School da
Universidade de Chicago, pois aquele trabalho fora realizado para fornecer uma
algumas escolas terem abandonado de forma radical a idéia de direção das ações
individuais e muitas outras continuarem tratando as crianças como seres fictícios. Ele
reconheceu também que muito ainda tinha a aprender sobre a diferença entre despertar
uma visão social e impor ajustes sociais (Mayhew & Edwards, 1936).
Tendo como referência o que foi apresentado até aqui, uma afirmação de
Mayhew & Edwards (1936) sobre aquela instituição parece conclusiva: “A escola deve
ser um lugar onde a atividade individual pode ser social também no caráter, um
mesmo tempo, utilizem-nas para promover a atividade de seu grupo” (p. 458).
criativo, mas ao mesmo tempo reconhece que ele é sempre alguém que interage com
com o desenvolvimento de hábitos de cooperação social parece ter sido a questão maior
escolas públicas em certas comunidades dos Estados Unidos tinha sido uma conquista
importante. Contudo, a grande maioria das crianças americanas continuava entrando aos
seis anos no “antigo” sistema educacional, onde ficavam durante doze anos estudando
mudar tal situação com uma visão do desenvolvimento da criança que se combinava
III
Socialização e hábito
1. Introdução
2. Socialização
3. Habit
4. O desenvolvimento contínuo
5. O pensamento e a ação
6. O hábito de refletir
8. O jogo e o trabalho
9. Linguagem e experiência
Capítulo III
Socialização e hábito
1. Introdução
período de Chicago. Tendo como base de análise os livros Como pensamos [1910],
capítulo é ratificar a hipótese acima, considerando que a ênfase nessa relação é uma das
tradicional. A perspectiva aberta pela filosofia da educação de Dewey diz respeito não
americano; nela também se encontra uma nova compreensão da relação entre indivíduo
e sociedade, e é neste sentido que algumas de suas reflexões - junto com a de outros
pragmatistas de Chicago - estão na origem das ciências sociais nos Estados Unidos.89
entre corpo e mente, entre o material e o simbólico, entre indivíduo e sociedade. Trata-
e, por fim, elaborar uma noção menos genérica e difusa daquilo que se chamou de
“escola nova”. Nas primeiras seções apresento a noção de hábito em conexão com a
89
Ver Anexos.
experiência. Alguns desses aspectos já apareceram nos capítulos anteriores “aplicados”
reforço teórico.
A estrutura deste capítulo, que não difere da dos demais, tem como referência
Ela se parece a um mosaico formado por partes distintas ou fragmentos, que juntos
Esta pesquisa teve início e aqui prossegue com uma questão geral - entender a
especificamente nos trabalhos gerados a partir das experiências realizadas por ele e
pontos do relevo que se destacam por motivos distintos, como certos fragmentos que
brilham mais, embora isto não anule a relevância de elementos menores, mais opacos,
menos visíveis. Melhor se percebe uma montanha se dela se acerca um vale; e se neste
corre um rio, ainda que pequeno, podemos ver o declive do terreno e quiçá localizar o
mar.
2. Socialização
o seu ciclo vital e morrem, mas a vida do grupo pode continuar, com sua memória, sua
socialização, que garante a reprodução e também a renovação daquilo que vai sendo
difícil aprender participando diretamente das atividades com os mais velhos, salvo
ocupações muito simples. Isto demanda um esforço deliberado, intencional, para criar
Esta discussão serve para marcar a passagem de uma visão meramente formal da
educação para uma perspectiva mais ampla e profunda. Como venho tentando
disposições intelectuais, morais e estéticas, enfim, algo que vai além da visão da
ponto de vista da análise teórica, esta visão da educação como socialização está próxima
da que formulara Durkheim (1979). Contudo, Dewey se distingue por sua grande
90
Parece inevitável recordar que, por volta de 1910, Durkheim apresentara em um de seus cursos na
Sorbonne a noção de educação como socialização, que se encontra no primeiro capítulo do Sociologia e
Educação, uma de suas obras póstumas, publicada apenas em 1922.
técnicas expressas em símbolos, a escola parecia abdicar de sua capacidade de formar
certos hábitos:
Um dos desafios da proposta de Dewey para uma “nova escola” era tentar restabelecer
conteúdos.
linguagem utilizada pelas ciências sociais: “O modo por que nosso grupo ou classe faz
as coisas tende a determinar quais os objetos que necessitam de atenção e a traçar assim
um capítulo que se chama “A educação como função social” ele explica o “modo pelo
qual um grupo social conduz os imaturos à sua própria forma social” e qual o papel que
caminho pelo qual os mais jovens assimilam os pontos de vista dos mais velhos,
método mais eficaz de realizar esta passagem está relacionado à ação do meio, ao
“meio” significam aí algo mais do que lugar; elas se referem também às coisas e
relações que exercem influência sobre a formação de alguém. Assim, na medida em que
de meio social.
91
Os grifos são meus.
De acordo com Dewey, não há grandes dificuldades em se observar como o
ele esclarece o sentido daquilo que se chama de adestramento ou treino. Contudo, deve
indivíduos modificam os impulsos originais de suas ações, o que não ocorre pelo
transmitido diretamente de uma pessoa a outra. Esta visão estreita da linguagem parece
sugerir que transmitir uma idéia a alguém seria como fazer um som ferir os seus
ouvidos, o que faria da comunicação um processo apenas físico. Mas Dewey resgata
conjunta” (p. 17). Quiçá a linguagem não fosse um instrumento tão eficaz se não tivesse
como base usos mais tangíveis de meios materiais. Já antes de falar, uma criança vê as
como cadeira, prato, talheres, livro, caneta, dinheiro, arma, etc.. As coisas, como os
signos da linguagem, funcionam como elementos das relações em que vão sendo
estabelecidos os significados. Assim, Dewey (1959) considera que os hábitos de utilizar
de regulação ou controle:
simbólico. Esta noção, que aparece em Democracia e Educação [1916] de forma mais
sistematizada, já estava presente, como foi indicado no capítulo II, nas experiências da
Dewey (1959) parece ter compartilhado com as ciências sociais, que estavam se
constituindo no final do século XIX e início do século XX, a visão de que “o meio
social cria as atitudes mental e emocional do procedimento dos indivíduos” (p. 17). Ele
reconhece também que o influxo educativo ou formativo exercido pela sociedade age
ou classe social faz as coisas tende a modelar as nossas disposições mais profundas:
maneiras, elas são adquiridas de forma eficaz nos atos cotidianos, respondendo a
respeito à apreciação estética, ele contesta a noção comum de que o gosto seria
indivíduo possui dando o exemplo do gosto musical. Alguém pode ser capaz de
conversar com certa propriedade sobre música clássica, e até acreditar que as qualidades
deste tipo de música constituam os seus próprios paradigmas musicais. Mas se o que
prossegue involuntariamente é nos levar a notar que o modo mais eficaz de influir na
formação dos mais jovens é atuando sobre o meio em que eles vivem, pensam e sentem:
mais jovens?
passou então a ser transmitida através de símbolos escritos. Uma sociedade com um alto
nível de diferenciação tende a tornar cada vez mais difícil a sua assimilação in toto.
Assim, uma das funções básicas desta instituição social denominada escola seria,
cultural são selecionados como meios para uma progressiva compreensão das coisas.
Uma outra tarefa da escola seria a de filtrar e eliminar o máximo possível os aspectos
universo dos alunos e contribuir para a melhoria da organização social. Ele certamente
não duvidava de que as crianças vão à escola para aprender algo. O que a sua filosofia
todos os pontos em comum e as diferenças, assinalarei que a teoria do habitus e do sentido prático
apresenta numerosas similitudes com aquelas teorias que, como a de Dewey, destinam um lugar central
ao habit, entendido não como o costume repetitivo e mecânico, mas como uma relação ativa e criadora
com o mundo, e rechaçam todos os dualismos conceituais sobre os quais se fundamentam, quase em sua
totalidade, as filosofias pós-cartesianas: sujeito e objeto, interno e externo, material e espiritual,
individual e social, etc.” (Bourdieu & Wacquant, 1995:84).
da educação nos permite questionar é se o aprender ocorre de forma mais adequada
42). Uma educação escolar desse tipo pode proporcionar aos alunos excitação sensorial,
atividade motora e conteúdos técnicos específicos, mas certamente não lhes garante
clara:
Se os livros e a teoria podem fazer algo neste sentido, o que Dewey propunha
era que as escolas desenvolvessem atividades nas quais os alunos tomassem parte
3. Habit
fatos anteriores, ou o poder de extrair e reter dos fatos algo aproveitável para a
hábitos está diretamente relacionada ao que ele define como plasticidade. Uma aptidão
física especializada para uma dada função pode assegurar eficiência imediata, mas é
pois isto “obriga a aprender-se a variar seus fatores, a fazer combinações sem conta
destes, de acordo com a variação das circunstâncias” (Dewey, 1959:48). Ele dá como
exemplo a diferença entre a rapidez com que um filhote de galinha começa a bicar com
perfeição o alimento, poucas horas depois do seu nascimento, e o tempo que leva uma
executiva, uma capacidade de fazer” (p. 49). Trata-se de uma capacidade de utilizar de
forma ativa as condições existentes para alcançar objetivos. Ele lembra que
adaptação, mas que pode servir de ponto de apoio para a formação de “hábitos ativos”
motriz:
para uma ação mais fácil e eficaz numa dada direção. Isto significa que o hábito
aquilo que cada um é. Em Natureza humana e conduta [1922], Dewey (1988) chega a
afirmar que o cientista e o filósofo, como o marceneiro e o político, conhecem com seus
hábitos, não com suas “consciências”. Contudo, ele afirma também que “é o elemento
intelectual de um hábito que lhe garante o uso variado e elástico e, por conseguinte, o
seu contínuo crescimento” (Dewey, 1959:52). Este é um ponto importante de sua teoria,
forma mecânica:
Se, como foi indicado, Dewey associa a aquisição de hábitos ao que ele define
Americanos de Educação [1928], Anísio Teixeira (1928) afirma que somente um meio
que assegure o amplo “uso da inteligência na formação dos nossos hábitos” pode
contrabalançar a tendência à inércia e à fixidez; ou seja, é o desenvolvimento de
Mills (1968) deste aspecto da filosofia de Dewey não parece muito distinta da que fez
“racionais” se reconstruímos por via reflexiva ‘antigos objetivos e hábitos’” (p. 478). A
relação entre hábito e uso da inteligência pode ser também ilustrada, como fez Newton
hábitos não basta para resolvê-la”. Isto suscita o uso da inteligência, do pensamento
Tudo isto nos ajuda a entender melhor a noção de educação como reconstrução
presente dos deuses; ela emerge das circunstâncias, da vida social, como ocorreu na
Grécia antiga. Porém, quando se generaliza, estabelece um novo costume, “que é capaz
ser associada ao uso da inteligência, esta que Dewey considerava, como bem lembra
Putnam (1997), “não como um feixe de “faculdades”, mas como uma atividade em
93
Ainda na referida obra, Teixeira (1928) define hábito da seguinte forma: “Hábito, no sentido
educativo, não é o hábito rígido ou fixo ou rotineiro. Hábito significa facilidade, economia, eficiência
de ação, e ainda disposição intelectual a mudar, a progredir, a desenvolver” (p. 20).
Segundo Dewey, a adaptação a fins ou a “racionalidade externa” precede a
não é uma dádiva original, mas uma resultante das relações dos organismos com o
mundo, das adaptações objetivas dos seres humanos. Dewey tentou desmontar a noção
(Dewey, 1988). Ainda que a razão seja associada à adaptação, isto não significa que ela
Pelo que vimos até agora, é bastante consistente uma conclusão de Holder
(1995), ao tentar encontrar uma nova base epistemológica para o pensar, seguindo uma
abordagem deweyana:
94
Cassirer (1994), em A Filosofia do Iluminismo, descreve da seguinte forma a idéia de razão presente
no chamado “século das luzes”: “O século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da
razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a
cultura. De todas as variações dos dogmas religiosos, das máximas e convicções morais, das idéias e
dos julgamentos teóricos, destaca-se um conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua
consistência são justamente a expressão da essência própria da razão” (p. 23).
o pensar envolvem de uma forma essencial estruturas não-cognitivas da
experiência, pode o quebra-cabeça de racionalidade e irracionalidade ser
resolvido” (p. 8).
Quanto à questão ética ou moral, no que se refere à ação ela fica imbricada na
filosofia de Dewey, por um lado, na esfera social, e, por outro, no papel atribuído por
ele ao uso da inteligência. Para fins práticos, moral significa costumes, modos,
disposições estabelecidas. Assim, ela pode ser vista como algo dependente das
disposições têm sempre um cunho plural. Isto parece abalar a idéia de uma objetividade
integral da moral. Porém, Dewey considera que a objetividade só pode ser assegurada
se associada com a ação. Ele não reconhece nenhuma dicotomia forte entre o factual e o
Para concluir esta parte, podemos nos perguntar o seguinte: como estabelecer
através de instituições sociais (família, escola, religiões, clubes, turmas, mídia, etc.), do
meio em que alguém vive. Além disso, é algo que ocorre ao longo do tempo e opera
95
Conscientiousness seria uma disposição adquirida para estar atento e ser capaz de entender o que
acontece à nossa volta. Isto serve para marcar a diferença entre conscientiousness e conscience, que
seria (se existisse) algo como uma parte da mente capaz de dizer se o que estamos fazendo é
moralmente correto ou incorreto.
justamente por contemplar de alguma forma estes dois aspectos. Isto é, a reprodução de
mesmas.
relação com a plasticidade do ser humano e o caráter ativo da inteligência. Talvez seja
por isso que ele não renuncia à idéia de que através de uma educação ativa das crianças
impulsos e, por outro lado, do meio. O hábito é algo adquirido na vida social, mas nem
por isso imutável. A plasticidade do ser humano e o valor atribuído por Dewey à
Por fim, não parece ser mera coincidência que a noção de hábito (habit) retome
de certa forma aspectos da hexis () aristotélica, categoria que se referia à condição
este termo em A evolução pedagógica [obra póstuma publicada em 1938], para falar do
ensino nas escolas monacais. É que para ser cristão não basta saber certas fórmulas ou
num certo habitus de nosso ser moral” (Durkheim, 1995:35). Bourdieu, posteriormente,
servem para reforçar a hipótese sobre a proximidade entre algumas reflexões de Dewey
e as ciências sociais.
96
Segundo Mills (1968), “Dewey não deseja situar as questões de caráter educacional no plano moral e
político, de onde os adultos devem tomar decisões. Quer que tanto a mudança como a orientação da
mesma tenham suas raízes na criança” (p. 476).
4. O desenvolvimento contínuo
que este seja “uma evolução, uma marcha para um alvo”. 97 Esta crítica aparece em
aptidões das crianças, sua atenção para com elas e a influência para induzir outros a
Dewey (1959),
um instrumento educativo que desse conta da idéia de consonância entre o nosso ser e a
as figuras materiais primitivas que fossem a expressão simples da força única que anima
o universo” (Abbagnano & Visalberghi, 1996:482). O resultado foi a teoria dos sólidos
dissimulado. Os sólidos (esfera, cubo, cilindro, etc.) serviam para iniciar a criança na
Quanto a Hegel (1770-1831), Dewey (1959) considera que ele foi um crítico
afirma Dewey. O filósofo alemão parecia obcecado pela idéia de uma “finalidade
história, cada uma delas em seu tempo e lugar, como estágios necessários do processo
evolução seria uma força destinada a realizar seus próprios fins; o progresso social
Ao apresentar a sua idéia de desenvolvimento, Dewey afirma que este não tem
outro fim a não ser o próprio crescimento. E se a imaturidade da criança não significa
deficiência ou falta em relação à vida adulta, a educação não deve ser o simples
longo de toda a vida. Isto ajuda a esclarecer a noção de “educação progressiva” - a que
aquela que possibilita a formação de “hábitos ativos”, este que “subentendem reflexão,
invenção e iniciativa para dirigir as aptidões a novos fins” (Dewey, 1959:57). Tais
hábitos seriam próprios para uma sociedade em permanente mudança, uma sociedade
progressiva.
certas idéias de Herbart. Para ele, o mérito de Johann Friedrich Herbart (1776-1841) foi
“ter retirado a tarefa do ensino da região da rotina e do acaso, e tê-la trazido para a
esfera do método consciente. Ensinar tornou-se uma atividade com escopo e processos
tradição” (p. 77). Mas no rígido método de Herbart o conteúdo das matérias acaba
tendo valor bem maior do que o processo através do qual ele é construído ou
é vista como “uma edificação feita, de fora para dentro, no espírito”. Desta perspectiva,
o espírito seria em última instância uma questão de conteúdo, pois ele simplesmente
na concepção herbartiana de educação: “[Ela] não toma em conta a existência num ser
que entram quando se põem em contato ativo com seu ambiente” (p. 77).
Uma outra teoria analisada por Dewey, e que estivera em voga antes que a noção
especiais para as realizações” (Dewey, 1959:65). Mas esta teoria toma um atalho ao
gradativas”. Isto nos faz supor a existência de alguma forma não exercitada:
desenvolvimento, eram para Dewey mitológicas, assim como ele também considerava
“Não existe a coisa que se chama aptidão para ver, ouvir, ou recordar em
geral; há aptidões para ver, ouvir e recordar alguma coisa. É disparate falar
em exercitar-se, em geral, uma aptidão mental ou física, separadamente da
matéria implicada em seu exercício” (p. 70).
98
Ao comentar a contribuição do autor de Emílio, Dewey ressalta que sua “teoria de seguir a natureza”
foi um passo importante no sentido de uma visão menos formal e abstrata do espírito e de suas
faculdades.
Enfim, para Dewey (1959) o que há “é um grande número de tendências
neurônios no sistema nervoso central” (p. 67). Elas são muitas e de variedade
meio, mas não são faculdades intelectuais latentes. A modelagem das tendências se dá
pela seleção e coordenação das reações difusas provocadas em dado momento pelos
estímulos, e não pelo aperfeiçoamento obtido através do treino, como a ginástica opera
com os músculos. Quanto mais especializada for a reação, mais rígida e menos
Dewey associa essa discussão com a distinção entre educação geral e educação
especial. Certamente algumas espécies de atividade são de maior amplitude que outras,
mais geral, no sentido de amplitude e plasticidade. Segundo Dewey (1959), “na prática
escolar a educação satisfaz a essas condições e por isso será geral, na proporção em que
5. O pensamento e a ação
afirmou que tentaria refutar a objeção de que a “atitude mental científica tem pouca
importância no ensino das crianças e dos jovens”. Ele almejava associar o moderno
espírito científico, seu método experimental, a uma certa atitude presente na infância,
caracterizada por uma viva curiosidade, imaginação e pelo gosto da investigação. Além
disso, um dos objetivos daquela obra era relacionar as reflexões sobre a lógica do
dúvida em si, a dúvida formal e introspectiva de Descartes. Esta já fora criticada por
99
Bourdieu (1996) também utiliza o exemplo do jogo quando discute a questão do “senso prático” ou
“razão prática”.
Peirce, ao alegar que não podemos partir de uma “dúvida absoluta”. 100 Também para
Dewey a dúvida surge de dificuldades ou obstáculos no curso das ações, algo que nos
Esta visão serve para ilustrar bem a lógica pragmatista que se encontra em
intrínseca. Isto significa, por exemplo, que dizer a uma criança que pense, se isto
significar abstrair da realidade em que ela se encontra, seria algo não apenas infrutífero,
mas até mesmo absurdo. Para Dewey, não há reflexão nem conhecimento verdadeiro
conhecimento.
queima -, que já fora utilizado por ele no texto The concept of reflex arc in Psychology
“reconhecidos”.101
100
“É certo que uma pessoa pode, no curso de seus estudos, encontrar razões para por em dúvida o que
tinha como crença; mas em tal caso duvida porque tem uma razão positiva para fazê-lo, e não por causa
da máxima cartesiana” (Peirce apud Joas, 1993:19). Segundo Joas (1993), esta perspectiva não se
confunde com a defesa de autoridades inquestionáveis frente às pretensões de alguém que pensa. Trata-
se de uma argumentação em favor de submeter o conhecimento a situações em que se apresentem
problemas reais. Isto é, substituir o conceito central do cartesianismo - o do eu que duvida sozinho -
pela idéia de busca da verdade no curso da ação (p. 19).
101
Dewey (1979) considera a inferência como “o núcleo de toda ação inteligente” (p. 100). Aí se
encontra uma das diferenças fundamentais entre a sua análise e o behaviorismo de Watson.
Vejamos como Dewey abordou de forma mais detalhada esta questão. No
psicologia, ele apresentou uma crítica à noção de “arco reflexo”. 102 A discussão estava
últimos elementos transcendentais de sua filosofia, elaborando o que seria uma visão
naturalista da experiência.103 Ele criticou a noção de “arco reflexo” por ser uma visão
atividade central da mente e a resposta motora. Para Dewey (1975), eles eram funções
diferenciado de acordo com aquele que o recebe ou é estimulado. Em uma série de atos,
102
Rucker (1969) observa que talvez o mais importante aspecto desta abordagem para a psicologia
tenha sido “o deslocamento da preocupação com a estrutura da mente para uma preocupação com as
suas funções”(p. 62). O funcionalismo evita a distinção entre corpo e mente ao considerar a atividade
mental como uma forma particular das funções do organismo em interação com o seu meio.
103
A distinção entre corpo (body) e alma (soul) estivera ainda presente em seu texto Psychology, de
1887 (Rucker, 1969).
sensação é algo ambíguo (situada na fronteira entre o corpo e a alma), a idéia (o
processo central) é puramente psíquica e o ato (ou movimento) algo apenas físico (p.
104).
qual o valor educativo da experiência poderia ser analisado (Mayhey & Edwards,
conhecido pelo mesmo nome. A diferença é que esta tendência da psicologia trata o
comportamento como uma cadeia de respostas a estímulos, que mantêm uma relação
meramente externa: “Em tal concepção não há lugar para comportamento consciente,
ação com um propósito deliberado que se distingue de uma ação automática, não há
filosofia, manifestado inclusive em sua afirmação de que era incapaz de entender o que
diziam Dewey e Mead, ilustra uma perspectiva que não admite coisa alguma
seus atos individuais estão relacionados com atos sociais, nos quais estão implicados
outros membros do grupo. Para a psicologia social, o todo (sociedade) é anterior à parte
reduzem a ação a uma determinação dos estímulos externos. Além disso, o modelo de
ação proposto por eles mostra uma modificação operada na idéia de intencionalidade,
estabelecidos:
vários impulsos, uma questão ou motivo dominante passa a reger o processo, guiando a
6. O hábito de refletir
aprender como pensar bem, especialmente como adquirir o hábito geral de refletir” (p.
científica, e este ocupa um lugar vital na sua visão de educação. Mas é importante
marcar que para Dewey o hábito de refletir se desenvolve a partir da vida dos alunos.
No caso da educação escolar, o professor funciona como um guia que pilota uma
embarcação, cuja energia propulsora vem dos que aprendem, de suas experiências,
desejos e interesses. Assim, quanto melhor o professor conhecer tais forças em ação,
melhor ele poderá dirigir as atividades para que se formem hábitos de reflexão (Dewey,
pessoa a pessoa, mas há algumas tendências gerais que podem ser aproveitadas: a
105
Os grifos são meus.
Dewey considera que a curiosidade é um fator básico da interação do organismo
com o meio. Cada órgão dos sentidos ou motor está naturalmente disponível para ser
curiosidade seria então a soma de todas as tendências dirigidas para fora, para o meio,
1979:45). Ela se desenvolve desde a “abundante energia orgânica” do bebê, com sua
contínua atividade de exploração, passando pelo estágio em que sofre o influxo dos
Assim, afirma Dewey (1979), “o problema fundamental para o educador, seja pai ou
de interrogação verbal” (p. 47). 106 Isto pode ser conseguido no processo de
intenção e vontade: “Não nos podemos obrigar a ter idéias ou não tê-las, assim como
106
Como foi indicado no capítulo II, ao classificar as tendências ou impulsos básicos das crianças
Dewey associou a linguagem ao impulso social. Ainda que uma criança tenha expressão quase auto-
centrada, ela interage através de instrumentos adquiridos nas relações com o meio.
diretamente não nos podemos obrigar a ter sensações das coisas... As idéias, nesse
responsabilidade do emprego da sugestão para ver o que dela decorre que torna
Uma sugestão tem distintos aspectos ou dimensões, como a facilidade com que
presteza ou facilidade com que delas emergem sugestões quando lhes são apresentados
objetos ou fatos. Mas, no caso da escola, ele considerava que o professor não tem o
referentes às matérias escolares, pois tais reações dependem de muitos fatores que se
trabalhos manuais. Ele lembra ainda que certas crianças são repreendidas pela lentidão
dirige por uma questão ou problema. Mas para muitos o desenvolvimento de “hábitos
dessas três grandes forças ou tendências. No que diz respeito à educação, é preciso
preparar atividades que despertem nos alunos a curiosidade, estabelecer condições para
devem abandonar a noção de que o pensar é uma faculdade imutável e associá-lo aos
lembrando ainda que os indivíduos diferem entre si (p. 53). O pensamento não é visto
como um mecanismo que reduz o diverso a um mesmo produto, mas como “um poder
perspectiva, tanto estudar a língua grega quanto aprender a cozinhar podem ser
o prático:
critica a tendência de julgar a educação pelos seus “resultados exteriores”, o que pode
107
Dewey deixa transparecer aí uma visão típica do pragmatismo, ao destacar o forte vínculo entre ação
e pensamento.
ser observado no grande valor que se atribui à “resposta certa”. Em vez de pensar no
reproduza o conteúdo que lhe foi fornecido ou que nele foi depositado, para usar uma
exteriores”. Tal modelo exige dos professores o conhecimento das matérias em parcelas
definidas e prescritas e, por isso mesmo, dominadas com relativa facilidade. Mas isto é
quase o oposto do que propunha Dewey, como vimos na análise da Escola Laboratório
da Universidade de Chicago. Isto é, uma educação escolar que adotasse como escopo “a
exige uma formação mais cuidadosa dos professores, pois requer conhecimento do
trabalho mental dos educandos e também um vasto domínio das matérias, que
campo da educação. O que havia de novo e ainda hoje é relevante em sua filosofia da
“Uma das razões pela qual muito do ensino elementar é tão inútil para o
desenvolvimento de atitudes reflexivas é que, ao ingressar na escola, a
criança sofre uma ruptura em sua vida, uma ruptura com as suas
experiências, saturadas de valores e qualidades sociais. Pelo seu isolamento,
o ensino escolar é, portanto, técnico; e a maneira de pensar que a criança
possui não pode funcionar, porque a escola nada tem de comum com suas
experiências prévias “(p. 75).
forma de um processo real, psicológico. O modo de pensar de cada ser humano varia
porque depende de seus hábitos, enquanto “as formas da lógica são constantes,
imutáveis, indiferentes à matéria que contém” (Dewey, 1979:80). Mas o pensar sempre
famoso silogismo sobre Sócrates seria uma abstração ou formalização de algo que, de
fato, ocorreu com o filósofo ateniense.109 Mas Sócrates não morreu porque a conclusão
desse silogismo é formalmente verdadeira, como também não duvidamos por uma
Dewey parte dessa idéia de lógica como configuração de um dado processo para
criticar duas tendências educacionais opostas. Ele não deixa explícito quem seriam os
representantes dessas tendências, mas pelas características das mesmas e pela simetria
com que estão apresentadas podemos supor o seguinte: em um lado, estaria a “escola
rígida estrutura disciplinar, e, em contraste com ela, estaria alguma corrente da própria
individual, nem a um mecanismo impessoal e abstrato, em que o indivíduo funciona como mero suporte
físico.
109
Silogismo é uma dedução formal em que duas proposições, chamadas premissas, são postas e delas
se tira uma terceira, logicamente implicada, chamada conclusão. O exemplo mais familiar de silogismo
é um sobre Sócrates: Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal.
“escola nova”. A primeira tendência indica que a mente humana é tão ilógica em seus
processos que a forma lógica precisaria ser nela impressa por ação externa:
Neste caso, a formulação lógica não seria o resultado de nenhum processo de pensar
empreendido e conduzido por uma questão, mas algo feito por outra mente e
apresentado já pronto. “Então, por algum passe mágico, seu caráter lógico transfere-se
para a mente dos alunos” (Dewey, 1979:87). Em outras palavras, essa tendência se fixa
1979:89). Disso se infere que a ordem lógica, sendo estranha às operações naturais da
mente, tem importância quase nula para a educação. O importante então seria “dar
que de uma forma geral se associa à “escola nova”. Contudo, o próprio Dewey (1979)
aponta o erro básico de ambas as tendências, pois elas ignoram que “a mente possui, em
cada grau de desenvolvimento, sua própria lógica. Acolhe sugestões, verifica-as pela
(p. 90).110 Uma escola que advoga a “auto-expressão livre” esquece de que aquilo que
demanda expressão nas atividades das crianças também é de caráter intelectual, e que
110
Podemos entender, assim, por que Dewey emprega o termo “lógico” significando a forma de um
processo real. Ele parte da análise de um dado processo, como faz a psicologia experimental, e recorta
o que seria a configuração desse processo, sua forma, sua lógica.
um dos problemas da educação é “a transformação das forças naturais em forças
1979:91).
Como vimos no capítulo II, Dewey considerava que o psicológico e o lógico são
matérias não é a única possível, podendo mesmo ser indesejável até que a mente do
aluno tenha atingido um ponto de maturidade e seja capaz de entender por que tal
forma, e não outra, foi adotada. Enfim, ele reconhece que o termo “lógico” tem vários
primeiro caso, o que está em jogo é uma concepção negativa de disciplina, que Dewey
relaciona a atos mecânicos, tendo por objetivo fazer com que o conteúdo penetre na
aquisição de uma dada capacidade pela prática, que não se reduz à repetição mecânica:
111
Os termos aparecem grifados no texto de Dewey.
Por outro lado, para definir liberdade no processo educativo, Dewey expõe as
8. O jogo e o trabalho
que uma imitação inconsciente não seria exatamente uma imitação, ele formula a
seguinte hipótese:
seleção, teste e confirmação dos resultados. Além disso, há um fator crucial implícito
sobre o arco reflexo uma perspectiva em que a ação é vista como um todo. Em
“Suponhamos que uma pessoa joga uma bola para o lado de uma criança;
esta a apanha e a joga em sentido contrário, e o brinquedo continua. Neste
caso o estímulo não é a vista da bola, nem do companheiro de brinquedo. É
a situação - o jogo da bola. A “resposta” não é apenas rolar a bola para
trás; é fazê-lo de modo que o companheiro possa pegá-la e devolvê-la, a fim
de que o brinquedo continue. O “padrão” ou modelo não é o ato da outra
pessoa. Toda a situação requer que cada qual adapte seus atos tendo em
vista o que a outra pessoa fez e vai fazer. Pode surgir a imitação, mas o seu
papel é subalterno” (Dewey, 1959:38).
Além disso, quando está brincando uma criança pode subordinar a situação
“real” a um significado “ideal”. Uma pedra pode ser uma mesa, e um cabo de vassoura,
uma reserva de conceitos”, algo vital em toda operação intelectual (Dewey, 1979:207).
Dewey relaciona o brincar com o trabalho para discutir a questão das atividades
na escola. Este é um ponto que nos interessa. Mas ele lembra que é importante não
econômica. O trabalho pode ser considerado como uma “atitude mental”, visto de
1979:209). Uma criança pode, a partir das significações formadas durante o brincar,
determinadas coisas:
ditadas por outros, uma “atividade exterior”, em que praticamente pensamento nenhum
condições reais. Desta perspectiva, não é o produto que define o valor do trabalho:
possibilita uma melhor distinção entre os mesmos sem reduzi-la à oposição entre
atividade tal como decorre de momento a momento”, enquanto o trabalho, como foi
que liga umas às outras as sucessivas fases da ação (Dewey, 1979:210). Ambas as
atividades podem ser livres, posto que providas de motivação intrínseca ou de interesse
pela própria atividade112. São as condições econômicas que tendem a modificar esta
trabalho é combinado com a atitude do jogo, ele é arte, pelo menos na sua qualidade,
afirma Dewey.
produto, com a organização da escola onde as atividades deveriam estar livres da ênfase
econômica. Neste caso, o objetivo das atividades não estaria no produto, mas no
112
Dewey (1979) dá como exemplo desse interesse a atitude artística. Não sendo “puramente interior,
nem puramente exterior; nem meramente mental, nem simplesmente material”, a arte produz
transformações significativas das coisas para o espírito.
fazer das atividades práticas na escola algo associado à arte. 113 Dewey não deixa
dúvidas em suas críticas a uma visão estreita da educação escolar. Para ele, se
pelos princípios técnicos envolvidos (Dewey, 1980:13). Como vimos no capítulo II,
esta estratégia foi adotada na Escola Laboratório. Segundo tal enfoque, seria possível,
por exemplo, concentrar toda a história da humanidade na evolução do uso das fibras de
utilizado por Dewey, em The School and Society [1899], sobre a observação de crianças
Laboratório.114
Como já foi mencionado nos capítulos anteriores, a introdução nas escolas dos
esteve presente na pauta de discussões da Era Progressista no final do século XIX. Este
tema se reveste de particular importância na teoria da educação de Dewey, pois era seu
problemas que se resolvem pela experimentação, abrindo espaço através da prática para
cooperação. Contudo, Dewey não fez uma aposta cega nesta forma de ensino,
113
O sociólogo alemão Hans Joas (1993), em Pragmatism and Social Theory, ressalta que “para Dewey
o pragmatismo era nada menos do que um meio de criticar aqueles aspectos da vida americana que
fazem da ação um fim em si mesmo e que concebem os fins de modo demasiado estreito e demasiado
‘prático’” (p. 22).
114
Trata-se de um tipo de argumentação característica do pragmatismo deweyano, onde o dizer mantém
uma permanente conexão com o que foi experimentado, distanciando-se da pura especulação
reconhecendo que não existe nenhum meio mágico capaz de garantir os resultados
intelectuais desejados:
em vários níveis da vida social o método científico de base experimental - com uma
“Nada mais antinatural do que a instrução por meio das coisas sem
pensamento, percepções dos sentidos sem juízos que se lhes liguem. E se o
abstrato a que tendemos supusesse o pensamento sem as coisas, o fim seria
formal e vazio, porque uma verdadeira reflexão se refere sempre, mais ou
menos diretamente, a coisas” (Dewey, 1979:217).
Dewey não restringe a noção de concreto a uma referência material, pois uma
idéia (de número, por exemplo) é concreta quando se percebe claramente seu uso,
Chicago está construída, não apenas como uma forma de análise crítica da escola
exagerada ênfase posta no concreto, Dewey contrapôs a idéia de partir do concreto para
o abstrato, sendo que o “partir” representa a fase dinâmica do processo. Em uma
observação que fez a respeito da relação entre o teórico e o prático ele não poderia ser
Desta perspectiva, um dos objetivos da “nova educação” por ele advogada seria
9. Linguagem e experiência
dos problemas centrais da vida escolar é justamente a relação entre as aplicações prática
e intelectual da linguagem. Soa ainda bastante atual a proposta de Dewey para que a
escola orientasse as linguagens oral e escrita dos alunos, usadas a princípio basicamente
profunda e mais ampla significação, relacionando-as com coisas que podem unicamente
fim em si. A este perigo se acha particularmente exposta a educação formal. Daí a
sugestão de Dewey para que a escola incorporasse em seu programa ocupações ativas:
Neste sentido, uma das tarefas cruciais da escola é tentar ampliar as funções da
mais precisos e fazendo com que elas adquiram o hábito de falar de modo coerente.
Mas em grande parte o vocabulário das matérias escolares estava desprovido de ligação
orgânica com as idéias e palavras utilizadas fora da escola. Isto favorece a ampliação do
vocabulário passivo dos estudantes.115 Há, contudo, que tornar maior e mais inteligente
115
Uma distinção possível entre vocabulário ativo e passivo é a seguinte: o vocabulário passivo é
formado por palavras que só sabemos os seus significados quando elas são lidas ou ouvidas; o ativo, por
palavras de que somos capazes de empregar deliberadamente, na fala ou na escrita, com domínio
preciso dos significados (Dewey, 1979:237).
Dewey retoma em Como pensamos [1910] uma reflexão que já aparecera dez
anos antes, em The School and Society [1899], e que está muito bem sintetizada na
seguinte sentença: “Pelo método tradicional, a criança deve dizer alguma coisa que ela
tenha aprendido. Mas há uma enorme diferença entre ter alguma coisa para dizer e ter
pouca relação entre o universo da escola e a vida dos alunos, ou entre o mundo dos
livros e das lições e o mundo da experiência. “Depois, afirma Dewey (1979), nos
admiramos, estultamente, de que tão pouco valha na vida o que se estuda na escola” (p.
256).
toca na chama de uma vela. Não há experiência simplesmente no fato dela por o dedo
na chama. A associação entre este movimento e a dor que a criança sofre é que
constitui a experiência. Daí por diante, o fato de pôr o dedo no fogo significa também a
com as coisas no mundo: “Experimenta-se o mundo para se saber como ele é; o que se
Assim, podemos inferir junto com Dewey que a experiência é, inicialmente, uma
encontra na percepção das relações a que ela conduz. Tais conclusões parecem
coerentes com uma definição do pensar apresentada por Dewey e que é bem
modo a haver continuidade entre ambas” (Dewey, 1959:159). Retomamos assim a idéia
de que o pensar não é uma combustão espontânea, pois necessita sempre de uma
situação objetiva, que surge da interação entre o indivíduo e o mundo, daquilo que se
IV
Ciência e Democracia
1. Introdução
2. O espírito experimental
Capítulo IV
Ciência e Democracia
1. Introdução
Neste capítulo, dois temas já mencionados aparecem com um tratamento mais
de John Dewey e podem ser relacionadas. Quiçá esta relação se dê principalmente pelo
pratica (na experimentação), mas também pela ênfase posta por Dewey no caráter
ação social pode nos ajudar a entender por que ele chegou a chamar o pragmatismo
mente com isto era que o pragmatismo e os Estados Unidos eram “as expressões de um
e a corrente filosófica que nele mais se destacou sugerem que “em política podemos
2. O espírito experimental
apenas como uma forma de desenvolver hábitos de cooperação social, mas também
como um caminho para se chegar aos conceitos nas diversas áreas de estudo. Desta
mas que não realizava a “ponte” necessária entre o simples passatempo ou a pura
que divulgava a crença de que as crianças formam os conceitos, não pela experiência
com as coisas, mas pela análise minuciosa dos objetos, que seriam comparados até que
fossem excluídas as diferenças, restando apenas o cerne do que lhes é comum. Segundo
Dewey (1979), a criança começa com qualquer significado que tenha obtido na primeira
experiência com um dado objeto (ver, pegar, brincar, etc.); daí então ela transporta
fazendo uso do método experimental. Mas Dewey desejava que a “escola nova”
introduzisse esse método já nas primeiras séries do ensino fundamental. Não se tratava
investigador e até certo ponto do acaso. Assim, vários fatores se combinam no processo
explicativas:
o acaso apresente certas conjunções que nos induzam à noção de regularidade, funciona
como modelo - adequado inclusive para questões éticas - passa mais por uma questão de
atitude que de técnica. Peirce, que durante sua formação convivera com a disputa entre
Isto significa que qualquer teoria cedo ou tarde será corrigida ou abandonada, e torna a
ciência quanto para a vida política em uma democracia. Como Rorty (1997) chama a
116
A perspectiva falibilista se tornou famosa com Karl Popper (1902-1994). Em um outro texto, Rorty
(1997a) observa que se Dewey tivesse lido Popper haveria aplaudido seu falibilismo, mas “teria
deplorado os dualismos que ele, como Carnap, dão por supostos. Porque o empirismo lógico, do qual
Carnap e Popper foram representantes - o movimento que pôs o pragmatismo bruscamente de lado nos
departamentos de filosofia norte-americanos depois da Segunda Guerra Mundial - reinventou as
marcantes distinções kantianas entre fato e valor, e entre ciência, por um lado, e metafísica e religião,
por outro” (p. 20).
Na década de 1940, Wright Mills formulou sobre o tema da relação entre Dewey
e o saber científico uma pergunta importante: por que Dewey não enfrentou o problema
político do poder em relação à ciência e à tecnologia? Segundo Mills (1968), uma das
razões teria sido que, pelos menos até a Primeira Guerra Mundial, a tecnologia de fato
mais visíveis da ciência estavam nos bens de consumo que as corporações colocavam
Também a posição social de Dewey era propícia a construir uma visão positiva da
ciência:
“Os grupos com os quais Dewey tinha contato mais freqüentes e aos quais
se dirigia estavam elevando-se na hierarquia do mundo profissional e
especializado. Foram precisamente esses grupos que participaram
intensamente nas práticas científicas e nas atividades tecnológicas, e os que
através das atividades realizadas se elevaram na estrutura hierárquica e de
classe da sociedade em processo de industrialização” (Mills, 1968:436).
Educação [1916], Dewey faz um retrospecto histórico desde a Grécia de Platão até os
Estados Unidos de sua época. O que se deduz dessa análise é que o objetivo da
próprio Dewey: “Toda educação ministrada por um grupo tende a socializar seus
do grupo” (Dewey, 1959:89). Enfim, não é difícil concluir com o autor o seguinte: “A
concepção da educação como um processo e uma função social não tem significação
definida enquanto não definimos a espécie de sociedade que temos em mente” (Dewey,
1959:104).
significar muitas coisas e ser usados de diferentes formas. Por exemplo, a palavra
sentido de descrição (de facto). Em filosofia social, segundo ele, quase sempre é o
primeiro que predomina, concebendo-se a sociedade como algo único pela sua própria
fidelidade aos interesses públicos, etc. Mas a observação de fatos a que o termo
sociedade se refere nos leva a encontrar uma pluralidade de associações, boas e más,
que incluí desde escolas até “engrenagens políticas que se mantêm unidas pelo interesse
da pilhagem” (Dewey, 1959). Uma grande cidade, por exemplo, compõe-se de uma
educação escolar ganha realce com as atuais discussões sobre multiculturalismo. Mas já
estava presente na noção de melting pot, a “mistura” relativa à formação de uma nação
composta por diferentes etnias com distintas origens e costumes. Este fenômeno
York, onde Dewey viveu, ensinou e escreveu quase toda sua obra. “Foi essa situação,
talvez, mais do que qualquer outra, afirmou Dewey (1959), que acarretou a exigência
homogêneo e bem equilibrado para as pessoas mais jovens”. Neste sentido, a escola
pública é reconhecida por ele como um meio capaz de contrabalançar “as forças
unidade política” (Dewey, 1959:23). Isto é, ela tentaria “coordenar, na vida mental de
cada indivíduo, as diversas influências dos vários meios sociais em que ele vive”
diferentes etnias e religiões, de costumes distintos, era algo positivo na medida em que
proporcionava “um meio novo e mais vasto”, “um descortino de horizontes mais
amplos”.
Com a Primeira Guerra Mundial, houve nos Estados Unidos uma espécie de
“histeria antigermânica”, acarretando problemas para os alemães que tinham ido viver
sociais.119 No âmbito da educação, estas duas questões podiam ser relacionadas, posto
que as crianças mais pobres quase sempre vinham de famílias não anglófonas (Putnam,
1997:254).
ministrada por um dado grupo tende a reproduzir sua vida social e que a qualidade e o
valor da socialização dependem dos hábitos e das aspirações do grupo. Neste sentido,
Dewey considerava que uma sociedade que não apenas se transforma, mas faz da
costumes. Isto põe em jogo o problema da escolha de uma “medida de valor dos
diferentes modos de vida social”. Podemos cair na tentação de criar com a imaginação
alguma coisa que vemos como uma sociedade ideal, ou considerar como válida a
reprodução da sociedade tal como se encontra. A proposta feita por Dewey (1959), para
evitar esses dois extremos, é “extrair os traços desejáveis das formas de vida social
existentes e empregá-los para criticar os traços indesejáveis e sugerir melhorias” (p. 89).
Ele trabalha com os seguintes princípios: primeiro, que objetivos devem ser gerados a
118
Os grifos são meus.
119
Em 1934, no simpósio The meaning of Marx, Dewey (1934), ao responder a questão Why I am not a
communist, afirmou que reconhecia a existência de conflitos de classe como um dos fatos fundamentais
da vida social, mas que era “profundamente céptico em relação à luta de classe como o meio pelo qual
tais conflitos possam ser eliminados e genuínos avanços sociais alcançados” (p. 88).
partir das condições existentes, garantindo alguma exeqüibilidade; segundo, que em
Dewey. Ele a define como uma sociedade na qual “existem convenientes e adequadas
oportunidades para a reconstrução dos hábitos e das instituições sociais por meio de
(Dewey, 1959:108). Mas para que existam e se ampliem os valores comuns em uma
estáticos e egoístas. Dewey via nisto um sério problema político e cultural, afirmando
que uma separação rígida entre a “classe privilegiada” e a “classe submetida” impede
uma “endosmose social”. Os prejuízos que afetam a classe dominante são menos
materiais e menos visíveis, mas igualmente reais: “Sua cultura tende a tornar-se estéril,
a voltar-se para se alimentar de si mesma; sua arte torna-se uma ostentação espetaculosa
fatores cruciais de regulação e direção social. 120 O segundo diz respeito não apenas a
uma cooperação mais livre entre os grupos sociais, mas também à mudança de hábitos,
sua contínua readaptação às situações criadas pelos intercâmbios. Ora, para Dewey
funda no voto popular não pode ser eficiente se aqueles que o escolhem e lhe obedecem
definição de democracia que nos faz pensar em uma relação bem mais complexa e
profunda entre esta e a educação. Aí está uma noção fundamental, quiçá a pedra angular
Além disso, ele considera que uma “sociedade móvel”, dinâmica, ainda que
mudanças”, por onde circulam interesses comuns e que podem ser ampliados:
120
Vale aqui retomar alguns comentários de Hans Joas. Segundo este sociólogo, a teoria da ordem
social do pragmatismo está guiada por uma concepção de controle social no sentido da auto-regulação e
resolução coletiva de problemas. Em termos específicos, a noção de social control usada por Dewey
“não se referia à garantia de conformidade social, senão a uma consciente auto-regulação, à idéia de
autogoverno efetivada através da comunicação e do entendimento bem como da resolução dos
problemas coletivos”(Joas, 1993:25).
significação e importância se sua atividade. Esses mais numerosos e
variados pontos de contato denotam maior diversidade de estímulos a que
um indivíduo tem de reagir; e incentivam, por conseguinte, a variação de
seus atos; asseguram uma liberação de energias que ficam recalcadas
enquanto são parciais e unilaterais as incitações para a ação, como ocorre
com os grupos que com os seus exclusivismos fecham a porta a muitos
outros interesses” (Dewey, 1959:94).
instrumento indispensável, ainda que não seja o único, para ampliar esses “numerosos e
social. Mas Dewey (1959) afirma também que para isto ocorrer não basta que a
educação escolar não seja considerada como instrumento de exploração de uma classe
social por outra. As experiências escolares devem ser asseguradas com tal amplitude e
eficácia que, de fato, sirvam para reduzir os efeitos perversos das diferenças
econômicas e sócio-culturais. Para realizar tal objetivo, Dewey fez sugestões que hoje
a “nova escola” pudesse manter os jovens sob sua influência educativa até eles estarem
escolares, etc.
Assim como Durkheim, Dewey reconheceu que uma das funções cruciais da
121
Algo que nos faz lembrar os programas de bolsa-escola.
“Estas se esforçam por modelar as experiências dos jovens de modo que, em
vez de reproduzirem os hábitos dominantes, venham a adquirir hábitos
melhores, de modo que a futura sociedade adulta seja mais perfeita que as
suas próprias sociedades atuais” (Dewey, 1959:85).
seja como uma crítica à tradição que tentou fazer da metafísica um substituto dos
costumes, uma fonte e garantia dos valores sociais mais elevados. Como lembra Rorty
(1997a), Dewey queria desviar a atenção do eterno para o futuro. Isto seria possível
Epílogo
Epílogo
Em várias partes deste livro, a começar pelo título, aparecem pares de conceitos:
opostos, mas servem para indicar uma estratégia, pois a tensão entre essas noções
Sabemos que sem uma questão e o incômodo que ela provoca, sem um
filosofia, nenhuma ciência, nenhuma pesquisa tem início e se efetiva. Uma insatisfação
com a tradicional visão do indivíduo como algo contrário à sociedade, da “escola nova”
leituras que realizei nos últimos quatro anos. Ela está associada ao problema da tensão
vêm tentando apresentar teorias mais claras, consistentes e capazes de lançar luz sobre o
elo entre o “eu” e o mundo ou entre indivíduo e sociedade. O núcleo deste trabalho, ou
filosofia da educação de John Dewey. Tinha como hipótese inicial que, da perspectiva
dos pragmatistas de Chicago (principalmente Dewey), essa relação era bem mais
nova” no Brasil feitas a partir da década de 1970, principalmente no que dizem respeito
às idéias de Anísio Teixeira, me desafiaram ainda durante o mestrado para uma leitura
mais ampla da obra de John Dewey. Este autor foi um dos expoentes da “escola nova”
Dewey. Contudo, foi pelo diálogo com a sociologia (Durkheim, Mills, Joas, Elias,
talvez crie problemas taxionômicos para alguns leitores. Mas a possibilidade de situar
próprio núcleo da pesquisa, com a sua tese, com características do campo da educação e
a relação entre indivíduo e sociedade. Ainda que se feche um pouco mais o foco,
investigando essa relação no que diz respeito especificamente à educação, a importância
educação - seja como campo de conhecimento, seja como prática social - para o
Pelo que foi apresentado, podemos retomar algumas questões. Será que se
justifica a hipótese de que Dewey advogou uma educação completamente voltada para a
da Universidade de Chicago (capítulo II), uma determinada visão da “escola nova” deve
educador. E uma tal revisão implica também matizar certas críticas que foram feitas a
Brasil. Assim, uma de minhas expectativas ao iniciar esta pesquisa parece ter sido
americano era também um caminho para a construção de uma visão menos difusa da
“escola nova”. Talvez tenha passado para alguns leitores a falsa idéia de um discurso
laudatório, quando o que procurava era reconstruir a visão de um autor através de seus
próprios textos.
Anísio Teixeira (pelos 100 anos de seu nascimento comemorados em 2000), que
seguindo as idéias de John Dewey considerava a educação escolar um instrumento
política ou pela ilusão do conhecimento, compartilho com esses autores a visão de que o
sistema educacional é o coração da democracia, entendida não apenas como uma forma
de governo, mas também como “uma forma de vida associada, de experiência conjunta
e mutuamente comunicada”.
qualquer que seja sua forma, é específica à sociedade, tentei inicialmente relacionar
ilustrar a ascensão de novos valores ligados a uma sociedade urbana e perpassada pelo
conhecimento científico; servem também para explicitar certas questões de sua filosofia
da educação, que foi elaborada a partir desses contextos, mas também como uma crítica
aos mesmos.
A rígida separação entre educação para a mente e educação para as mãos, por
argumentava Dewey, não fora posta em cheque pelo método experimental da ciência
moderna?
Dewey optou por seguir a carreira docente. Ao obter um título de Ph. D., que passara a
hierarquizar os professores universitários, ele seguiu uma trajetória que seria quase o
naturalista e experimental, Dewey, ao invés de optar claramente por uma das partes,
especulativa - que desde Platão tem caracterizado o campo filosófico - nem tampouco
humanas. Em termos gerais, a obra de Dewey pode ser caracterizada como uma
recente, afirmou o seguinte sobre esta questão: “Depois de Dewey, ficou muito mais
difícil encarar o pensamento como uma abstenção do agir, a teorização como uma
tensão entre o horizonte físico e o simbólico (mental), sem considerá-los como opostos.
vida social parece ter servido para equilibrar em sua obra uma perspectiva naturalista. A
ênfase que ele pôs no uso da inteligência para a resolução de problemas e a crença na
educação como uma “chave” para o progresso social funcionam como indicadores de
marcas dessa mesma proposta. Isto nos ajudou a compreender certas características do
ênfase em uma socialização que, ao mesmo tempo, deveria levar em conta os interesses
dos alunos (indivíduos) - estes que estavam sendo cada vez mais examinados pelas
moderna.
Dois aspectos devem aí ser destacados: primeiro, a tentativa de saber como as crianças
gradualmente o seu domínio do meio social a partir da interação com o mesmo, ou seja,
a partir da experiência. O segundo aspecto era a preocupação com o valor social dos
Uma das questões em pauta na Escola Laboratório era tentar fazer com que as
sociedade democrática.
sociedade que se urbanizava e se industrializava, Dewey supôs que a escola seria capaz
de suprir em termos de educação algo do que estava sendo diluído e mesmo destruído
com as mudanças na ordem social. É neste sentido que interpreto uma das questões
centrais de seu pensamento pedagógico, ou seja, a idéia de que a escola deveria ser
(conteúdo), também não pode ser confundida com o laisser faire. O método advogado
por ele, que vimos através de uma leitura geral da organização da Escola Laboratório da
Universidade de Chicago, punha ênfase nas atividades, por sua importância tanto do
ponto de vista epistemológico quanto do ponto de vista moral ou social. Através das
vida social, tornando possível o contato gradual das crianças com a estrutura, materiais
e modo de funcionamento de uma sociedade. Mas visava também criar condições para
(learning community) reflete bem a ênfase posta no caráter social do aprender. Dewey
socialmente produtivas. Por tudo que vimos, longe estamos de um pensamento que
lugar central. Mas não foi pela simples apresentação da definição que se encontra em
Dewey que pensei resolver a questão central do livro, ou seja, a relação entre indivíduo
Ele nos ajuda a entender a função do meio na modelagem social dos indivíduos. Como
foi indicado, se a socialização fosse um processo automático, uma geração mais jovem
as religiões, os clubes, a mídia, etc.), isto é, através do meio; é algo que ocorre ao longo
noção de hábito, parece importante justamente por dizer algo sobre um processo em que
origem na interação dos seres humanos com o meio social, mas ele se estrutura em cada
um. Neste sentido, não seria o hábito a incógnita da equação que relaciona indivíduo e
sociedade?
social através da experiência, mas não se trata de algo fixo, que apenas gera atos
combinado com a inteligência, pode ser visto também como uma matriz de criação, tal
que experiência e hábito são duas noções que estão diretamente relacionadas. No
parte de uma reação da “escola nova” à rigidez da “antiga escola”, em que a vida dos
Por fim, dissemos algo sobre ciência e democracia, elementos centrais na obra
do autor estudado. É necessário marcar que nela não se encontram apenas elogios à
organização social americana e nem mesmo uma ode simplista ao progresso científico.
a figura do filósofo ingênuo - que não foi capaz, como tantos outros, de pensar no papel
como um filósofo e educador que refletiu sobre a educação moderna, e o fez, como
vimos, a partir de determinados contextos, mas tendo em vista principalmente a questão
da democracia.
questões mais conhecidas da chamada “escola nova” foi a defesa de um papel ativo do
aluno no processo de ensino e aprendizagem; aluno que passara a ser o núcleo desse
processo. Dewey acrescentou a tal aspecto a idéia de eficiência social, definida por ele
escolar.
reformas educacionais em todo o mundo, refletissem elas ou não suas idéias. Ao mesmo
envolve John Dewey. Embora tenha recebido ainda em vida reconhecimento mundial,
ganhando um lugar no panteão dos grandes educadores, sua atual influência nas escolas
aplicadas efetivamente. Quiçá a questão de por que certas teorias não são traduzidas na
prática seja tão importante quanto saber por que outras o são.
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Anexos
tradição sociológica que ficou conhecida como Escola de Chicago, vamos primeiro
pragmatismo como uma visão de mundo e uma corrente filosófica, mas que não chegou
Unidos a partir do último quartel do século XIX, tendo como seus principais
protagonistas Charles S. Peirce, William James, John Dewey e Herbert Mead. Quando
122
Esta delimitação cronológica está em Coulon (1997).
volta transformada de uma tradição, especialmente através da formulação que lhe dera
Herbert Blumer.
tradição de estudos sociológicos que ficou conhecida como Escola de Chicago. Porém,
interacionista definida por Mead. O sociólogo alemão Hans Joas, autor de Pragmatism
pragmatismo de Chicago. Por exemplo, eles têm em comum a idéia de que os hábitos e
a consciência dos indivíduos são elaborados por meio das interações sociais. Dewey
explorou tal perspectiva no âmbito da educação, tendo Mead dado um tratamento a esta
questão mais próximo da linguagem da psicologia social. Levine (1997) indica que a
por Durkheim fez com que ele desconfiasse das descrições “pessoais” dos agentes.
Coulon (1995) ressalta que foi com o “interacionismo simbólico” que pela primeira vez
mundo social. Neste sentido, havia que se por em prática métodos de pesquisa que
dessem atenção aos pontos de vista dos agentes, desenvolvendo técnicas que captassem
Alexander (1997) associa essa ênfase na visão do indivíduo, ainda que de uma
versão evangélica, entendendo que as pessoas podiam ter uma relação direta com Deus,
Ralph Waldo Emerson e Henry Thoreau deram versões seculares para essa tradição,
permaneceu valendo a idéia de que para o indivíduo sobreviver era necessário trabalhar
secular, estes “individualistas” não renunciavam à idéia de uma ordem social coesiva,
pelos novos capitalistas que apareceram nos Estados Unidos na segunda metade do
século XIX. Porém, a reação a tal postura não demorou muito. No final do século
americana, Source Book for Social Origins (1907), de William I. Thomas, pode ser
Segundo a análise de Alexander (1997), há nesse contexto uma ironia que deve
ser observada, pois foi da angústia criada pela desordem decorrente das transformações
econômicas em curso que nasceu uma ênfase na experiência que daria novo alento ao
mundo” (p. 165). Assim, o pragmatismo pode também ser associado à reação a uma
ordem social em crise, que demandava mudanças e depositava suas esperanças na idéia
de que a sociedade pode controlar a si mesma. Tal enfoque, que ficou conhecido como
social control, “afirmava que as pessoas, mediante interações com os demais, aderem a
dinâmica social leva a esforços que tendem a retomar o equilíbrio. Neste sentido, as
onda de ativismo e de lutas por reformas sociais nos Estados Unidos. Uma coisa,
entretanto, não deve ser esquecida, a complexa relação entre uma visão coletivista e o
compromisso com os indivíduos. Trata-se de uma tensão que não se resolve com
como uma filosofia da educação - quanto na tradição sociológica que se formou sob sua
influência.
maior parte, de tradições culturais muito distintas das que caracterizavam os pioneiros
dominante.
época em que a sociedade clamava por reformas. Contudo, não havia tantas lições na
Na segunda metade do século XIX, em parte devido à enorme crise social por
mesma ordem:
religiosos. Líderes morais incontestáveis até à Guerra Civil, eles começam a perder
religiosa. Esse movimento de setores das igrejas para a sociologia pode ser considerado,
sociólogos daquele país também participaram desse processo. Embora suas crenças na
efetivamente uma disciplina acadêmica. Trata-se também de uma época marcada pelo
este formou seu primeiro público com pessoas que estavam construindo uma posição
Fisher e Strauss (1980) indicam que nessa época a idéia de que os intelectuais
que se tornariam mundialmente conhecidas surgiram a partir de 1870 123 e sem o peso
das tradições centenárias das universidades européias, sendo mais receptivas às novas
disciplinas, principalmente no campo das ciências sociais. Embora tenha sido fundada
por uma organização religiosa, a Universidade de Chicago, por exemplo, logo se tornou
um centro de atividades científicas onde o pragmatismo teve forte presença com Dewey
e Mead. Neste contexto, não é difícil entender por que os temas principais da tradição
Segundo Alexander (1997), diante da crise por que passava a sociedade norte-
123
A Universidade Johns Hopkins foi fundada em 1876 e a de Chicago iniciou suas atividades em 1892.
oportunidades individuais que resultavam dela, e passaram a criticar o formalismo e o
para a experiência, pois afinal de contas todos esses sistemas eram produtos da vida
mais amplo. Peirce, James, Dewey, Mead e outros expressaram em seus trabalhos de
XIX.
A filosofia social de Dewey, Mead e seus colegas de Chicago tem algo das
James. Embora tenha trabalhado em Harvard, James exerceu alguma influência sobre a
Escola de Chicago, ainda que indireta. Com ele estudou Herbert Mead e vem de James
novas experiências.124
dualismo que considera o mundo como uma realidade externa e a mente como uma
esta que nos leva a encontrar novos problemas, e assim o mundo conhecido muda
progressivamente:
Ainda segundo Rucker (1969), a perspectiva que emerge com tal ênfase na
agentes e os objetos são como resultados do processo. Segundo, os agentes são seres
Herbert Mead quem exerceu uma influência mais direta sobre a sociologia de Chicago
que veio a ser conhecida como “interacionismo simbólico”. 125 Ele é considerado o
filósofo dos sociólogos. Em seus funerais, em 1931, Dewey observou que Mead passou
a sua vida tentando resolver a antítese proposta por Wilhelm Wundt - “o problema da
Farr, 1998:79).
por Herbert Blumer em 1937. Era uma tentativa de aproximar uma vertente da
sociologia da psicologia de Mead, uma teoria social do aparelho psíquico que relaciona
o “eu” à sociedade. Mead indicou que a consciência deve ser entendida como um fluxo
oriundo das relações dinâmicas entre a pessoa e o ambiente; a linguagem foi vista por
ele como “uma complexificação específica dos mecanismos de sinalização que ocorreu
125
Esta hipótese, que é quase uma unanimidade, foi contestada por J. David Lewis e Richard L. Smith
no livro American sociology and pragmatism, de 1980.
na evolução da espécie humana e torna essa espécie diferente de todas as outras” (Farr,
1997:102).
tange à ação” (Domingues, 2001:27). O “mim” seria a série organizada de atitudes dos
“As pessoas nascem dentro de estruturas sociais que não criaram, e são
constrangidas pelo “outro generalizado”, pelas normas, costumes e leis que
canalizam suas ações. Tudo isso faz parte do sujeito (self) como elementos
constitutivos, e não obstante o “eu” (I) sempre reage a situações pré-
formadas de uma maneira singular” (Coser, 1980:407)
Esta tensão parece sugerir uma instância que amenizaria o determinismo social, abrindo
Mead trouxe de seus estudos com Wundt, em Leipzig, a teoria dos gestos, que
simbólica: “Sua compreensão da gesticulação nos jogos permite sustentar que os gestos
individuais são instituições sociais” (Alexander, 1997:171). Para Mead, o jogo é uma
analogia, uma espécie de microcosmo dos sistemas e grupos sociais, em que a ordem
indicar que o individual pode expressar o social. Mas o gesto é também um elemento de
gestos acontecem no tempo, implicam o exame de diversos cursos de ação. Por isso,
cada novo gesto tem uma propriedade que emerge e o distingue dos anteriores”
(Alexander, 1997:171).
sujeito como um produto das relações sociais, Mead deixou aberta a possibilidade de
investigação pelas ciências dos elos entre os processos sociais e as ações dos indivíduos.
por isso a comunidade e a ordem coletiva quase sempre apenas ocupam um lugar
1997:169).
formaram muitos dos sociólogos que deixaram sua marca na profissão. Aquele
departamento iniciou seus trabalhos em 1892, sob a direção de Albion Small. Embora
urbana, patologia social, etc.. Esta configuração intelectual encontrou na própria cidade
orientados para trabalhos de campo se tornaram a marca inicial da sociologia que ali se
126
Alexander (1997) comenta dois significados possíveis para “individualismo”: 1) considera-se que a
contingência define a natureza da ordem social. Esta seria algo que inevitavelmente se negocia, que
emerge da interação entre os indivíduos e não tem raízes coletivistas; 2) um nível de análise empírica:
referência ao elemento aberto e não determinado que forma parte de cada ato individual.
desenvolveu. Só nos anos 30 é que a análise estatística passou a ocupar um lugar
objetividade das pesquisas sociológicas. Como uma ciência, a sociologia teria que se
descobridores de fatos, mas sem formação teórica. Os membros das primeiras gerações
eram espíritos muito bem formados e estavam familiarizados com a teoria social
na Alemanha.
sociologia urbana, com destaque para os estudos relativos à imigração, como a questão
campo sistemático, ampliação das fontes (diários, cartas, autobiografias, poemas, etc.);
d) até a Segunda Guerra Mundial, o enfoque era claramente orientado para o que hoje
vamos apresentar apenas algumas informações sobre duas figuras que, junto com
aluno de John Dewey e desfrutado de uma forte amizade com Herbert Mead.
Trabalhando nessa universidade como professor, ele forjou um nexo importante entre o
teóricos, ele pode ser situado no horizonte da psicologia social, que então prestava
destacou, mais ainda que os filósofos pragmatistas, o caráter cultural dos hábitos e a
método adotado por Thomas permitiu o uso de procedimentos que tornavam possíveis
reconstruir “as perspectivas subjetivas dos atores” (Joas, 1993:30). Tratava-se, portanto,
que os rodeiam, os agentes fazem descrições ambíguas demais para que o pesquisador
faça um uso científico das mesmas. Assim sendo, tais manifestações “subjetivas” não
ao contrário, afirma que é a concepção que os agentes têm do mundo social que
1995:20). Joas (1993) nos chama a atenção para o fato de que para a Escola de Chicago
e, em particular, para Thomas a demarcação entre os seus estudos e a psicologia não era
explicar como novas instituições sociais podem ser criadas a partir das velhas. Mas as
determinismos:
segundo a qual “os sociólogos deviam estudar como as pessoas eram forçadas pelas
Straus, 1980:603).
presentes nos estudos sociológicos de Chicago, tendo aqui William Thomas como
Thomas e Znaniecki sobre os imigrantes poloneses, The polish peasant in Europe and
America. Destaca-se neste trabalho a amplitude das fontes (cartas, periódicos, informes
Thomas trabalhou em Chicago até 1918, quando teve que se retirar daquela
universidade por desavenças políticas. Ele foi substituído por Robert Park, que até os
estudos que culminaram na tese A massa e o público. Ele sofreu a influência de John
em 1894. Da obra deste ele manteve um particular interesse pela idéia de democracia
como ordem social e pela comunicação pública como um dos pré-requisitos para a
Universidade de Chicago como professor. Ele também se interessou pelo estudo das
relações raciais nos Estados Unidos, e, ao dar atenção à presença de uma população de
lista de trabalhos escritos sob sua orientação com temas como quadrilhas urbanas,
favelas, etc.. Park trabalhou com a noção de “representações coletivas”, que são
religiosas até a opinião pública e a moda. Segundo Joas (1993), as semelhanças com as
reflexões desenvolvidas por Durkheim em As Formas Elementares da Vida Religiosa
são claras. Contudo, ele destacou mais do que Durkheim as formas modernas e
diz respeito à ação coletiva que se regula por referência a valores e significados -, Park
trabalhou com outra ordem, a “ecológica” ou “biótica”. Este modelo foi tomado do
estudo das plantas. O introdução de um outro tipo de ordem pode ser explicada pela
Restaria ainda falar sobre Ernst Burgess, amigo e colaborador de Park; sobre
da década de 30, mas foi no começo do anos 50 que ela efetivamente perdeu seus
Por fim, após estes breves dados sobre a história da Escola de Chicago, tentemos
resgatar algumas questões gerais que podem de certa forma indicar a força e a
fertilidade desta tradição para a teoria social. Como ressalta Joas (1993), a teoria
distinta dos modelos utilitaristas. Estes reconhecem apenas a ação racional e não podem
sociedade têm seguido quase sempre perspectivas que instalam um abismo entre estas
duas “funções” da vida social. Tal separação é associada pelo sociólogo judeu-alemão
sociedade. Isto tem efeitos no campo educacional, na medida em que a educação escolar
é um processo específico de socialização. Elias (1994) foi muito preciso ao formular o
“Para onde quer que nos voltemos, deparamos com as mesmas antinomias.
Temos uma certa idéia tradicional do que nós mesmos somos como
indivíduos. E temos uma certa noção do que queremos dizer quando
dizemos “sociedade”. Mas essas duas idéias - a consciência que temos de
nós como sociedade, de um lado, e como indivíduos, de outro - nunca
chegam realmente a coalescer. Decerto nos apercebemos, ao mesmo tempo,
de que na realidade não existe esse abismo entre indivíduo e sociedade.
Ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda
sociedade é uma sociedade de indivíduos. Mas, quando tentamos reconstruir
no pensamento aquilo que vivenciamos quotidianamente na realidade,
verificamos, como naquele quebra-cabeça cujas peças não compõem uma
imagem íntegra, que há lacunas e falhas em constante formação em nosso
fluxo de pensamento” (Elias, 1994:16).
compreensível a efetiva relação entre estes dois termos. Indagava também sobre como
seres isolados, como é que os indivíduos formam uma sociedade, como essa sociedade
pode ser modificada e ter uma história que segue um curso não determinado exatamente
por qualquer dos indivíduos que a compõem. O problema, segundo Elias (1994), é que
lembra que estes dois termos, sociedade e indivíduo, foram sendo definidos e
sociedade, não haveria que tentar considerá-los como “coisas” distintas, senão através
de relações. Mas os modelos explicativos tendem a querer solucionar uma coisa à custa
da outra. Diante de tal situação, Elias (1994) propôs a seguinte questão: “E se uma
compreensão melhor da relação entre indivíduo e sociedade só pudesse ser atingida pelo
(p. 18)
sociedade formada por eles, verificaremos que nenhum dos dois existe sem o outro.
Pensar a sociedade como um “todo” não é nada óbvio, diz Elias (1994), pois isto nos
evoca a idéia de algo completo em si, com contornos e limites discerníveis, uma
estrutura visível. Mas as sociedades não têm exatamente essa forma, são sempre mais
ou menos incompletas, abertas para o passado e para o futuro, “um fluxo contínuo, uma
mudança mais rápida ou mais lenta das formas de vida” (p. 20). A ordem - que
natural. Ela precisa ser compreendida através das posições que ocupam os agentes, de
seus trajes, seus rituais, das formas específicas de comportamento. Trata-se, portanto,
de uma “ordem invisível” da vida em comum. Mas esta ordem assinala as funções
Elias (1994), a liberdade de escolha entre as funções depende do ponto em que alguém
nasce e cresce nessa rede ou teia humana, “das funções e da situação de seus pais e, em
consonância com isso, da escolarização que recebe” (p. 21). Isto é, “laços invisíveis”
uma estrutura específica, que não é exatamente somatória. Ela tem suas leis próprias,
pode ser definida como uma “rede de funções que as pessoas desempenham umas em
algo que se considere como tal. Neste sentido, não se pode atribuir às regularidades que
se observam nas relações humanas uma substancialidade que transcende tais relações.
pensar em termos de relações e funções, em rede, é uma das lições cruciais da obra de
Norbert Elias.
alavanca para o estudo que fiz sobre a relação entre indivíduo e sociedade na filosofia
da educação de John Dewey. Ela parecia completar, pela articulação entre estes dois
termos, algo que Durkheim e Dewey ensaiaram com as noções de socialização e hábito
(habit).
daquilo que seriam as características naturais distintivas da criança. Estas podem dar
“Ao nascer, cada indivíduo pode ser muito diferente, conforme sua
constituição natural. Mas é apenas na sociedade que a criança pequena, com
suas funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se
transforma num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres
humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao mundo se
transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que tem o caráter de
um indivíduo” (Elias, 1994: 27).
dentro de um grupo social ele não é necessariamente igual, posto que variam as
situações por que passam as pessoas e as funções que elas ocupam no curso da vida.
Como indicou Durkheim (1995), estas variações são menos numerosas nas sociedades
mais simples do que nas complexas, que se encontram em um estágio mais avançado de
padrão social, da estrutura das relações humanas. Neste sentido, uma maior ou menor
Elias (1994) toma a conversa entre duas pessoas para ressaltar que “fenômenos
satisfatoriamente representados nem pelo modelo físico da ação e reação das bolas de
bilhar e nem pelo modelo fisiológico da relação entre estímulo e resposta. 128
o “fenômeno reticular”. Mas a idéia de rede, proposta por Elias para explicar a relação
considerada como tendo sido formada por indivíduos que foram crianças, ou seja, seres
continuaria sendo pouco mais que um animal. Neste sentido, a individualidade só pode
indivíduo sempre existe, no nível mais fundamental, na relação com os outros, essa
relação tem uma estrutura particular que é específica de sua sociedade” (Elias,
suas relações.
surgiram ao longo da história para realizar modelagens específicas das pessoas que
[1916], quanto mais complexo se torna esse processo, mais longo é o tempo necessário
de preparação das crianças para as funções adultas e mais instituições sociais são
necessárias.
humano é tão diversificada, o que pode ser observado nas diferentes culturas. É também
encontra a razão para não tomar o indivíduo isolado como referência primordial para
estruturais, que podem seguir numa direção específica, têm origem no entrelaçamento
natureza dos indivíduos isolados, mas na estrutura de suas relações. Enfim, “a história é
sempre a história de uma sociedade, mas, sem a menor dúvida, de uma sociedade de
como podem fazer os cientistas sociais, de conhecer o indivíduo em suas relações com
outros em um dado meio. Isto é, Dewey pôde fazer da filosofia da educação uma
análise próxima daquilo que Elias (1994) chama da “estreita e profunda medida em que