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Entre o indivíduo e a sociedade

Um estudo da filosofia da educação de John Dewey

Carlos Otávio Fiúza Moreira

Rio de Janeiro

Agosto de 2001
AGRADECIMENTOS

A Maria Elena Martínez, pela colaboração indispensável na pesquisa bibliográfica e,


acima de tudo, pelo afeto.

A Zaia Brandão, orientadora de tese e amiga, pela liberdade de investigação.

A Cidinha Moreira de Miranda (Maninha), a primeira leitora.

Aos meus pais, José Otávio e Yolanda, pelo apoio fundamental.

A Harriet Simon, do Dewey Center (Southern Illinois University), Julieta e Dennis


Leitner pela gentileza e colaboração em Carbondale, IL.

Aos amigos José Luiz Castro, Sergio Chamorro e Evangelina Manzur, com quem
desfrutei algumas horas de descanso ao longo deste trabalho.
ÍNDICE

Introdução.........................................................................................................................................6

Capítulo I John Dewey: um indivíduo e uma sociedade............................................................33


1. Introdução..............................................................................................................34
2. Entre a vida e a escola...........................................................................................36
3. Da filosofia para a educação.................................................................................41
4. Um doutor americano............................................................................................51
5. Chicago, final do século XIX: pragmatismo e progressivismo.............................55
6. Crítica da economia escolar...................................................................................63
Capítulo II Pensando na prática: a Escola Laboratório da Universidade de Chicago
........................................................................................................................................................68
1. Introdução..............................................................................................................69
2. A concepção geral da Escola Laboratório.............................................................75
3. Entre o individual e o social..................................................................................84
4. Teoria através da prática........................................................................................89
5. Um tema organizador............................................................................................98
6. Cooperação e reflexão.........................................................................................101
7. As mãos e a mente...............................................................................................105
8. Educação, ética e cidadania.................................................................................112
9. O laboratório como modelo.................................................................................118
Capítulo III Socialização e hábito...............................................................................................121
1. Introdução............................................................................................................122
2. Socialização.........................................................................................................123
3. Habit....................................................................................................................130
4. O desenvolvimento contínuo...............................................................................137
5. O pensamento e a ação........................................................................................142
6. O hábito de refletir...............................................................................................147
7. Pensar como arte..................................................................................................152
8. O jogo e o trabalho..............................................................................................155
9. Linguagem e experiência.....................................................................................160
Capítulo IV Ciência e Democracia.............................................................................................164
1. Introdução............................................................................................................165
2. O espírito experimental.......................................................................................165
3. Educação para a democracia................................................................................169
Epílogo..........................................................................................................................................177

Bibliografía...................................................................................................................................187

Anexos..........................................................................................................................................195
I. O pragmatismo e a Escola de Chicago.......................................................................195
II. Norbert Elías e John Dewey: uma pequena aproximação.........................................212

Introdução

“Quem estuda filosofia “por si mesma” corre sempre o perigo de tomá-la


como um exercício de agilidade intelectual ou de severa disciplina - como
coisa dita pelos filósofos que se refira só a eles. Mas quando as conclusões
filosóficas são confrontadas com a espécie de disposição mental a que
correspondem, ou com as diferenças que operam na prática educativa
quando influem sobre ela, as situações que elas formulam nunca são coisas
remotas de nossa vista” (Dewey, 1959:362).

No Ocidente, foi na Grécia antiga que emergiu de forma clara e sistematizada a

idéia de que um modelo de cultura, uma paidéia, pode funcionar deliberadamente como

princípio formativo de uma sociedade. Tendo os gregos da era clássica formado uma

sociedade plena de artistas e pensadores, a mais importante obra de arte que eles se

propuseram criar parece ter sido o próprio ser humano. Tal como um escultor que corta

a pedra ou o oleiro que modela a argila, para lhes dar as formas almejadas, a ação

pedagógica começou ali a ser vista como um processo pelo qual se configura o

comportamento dos seres humanos (Jaeger, 1986). A filosofia de Platão (428-347 a.

C.), principalmente em seu livro A República, é um testemunho eficaz do

reconhecimento desse vínculo entre a educação e a construção de uma sociedade.

O filósofo e educador americano John Dewey (1859-1952) considerava que a

educação era uma espécie de laboratório onde as idéias são postas à prova, tornando

efetivos os valores a elas associados. É desta perspectiva que interpreto a sua afirmação

de que “a filosofia é a teoria da educação e esta a sua prática deliberadamente

empreendida” (Dewey, 1959:365).

Como todo ato de pensar, a filosofia se dá por tentativa; não é um mero registro

de fatos ou idéias, mas a sua visão em perspectiva. Assim, se a filosofia for definida

como um pensar sobre o significado daquilo que somos, conhecemos e fazemos, a

filosofia da educação, especificamente, seria a tentativa de refletir sobre os processos

em que as idéias se efetivam, tornando-se hábitos e ações. Isto parece supor que a

transmissão de idéias de uma geração para outra resulta em diferenças na prática. A

filosofia da educação seria então esse pensar sobre a própria prática (da educação),

entendida esta como processo pelo qual são desenvolvidas nos seres humanos
disposições intelectuais, morais, emocionais, estéticas e físicas que os constituem como

indivíduos e membros de uma sociedade.

Pensar a educação escolar como socialização, como fez o sociólogo francês

Émile Durkheim (1858-1917), é considerá-la justamente como ações exercidas pelas

gerações adultas sobre as gerações que se preparam para a vida social; ações estas que

visam desenvolver nos educandos determinadas disposições ou hábitos exigidos pela

sociedade como um todo e pelo meio específico no qual estão inseridos os educandos

(Durkheim, 1978). Esta noção, fundamental no processo de definição e constituição das

ciências sociais, serviu para ampliar e aprofundar o conhecimento sobre os efeitos de

uma paidéia ou a visão da educação como “modelagem social”. 1 Isto é, um processo

que vai além do treino das faculdades mentais e/ou da transmissão de conteúdos. Neste

sentido, tanto Durkheim quanto John Dewey abriram espaços para o desenvolvimento

da sociologia como uma das ciências da educação. Antônio Cândido (1985), no texto

“Tendências no desenvolvimento da Sociologia da Educação”, coloca Dewey e

Durkheim em um mesmo grupo. Trata-se da vertente filosófico-sociológica, uma

“filosofia sociológica dos fatos educacionais” que elabora uma “reflexão sobre o caráter

social dos processos educativos”. Cândido (1985) indica que é possível reconhecer aí o

ponto de partida da sociologia educacional, mas critica a importância conferida por esta

vertente aos aspectos mais gerais da educação, o que não favoreceria o aparecimento de

uma “sociologia especial dos fatos educacionais”, conduzindo a um ponto de vista que

mais se traduz em pedagogia ou filosofia do que em sociologia (p. 7).

Embora o conceito de socialização elaborado por Durkheim e também por

Dewey ressalte o papel da sociedade no processo de formação de seus membros, ele

parece não ter anulado a necessidade de se tentar compreender como esse processo se

dá nos indivíduos. Neste sentido, com a constituição e desenvolvimento de ciências

1
Esta expressão é utilizada por Norbert Elias (1994) em A sociedade dos indivíduos, de 1939.
como a sociologia, a psicologia e a antropologia, a relação entre indivíduo e sociedade

na educação se transformou - como é possível perceber através da obra de autores

como Dewey, Mead, Elias e Bourdieu -, em uma questão crucial, um ponto de

cruzamento ou interseção de diferentes saberes sobre o homem.

O modo como indivíduo e sociedade podem ser relacionados constitui um tema

básico das ciências humanas, tendo já sido discutido de distintas formas. Elias (1995),

em Was ist Soziologie? [1970], e, mais recente, Corcuff (1998), em Les nouvelles

sociologies [1995], indicam que a questão da relação entre indivíduo e sociedade,

pensados como um “par de conceitos”, vem marcando a sociologia desde seus

primórdios. Durkheim foi muito enfático ao definir a sociologia como uma ciência que

deveria estudar a sociedade, através da análise dos fatos sociais, deixando para a

psicologia o âmbito do indivíduo. Porém, trabalhos produzidos a partir de outras

tradições intelectuais, como a chamada escola sociológica de Chicago, sugerem uma

espécie de tensão, ao invés da oposição, entre indivíduo e sociedade, na análise dos

fenômenos sociais (Levine, 1997; Alexander, 1997; Joas, 1993).

De forma simultânea à constituição desta tradição sociológica e mantendo com

ela relações importantes, um grupo de intelectuais liderados por John Dewey

desenvolveu na passagem do século XIX para o século XX na Universidade de Chicago

reflexões e pesquisas no campo da educação em que o problema da relação entre

indivíduo e sociedade aparece como uma das questões centrais. Este tema foi algo que

me chamou a atenção desde que comecei a conhecer a tradição pragmatista através dos

trabalhos do educador brasileiro Anísio Teixeira (1900-1971), que estudara com Dewey

na Universidade Columbia (Nova York) no final da década de 1920.

Em 1894 Dewey fora convidado para lecionar na Universidade de Chicago. Até

1904 ele ali trabalhou e desenvolveu, junto com George Herbert Mead, Ella Flagg

Young, James Hydden Tufts, James Rowland Angell e outros, algumas experiências
pedagógicas que combinavam antigas questões filosóficas com a visão de saberes, como

a psicologia e a sociologia, que apenas começavam a se constituir como ciências

autônomas. Considero que foi neste período de sua carreira e a partir dessas

experiências desenvolvidas em Chicago, que Dewey produziu suas obras mais

significativas para o campo da educação.

O objetivo inicial desta pesquisa, que agora apresento em forma de livro, era

ampliar o conhecimento sobre as relações entre indivíduo e sociedade na educação,

tendo como base de análise a obra de John Dewey. O trabalho foi realizado basicamente

através da interpretação de textos, principalmente aqueles relacionados ao período em

que Dewey trabalhou em Chicago (1894-1904). Tentei realizar uma reconstrução do

contexto em que ele elaborou uma filosofia da educação, privilegiando a leitura de

trabalhos de Dewey e de outros autores (Mills, Joas, Elias, Bourdieu, etc.) que discutem

de uma forma ou de outra o tema central deste livro.

Com este trabalho, tenta-se manter viva a discussão de uma questão geral - a

relação entre indivíduo e sociedade na educação -, ao mesmo tempo em que se procura

ampliar e aprofundar o conhecimento de uma dada visão de mundo, o pragmatismo

americano. Isto quiçá também nos ajude a compreender um pouco mais o próprio

campo da educação no Brasil e a ação de certos agentes que nele trabalharam, como

Anísio Teixeira2 e até mesmo Paulo Freire.

A relação entre indivíduo e sociedade na educação é um tema que, pelo modo

como aparece na obra de John Dewey, sugere aproximações com certas reflexões

geradas no campo das ciências sociais. Neste sentido, a leitura de trabalhos de

Durkheim (1978), Joas (1993), Mills (1968) Elias (1994), e Bourdieu (1996), por

2
Anísio Teixeira tem sido para meus estudos no campo educação o principal ponto de referência. Foi a
partir de uma pesquisa sobre a identidade do campo educacional brasileiro nas décadas de 50 e 60,
época em que Teixeira teve atuação marcante à frente do INEP e da CAPES, que articulei as hipóteses
gerais da dissertação de mestrado (Anísio Teixeira: Ciência, Progresso e Educação. PUC-Rio,
Departamento de Educação, 1995). Esta tese de doutorado pode ser lida como mais um desdobramento
daquela pesquisa, cujos resultados foram publicados no livro Por que não lemos Anísio Teixeira?,
organizado por Zaia Brandão e Ana Waleska P. C. Mendonça (1997).
exemplo, e o diálogo com a orientadora de minha tese de doutorado (Zaia Brandão)

geraram um contexto teórico a partir do qual fui elaborando as questões que perpassam

todo o trabalho e dirigindo a leitura que consegui realizar do pragmatismo americano e,

especificamente, da filosofia da educação de Dewey.

Ainda que esses autores acima referidos não partam de uma mesma matriz de

pensamento, pelo menos uma questão torna possível a referida aproximação com o tema

central desta pesquisa. Refiro-me à tentativa de esclarecer a constituição das formas de

classificação ou das categorias do pensamento, com as quais os indivíduos conhecem e

interpretam o mundo. Desde Aristóteles até os dias atuais, passando por Kant e

Durkheim, a filosofia, a sociologia e a antropologia vêm apresentando explicações

várias para essa questão. Relacionar indivíduo e sociedade tendo como foco de análise a

educação parece sugerir uma abordagem cognitiva. Esta é uma questão presente nesse

trabalho, tendo em vista que Dewey também elaborou sua filosofia em diálogo com

temas da nascente psicologia do desenvolvimento.

A possibilidade de relacionar direta ou indiretamente o pragmatismo americano

com as ciências sociais foi indicada por Durkheim em um curso ministrado pelo

sociólogo francês entre 1913 e 19143. Também o sociólogo alemão Hans Joas (1993),

pesquisador da obra de Herbert Mead, e o americano Donald Levine (1997) afirmam

que o pragmatismo é uma das fontes da tradição sociológica que se desenvolveu em

Chicago.4 Assim, além do fato de serem produtos de uma mesma época, como bem

lembrou o próprio Durkheim (s/d), é importante marcar a tendência de ambos

[pragmatismo e sociologia] para procurar novas e científicas abordagens de questões da

filosofia, dando-lhes um tratamento impregnado de evidências empíricas e desenhado

sobre uma base histórica (Joas, 1993:57). Neste sentido, tanto Dewey, Mead e os
3
Este curso foi transcrito por seus alunos e posteriormente publicado em 1955 com o título
Pragmatisme et Sociologie. Na edição portuguesa aparece com o título de Sociologia, Pragmatismo e
Filosofia (s/d).
4
Apresento nos Anexos um texto que contém alguns esclarecimentos sobre as relações entre o
pragmatismo e a tradição sociológica que se desenvolveu em Chicago no início do século XX.
sociólogos de Chicago (Thomas, Park, etc.), quanto Durkheim, Elias e Bourdieu foram

e são importantes porque suas obras nos ajudam a entender a questão das categorias

fora dos domínios da filosofia transcendental. O tema das condições de constituição da

cognição se transformou neste autores, de uma forma ou de outra, na questão empírica

de como essas condições emergem na mente dos indivíduos que vivem em sociedade

(Joas, 1993). Penso não ter sido obra do acaso que a educação tenha sido tomada como

um objeto crucial de reflexão e de pesquisa de alguns desses filósofos, psicólogos e

sociólogos. Neste sentido, não parece inconsistente colocar a noção de hábito (habit)

em um lugar de destaque na filosofia da educação de Dewey. A compreensão de

processos sociais como a educação exige das ciências que os investigam ferramentas

que dêem conta de sua complexidade e ambigüidade. Assim, obras de autores como

Dewey, Mead, Elias e Bourdieu, com seus respectivos conceitos de hábito, me, rede e

habitus, ganham relevância pela possibilidade de esclarecer processos em que sociedade

e indivíduo são elementos indissociáveis.

Natureza e sociedade

No século XIX , tornou-se evidente um debate sobre a distinção entre os dois

grandes ramos da ciência. A força do positivismo fez com que na França as ciências

naturais se colocassem de uma forma geral como modelo para todos os outros saberes,

tendo como paradigma a Física. Na Alemanha, o que se mostrou foi uma distinção mais

nítida entre as Naturwissenchaften e as Geistwissenschaften. Os fundamentos das

“ciências do espírito” foram colocados por Dilthey, tendo como disciplina central a

história. 5

5
Herbert Mead, companheiro de John Dewey na Universidade de Chicago, passou dois anos (1889-91)
estudando na Universidade de Berlim e tendo Dilthey como seu supervisor de tese.
Em 1879, Wilhelm Wundt fundou em Leipzig (Alemanha) um laboratório para

estudos de psicologia.6 Wundt é uma figura emblemática no que diz respeito às

dificuldades de se traçar a fronteira entre as ciências naturais e as ciências do espírito

(humanas ou sociais). Pioneiro da psicologia experimental, que deveria estudar os

processos sensoriais básicos, Wundt considerava que a psicologia era apenas em parte

um ramo das ciências naturais, pois a Völkerpsychologie (psicologia social) se referia

“àqueles produtos mentais que são criados por uma comunidade humana e são, por

conseguinte, inexplicáveis em termos meramente da consciência individual, pois eles

pressupõem uma ação recíproca” (Wundt apud Farr, 1998:47). Exemplos desses

“produtos mentais” são a linguagem, os mitos, as religiões, costumes, etc.. Neste

sentido, alguns trabalhos de Wundt e questões postas por sua extensa obra tornaram-se

referências obrigatórias para estudos de sociologia, psicologia, antropologia, etc..

Durkheim, Mead, W. I. Thomas, Vygotsky, Malinowski, Boas e Freud foram alguns

dos cientistas que absorveram algo da obra de Wundt ou estudaram diretamente com ele

em Leipzig.

Os problemas da tensão ou oposição entre indivíduo e sociedade e do modelo

mais apropriado para as ciências humanas e sociais também chegaram aos Estados

Unidos, principalmente através dos milhares de americanos que no século XIX foram

estudar na Europa. No campo da psicologia, a obra de Wundt recebeu uma

interpretação peculiar no mundo de fala inglesa, particularmente através dos psicólogos

sociais. Estes, ao menos na tradição anglo-americana, não tiveram uma visão clara da

psicologia como ciência social e, sob a influência do positivismo, repudiaram a idéia de

que ela também fosse uma Geistwissenschaft (Farr, 1998:58). Assim, foi o enfoque

fisiológico que se tornou hegemônico nos Estados Unidos e na Inglaterra. Contudo, a

partir dos trabalhos de John Dewey e Herbert Mead o que se configura é uma “teoria

6
Alguns anos antes, em 1875, William James organizara em Harvard (USA) um laboratório de
psicologia.
social da mente”, principal resultado de uma psicologia social que se voltou

especificamente para as atividades educacionais (Mills, 1968:473).

Dewey e o pragmatismo

O pragmatismo pode ser definido em termos gerais como uma corrente

filosófica que se originou nos Estados Unidos no final do século XIX, e que se

desenvolveu tendo como autores principais Charles Sander Peirce (1839-1914), Wlliam

James (1842-1910) e John Dewey. Trabalhando em áreas de estudo próximas, ainda que

especificamente distintas, eles não chegaram a constituir uma escola de pensamento,

senão uma visão de mundo. 7 Richard Rorty (1931-) e Stanley Cavell (1926-) são os

mais destacados representantes do pragmatismo contemporâneo, também designado

como neopragmatismo.

O termo pragmatism foi utilizado inicialmente, por volta de 1870, por Peirce, e

teve o seu significado rapidamente ampliado e modificado até chegar a caracterizar uma

filosofia social, que foi elaborada principalmente por John Dewey, George Herbert

Mead (1863-1931) e seus colaboradores na Universidade de Chicago. Ainda que o

enfoque inicial de Peirce tenha sido epistemológico e lógico, a vertente de pensamento

da qual fazem parte Dewey e Mead contribuiu muito para “articular uma ética social e

uma patente intelectual para as ciências sociais americanas” (Levine, 1997:226).

O termo “pragmática” foi encontrado por Peirce na Crítica da Razão Pura, de

Kant. 8 Conforme a leitura que fez Peirce, Kant (1724-1804) utilizara aquela palavra

para designar um tipo de crença que, embora contingente, fornece condições para a

7
Durkheim foi muito irônico ao tentar encontrar uma definição para o pragmatismo. Citando René
Berthelot, ele diz o seguinte: “O pragmatismo é como a nuvem que Hamlet mostra a Polônio, por uma
das janelas do castelo de Elsenor, nuvem esta que ora se parecia com um camelo, ora com uma
doninha, ora com uma baleia” (Durkheim, s/d, p.21).
8
Marcondes (2000) esclarece que “o termo “pragmática” é derivado do grego pragma, significando
coisa, objeto, principalmente no sentido de algo feito ou produzido, sendo que o verbo praxein,
significa precisamente agir, fazer” (p.38). Em termos de corrente de pensamento, podemos distinguir a
pragmática, enquanto um campo de estudos da linguagem, do pragmatismo, a corrente filosófica que se
originou no século XIX e se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos.
seleção de meios adequados à execução de certas ações (Levine, 1997). Como veremos

adiante, Peirce também pôs em questão a dúvida absoluta de Descartes (1596-1650),

desafiando o conceito central do cartesianismo. Segundo ele, uma dúvida é sempre

determinada e se refere a algo; ela faz com que nos esforcemos para chegar a um estado

de certeza (uma idéia que se cristaliza em crença), e esta se traduz em ação. A

característica essencial da crença seria a radicação em nós de uma regra de ação, de um

hábito. O sentido da crença reside, portanto, no sentido do hábito que essa mesma idéia

pode determinar. Desta perspectiva, diferentes crenças se distinguem a partir dos

diferentes modos de ação a que dão lugar (Sini, 1999:26). Peirce estabeleceu então uma

nova teoria do significado, segundo a qual a idéia de algo é a idéia de seus efeitos

sensíveis. Assim, “o significado passou a ser relacionado aos efeitos práticos que podem

resultar de se sustentar o mesmo” (Sini, 1999:26).

O que emerge com a perspectiva pragmática é uma crítica à concepção (realista)

segundo a qual haveria correspondência entre proposições e o real descrito pelas

mesmas. Contudo, no que diz respeito à ciência, isto não significa inviabilizá-la, posto

que uma teoria pode ser considerada como um “modelo explicativo” ou um conjunto de

hipóteses que explicam determinado domínio do real (Marcondes, 2000). 9

No pragmatismo de Dewey também se encontra algo das idéias de William

James. Dewey compartilha com este autor a orientação prática para o conhecimento,

que contrasta com a maior ênfase dada por Peirce à teoria, e o resgate do elemento

material (o corpo) na análise do comportamento. A filosofia elaborada na Universidade

de Chicago entre 1894 e 193110 representou, de uma forma geral, uma importante

transformação no clássico dualismo que põe o mundo como uma realidade externa e a
9
Para uma discussão sobre a oposição dentro do pragmatismo entre nominalismo e realismo, ver o
estudo de Lewis e Smith (1980), American Sociology and Pragmatism.
10
Estas datas se referem à formação e dissolução de um grupo de professores de filosofia, psicologia, e
educação pioneiros naquela universidade (Tufts, Dewey, Mead, Angel e outros). Já em 1904 John
Dewey foi lecionar na Universidade Columbia (Nova York), de onde não mais retornaria. Os outros
continuaram trabalhando em Chicago, mas por motivos vários (transferência, falecimento, etc.) o grupo
foi sendo desfeito. A data limite (1931) é uma indicação de Rucker (1969:26), em seu estudo The
Chicago Pragmatists, e provavelmente se refere à saída de Herbert Mead.
mente como algo completamente distinto, uma realidade interna. Mente, pensamento e

consciência foram considerados como produtos de um ativo processo envolvendo

organismo e mundo. É como nos explica Joas (1993), ao afirmar que Dewey e Mead

refundaram o pragmatismo na forma de uma psicologia funcionalista11:

“O intento desta psicologia era interpretar todas as operações e processos


psíquicos - e não somente os cognitivos - em termos de sua funcionalidade
para a solução de problemas encontrados pelos sujeitos no curso de suas
condutas” (Joas, 1993:20).

Rucker (1969) assinala que para os pragmatistas de Chicago o processo que faz

surgir o ser humano é justamente a atividade social; daí a idéia de sujeito como agente

social:

“O conceito de indivíduo socialmente constituído é a outra face do conceito


de mente como algo que recebe seu conteúdo da atividade na qual ela se
constitui, ao invés de alguma fonte externa como no empirismo ou de uma
super-mente como no racionalismo” (Rucker, 1969:29).

Atividade (activity) é um dos conceitos centrais da filosofia de John Dewey e se refere

ao mesmo tempo àquilo que é biológico e psicológico. É a atividade que nos leva a

encontrar os problemas, fazendo com que o mundo seja conhecido e mude

progressivamente.

Dewey preferia utilizar o termo instrumentalismo, em lugar de pragmatismo, e

considerava que o pensamento emergiu da interação dos seres vivos com o mundo. Ao

invés de tomar o pensamento como um elemento próprio para a contemplação, ele o via

principalmente como um instrumento desenvolvido para resolver problemas, procurar o

que falta, modificar a realidade. Neste sentido, o conhecimento é algo sempre vinculado

à realidade e que se origina a partir de situações de incerteza. Dewey tratou termos

como “verdadeiro” e “certo” não em relação a coisas como a “vontade de Deus”, a “Lei

Moral” ou a “natureza intrínseca da realidade objetiva”, mas como expressões da

11
O pensamento desse grupo de Chicago pode ser relacionado com o desenvolvimento da psicologia
nos Estados Unidos, justo na época em que esta começava a se distinguir da filosofia, deixando de ser
um saber apenas especulativo e incorporando o aspecto experimental.
solução de um dado problema. O educador brasileiro Anísio Teixeira, em um

comentário sobre a filosofia de Dewey, indicou que este rejeitava a obsessão dos

filósofos por uma realidade superior à precariedade da contingência, apoiando-se na

própria contingência e precariedade do mundo, “fundando a interpretação do homem e

do seu meio e o sentido da vida humana no próprio risco e aventura do tempo e da

mudança” (Teixeira, 1955:4).

Outro elemento importante das idéias de Dewey se encontra na perspectiva

aberta pela obra de Darwin. O naturalista inglês afirmara que as estruturas da vida não

tinham formas pré-determinadas; isto torna a experiência um fator decisivo para a

evolução das espécies. Crescimento, adaptação e uso da inteligência para a resolução de

questões são marcas da filosofia da educação de Dewey. Ele deu prioridade aos

processos naturais e ao condicionado, ao invés de se voltar para o incondicionado. Para

Dewey, “a inteligência não impõe ex-nihilo uma unidade transcendente sobre os fatos,

mas se integra nas condições fáticas para reconstruir seu significado e seu valor”

(Esteban, 1996:29).

Como poderemos ver, certas reflexões de Dewey também emergiram como

respostas críticas à experiência de desajuste entre um novo contexto gerado pela

economia industrial e pelo processo de crescimento das cidades e os ideais tradicionais

da democracia americana. Relacionar algumas características de sua formação

intelectual a esse contexto é o objetivo do capítulo I.

Em 1894 Dewey deixou a Universidade de Michigan para trabalhar na recém-

fundada Universidade de Chicago, onde iria dirigir um departamento em que filosofia,

psicologia e educação seriam áreas intrinsecamente relacionadas. De Michigan, também

seguiu Herbert Mead, como professor assistente de filosofia. Dewey convidou James

Angell, da Universidade de Minessota, para ser professor assistente de psicologia

experimental. Junto com James H. Tufts, que seguira anteriormente para Chicago, eles
formaram um núcleo de estudo naquela universidade. 12 Do grupo de pragmatistas de

Chicago, Dewey foi a figura mais eminente. Ao contrário de Mead, sua disposição para

expor, discutir e publicar suas idéias possibilitou grande visibilidade nos campos em

que atuou.

No final do século XIX o campo educacional americano se encontrava em

estado de ebulição, ativado pelas idéias dos que acreditavam na necessidade de mais

liberdade para as crianças: liberdade para investigar, para interrogar, para experimentar.

Para Dewey, não se tratava de uma liberdade selvagem e sem controle, mas esforço e

interesse deveriam aparecer juntos no processo de ensino e aprendizagem. É

significativo que a educação escolar tenha ocupado um espaço crucial nas experiências

e reflexões dos pragmatistas de Chicago, pois a escola é um lugar privilegiado para se

observar não apenas como o conhecimento se desenvolve nos seres humanos, mas

também como os valores são incorporados e podem ser transformados. O capítulo II

deste livro é uma tentativa de compreender a relação entre indivíduo e sociedade a

partir da Escola Laboratório organizada por Dewey e seus colaboradores na

Universidade de Chicago em 1896. Este experimento pedagógico e algumas questões

que surgiram no seu funcionamento parecem algo bastante coerente com a opção feita

por Dewey de desenvolver “uma filosofia voltada para a prática, no sentido ético e

aplicado” (Marcondes, 2000:39). Assim, como afirmou o próprio Dewey (1959) em

Democracia e Educação [1916], “quando as conclusões filosóficas são confrontadas

com a espécie de disposição mental a que correspondem, ou com as diferenças que

operam na prática educativa quando influem sobre ela, as situações que elas formulam

nunca são coisas remotas de nossa vista” (p. 362).

12
A idéia de uma Chicago School (Escola de Chicago) foi tornada pública pela primeira vez por
William James em um artigo publicado em Psychological Bulletin (January 15, 1904), no qual ele
comentava o livro Studies in Logical Theory, publicado pela Universidade de Chicago um ano antes
(Rucker, 1969).
Do ponto de vista político, Dewey foi durante toda a sua vida um liberal

humanista e um democrata radical. Quiçá por isso mesmo ele não tenha deixado de

questionar aspectos restritivos do velho liberalismo, que desde o final do século XIX

vinha ameaçando a ampliação da democracia com a exacerbação do individualismo e a

excessiva concentração do poder econômico nas grandes organizações industriais e

financeiras. De fato, é a democracia que ocupa o centro do pensamento de John Dewey.

Para ele, a democracia institucional, formal, que organiza e regula as atividades no

âmbito político, é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para consolidar a

democracia como uma “forma de vida” e princípio educativo. Forma de vida pode ser

relacionada a modos de agir, a maneiras de se relacionar com os outros, a hábitos.

Neste sentido, sendo a escola uma instituição potencialmente formadora e capaz de

exercer uma certa “modelagem social”, ela não poderia ser vinculada diretamente à

construção de uma sociedade democrática? Mas o que significa hábito (habit) na

filosofia da educação de Dewey? Quais as relações que se podem estabelecer entre

hábito e socialização, e entre ciência e democracia? Estas são algumas das questões

examinadas nos capítulos III e IV.

Uma abordagem mais sistemática de problemas políticos por parte de Dewey

teve início a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ampliando-se nas duas

décadas seguintes, principalmente após a depressão econômica que se instalou em 1929

nos Estados Unidos. Isto significa que quando ele passou a escrever sobre questões

ligadas especificamente ao campo da política sua filosofia da educação já estava

formulada, e é nesta que se encontram de forma mais clara o tema da socialização e a

noção de hábito. Os principais textos por mim analisados, como os ensaios escritos

entre 1894 e 1904 e os livros School and Society [1899], How we think [1910] e

Democracy and Education [1916], foram publicados antes de 1918. Os contextos em

que Dewey viveu e escreveu a sua obra no curso de uma longa vida - que testemunhou
a ascensão do capitalismo monopolista ainda no século XIX, o impacto da Primeira

Guerra Mundial, a grande recessão de 1929 e ainda a guerra de 1939-1945, propiciaram

elementos para uma crescente radicalização de suas críticas ao individualismo.

Contudo, tenho como hipótese que a idéia de democracia como modo de vida, a noção

de hábito como matriz do pensar e do agir e ponto de cruzamento entre indivíduo e

sociedade, e a aposta na escola como instituição capaz de contribuir para a formação de

certos valores e modos de vida, é que fornecem a Dewey uma base consistente para ele

formular críticas ao velho liberalismo e à democracia formal. Isto faz com que, do

ponto de vista aqui adotado, a filosofia da educação ocupe um lugar central em sua obra

e não exatamente por ser anterior aos trabalhos específicos sobre política, mas pela

importância heurística na análise da dinâmica social. Dewey, como Platão, sabia que a

educação não era um fator de menor importância nos campos filosófico e político, mas

quiçá seu aspecto mais significativo.

O último capítulo foi colocado deliberadamente após as considerações finais e a

bibliografia. Está composto de dois pequenos textos que são em parte produtos

paralelos desse estudo da filosofia da educação de Dewey. Digo “em parte” porque a

leitura de A sociedade dos indivíduos, de Norbert Elias, funcionou na verdade como um

mapa de minhas leituras, ainda que o sociólogo judeu-alemão o tenha construído a

partir de um outro observatório. A segunda parte do capítulo teve origem no convite da

professora Zaia Brandão para discutir o pragmatismo americano com os alunos da

disciplina Sociologia da Educação, do programa de Pós-graduação em Educação da

PUC-Rio, e foi escrita a partir de uma leitura do ensaio “Symbolic Interacionism”, de

Hans Joas (1993). É uma primeira tentativa de aproximar minhas reflexões sobre a

filosofia da educação de Dewey da sociologia produzida na Universidade de Chicago no

início do século XX.


Textos e Contextos

Na origem deste trabalho se encontra o questionamento que fiz de certas

interpretações do legado da “escola nova” no Brasil e do pragmatismo americano. Mas

devo lembrar que as leituras que realizei de textos de John Dewey e de outros autores

também se situam em um horizonte interpretativo, pois deste “círculo” parece que não

temos como escapar. Umberto Eco (1993) propõe a noção de “intenção do texto”

(intentio operis) como um paradigma possível para se contestar interpretações

problemáticas. Ele adota uma espécie de princípio popperiano, segundo o qual se não

há regras que possam definir as “melhores” interpretações ao menos deve existir algum

critério para indicar as que são “más”. Trata-se da busca de coerência para as

interpretações, algo que possa moderar as intenções do leitor. Não tento, com isto,

isolar a “intenção do texto” da figura do leitor e muito menos do contexto em que as

interpretações são elaboradas, senão enfatizar a necessidade de voltarmos sempre aos

textos, ainda que o próprio Eco nos advirta o seguinte:

“Mais do que um parâmetro a ser utilizado com a finalidade de validar a


interpretação, o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer
do esforço circular de validar-se com base no que acaba sendo o seu
resultado”(Eco, 1993:75).

O caminho que segui neste estudo do pragmatismo pode ser definido como um

exercício de ler textos, relacionando-os aos contextos em que eles e as idéias que neles

aparecem foram produzidos. Para fazê-lo, empreendi o estudo do pensamento

educacional de John Dewey tendo como referência uma questão básica: como indivíduo

e sociedade podem ser relacionados na educação? Mas lançar mão do contexto, por

mais profunda que seja a sua reconstrução, não responde imediatamente a todas as

questões de uma interpretação, e pode se tornar uma estratégia enganosa, já que nunca

temos exatamente o contexto.13


13
LaCapra (1998) desdobra a noção de contexto em seis tipos: 1) as relações entre as intenções do autor
e o texto; 2) a relação entre a vida do autor e o texto; 3) a relação da sociedade com os textos; 4) a
relação entre a cultura e os textos; 5) a relação de um texto com o corpus da obra do autor; 6) a relação
entre modos de discurso e texto.
Além disso, não me propus ler ou desvelar as idéias de John Dewey como se

elas formassem mais um sistema filosófico no grande cortejo da história da razão. Não

se considera aqui que o pensamento seja uma espécie de novelo que vem sendo

estendido no curso da história em uma linha do tempo, podendo esta ser representada

como reta e com um único sentido, e onde cada segmento que se acrescenta já está

contido naquilo que o antecedera.

A interpretação da filosofia da educação de John Dewey que apresento foi

construída com o apoio teórico de uma noção mais ampla de contexto e tendo como

referência uma questão, que serve para fazer pontes entre a educação, enquanto prática

social e campo de investigação, e as suas “ciências-fonte”. 14 Não se considera aqui o

contexto em que se formaram as idéias como uma espécie de pano de fundo de uma

ópera, em que o autor é algo completamente distinto do mesmo. Por outro lado, não é

menos problemático considerar as condições objetivas em que surgem as idéias como

um mecanismo demoníaco onde o agente/autor não existe enquanto tal, justamente por

ser apenas um suporte da estrutura que o determina.

O objetivo deste livro é tentar encontrar respostas para uma dada questão,

relacionando-a aos contextos em que um autor (Dewey) e sua geração (os pragmatistas

de Chicago) falaram e escreveram, e levando em conta dilemas e conflitos que esses

agentes tentaram resolver. Retomando Weber e Collingwood, LaCapra (1998) ressalta a

importância das perguntas ou questões para a história das idéias:

“Um fato é um fato pertinente somente com respeito a um marco de


referência que implica perguntas que fazemos ao passado, e o que distingue
o saber produtivo é a atitude de propor as perguntas ‘corretas’ ” (LaCapra,
1998:247)

A tensão entre o texto e o contexto, entre as idéias e os contextos em que foram

geradas, ou entre o autor e as condições de sua produção intelectual, tudo isto é

14
Seguindo a visão de Dewey, Anísio Teixeira (1977) indicou que a sociologia, a psicologia e a
antropologia funcionariam como as “ciências-fonte” da educação.
fundamental para aqueles que tentam compreender a história das idéias fora da ilusão

positivista de uma racionalidade semelhante para todas as ciências, mas que também já

não guardam a certeza de que as “urgências do presente” garantem necessariamente a

objetividade das interpretações.

LaCapra (1998) indica que os textos podem ser tomados quase como um cenário

de conflitos e contestações; também sugere que não há lugar para um contexto que seja

algo fora do texto, pois não há contexto que de alguma forma já não tenha sido

“textualizado”:

“A vida social e individual podem ser vistas de uma forma frutífera segundo
a analogia do texto, implicadas em processos textuais que freqüentemente
são mais complicados do que a imaginação histórica está disposta a admitir”
(LaCapra, 1998:241).

Penso que a ênfase dada por LaCapra à “textualidade” é bastante útil na medida

em que pode tornar a noção de “realidade” menos dogmática, pois aponta para o fato de

que estamos sempre envolvidos no problema do uso da linguagem e das possibilidades e

limites do significado e da interpretação. Esta constatação parece óbvia, embora nem

sempre estejamos atentos para o fato de que, seja para o filósofo, para o historiador,

para o sociólogo ou para qualquer um que se interrogue sobre a “realidade”, seja da

educação ou da economia, seja da cultura ou da política, a reconstrução ou interpretação

será sempre produzida com base em “restos textualizados”.

Ao escrever The Chicago Pragmatists and Americam Progressivism, Andrew

Feffer (1993) sugere que o leitor familiarizado com os métodos da história intelectual

reconheceria naquele livro um tipo de “radical contextualism”. Este livro foi uma das

principais fontes utilizadas por mim para compreender as condições gerais da sociedade

americana na qual Dewey trabalhou e para obter informações sobre a relação entre o

pragmatismo de Chicago e a Era Progressista.

Penso que também foi importante nessa leitura que fiz da obra de John Dewey a

visão de LaCapra (1994) de que podemos trabalhar com dois aspectos dos textos: o
aspecto documental, que situa o texto na dimensão dos fatos, “implica a referência à

realidade empírica e transmite informações sobre ela”; e um outro aspecto, que implica

“dimensões do texto não redutíveis ao documental”, e inclui de forma preponderante a

imaginação, a interpretação, o compromisso (LaCapra, 1998:246). Este aspecto, que ele

chamou de “ser-obra” em uma alusão a Heidegger, é crítico e transformador porque

desconstrói e reconstrói o dado; “repetindo-o de certo modo, mas também trazendo ao

mundo, nessa diferença, modificação ou transformação significativa, algo que não

existia antes” (LaCapra, 1998:246).

Considero que estes dois aspectos podem ser muito úteis para se compreender o

modo como Dewey opera em certos textos. The School and Society [1899], How we

think [1910] e Democracy and Education [1916], por exemplo, são obras que, em

parte, constatam, descrevem, documentam processos. Por outro lado, o discurso contém

um aspecto “performativo”, que não apenas gera uma teoria sobre o conhecimento e a

educação, uma filosofia da educação, como também sugere transformações naquilo que

é descrito. Penso que aí podemos flagrar a expressão mais clara do veio reformista de

John Dewey, que é também uma característica da escrita de alguns autores do campo

educacional.15 Para o leitor ou intérprete fica a difícil tarefa de saber exatamente quando

Dewey está descrevendo um processo ou indicando o modo como ele deveria ser. Entre

a análise de um fenômeno ou a tentativa de descrever o que é, por exemplo, a educação,

e a perspectiva de poder transformá-la ou interferir em seu curso, os textos de Dewey

alternam e imbricam essas duas dimensões.

Do que pude constatar, alguns de seus trabalhos - principalmente no modo como

eles apresentam a educação enquanto processo formador de hábitos - guardam

semelhanças com análises sociológicas. Neste sentido, Dewey faz justiça à perspectiva

pragmática ao abandonar em muitos casos o exercício da análise das idéias em si ou um

15
Nos textos de Anísio Teixeira e Paulo Freire, por exemplo, este duplo aspecto da linguagem é
bastante evidente.
pensar sobre o próprio pensamento. Ainda que questões filosóficas perpassem toda sua

obra, como ocorre com a obra de alguns sociólogos - Durkheim e Bourdieu, por

exemplo -, as respostas para elas foram buscadas fora do domínio transcendental. 16

Pensando sobre o processo

Quando se estuda a obra do educador brasileiro Anísio Teixeira, percebe-se que

Dewey é uma de sua principais referências no que diz respeito à educação escolar. Isto

não é novidade e já fora indicado de uma forma ou de outra em vários estudos sobre

Teixeira e os pioneiros da “escola nova” no Brasil (Cury, 1988; Nunes, 1991;

Mendonça, 1993). Muito já se falou dessa influência e quase não há dissertação ou tese

sobre Anísio Teixeira que não mencione algo a respeito de John Dewey. Este mesmo

procedimento tive eu na dissertação de mestrado (Moreira, 1995). Foi a partir de tal

estudo que comecei a pensar em desenvolver uma pesquisa específica sobre o

pragmatismo, aproveitando minha formação inicial em filosofia. Porém, seja no campo

da educação ou no campo filosófico, Dewey tem sido pouco estudado no Brasil.

Algumas de suas principais obras sobre educação foram traduzidas, publicadas e

divulgadas no Brasil até os anos 70, basicamente por iniciativa de Anísio Teixeira. Ele

foi certamente o principal propagador entre nós das idéias desse filósofo americano.

Com a morte de Teixeira em 1971, textos de Dewey deixaram de ser publicados e até

mesmo apresentados no Brasil como fontes “positivas” para o campo educacional. Mais

do que contestados, Dewey, o pragmatismo e o próprio Anísio Teixeira, foram

esquecidos. O legado daquilo que se chamou de movimento da “escola nova” também

passou a ser questionado desde a década de 70, seja através da crítica à ideologia

liberal, ao capitalismo ou à tecnocracia (Cunha, 1989; Saviani, 1985; Gandini, 1980). 17


16
Em sua análise da “gênese da disposição escolástica” Bourdieu indica que se pode apoiar no
pragmatismo (em particular de Dewey e Peirce) e na análise da filosofia da linguagem (de
Wittgenstein) para criticar as tendências genéricas da filosofia (Bourdieu, 1999).
17
Em 1994, no seminário O relativismo enquanto visão de mundo (org. Antônio Cícero e Waly
Salomão), Luis Eduardo Soares apresentou o trabalho “A centralidade do pragmatismo para as ciências
Em Educação e Desenvolvimento Social no Brasil [1975], especificamente no

capítulo “A educação e a construção de uma sociedade aberta”, Luiz Antônio Cunha

(1989) elaborou uma crítica da ideologia liberal no que diz respeito à educação,

incluindo aí referências às idéias de John Dewey e de Anísio Teixeira. A despeito da

relevância dessa obra como análise sociológica da educação brasileira, parece

problemática a associação feita (ainda que com ressalvas) pelo autor no primeiro

capítulo entre a visão de John Dewey e Anísio Teixeira e o projeto educacional da

ditadura militar implantada em 1964. Contudo, esta interpretação pode ser melhor

entendida se considerarmos o contexto e o “idioma geral” da época em que foi escrita.

Sob este aspecto, Demerval Saviani (1985) em Escola e Democracia [1983], ao

tentar aplicar a metáfora de Lenin da “curvatura da vara”, fustigou e acusou de elitista a

contribuição da “escola nova” para a educação no Brasil:

“O ideário escolanovista, tendo sido amplamente difundido, penetrou nas


cabeças dos educadores acabando por gerar conseqüências também nas
amplas redes escolares oficiais organizadas na forma tradicional. Cumpre
assinalar que tais conseqüências foram mais negativas que positivas”
(Saviani, 1985:14). 18

É interessante notar que o próprio Saviani parece entrar em contradição quando

aborda este tema, pois em “Tendências e correntes da educação brasileira”, de 1981, ele

afirmara que o movimento da “escola nova” não lograra constituir-se em sistema

público de ensino e influenciara “apenas superficialmente” os procedimentos adotados

sociais e a teoria política” onde aparece um comentário sobre esse “esquecimento” do pragmatismo:
“Durante décadas, o pragmatismo manteve-se confinado em um círculo restrito. Na Europa, assim
como no Brasil, as linhas hegemônicas de pensamento, tanto na filosofia quanto nas ciências sociais,
negligenciaram sua importância. Leituras banalizantes do pragmatismo combinaram estigmatização
política com desprezo epistemológico. Os vínculos de Dewey com o liberalismo expressavam, do ponto
de vista da intelligentsia marxista, por exemplo, um compromisso inaceitável. As classificações
reducionistas confundiam pragmatismo com empirismo, realismo político, ética utilitária ou,
simplesmente, com oportunismo: a ‘doença infantil do individualismo liberal predador’” (Soares,
1994:136). Os grifos são meus.
18
Em um evento comemorativo ao centenário de nascimento de Anísio Teixeira, Saviani (2000)
afirmou se surpreender quando alguém contrapõe o seu trabalho ao de Anísio Teixeira: “Isto
provavelmente se deve ao fato de, num certo momento de minha produção, eu ter colocado em
evidência a polêmica com a Escola Nova” (p. 165). Não há, é verdade, em suas duras críticas à Escola
Nova, feitas no final dos anos 70 e início dos 80’, alusões específicas a Anísio Teixeira. Mas em tais
textos Saviani também não diz de que “escola nova” estava falando, quiçá esquecendo da advertência
que fizera Fernando de Azevedo (1958), em A Cultura Brasileira, sobre essa expressão “vaga e
imprecisa em seu conteúdo” (p. 179).
nas escolas oficiais (Saviani, 1994:29). Neste texto, Saviani termina reconhecendo que

o referido movimento não conseguiu abolir a escola convencional, constituindo-se em

uma exceção e tendo sido efetivado apenas em escolas experimentais.

Saviani (1985) atribui à influência da “escola nova” o “afrouxamento da

disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimento”, afirmando que tal

procedimento acabou por rebaixar o nível de ensino destinado às camadas populares.

Ele considera o movimento escolanovista “um mecanismo de recomposição da

hegemonia da classe dominante”, que se sentira ameaçada pela crescente participação

política das massas, viabilizada pela universalização da educação:

“Ao enfatizar a “qualidade do ensino”, a “escola nova” desloca o eixo de


preocupações do âmbito político (relativo à sociedade em seu conjunto)
para o âmbito técnico-pedagógico (relativo ao interior da escola),
cumprindo, ao mesmo tempo, uma dupla função: manter a expansão da
escola nos limites suportáveis pelos interesses dominantes e desenvolver um
tipo de ensino adequado a esses interesses. Com isto, a “escola nova’, ao
mesmo tempo que aprimorou a qualidade do ensino destinada às elites,
forçou a baixa da qualidade do ensino destinada às camadas populares já
que sua influência provocou o afrouxamento da disciplina e das exigências
de qualificação nas escolas convencionais” (Saviani, 1994:32).

Não há, pelo menos até agora, provas convincentes de que o ideário

escolanovista tenha penetrado de forma tão significativa, como alegara Saviani, nas

“amplas redes oficiais organizadas na forma tradicional” no Brasil, e nem mesmo nos

Estados Unidos, e que tenha sido pensado (o ideário escolanovista) deliberadamente

para prejudicar a educação das camadas populares. Mas essa visão de uma influência

negativa das idéias da “escola nova” não foi exclusiva de educadores brasileiros. As

propostas educacionais de John Dewey para uma “nova educação” também foram alvo

de críticas e mal-entendidos nos Estados Unidos.19

19
No livro The Chicago Pragmatists, Rucker (1969) comenta que “a absurda idéia, freqüentemente
atribuída a Dewey em particular e à educação progressiva em geral, de que as crianças podem ser
educadas quando soltas em um meio atrativo para que liberem seus impulsos de forma desordenada não
faz sentido à luz da psicologia e teoria social dos filósofos de Chicago” (p. 88). Ver também
Langemann (1996).
Em ambas as interpretações acima referidas, o contexto em que elas foram feitas

e os quadros teóricos utilizados quiçá tenham definido o sentido geral das

interpretações.20 Em 1975, ano da primeira edição de Educação e Desenvolvimento

Social no Brasil, os militares ainda mantinham o controle institucional do país, apesar

do crescimento eleitoral do partido de oposição (MDB); em 1980, quando Saviani

participou da CBE, e mesmo em 1983, quando da publicação de Escola e Democracia,

a idéia de uma organização política democrática para o país não passava efetivamente

de um desejo de alguns setores da sociedade civil brasileira. Mas se a democracia era

algo tão distante, não haveria um bom motivo para estudar, divulgar ou ao menos não

“esquecer” de autores como Anísio Teixeira e John Dewey, que consideram democracia

e educação indissociáveis? Esta questão me fez pensar que um estudo do pragmatismo

americano poderia também contribuir, ainda que de uma forma indireta, para uma

melhor compreensão de certas idiossincrasias do campo educacional brasileiro.

Se ampliarmos a noção de contexto, podemos então considerar que outros

fatores também condicionam as interpretações: as visões de mundo dos intérpretes e as

relações entre estas e os textos; a força dos quadros teóricos utilizados; a relação entre

as vidas dos intérpretes e os textos que eles querem criticar; um certo esquecimento

voluntário ou involuntário que uma época pode ter de certos autores, de suas idéias e de

determinadas matrizes filosóficas e políticas. Quiçá tudo isso torne mais complexo o

sentido das interpretações. Por outro lado, poder-se-ia pensar no contexto apenas como

algo externo aos intérpretes e aos próprios textos, ainda que considerado como as

condições objetivas que determinam o sentido da interpretação. Desta perspectiva, não

seria possível atribuir ao contexto alguns problemas das interpretações sobre o legado

da “escola nova”, que tanto marcaram os alunos de graduação e pós-graduação no

Brasil desde a década de 70? E não seria então mais fácil explicar, por exemplo, o

20
Sobre a questão dos quadros teóricos na área de educação no Brasil, ver o ensaio de Brandão (1992),
A teoria como hipótese.
desaparecimento dos textos de John Dewey e de Anísio Teixeira das salas de aula neste

mesmo período?

A partir de 1990 o campo acadêmico brasileiro começou a produzir

interpretações mais matizadas do significado da “escola nova” (Lovisolo, 1990; Nunes,

1991; Brandão, 1992; Cunha, 1992; Mendonça, 1993). Combinando uma leitura

contínua dos textos de Anísio Teixeira desde 1993 com essas novas interpretações, fui

alimentando o interesse em estudar a filosofia da educação de John Dewey. Trata-se do

conhecido percurso em que se tenta conhecer a “origem” ou a matriz das idéias de um

autor, recorrendo àquilo que por hipótese seriam os fundamentos de sua visão de

mundo.

Uma outra questão mais específica, do ponto de vista teórico, que se encontra na

origem deste trabalho é a seguinte: a leitura do movimento da “escola nova” que se

tornou hegemônica no campo educacional brasileiro destacou a perspectiva do

indivíduo, uma abordagem com ênfase em seu desenvolvimento, e a idéia de uma

escola centrada na criança. De uma forma geral, a preocupação de alguns autores, como

parece ser o caso de John Dewey, com o horizonte da sociedade, com a idéia de

socialização e as complexas relações que a educação escolar mantém com o meio social

acabaram sendo minimizadas. Enfim, é como se os aspectos sociológicos e políticos

presentes na educação escolar tivessem sido esquecidos ou renegados a segundo plano

pela “escola nova”.

A tensão entre indivíduo e sociedade presente em textos de autores

escolanovistas brasileiros foi retomada por Marcus Vinícius da Cunha (1992), em sua

tese de doutorado, Indivíduo e sociedade no ideário escolanovista (Brasil: 1930-1960).

Posteriormente discuti tal questão no ensaio Educação - entre o indivíduo e a sociedade

(Brandão e Mendonça, 1997), que de fato foi o primeiro esboço deste texto que agora

apresento. A obra do filósofo neopragmatista Richard Rorty vem sendo publicada no


Brasil desde a década de 90, e nos últimos anos tem sido divulgada com entusiasmo

pelo professor Paulo Ghiraldelli Jr., que é coordenador do GT de Filosofia da ANPED

desde 1998. Contudo, a filosofia da educação de John Dewey continua sendo entre nós

um importante e pouco conhecido capítulo da história das idéias pedagógicas.

Não posso deixar de assinalar que este livro também se insere em uma

perspectiva indicada por Hans Joas, que visa alimentar as discussões em torno da

relevância do pragmatismo americano, insistindo na necessidade de se refazerem certas

leituras que viraram cânones. Para Joas (1998), “o pragmatismo poderia servir como

um corretivo do Marxismo, na medida em que uma teoria econômica do capitalismo

destituída de uma teoria da democracia pudesse ser integrada com uma filosofia em cuja

estrutura a democracia tem um papel crucial” (p. 191). No caso de Habermas, por

exemplo, é visível a influência das idéias de Herbert Mead na sua obra Teoria da ação

comunicativa. Joas (1998) considera que a presença de Mead na magnum opus de

Habermas teria ajudado na recepção da obra desse americano na Alemanha e até mesmo

nos EE. UU., e lembra que se trata de um correlato da importância dada na atualidade

por Richard Rorty à obra de Dewey.

Queria completar este breve histórico com algumas informações sobre o

caminho percorrido dentro do Programa de pós-graduação em Educação da PUC-Rio,

que serve também para esclarecer algumas aproximações que este trabalho sugere entre

a filosofia da educação de John Dewey e a sociologia (Durkheim, Elias, Joas, Mills,

Bourdieu). Cursei no primeiro semestre do doutorado a disciplina “Questões Atuais em

Educação”, ministrada pela professora Zaia Brandão, que desenvolve pesquisas na área

de sociologia da educação e foi minha orientadora de tese. O objetivo da disciplina era

que os alunos apresentassem uma questão atual e pertinente do campo da educação.

Deveríamos pesquisar e escolher uma bibliografia de referência em periódicos nacionais

e estrangeiros e produzir um texto que articulasse a questão encontrada ou fabricada


com uma discussão teórica consistente.21 Tomei a relação entre indivíduo e sociedade

dentro do processo de ensino e aprendizagem como questão e tentei interrogar, a partir

dos artigos escolhidos, como tal questão tinha sido trabalhada de uma forma geral pelos

pioneiros da “escola nova” no Brasil, tendo como referência principalmente o

Manifesto dos Pioneiros de 1932 e textos de Anísio Teixeira. A base teórica para pensar

a referida questão foi encontrada nas leituras de textos de sociologia, basicamente em

trabalhos de Durkheim e Bourdieu, com as respectivas noções de socialização e

habitus, e posteriormente com a leitura de trabalhos de Norbert Elias. Tendo uma

questão formulada e o desejo de estudar o pragmatismo americano, ficou definido o

eixo central da pesquisa.

Ao cursar a disciplina Sociologia da Educação, também ministrada pela

professora Zaia Brandão, estudamos o modo como Durkheim explicou a origem das

categorias do pensamento ou formas elementares de classificação, um tema que desde

Aristóteles percorre a filosofia. A partir daí, retomei a leitura de textos de John Dewey

para ver se a relação entre indivíduo e sociedade tinha sido um tema por ele abordado

direta ou indiretamente e se seria possível encontrar algo relevante em sua obra a esse

respeito, principalmente nos textos produzidos a partir de seu trabalho na Universidade

de Chicago. A prioridade dada a obras de Dewey relacionadas a essa fase se justifica

pelo fato de que foi em Chicago que ele desenvolveu experiências substanciais na área

de educação, tendo inclusive fundado uma escola laboratório. As leituras de seus

ensaios escritos na época de Chicago, de seu livro The School and Society e das

reflexões do sociólogo alemão Hans Joas (1993)22 pareciam ratificar a idéia de que a

questão escolhida como núcleo da pesquisa era passível de ser investigada em sua obra.

21
Richard Rorty discute o problema de se encontrar ou construir questões no texto Relativismo:
encontrar e fabricar (1994).
22
Devemos a descoberta dos textos de Hans Joas, que foram fundamentais para o andamento deste
trabalho, ao professor José Maurício Domingues, do IUPERJ.
Hoje reconheço que pouco ainda conhecemos da filosofia de John Dewey. Este

trabalho é a minha modesta contribuição para manter viva a discussão sobre as relações

entre indivíduo e sociedade no campo da educação, além de divulgar a obra de John

Dewey, uma ferramenta intelectual importante para a compreensão dos vínculos entre

educação e democracia.

John Dewey: um indivíduo em uma sociedade

1. Introdução

2. Entre a vida e a escola

3. Da filosofia para a educação

4. Um doutor americano

5. Chicago, final do século XIX: pragmatismo e progressivismo

6. Crítica da economia escolar

Capítulo I

John Dewey: um indivíduo em uma sociedade

“A consciência, qualquer que seja sua forma específica, não é inata a


ninguém. No máximo, o potencial para formar uma consciência é um dote
humano natural. Tal potencial é ativado e toma forma numa estrutura
específica através da vida de uma pessoa com outros. A consciência
individual é específica à sociedade” (Norbert Elias, Mozart, a sociologia de
um gênio, 1995:66).

1. Introdução

Após a guerra civil que dividiu os Estados Unidos no século XIX, a chamada

Guerra da Secessão (1861-1865), esse país viveu um período de expansão e

consolidação de suas fronteiras e de transformações importantes na estrutura econômica

e social. O país que se tornaria a grande potência industrial do século XX recebia então
uma enorme quantidade de imigrantes e via sua população se multiplicar junto com

intensos processos de urbanização e industrialização. Porém, é importante lembrar do

seguinte:

“O mundo da indústria e do trabalho não esteve desvinculado das


transformações do cotidiano, de alterações efetuadas nos modos de vida e
nas visões de mundo de parcelas significativas da população que passava a
habitar as cidades” (Pamplona, 1995:10).

Essas transformações por que passou a sociedade americana podem também ser

acompanhadas através da história dos campos científico e educacional. É o que fez C.

Wright Mills em sua tese de doutorado 23, publicada em 1963 com o título de Sociology

and Pragmatism: A Study in American Higher Learning. Este trabalho tinha como

objetivo “explicar as relações entre um tipo de filosofia, o pragmatismo, e a estrutura

social norte-americana; entre a filosofia e a sociedade” (Mills, 1968:37). Mills foi

tecendo o vínculo entre pragmatismo e sociedade através de uma análise sociológica do

desenvolvimento das instituições de ensino superior americanas na segunda metade do

século XIX, tendo como núcleo da reflexão o processo de profissionalização da

filosofia. Tomando como base a análise da trajetória de três agentes do campo

educacional americano que atuaram na área de filosofia (Charles Sander Peirce,

William James e John Dewey), Mills tentou compreender simultaneamente as variações

das doutrinas filosóficas e a cambiante estrutura social. Segundo este autor, “a história

do pragmatismo é em parte uma história da profissão acadêmica nos Estados Unidos”

(Mills, 1968:37).

O propósito deste capítulo é tentar relacionar indivíduo e sociedade tendo como

referência aspectos da vida de um agente e o contexto em que ele viveu e trabalhou até

a primeira década do século XX. A estratégia é relacionar indivíduo e sociedade através

de um recorte na trajetória de John Dewey, desde o seu nascimento em Burlington

23
Esta tese foi escrita por C. Wright Mills (1916-1962) no final da década de 1930 na Universidade de
Wisconsin, e tinha como título original A Sociological Account of Pragmatism.
(Vermont), em 1859, até 1904, ano em que ele deixou a Universidade de Chicago e foi

para a Universidade Columbia, em Nova York. Ao percorrer esse caminho, tentamos

compreender como reflexões relativas ao campo educacional foram se transformando

em um dos núcleos fundamentais de sua obra filosófica e política.

Se Dewey ficou famoso como filósofo da educação, esta não foi a primeira nem

a sua única área de estudo. Ele também escreveu sobre lógica, ética, política, arte e

religião. Mesmo tendo sido professor de filosofia em importantes universidades

americanas, ele nunca deixou de ser um crítico da filosofia acadêmica (Jacoby, 1990). 24

O que parece caracterizar de uma forma geral o seu percurso intelectual é algo como

uma permanente reconstrução do próprio edifício que se erguia, onde diferentes

influências foram combinadas a despeito da aparente incompatibilidade entre algumas

delas. No caso da filosofia da educação, esta não parece ter sido algo definido por

Dewey desde o início dos estudos universitários como uma área do conhecimento que

lhe interessava particularmente. Entretanto, algumas características de seu pensamento

pedagógico parecem encontrar afinidades com aspectos da sua formação e da sua

trajetória. É justamente por isso que penso ser importante tentar apreender o contexto

em que a educação foi se transformando no núcleo de suas reflexões filosóficas,

fazendo com que Dewey chegasse a ser o mais importante pensador da educação nos

Estados Unidos no século XX.

Se os homens não têm percursos determinados a priori, se suas histórias - como

as teorias - são hipóteses em construção, o sentido de suas trajetórias é como o mapa de

uma área em permanente transformação, cujas formas gerais e limites não podem ser

apreendidos senão ao cabo de um árduo trabalho de elaboração e manejo de um

observatório, de interpretações e, finalmente, de uma escrita cartográfica. Mas o mapa

24
Se seguirmos a tese de Russel Jacoby (1990), podemos considerar Dewey como um dos últimos
intelectuais públicos, um filósofo que pensava poder levar a filosofia para a vida cotidiana. Porém, ele
e a geração a que pertenceu viram o “triunfo do profissionalismo” e a transformação da filosofia
americana em uma atividade restrita ao público acadêmico (p. 163).
que daí surge é provisório, sujeito a críticas e refutações, por mais detalhado e completo

que seja o trabalho.25

2. Entre a vida e a escola26

A cidade de Burlington, em Vermont, ainda mantinha em meados do século XIX

características sociais próprias da Nova Inglaterra, região nordeste da América do Norte

onde teve início a colonização que deu origem aos Estados Unidos. Naquela época, a

industrialização já se iniciara na maioria dos estados da região, mas Vermont tendeu a

conservar até a primeira década do século seguinte seu caráter agrícola e uma

composição social bem equilibrada. Não havia ali muitos casos de pobreza extrema nem

de grandes fortunas; Vermont era um estado com relativa homogeneidade social, em

que a maioria dos cidadãos estava livre de passar necessidades. Em Burlington nasceu

John Dewey em 1859:

“Vermont e a Nova Inglaterra da infância e juventude de Dewey passaram.


Mas ele preservou consigo traços de seu meio social, não como memória
mas como hábitos, preferências profundas, e uma arraigada tendência
democrática” (Hook, 1995:6).

Filho da classe média americana, John Dewey estudou em uma public school,

junto com seus irmãos e quase todos os filhos daquela cidade, independente da origem

ou classe social, “antigos” americanos ou imigrantes. Os poucos que freqüentavam

private schools eram vistos de forma estranha por uma comunidade acostumada com a

25
Sobre a questão da teoria como hipótese, ver o texto de Brandão (1992); sobre a idéia de mapa e
observatório na escrita científica, ver Passeron (1991).
26
As anotações que fiz sobre certos aspectos da vida de John Dewey e de algumas das diferentes etapas
de seu desenvolvimento intelectual têm como fonte principal a biografia editada por sua filha Jane M.
Dewey (1989), que abre o volume dedicado ao filósofo americano na coleção The Library of Living
Philosophers, organizado por Paul Arthur Schilpp e Lewis Edwin Hahn [1939]. Esta sintética biografia
foi escrita a partir de temas e dados fornecidos pelo próprio Dewey. A ênfase posta em certas
influências filosóficas, por exemplo, pode ser tomada como declarações autobiográficas. Contudo, os
aspectos que considerei relevantes e que estão aqui anotados dizem respeito apenas a alguns dos fatos
ali descritos e estão relacionados a questões que venho tentando esclarecer a partir da leitura de sua
obra. Outros textos, como a biografia de John Dewey escrita por Sidney Hook ( An intelectual portrait,
de 1939) e o referido texto de Wright Mills (1968), também foram utilizados para ampliar este mapa
em construção.
democracia, no sentido da observação da eqüidade, esta disposição de reconhecer

igualmente o direito de cada um.

Alguns aspectos da estrutura econômica e social dos Estados Unidos,

especialmente ao longo do século XIX, facilitaram o desenvolvimento de uma rede de

escolas públicas de ensino fundamental e médio. Em 1906 Max Weber escreveu que a

ausência de uma antiga aristocracia na Nova Inglaterra serviu para eliminar as tensões

originadas pelo contraste entre a tradição de autoridade e o caráter puramente comercial

das condições econômicas modernas (Weber apud Mills, 1968:43). Isto criou uma

espécie de “selo histórico” impresso nas instituições sociais, entre elas a escola pública

laica.27

Não há muitas dúvidas sobre a importância do background cultural das famílias

na formação de um indivíduo. John Dewey era filho de descendentes dos pioneiros da

Nova Inglaterra. Data do século XVII a chegada dos primeiros membros da família

Dewey à América do Norte, possivelmente vindos de Flandres. Seu pai, Archibald

Sprague Dewey, nasceu em uma família de fazendeiros, mas trabalhou no pequeno

comércio. Sua baixa escolaridade foi de certa forma suplementada pela leitura,

principalmente de dramaturgos e poetas ingleses, como Milton, ainda que por um

interesse quase retórico em declamar para a família ou enquanto trabalhava. Ao ser

indagado sobre a ocupação profissional dos filhos, normalmente ele respondia que

esperava que pelo menos um deles se tornasse mecânico (Jane Dewey, 1989:6). No caso

de John Dewey, a idéia de uma escolarização longa parece mais próxima da influência

materna.

27
No referido estudo de Mills encontramos a seguinte observação sobre este tema: “A secularização das
escolas [norte-americanas] foi favorecida pela forte competição entre as muitas seitas protestantes, cada
uma das quais desejava difundir entre os alunos determinada versão de Deus, do credo e da salvação. O
acordo era possível unicamente aceitando as escolas sustentadas com fundos públicos, liberadas
completamente do controle clerical direto” Em 1838, no First Report à Comissão de Educação de
Massachusetts, Horace Mann indicava , conforme o estatuto de 1826, que em nenhuma escola pública
poderiam ser utilizados textos que favorecessem uma seita ou congregação religiosa em particular
(Mills, 1968:44).
Lucina Artemisia Rich, a mãe, vinha de uma família mais próspera. Seu pai era

juiz e proprietário de terras; ela também teve um avô que fora membro do Congresso. A

influência da mãe de Dewey sobre o seu núcleo familiar foi considerada algo

fundamental por sua neta Jane Dewey, filha de John Dewey, no sentido de construir

uma tradição familiar associada à educação universitária. De uma forma ou de outra, é

importante tentar perceber a contribuição dos pais para se compreender o lugar da

escola em sua vida, levando-se em conta o contexto em que vivia a família.

Os amigos mais próximos do jovem John Dewey foram os filhos do reitor da

Universidade de Vermont, situada em Burlington, onde ele estudaria posteriormente.

Criado em uma família evangélica Congregacionalista, mas sem os rigores ascéticos dos

Puritanos, Dewey desfrutou na infância de um ambiente natural e social que deixaria

marcas visíveis em sua concepção de mundo e de educação. A crescente valorização da

escolarização experimentada em sua época parece não ter anulado a importância da

educação pela vida e pelo trabalho, que era uma regra usual em sua família, onde os

jovens cresciam em contato direto com várias atividades agrícolas e industriais:

“A compreensão de que a parte mais importante de sua educação até ele


chegar à universidade foi obtida fora das salas de aula desempenha um
papel importante em sua obra educacional” (Jane Dewey, 1989:9).

As relações entre a formação religiosa de John Dewey e a sua vida profissional

podem também ser úteis para se compreender traços gerais de uma época em que a

cultura religiosa nos Estados Unidos estava sofrendo mudanças, tornando-se

enfaticamente política e voltada para os problemas concretos da sociedade,

principalmente aqueles gerados pela industrialização. Este deslocamento do interesse

por questões puramente teológicas para temas mundanos por volta de 1890 é

considerado por alguns historiadores como uma linha divisória na história das idéias

nos Estados Unidos. Neste contexto estava inserido Dewey e é a partir daí que podem

ser compreendidas suas críticas posteriores ao formalismo religioso e filosófico do


século XIX (Feffer, 1993:18). É importante ressaltar que em nenhum momento de sua

formação Dewey parece ter sofrido a influência dos ataques religiosos contra a ciência

(Mills, 1968:297). Além do mais, seja na formação inicial com o professor H. A. P.

Torrey, em Vermont, onde cursou o college, ou no trabalho acadêmico com George S.

Morris na Universidade Johns Hopkins, Dewey conviveu intelectualmente com homens

leigos, professores de filosofia que já não eram mais clérigos. Isto é vital para a

compreensão de certos aspectos de sua formação intelectual e de sua carreira

profissional, em um período de expansão do sistema universitário.

O processo de secularização da educação escolar nos Estados Unidos se deu de

uma forma peculiar. Em especial no caso do ensino superior, a secularização não se

processou exatamente contra a religião, pois algumas das mais importantes

universidades americanas foram organizadas por ordens religiosas. Acontece que,

mesmo tendo o controle da estrutura de poder das universidades, essas ordens não

impediram, de uma forma geral, que as universidades fossem se distanciando dos

preceitos religiosos e dessem ênfase aos aspectos filosóficos, científicos e tecnológicos.

Além disto, na segunda metade do século XIX grandes capitalistas investiram seus

recursos nas universidades visando justamente vincular o desenvolvimento científico às

transformações econômicas, principalmente devido ao processo de industrialização

(Mills, 1969).

Dois anos após o nascimento de John Dewey teve início a Guerra de Secessão,

em que “Norte e Sul se enfrentaram para definir o destino do país” (Pamplona,

1995:11). Este conflito aglutinou a sociedade da Nova Inglaterra em torno de uma

causa moral, o fim da escravatura, que foi incentivado por um dos principais foros

abolicionistas, a Igreja Congregacionalista, da qual fazia parte a família de Dewey.

Neste ambiente ele recebeu uma educação religiosa e moral de cunho liberal e com um

forte sentido de justiça social. Porém, uma das marcas dessa evangelização teria sido o
dualismo, que Dewey iria rechaçar posteriormente: a radical separação entre aquilo que

uma pessoa é e o ideal de santidade, o dever ser. Este era um problema a mais para se

acrescentar às dualidades do maniqueísmo puritano da Nova Inglaterra: “a divisão entre

o social e o natural, a sociedade e o indivíduo, a alma e o corpo, a vida superior do

espírito e a vida inferior da carne, a nobreza da teoria e a vilania da prática, os fatos e os

valores, a separação entre o ideal e o real, a natureza e Deus” (Esteban, 1996:21). Para

Wright Mills (1968), Dewey parece ter deslocado seu anseio de fundir emoção e

intelecto até a descoberta da filosofia de Hegel.

Certos aspectos da trajetória intelectual de Dewey podem ser inseridos em um

movimento de reconstrução social que levou as igrejas protestantes a se confrontarem

com problemas da cultura moderna e da era industrial. Dewey manteve em seu discurso

a crítica de parte desse movimento ao individualismo e o reconhecimento de que o

caráter individual é, moral e espiritualmente, um produto da sociedade. Entretanto, ele

incorporou uma outra crítica, que não se dirigia apenas ao individualismo de alguns

religiosos, mas contra as igrejas estabelecidas. É como se seu discurso fosse sofrendo

um processo de laicização, onde a militância social permanecia como herança de sua

formação religiosa e ao mesmo tempo como deslocamento do aspecto transcendente.

Dewey elaborou sua fé tentando demonstrar pela crítica filosófica a imanência do

espírito na experiência humana. Nesse processo, ele abandona a linguagem religiosa em

favor de um discurso social com base na filosofia e na psicologia.

Do ponto de vista institucional, as universidades e as organizações sociais laicas

estavam ocupando nesta época espaços que anteriormente eram do domínio das igrejas,

ao mesmo tempo em que o clérigo intelectual dava lugar ao profissional universitário.

3. Da filosofia para a educação


Na Universidade de Vermont, ainda durante o college, Dewey manteve os

primeiros contatos com discussões a respeito da teoria da evolução de Darwin. 28 Em

From absolutism to experimentalism [1930], Dewey (1984) ressaltou a importância de

um texto de T. H. Huxley (Physiology), cuja leitura o impressionara no período inicial

de seus estudos universitários, despertando seu interesse por um tipo peculiar de

reflexão filosófica. A noção de orgânico, por exemplo, abria a perspectiva para pensar a

relação entre as coisas como um todo:

“Foi desse estudo que ele derivou o sentido de interdependência e unidade


das coisas, que posteriormente faria com que características fundamentais
do pensamento de Hegel parecessem plausíveis para ele” (Hook, 1995:11).

Como afirma o próprio Dewey (1984),“inconscientemente, pelo menos, eu fui

levado a desejar um mundo e uma vida que tivessem as mesmas propriedades do

organismo humano descrito no estudo de Huxley” (p. 148). Ele confessa o impacto

causado pela leitura desse texto, que o estimulou mais do que qualquer outro com o

qual tivera contato; afirma ainda que foi nesta época que ele desenvolveu um nítido

interesse pela filosofia. De uma perspectiva orgânica, que enfatiza processos e

mudanças, as distinções são funcionais e relativas ao desenvolvimento do todo. Isto

pode servir, por exemplo, como crítica a uma visão estática e aos dualismos tradicionais

da filosofia. As discussões sobre a teoria da evolução de Darwin envolviam ainda a

questão da relação entre o saber das ciências naturais e as crenças tradicionais. A leitura

de periódicos ingleses em Vermont manteve Dewey atualizado a respeito dessas

questões.

Ele atribuiu a H. A. P. Torrey, que foi seu professor de filosofia em Vermont, o

direcionamento efetivo de seus pensamentos para a filosofia. Sob sua orientação

particular, Dewey dedicou um ano exclusivamente ao estudo de história da filosofia e

da filosofia alemã. Tendo concluído o college em Vermont em 1879, ele trabalhou dois
28
O ano da publicação (1859) na Europa de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, é também o
ano de nascimento de John Dewey nos Estados Unidos.
anos como professor em escolas secundárias e iniciou o doutorado 29 na Universidade

Johns Hopkins:

“[Esta universidade] era o centro mesmo da influência científica e


acadêmica da época, e esta atmosfera geral se via realizada concretamente
nos colegas e professores com quem Dewey estava em contato mais
estreito”(Mills, 1968:297).

Mas no que dizia respeito à vida profissional, ser professor de filosofia era ainda

uma escolha arriscada. Dewey (1984) relaciona a sua decisão de seguir esta carreira em

parte aos estudos e à gratificante convivência com o professor Torrey. Ainda sem ter

definido um tema ou área que lhe interessasse particularmente no campo da filosofia,

Dewey escreveu alguns artigos “esquemáticos e formais” e os enviou para o Dr.

William T. Harris, conhecido hegeliano e editor do Journal of Speculative Philosophy,

o principal periódico norte-americano de filosofia naquela época. Tão importantes

quanto a publicação dos artigos foram as palavras de incentivo do referido editor; elas

encorajavam o jovem Dewey a prosseguir na filosofia como carreira profissional

(Dewey, 1984:150).

Na Universidade Johns Hopkins e sob a influência do professor George

Sylvester Morris e da escola neo-hegeliana britânica, Dewey começou a se interessar

pelas idéias de Hegel. Ao fazer comentários sobre esta época, ele indica que seria difícil

que um jovem estudante, ainda não decidido a aderir a nenhum sistema de pensamento

que satisfizesse sua mente e seu coração, não fosse afetado pelo entusiasmo e devoção

com que aquele professor apresentava a obra do filósofo alemão (Dewey, 1984). Morris

fazia parte de um amplo movimento de retomada das idéias de Hegel entre acadêmicos

ingleses e norte-americanos durante as décadas de 1880 e 1890. Segundo Dewey

29
Sua tese sobre a Psicologia de Kant é um trabalho que não foi publicado e sobre o qual não há
indicações substantivas nas fontes consultadas. Em Alan Ryan (1995), que escreveu uma detalhada e
bem documentada biografia de John Dewey, encontramos o seguinte comentário sobre o tema: “Ao
final do segundo ano acadêmico [na Johns Hopkins University] ele apresentou a tese titulada “Kants’s
Psychology”, agora perdida. Ele fez uma impressionante defesa oral de sua tese e foi devidamente
agraciado com o título de Doctor of Philosophy” (p. 77).
(1984), tratava-se de uma reação do pensamento anglo-americano ao empirismo

(sensationalistic empiricism)30 e ao individualismo (atomic individualism)

predominantes. Mas ele afirma que tinha também motivos de ordem subjetiva para se

aproximar do pensamento de Hegel. Tratava-se da possibilidade de tentar suprir uma

demanda de unidade intelectual e emocional sentida intensamente desde a sua

juventude:

“A sensação de divisões e separações surgira em mim, suponho, como


conseqüência da herança cultural da Nova Inglaterra, divisões que sob a
forma de separação entre o eu e o mundo, a alma e o corpo, a natureza e
Deus, criaram uma dolorosa opressão - ou melhor, eram uma laceração
íntima” (Dewey, 1984:153).

As idéias de Hegel, que já tinham sido apreendidas por ilustres intelectuais

europeus do século XIX, deixaram assim marcas também do lado ocidental do

Atlântico. Dewey parece ter encontrado nas reflexões daquele filósofo elementos para

finalmente realizar uma espécie de síntese. Ao tentar reunir o sujeito e o objeto, o

espírito e a matéria, o pensamento e a história, a obra de Hegel servia para orientar

Dewey em seu questionamento de certas disjunções ou agudas separações (Hook,

1995:14). Neste sentido, Dewey veio a reconhecer, por exemplo, que “qualquer

experiência religiosa autêntica podia e devia adaptar-se às crenças que consideramos

intelectualmente autorizadas (Mills, 1968:301). A tendência à secularização era

interpretada nesta época de uma forma positiva, e não como sintoma de decadência

moral e cultural; era, na realidade, a transformação de motivações religiosas, sua

libertação de formas dogmáticas institucionalizadas.31 Para Joas (1998), o desejo de

30
O termo sensacionalismo é utilizado como sinônimo de empirismo pelo próprio Dewey (1959), que
apresenta a seguinte explicação: “Como em geral eram denominadas sensações as impressões causadas
no espírito pelos objetos, o empirismo tornou-se a doutrina sensacionalista - isto é, uma doutrina que
identificava o conhecimento com a recepção e a associação das impressões sensoriais” (p. 294).
31
Essa combinação de otimismo e decrescente interesse pelos fenômenos religiosos não permaneceu,
segundo Joas (1998), incólume por muito tempo. Transcrevendo um comentário de Steven Rockefeller
(John Dewey: Religious Faith and Democratic Humanism, 1991) sobre a questão, ele indica que após a
I Guerra Mundial (1914-1918) e o crash econômico de 1929 com suas devastadoras conseqüências,
Dewey se convenceu de que as mentes e os corações dos americanos não poderiam ser unidos em torno
de uma filosofia construtiva, como a que ele propunha, sem que seus sentimentos e compromissos
religiosos estivessem nela envolvidos (Joas, 1998:195).
uma forma não-puritana de religiosidade foi um dos motivos que dirigiram Dewey para

o hegelianismo e para as posteriores formas de sacralização da inteligência e da

democracia.

Mills (1968) considera que de todos os aspectos da relação entre a filosofia de

Hegel e a formação de John Dewey o mais significativo teria sido o fato deste

concentrar a atenção nos problemas sociais e psicológicos. Não é surpresa que Dewey

tenha confessado o impacto que sobre ele exerceu o tratamento dado por Hegel à

cultura e às instituições. Importante também é lembrar a idéia de Hegel de que as

instituições culturais configuram o espírito e delas dependem o indivíduo para a sua

formação. Dewey manteve viva essa idéia da influência exercida pela cultura na

conformação das crenças e atitudes dos seres humanos. Isto fazia com que ele pudesse

desconfiar de uma suposição da filosofia e da psicologia que tomava a razão como algo

pronto (uma espécie de ready-made mind) e posto frente ao mundo.32

Ele tentou, por fim, conciliar o modelo hegeliano com certos aspectos da

psicologia experimental, tentando não reduzir a mente a seus elementos apenas

anatômicos ou o comportamento humano a respostas mecânicas aos estímulos

ambientais. Uma questão fundamental estava aí em jogo: a orgânica relação entre a

mente e o meio ou ambiente. Neste sentido, a noção de experiência poderia expressar

não apenas as relações entre a mente e as coisas, mas também com as instituições

sociais, que formam parte do meio. Contudo, ao se aproximar da perspectiva naturalista

aberta pela psicologia experimental, Dewey terminou tecendo críticas à visão idealista,

32
Kant havia estabelecido uma divisão entre o cognoscível, o campo dos fenômenos, e o incognoscível
ou a coisa-em-si. Hegel elaborou uma crítica a esta separação estabelecida por Kant, pois a experiência,
segundo Hegel, não necessitaria de uma coisa-em-si constituída de forma independente para sustentar a
realidade daquilo que se pode conhecer. Assim, sujeito e objeto passaram a ser concebidos como
aspectos da consciência-de-si atuando em um mundo finito. Ao invés de se preocupar com as imutáveis
categorias do conhecimento, com Hegel a filosofia pôde voltar-se para os desdobramentos das “formas”
do espírito, pondo em discussão a história. É neste sentido que a perspectiva hegeliana reconhece a
cultura como uma objetivação do espírito, sendo a história a sua evolução (Feffer, 1993; Singer, 1986).
ao mesmo tempo em que elaborava uma noção pragmática de experiência. Sobre este

ponto, a observação de Bernstein (1967) é esclarecedora:

“O idealismo [de forma distinta do pragmatismo] ao enfatizar a questão do


conhecimento negligencia aspectos não reflexivos e não cognitivos da
experiência: o fazer, sofrer e desfrutar, que estão no contexto de toda
pesquisa e conhecimento” (p. 381).

De uma perspectiva pragmatista o homem é primariamente um ser de ação, que

age, goza, sofre, e muito de sua vida consiste em experiências que não são inicialmente

reflexivas. Referindo-se a características do pensamento e da investigação e ao seu

papel na vida humana, Dewey sugeriu que se poderia apreciar sua emergência em um

contexto não reflexivo da experiência. Ele de certa forma tentou “naturalizar” aspectos

da filosofia de Hegel com uma teoria da mente marcada pela biologia e uma análise

social do comportamento (Hook, 1995). Em uma espécie de balanço intelectual, Dewey

(1984) afirmou que a forma e o esquematismo do sistema de Hegel lhe pareceram

posteriormente artificiais, ainda que no conteúdo suas idéias fossem quase sempre

profundas:

“A ênfase hegeliana na continuidade e a função do conflito permaneceram


sobre bases empíricas após minha fé inicial na dialética ter dado lugar ao
ceticismo. Houve um período que se estendeu aos primeiros anos em
Chicago no qual, em conexão com um seminário sobre a Lógica de Hegel,
eu tentei interpretar suas categorias em termos de “reajustes” e
“reconstruções”. Gradualmente eu vim a perceber que os significados destes
princípios poderiam ser melhor entendidos e afirmados quando
completamente emancipados da roupagem hegeliana” (Dewey apud Jane
Dewey, 1989:18).

Como já foi indicado, a relação do pensamento de Dewey com a filosofia alemã,

principalmente com a obra de Hegel, ocorreu através de seu professor e depois colega

no departamento de filosofia da Universidade de Michigan, George S. Morris. Essa

relação não foi algo pontual e isolado, pois ocorria em um contexto de significativa

presença da filosofia alemã na vida intelectual americana. Recorria-se a essa tradição da

filosofia continental na tentativa de compensar os efeitos dissolventes do extremo


individualismo sobre a vida social. No caso de Dewey, justamente questões

relacionadas à ética e à função que desempenha a inteligência na direção das ações

humanas estavam no centro de seus estudos e escritos em torno de 1890. Em The Study

of Ethics, de 1894, ao tratar a inteligência como mediação entre os impulsos naturais e

as conseqüências de seu uso, ele já dava mostras de uma perspectiva pragmática (Jane

Dewey, 1989:22). Sob a influência do professor Morris, Dewey também desenvolveu

interesse por um certo tipo de lógica. Morris considerava que havia uma lógica real em

contraste com outra puramente formal. Para Dewey, o que se tornou importante foi a

idéia de uma “lógica dos processos” através dos quais o conhecimento é alcançado.33

Quando era apenas um saber especulativo, a psicologia esteve muito próxima da

filosofia, era parte dela. Mas no final do século XIX a psicologia deu grandes passos

para se transformar em um saber experimental. Esta mudança acarretou um

questionamento de suas antigas relações com a filosofia e abriu espaço para uma

tentativa de fundá-la em outras bases. Neste contexto, a obra de William James,

Principles of Psychology [1890], foi importante na moldagem de certas características

do pensamento de Dewey. Esse livro serve para ilustrar a incorporação de uma

perspectiva experimental e de aspectos da teoria da evolução, abrindo um novo caminho

para a filosofia americana (Dworkin, 1996). Em From absolutism to experimentalism

[1930], Dewey indica que, em geral, as forças que o influenciaram vieram mais de

pessoas e situações do que dos livros. Não se tratava de desprezo pela teoria, mas do

reconhecimento de que ele fora forçado a pensar a partir de determinadas experiências

nas quais estivera envolvido. A grande exceção a isto foi exatamente o referido livro de

James, que causara um grande impacto sobre o seu modo de pensar. Dewey (1984)

destaca naquela obra uma tensão entre duas tendências irreconciliáveis: por um lado, a

visão da psicologia como uma teoria da consciência subjetiva e a manutenção de um

33
Ver no capítulo III o item 7. Pensar como arte.
antigo vocabulário34; por outro, uma perspectiva objetiva, que teria suas raízes “em um

retorno à antiga concepção biológica de psyche, mas um retorno com uma nova força e

valor devido ao imenso progresso feito pela biologia desde a época de Aristóteles” (p.

157). Dewey considera que esta abordagem agiu em suas idéias como um fermento,

transformando antigas crenças. Porém, a preocupação com a influência da sociedade na

conformação do comportamento o afastou de uma perspectiva meramente fisiológica.

Ele encerrou seu doutorado na Universidade Johns Hopkins 1884 e seguiu para a

Universidade de Michigan, a convite de Morris, que lhe oferecera trabalho nesta

instituição. Em Michigan ele teve a oportunidade de participar da vida de uma

universidade que tinha um projeto social e político vigoroso. Durante as décadas de

1880 e 1890 a Universidade de Michigan foi uma das instituições educacionais mais

avançadas dos Estados Unidos. Ela era a culminação de um sistema público de

educação que enfatizava a participação ativa dos estudantes desde os anos iniciais de

estudo. Existia em Michigan uma organização chamada “Clube de Professores de

Escola”, que através de conferências e outras atividades procurava aproximar as escolas

do Ensino Médio da universidade. Dewey foi membro deste clube tendo visitado como

tal várias instituições escolares.

Neste contexto e combinando-o com o já presente interesse por questões da

psicologia, Dewey começou a trabalhar com temas especificamente educacionais, o que

incluía tópicos como memória, imaginação e pensamento. Sua experiência em Ann

Arbor (Michigan) produziu impressões fortes, que apareceriam de certa forma em sua

teoria geral da educação. Após um ano (1889) lecionando na Universidade de

Minnesota, ele assumiu a direção do departamento de filosofia da Universidade de

Michigan. Além da inseparável companhia de seu mestre George S. Morris, ele se

aproximou nessa universidade de algumas figuras fundamentais na sua trajetória

34
Segundo Dewey (1984), “a dificuldade em encontrar um vocabulário que transmita adequadamente
uma nova e genuína idéia é talvez o obstáculo que mais retarda o progresso da filosofia” (p.157).
profissional: James H. Tufts e George Herbert Mead. Tufts também era descendente de

uma família de pioneiros, estudara em Yale e obtivera o grau de Doutor em Freiburg,

na Alemanha. Ele traduziu para o Inglês o clássico História da Filosofia, de Wilhelm

Windelbanb. Com Tufts, Dewey estabeleceu uma sólida relação intelectual e pessoal,

que tornou possível a sua ida para Chicago em 1894 e a publicação, em 1908, de uma

obra conjunta, Ethics.

George Herbert Mead estudara em Harvard e foi chamado para trabalhar em

Michigan quando fazia o seu doutorado em Berlim. Ele veio substituir James H. Tufts,

que seguira para ocupar um cargo na recém-criada Universidade de Chicago. A partir

da década de 1890, Mead se tornou a figura mais próxima de Dewey, tanto em amizade

quanto em influência intelectual. Mead era um erudito em ciências naturais e em

psicologia social e elaborou uma teoria da origem e desenvolvimento do “eu”. Tendo

publicado poucas coisas em vida, sua influência sobre Dewey parece ter sido produto da

intensa convivência, que incluía estreitas relações familiares. Ele seguiu com Dewey

para trabalhar em Chicago em 1894. A marca mais visível do trabalho de Mead iria

aparecer em uma corrente sociológica que se desenvolveu naquela mesma universidade

e que ficou conhecida como “interacionismo simbólico”.

Em Michigan, Dewey também conheceu Alice Chipman, com quem se casou em

1886. A senhora Chipman era natural de Vermont, mas fora criada em Michigan e,

como Dewey, era descendente de uma família de pioneiros da Nova Inglaterra. Ela é

descrita por sua filha Jane como uma mulher de caráter forte, que ficara órfã cedo,

tendo sido criada pelos avós com uma mentalidade independente. Tal comportamento

serviu de estímulo ao jovem professor de filosofia, principalmente em suas atitudes

críticas em relação às injustiças sociais e políticas. Jane Dewey atribui a ela um certo

alargamento dos estudos filosóficos de seu pai: “Coisas que tinham sido consideradas
como questões teóricas adquiriram através de seu contato com ela um vital e direto

significado humano” (Jane Dewey, 1989:21).

A observação dos três primeiros filhos também serviu para realçar em Dewey o

interesse por questões referentes à aprendizagem das crianças. Tudo isto foi

alimentando a idéia de organizar um espaço para realizar experiências, uma escola

laboratório, que deveria combinar questões de psicologia do desenvolvimento com

princípios de uma relação cooperativa, fundados em suas preocupações com a ética.

Dewey parecia estar construindo assim a possibilidade de realizar experiências com

algumas de suas reflexões filosóficas. Jane Dewey (1989) fez a seguinte observação

sobre o crescente interesse do pai por uma perspectiva experimental:

“Sua crença na função social da filosofia, fortalecida por uma insatisfação


emocional com a teorização pura, o fez sentir a necessidade da experiência
prática para checar e desenvolver teorias. Ele tinha a convicção de que
existiam métodos educacionais, especialmente na escola elementar, que não
estavam em harmonia com os princípios psicológicos do desenvolvimento
normal” (p. 27).

Quando Dewey foi convidado pela Universidade de Chicago, depois de 10 anos

trabalhando em Michigan, um dos principais fatores para a sua transferência foi a

possibilidade de congregar em um mesmo departamento, do qual seria o chairman,

filósofos, psicólogos e pedagogos. E isto de fato aconteceu.

Iniciados os trabalhos em Chicago, um grupo de pais à procura de um tipo de

educação nova para seus filhos ajudou financeira e moralmente a organizar e manter

uma elementary school sob os auspícios da Universidade de Chicago. Nascia ali a

escola primária experimental que foi chamada de Laboratory School e também se

tornou conhecida como Dewey School.

Em Chicago, Dewey se transforma em um protagonista importante e com grande

visibilidade no debate em torno de novas idéias e práticas educacionais. Foi em um

ambiente de discussão sobre diferentes concepções de educação que se formou um dos


embriões da “escola nova” americana. Tendo trabalhado antes basicamente como

professor, Dewey pôde então desenvolver melhor suas idéias, contando com a

colaboração de Mead, Tufts e também de novos colegas, como a professora Ella Flagg

Young e os ex-alunos da Universidade de Michigan, James R. Angell e Addison Moore.

The School and Society [1899], How We Think [1910], Democracy and Education

[1916] e mesmo Human nature and conduct [1922]35 - estes três últimos livros escritos

quando Dewey já trabalhava na Universidade Columbia (Nova York) - são os frutos

mais acabados do período em Chicago. Neles, Dewey analisa questões filosóficas no

contexto da educação, utilizando os conhecimentos de filosofia e psicologia para pensar

sobre os fundamentos da educação.

A três mulheres são atribuídas influências importantes nessa incursão de John

Dewey pelo campo educacional. A primeira delas foi a sua esposa e mãe de seus filhos,

Alice Chipman Dewey. Ela era professora e foi uma das coordenadoras da Escola

Laboratório da Universidade de Chicago. A segunda figura feminina é Ella Flagg

Young. Aluna e colega de trabalho de Dewey naquela universidade, Young foi a

primeira mulher a se tornar superintendente do sistema escolar de Chicago e presidente

da National Educational Association (Langemann, 1996). Sem a sua colaboração,

talvez algumas reflexões de John Dewey sobre educação não tivessem alcançado a

consistência e a profundidade a que chegaram. Jane Addams completava este trio de

personalidades femininas. Ela foi a organizadora e líder da Hull House, um espaço que

congregou ações voluntárias no campo social na cidade de Chicago36. Estas figuras são

importantes para se compreender não apenas o entusiasmo de Dewey com a luta pela

ampliação dos direitos das mulheres, mas também a sua idéia de democracia como um

modo de vida.
35
Este livro, publicado pela primeira vez em 1922, é composto de uma série de conferências dadas por
Dewey em 1918 na West Foundation da Universidade Stanford (Califórnia).
36
A Hull House era uma espécie de ONG, que se envolveu diretamente com o problema da assimilação
dos imigrantes na cidade de Chicago. Este tipo organização era também conhecida como settlement
house.
4. Um doutor americano

É possível que um contexto torne viável ou dificulte a emergência de

determinadas configurações de idéias, na medida em que aquilo que consideramos

como “motivações pessoais” são, de fato, resultados de relações envolvendo agentes e

instituições sociais. Segundo Mills (1968), “se quisermos compreender

sociologicamente o pragmatismo norte-americano, as transformações sofridas pelas

universidades devem ser consideradas a situação mais imediata do movimento

pragmático” (p. 39).

As universidades modernas foram criações do Estado e das igrejas, e puderam

ser mantidas pelo próprio Estado ou com recursos vindo diretamente da sociedade

(Mills, 1968:45). Várias universidades importantes dos Estados Unidos, surgidas no

século XIX, tiveram origem em grupos religiosos (presbiterianos, batistas,

congregacionalistas) e muitas delas foram e ainda são mantidas através de fundos

privados. Contudo, algumas delas, como as de Michigan e Virgínia, criadas quando da

expansão da fronteira para o Oeste, foram desde a sua fundação instituições estatais de

ensino. Isto possibilitou, já a partir do terceiro quartel do século XIX, o aumento das

chances para que filhos de agricultores e de certos tipos de trabalhadores nascidos nas

classes baixa e média ascendessem através da educação na escala social, principalmente

nas grandes cidades americanas.

Após a Guerra de Secessão (1861-1865), foram criados vários institutos

politécnicos independentes ou associados às universidades. Este setor do ensino tentava

suprir com mão de obra qualificada os cargos abertos com a expansão industrial:

“Na década de 1890 a ciência estava firmemente integrada em grandes


setores da cultura educacional e havia criado suas próprias instituições, que
transmitiam seus conhecimentos, suas técnicas e suas formas peculiares. (...)
A ciência era um setor em rápido crescimento no universo da educação,
onde atuavam tanto os filósofos como os homens de negócios. A ciência se
converteu também em um setor reconhecido do governo” (Mills, 1968:50).
A relação entre desenvolvimento científico e negócio é uma das marcas dessa

época nos Estados Unidos e não se limitava às ciências naturais. À medida que o país se

fazia menos rural e mais urbano, a estrutura econômica e social passou a sofrer o

influxo cada vez maior das vocações comerciais e industriais, ao mesmo tempo em que

as possibilidades de ascensão social, ao menos para a classe média, começavam a ser

associadas a uma escolaridade mais extensa. Como assinala Mills (1968), “o valor

comercial do título universitário é um produto do final do século XIX” (p. 52). O

expressivo aumento do número de graduate schools37 na segunda metade desse século

nos Estados Unidos serve como indicador de tal transformação:

“A extraordinária expansão da agricultura, da indústria, do comércio e da


educação, especialmente entre 1870 e 1900, deu grande alento à criação de
graduate schools em todo o país... Já que a natureza dos problemas sócio-
econômicos do momento exigia não apenas teoria, mas resultados práticos,
os interesses da investigação e dos estudos se volviam naturalmente para
aplicações da verdade e do conhecimento” (John Walton apud Mills,
1968:74)

No final do século XIX também teve início a efetiva profissionalização do título

de Doutor em Filosofia (Ph. D.), que apenas no início do século seguinte passou a ser

concedido exclusivamente devido a méritos acadêmicos. Até meados do século XIX o

título de pós-graduação mais comum nos Estados Unidos era o de Doctor in Divinity

(Doutor em Teologia). Outros títulos eram raros e quase sempre honorários ou obtidos

mediante pagamento, seguindo critérios mais relacionados a aspectos morais do que à

realização de pesquisa científica. Só a partir do início do século XX, com o vertiginoso

crescimento da educação superior, é que foram estabelecidas normas gerais para a

obtenção de títulos como o de Master of Arts e Ph. D., e estes passaram então a ter

valores acadêmico e social maiores que os do antigo título de Doctor in Divinity. Em

sua análise sociológica do ensino superior norte-americano, Mills (1968) chega a


37
Faculdades ou universidades onde é possível estudar após alguém ter recebido um primeiro diploma
do ensino superior, para se obter um título de Master ou de Ph. D..
conclusões que parecem importantes para situar a trajetória profissional de John Dewey

e o contexto em que ele foi construindo sua obra:

“Primeiro, no último quartel do século XIX os professores de filosofia


começaram a ser hierarquizados profissionalmente através do título de
doutor em filosofia e não do de Doctor in Divinity. Segundo, os que
ensinavam filosofia se converteram em filósofos com dedicação plena, e
deixaram de ser diretores de escolas que também ensinavam filosofia” (p.
86).

Outro aspecto relevante é que nesta época a universidade alemã tinha uma

presença marcante na vida universitária norte-americana. Seu espírito de investigação e

especialização estava sendo transmitido por aqueles que tinham estudado na Europa e

por professores alemães que ensinavam em universidades dos Estados Unidos. Até o

final do século XIX este intercâmbio se manteve intenso: “Depois da década de 1860 a

direção do ensino superior americano esteve sobretudo nas mãos desses homens. Salvo

alguns poucos, todos os membros do grupo de 53 professores e conferencistas da Johns

Hopkins haviam estudado na Alemanha” (Mills, 1968:77). De lá os acadêmicos

trouxeram novas formas de abordagem e também novas maneiras de organizar a

estrutura universitária. Com eles vieram também outros conteúdos, que iam desde

críticas filosóficas e históricas da Bíblia até a tradição socialista, passando pela questão

das Geisteswissenschaften, as “ciências do espírito”. Com o crescimento das graduate

schools nos Estados Unidos, principalmente a partir de 1890, o número de títulos de

pós-graduação concedidos por universidades européias para americanos começou a

diminuir continuamente.

A despeito dessa influência alemã na vida acadêmica americana, foi Dewey, que

não estudara na Europa, o escolhido para dirigir o Departamento de Pedagogia da

Universidade de Chicago. Ele venceu uma “disputa” com Julia Bulkley, que se

ausentara daquela universidade para fazer um doutorado na Suíça.38


38
Sobre esta luta por uma posição na Universidade de Chicago, ver o artigo de Kathleen Cruikshank
(1998), In Dewey’s Shadow: Julia Bulkley and the University of Chicago Department of Pedagogy,
1895-1900.
É importante acrescentar algo sobre a história da Universidade de Chicago. Esta

instituição foi fundada em 1892 pela American Batist Education Society39, tornando-se

rapidamente um importante centro intelectual. Desde sua criação ela se envolveu

diretamente com a pesquisa científica em uma ampla gama de questões, ao mesmo

tempo em que a cidade em sua volta se constituía num vasto laboratório social:

“Quando a Universidade de Chicago foi fundada, Chicago já era um centro


das controvérsias em educação; havia facções (inclusive nos jornais da
cidade) em uma variedade de questões a respeito da escola pública, sobre se
as linguagens de grupos étnicos deveriam ser ensinadas e se o currículo
atenderia às necessidades de grupos particulares de estudantes. (...)
Cidadãos de Chicago estavam conscientes de que, com a rápida expansão
industrial e o crescimento da população de imigrantes, a velha estrutura da
escola pública já não funcionava. Foi neste meio que Dewey encontrou
suporte (bem como oposição) para seus experimentos e uma audiência
preparada para suas conferências e publicações”(Rucker, 1969:83-85).

Essa universidade alimentou uma atmosfera de liberdade e de breaking with the

past que foi muito importante para o desenvolvimento de certas tradições de pesquisa

distintas da herança européia. Além disso, os saberes que começaram a ser gerados

nesse contexto - seja em filosofia, psicologia, educação, sociologia ou economia -

pareciam estar próximos da crença na natureza prática de todo conhecimento.

5. Chicago, final do século XIX : pragmatismo e progressivismo

Nos Estados Unidos, o processo de transferência da população do campo para as

cidades foi intenso durante o século XIX. Em 1890 apenas 35% dos americanos ainda

viviam no campo e os contrastes sociais se tornavam cada vez mais evidentes. O país já

se transformara em uma potência industrial, mas também era líder mundial em número

de acidentes de trabalho. Havia uma forte tendência para concentrar o controle das

empresas nas mão de poucos grupos, e grandes firmas de investimentos, como a J. P.

Morgan, aumentavam o seu poder de intervenção e de monopolização do mercado.


39
Até 1931 a Universidade de Chicago esteve sob o controle formal da Igreja Batista. Até esta data,
tanto o reitor como 2/3 dos administradores deveriam ser membros daquela igreja. Entretanto,
avaliações religiosas estavam explicitamente excluídas da vida acadêmica.
Diante disto, reapareceram os sentimentos antimonopolistas, algo presente na vida

republicana daquele país. Assim, a última década do século XIX e as primeiras do

século seguinte foi um período mais de lutas e esperanças para a classe média

politicamente atuante do que de contentamento e acomodação (Sellers, May, Mc

Millen, 1985).

Entre 1871 e 1890 a população da cidade de Chicago, no estado de Illinois,

cresceu de 298.000 para mais de 1.000.000 de habitantes, tornando-se a segunda maior

cidade da América do Norte. Bem localizada como entreposto comercial do Midwest,

Chicago se expandiu após o incêndio de 1871 e se tornou um grande centro industrial

(Feffer, 1993). Algumas transformações ocorridas na estrutura econômica e social dos

Estados Unidos e da cidade de Chicago, em particular, são importantes para se entender

determinados aspectos da filosofia da educação de John Dewey.

Sabemos que o processo de industrialização ocorrido nos séculos XIX e XX não

significou apenas a criação de uma grande quantidade de fábricas, mas também intensas

modificações das atividades laborais. Isto acarretou mudanças de perspectiva para o

trabalhador. No caso dos Estados Unidos, as indústrias passaram a empregar menos

operários especializados, substituídos por imigrantes recém chegados, mulheres e até

crianças, quase sempre treinados apenas para tarefas “mecânicas” e recebendo baixos

salários. Ocupando um lugar tão importante quanto aquele reservado às inovações

tecnológicas, estavam as mudanças derivadas da chamada “ciência da produção”. A

“gerência científica”, de Frederick Winslow Taylor, chamou a atenção dos empresários:

“Na teoria de Taylor, era central a concentração da ciência e das


qualificações relevantes para a produção nas mãos da gestão, e a redução da
maioria das tarefas à execução de diretivas simples e explícitas. A posição
de capataz passou a ocupar um papel central na estratégia empresarial de
aprofundar o controle sobre as forças de trabalho, retirando o poder dos
trabalhadores qualificados” (Bowles e Gintis, 1982:180).
A intensificação da divisão do trabalho, a automatização, a remuneração

pecuniária ultrapassando o incentivo moral, o crescente afastamento do trabalhador do

controle intelectual e da planificação do processo de produção, tudo isto parecia

contribuir para o declínio do mundo do trabalho. Ao analisar este contexto, no livro The

Chicago Pragmatists and American Progressivism, Feffer (1993) afirma o seguinte:

“As modernas fábricas transformaram os ofícios em trabalhos realizados em


troca de salário, mudando para o trabalhador o valor intrínseco ao trabalho
em algo extrínseco, a remuneração” (p. 99).

Porém, um dos produtos dessas transformações foi a organização de uma aguerrida luta

sindical nos Estados Unidos com históricas greves, como a da indústria de aço em

Homestead, em 1892, e a da fábrica Pullmam, perto de Chicago, em 1894. Nesta época,

essa cidade já se transformara em um centro de discussões e confrontos políticos.

Com a chegada em massa de imigrantes no século XIX, a população de Chicago

teve a composição étnica e o perfil ocupacional de seus habitantes modificados de

forma substancial. Em 1890, 78% dos que lá residiam tinham parentes estrangeiros

(suecos, alemães, poloneses, boêmios, judeus, etc.) e apenas cerca de ¼ da população

era de descendentes dos colonizadores anglo-europeus. Seus habitantes falavam

incontáveis línguas e era possível que alguém caminhasse por alguns distritos sem ouvir

o Inglês nas ruas (Feffer, 1993). Tudo isso acarretava efeitos sobre a cultura e o sistema

educacional. A Universidade de Chicago foi organizada e deu início às atividades de

pesquisa e ensino nos primeiros anos da década de 1890, tendo em torno de si uma

sociedade que passava por transformações radicais. Não foi por acaso que muitas

pesquisas sobre mudanças de costumes, conflitos raciais, questões urbanas, etc., tenham

sido produzidas no âmbito da chamada Escola de Chicago.40

Enfim, podemos dizer que o período compreendido entre 1890 e a Primeira

Guerra Mundial foi marcado nos Estados Unidos por grandes conflitos sociais e um

40
Ver Anexos.
forte clamor por reformas. Trata-se do que ficou conhecido como Era Progressista ou

progressivismo:

“Série de iniciativas de reformas e não um único movimento reformista, o


progressivismo foi condicionado por impulsos variados, desnorteantes e, às
vezes, contraditórios: eficiência e justiça social, administração científica de
empresa e práticas justas, reorganização profissional e regeneração moral.
Complexo, difuso, pluralístico, o significado do movimento e as
características de seus adeptos desafiam análise fácil e consenso histórico. A
despeito de todas as suas ambigüidades, o agregado de causas conhecido
como progressivismo pode ser entendido como reação essencialmente
urbana e de classe média à mudança social e econômica e busca de ordem
e eqüidade em uma era em rápida mutação. (Sellers, May e McMilen,
1990:279).41

Como afirmou o inventor Thomas Edison em 1912 em uma carta ao industrial

Henry Ford, havia razão para acreditar que as vastas mudanças demográficas e

tecnológicas tinham desorganizado a nação: “Nós temos estado tropeçando, porque

temos tentado administrar uma nova civilização no velho estilo. Está na hora de

começarmos a fazer este mundo de novo” (Edson apud Pamplona, 1995:20). O

progressivismo tentou algumas vezes combinar a aceitação da necessidade de

reorganizar e modernizar a sociedade americana com um anseio pela volta a valores

associados a uma era pré-industrial (individualismo de bom estofo moral,

comunitarismo, etc.). É possível encontrar na obra de Dewey traços dessa ambigüidade.

O desenvolvimento científico combinado com a industrialização e a ampliação

do campo educacional implicaram em modificações do horizonte ocupacional, na

medida em que criavam novas perspectivas profissionais, principalmente para os filhos

dos setores médios urbanos. Neste sentido, a antiga ordem social, predominantemente

rural e agrícola, estava sendo desafiada pela necessidade de formação direcionada para

novas profissões, que exigiam cada vez maior nível de escolarização. O público

estudantil com o qual Dewey, Mead e outros pragmatistas dialogavam em Chicago

estava se deslocando dos mais antigos estratos formados por pequenos comerciantes e

41
Os grifos são meus.
empresários para profissionais mais modernos e grupos especializados. Assim, a

tradição filosófica que se configurou em Chicago nessa época emergiu em um ambiente

caracterizado fundamentalmente pelas idéias de profissionalização e ascensão social,

formando o seu primeiro público entre aqueles que estavam conquistando posições

justamente tendo como base essas duas pautas (Mills, 1968:64). Esperança e crítica,

entusiasmo e luta por mudança no comportamento das elites eram elementos

contrastantes do que se chamou de progressivismo ou Era Progressista:

“Trabalhadores continuavam a lutar com a pobreza urbana, missionários do


evangelho social tentavam ainda reinterpretar o Cristianismo em termos de
necessidades humanas temporais e os cientistas sociais persistiam em
contestar as bases do individualismo do século XIX. O descontentamento de
começo do século XX, porém, tinha um novo tom, estabelecido pela
otimista, mas não complacente classe média.” (Sellers, May e McMilen,
1990:281).

Algumas instituições sociais americanas empreenderam um processo de

engajamento social e político que pode ser associado aos aspectos reformistas do

progressivismo. Exemplos disto se encontram na teologia crítica dos liberais

protestantes e no ativismo social cristão, que questionavam o forte individualismo do

Calvinismo ortodoxo. Ao mesmo tempo em que isso ocorria, novas disciplinas dos

cursos de sociologia e economia tomavam de empréstimo temas e questões do

historicismo, da estatística e das tradições socialistas do continente europeu (Feffer,

1993:97). Foi neste ambiente que os pragmatistas de Chicago abandonaram

paulatinamente uma linguagem moralista na análise dos problemas sociais:

“Eles tentaram reinterpretar o significado ético do trabalho na era industrial,


buscando uma nova linguagem para suas preocupações morais e uma base
para a integração social além do engajamento individual nas profissões”
(Feffer, 1993:100).
A perspectiva construída a partir daí já foi identificada como producer

republicanism, algo que, por um lado, guarda semelhanças com a ética protestante, na

medida em que vincula a ordem social ao trabalho diligente; por outro lado, afastava-se

do Calvinismo ortodoxo, pois era um tipo de republicanismo e estava preocupado


basicamente com uma política secular, em continuidade com a República Americana de

1776. Tratava-se de uma perspectiva política que se identificava com as virtudes cívicas

dos artesãos, trabalhadores e homens da terra, em contraste com as virtudes dos

proprietários das fábricas, identificados com a capacidade de realizar proezas

econômicas (Feffer, 1993:101).

A defesa das técnicas artesanais e da autonomia dos trabalhadores envolveu a

retomada de uma das pedras fundamentais da democracia americana: “a capacidade de

alguém escolher e controlar uma profissão sem se sujeitar à autoridade arbitrária de

uma elite herdeira e não produtiva” (Feffer, 1993:102). A defesa desses valores foi

combinada com idéias que estiveram presentes nos movimentos políticos da Europa

continental em torno de 1848 e que foram trazidas pelos imigrantes. O resultado desse

processo, como já foi indicado, é que Chicago se transformou em um centro de lutas

políticas lideradas por sindicalistas e anarco-socialistas.

Contudo, Feffer (1993) chama a atenção para as várias matizes desse

republicanismo, entre as quais versões nitidamente conservadoras. Havia os que eram

contra o processo de industrialização e saudosos de uma cultura pré-industrial, e outros

que defendiam a comunidade de interesses entre trabalhadores e proprietários pelo fato

de alguns capitalistas terem emergido das classes trabalhadoras. Ainda segundo Feffer

(1993), o pragmatismo de Chicago continha os diferentes veios desse amplo movimento

de reformas do final do século XIX, os elementos radicais e conservadores. Em certos

casos, o que funcionava como paradigma era a figura do homem que produz

(producer), não o trabalhador (worker) ou o proletário (proletarian).

Sofrendo os efeitos do crescimento populacional e industrial, Chicago passou a

conviver com uma crônica miséria urbana. Em 1882, por exemplo, metade das crianças

da cidade faleciam antes de completar seis meses, basicamente devido às precárias

condições sanitárias (Feffer, 1993:108). Não era difícil encontrar fábricas em que 12 ou
14 horas de trabalho eram obrigatórias e que empregavam crianças como mão-de-obra.

Muitas instituições voltadas para a ação social foram fundadas nesta época. Era um tipo

de resposta humanitária às terríveis condições de vida em que se encontravam

principalmente os imigrantes recém chegados à América do Norte e a população

marginalizada no processo de crescimento vertiginoso das cidades.42 Feffer (1993)

ressalta o caráter pacífico dessas instituições, que evitavam o incentivo aos confrontos

na ação política, ainda que atraíssem militantes socialistas e anarquistas para os fóruns

de discussão.

Dewey teve participação ativa em uma dessas organizações sociais de Chicago, a

Hull House, fundada em 1889 por Jane Addams. Nesta época, já prevalecia para ele a

visão de que a educação é por excelência um método de reconstrução social, ainda que

não seja o único. Em um livro comemorativo dos dez anos de atividades daquela

instituição, Jane Addams, que pertencia à seita Quaker e era filha de um rico senador,

afirmou que a Hull House fora criada com base na teoria de que “a dependência das

classes é recíproca” (Addams apud Mills, 1968:319). Na Hull House eram

desenvolvidos programas pedagógicos e filantrópicos (leituras, recreação para as

crianças, discussões políticas, etc.) que buscavam quebrar o isolamento da população

marginalizada, ao mesmo tempo em que visava engajar os mais favorecidos - jovens

universitários, por exemplo - em ações socialmente relevantes. Dewey, sua esposa e a

senhora Addams se tornaram grandes amigos, e não foi por acaso que uma das filhas do

casal Dewey tenha recebido o nome de Jane.

Através de declarações de Mead levantadas por Feffer (1993), podemos perceber

que instituições como a Hull House tinham um significado político para os pragmatistas

bem mais amplo do que muitas vezes se atribui às instituições beneficentes. Para Mead,

por exemplo, elas incorporavam o ideal de uma ciência socialmente engajada, guiada

42
Alguns desses centros de assistência social foram eventualmente incorporadas ao sistema público.
por hipóteses e nas quais o conhecimento era considerado algo provisório, ao invés de

dogmático (Feffer, 1993:114). Ao lado dos sindicatos, essas organizações eram vistas

como instituições sociais capazes de realizar “pontes” efetivas entre os indivíduos e a

sociedade, além de canalizar energias dos movimentos reivindicatórios dos traba-

lhadores. Esta perspectiva pode nos remeter à análise de Durkheim, em Da divisão do

trabalho social [1893], quando o sociólogo francês faz uma defesa das corporações de

ofício como instituições sociais capazes de diminuir a distância entre os indivíduos e o

Estado.43 Ainda que organizações como a Hull House tivessem um propósito

assistencialista, algo que também se encontra nas corporações de uma forma geral,

penso aqui basicamente no fato de tais instituições funcionarem como instâncias

intermediárias entre os indivíduos e o todo (a sociedade ou o Estado). 44

6. Crítica da economia escolar

John Dewey, Herbert Mead, Ella Flagg Young, Jane Addams e outros foram

elaborando e testando idéias nesse contexto em que a perspectiva científica parecia ou

pretendia estar alinhada com as ações políticas. Assim nasceu o pragmatismo de

Chicago. Neste sentido e tomando como referências textos de John Dewey escritos na

época em que ele trabalhou nessa cidade e aqueles em que ele retoma diretamente

questões ligadas às experiências ali realizadas, a educação - seus fundamentos e

perspectivas, e tomada ao mesmo tempo como objeto de análise e campo de ação -

aparece como um tema crucial para se tentar compreender a relação entre indivíduo e

sociedade.

O esforço por considerar na análise da educação as características dos indivíduos

e as demandas de uma socialização voltada para a construção de uma sociedade


43
“Uma nação só se pode manter se, entre o Estado e os particulares, se intercalar toda uma série de
grupos secundários bastante próximos dos indivíduos para atraí-los fortemente em sua esfera de ação e
arrastá-los, assim, na torrente geral da vida social.” (Durkheim, 1995:XXXVII).
44
Convém assinalar que intelectuais importantes, que também trabalhavam na Universidade de Chicago
nesta mesma época, como Thorstein Veblen, não compartilhavam com Dewey e Mead essa visão
otimista ou positiva das instituições de assistência social, como a Hull House. Em Theory of Leisure
Class (Teoria da Classe Ociosa), Veblen tece irônicos comentários a respeito desses centros de
assistência social (Mills, 1968:323).
democrática é um dos traços fundamentais da “nova escola” proposta por Dewey. Para

dar conta de questões referentes ao processo de ensino e aprendizagem, ele elaborou

hipóteses sobre os estágios do desenvolvimento infantil. Como muitos pedagogos

daquela época, Dewey apostava na necessidade de se conhecer a criança. Outra

característica do modelo de educação pensado e testado na Escola Laboratório da

Universidade de Chicago era que a escola deveria investir no interesse dos alunos e

estar voltada para a construção de hábitos, ao invés de forçá-los a absorver a maior

quantidade de conhecimento possível. O interesse deveria ser um dos fundamentos da

boa educação, e não o oposto do esforço e de uma educação rigorosa (Dewey, 1965). É

necessário marcar aqui essa suposta oposição, pois a idéia de uma “educação centrada

no aluno” pode soar como sinônimo de indulgência, individualismo e até mesmo

indisciplina.

Como fez Andrew Feffer (1993), é possível relacionar a crítica de Dewey a um

determinado modelo de educação, que separa os fins dos meios pelos quais eles podem

ser alcançados, à crítica ao sistema de produção industrial de sua época. Ou seja, um

sistema no qual os trabalhadores não necessitavam se identificar com o processo de

produção, trabalhando mecanicamente (como peças das máquinas) e tendo como

principal objetivo a remuneração pecuniária. Um tipo de trabalho que certamente pode

frustrar os indivíduos na medida em que separa o fazer do pensar. Desta perspectiva, o

trabalho fabril e a escola em seu formato tradicional têm problemas semelhantes de

ordem psicológica e ética. Dewey de certa forma chama a atenção para a alienação

inerente ao modelo tradicional de educação e ao processo de divisão do trabalho. Em

oposição a isto, a arte e o jogo aparecem tanto para ele quanto para Herbert Mead

como processos em que os indivíduos realizam atividades nas quais se engajam

inteiramente.45 Penso que esta é uma leitura pertinente da crítica de Dewey à escola

45
Ver no capítulo III o item “O jogo e o trabalho”.
tradicional, embora pareça uma transposição direta para o campo da educação de certa

crítica da economia política. Contudo, sabemos que o campo da educação, embora

dependente e relacionado aos campos econômico e político, tem uma dinâmica própria,

relativamente autônoma, necessitando de um tipo de análise que dê conta também da

própria economia escolar, de seus mecanismos internos de produção e reprodução.

A proposta dos pragmatistas de Chicago para transformar a sociedade americana

passava necessariamente pela educação e na base das mudanças em vista estavam o

currículo e a organização escolar. A questão da introdução de trabalhos manuais nas

escolas americanas, um tema polêmico no final do século XIX, serviu para Dewey

discutir questões filosóficas e políticas, apresentando sua visão da educação escolar

como instrumento vital de construção e reconstrução de uma sociedade democrática. 46

Mas a aposta nas atividades e ocupações nas escolas não estava longe de controvérsias,

pois se combinou com a discussão sobre a formação profissional e a criação de

currículos especiais para as crianças das classes trabalhadora (Bowles e Gintis, 1982).

A chamada educação vocacional vinha sendo difundida na América do Norte

desde a segunda metade do século XIX, servindo a objetivos distintos conforme o grupo

social e econômico que a fomentasse. Para os proprietários dos meios de produção ela

seria basicamente um método de formação de mão de obra. Entretanto, havia aqueles

para quem a educação através de atividades e ocupações poderia funcionar como um

instrumento de ajuste moral, pondo a discussão sobre as vocações em um outro

patamar. Na época em que Dewey trabalhou em Chicago, os reformadores puseram

ênfase na introdução da manual education no currículo escolar “como um meio de

revitalizar moralmente a educação na América e adequá-la às necessidades do

industrialismo” (Feffer, 1993:133). Estava em discussão a possibilidade de cultivar

Este debate também esteve presente no Brasil na década de 1930 através do educador
46

Anísio Teixeira quando ele dirigia a Instrução Publica do Distrito Federal (1931-1935).
Deste autor e sobre este tema, ver o livro Educação para a democracia.
virtudes cívicas e de resgatar algo do ethos do artesão, do trabalhador devotado ao seu

labor e que mantinha com este uma relação bem mais complexa do que a necessidade

de receber salário.

Para Dewey, como veremos, a discussão era ainda mais ampla. Ela passa pela

crítica aos dualismos clássicos da filosofia, pela defesa no moderno método científico

experimental e chega à idéia de superação da dicotomia entre educação para a mente

(teórica) e educação para as mãos (técnica e voltada para os “destinados” ao mundo do

trabalho). Desta perspectiva, tanto Dewey em Chicago, no final do século XIX e início

do século XX, quanto Anísio Teixeira na década de 1930 no Brasil - este certamente

por influência das idéias daquele - tentaram pensar como, através da educação escolar,

superar a distinção hierárquica entre trabalho mental (mind work) e trabalho manual

(hand work), pois tal separação é insustentável de uma perspectiva pragmatista.

No caso dos norte-americanos oriundos da Nova Inglaterra, e Dewey era um

deles, podemos pensar também na nostalgia de uma América do Norte rural, sem

escravos e onde o trabalho doméstico compartilhado fora um dos núcleos básicos de

socialização. Tudo isto tendo como referência uma organização política comunal, que

marcara a vida americana no início da colonização, como bem destacou Tocqueville,

em Democracia na América.47 Segundo este autor, na maior parte das nações européias

o exercício da política teve início pelas partes altas da sociedade e, pouco a pouco, foi

sendo espalhado pelas diversas instâncias do corpo social. Na América do Norte, ao

contrário, a comuna foi a base da organização política, sendo ela anterior ao condado,

este que por sua vez foi criado antes dos estados, os quais se formaram primeiro que a

União. Tocqueville, que fez um estudo do funcionamento do sistema político e jurídico

47
Alexis de Tocqueville (1805-1859) nasceu na França, foi magistrado, historiador, político e um dos
precursores da sociologia. Em 1831 ele esteve nos Estados Unidos a serviço do governo francês. A
partir de observações e estudos realizados naquele país, Tocqueville escreveu uma das mais importantes
obras da ciência política moderna, A Democracia na América. É um livro composto de duas partes: a
primeira, de 1835, é uma espécie de etnografia onde são analisadas algumas instituições sociais dos
Estados Unidos. A segunda, de 1840, traz uma teoria do Estado democrático (Tocqueville, 1987).
da comuna em um dos estados da Nova Inglaterra, afirmou o seguinte sobre essa

unidade básica da organização política americana:

“É na comuna que reside a força dos povos livres. As instituições comunais


são para a liberdade aquilo que as escolas primárias são para a ciência; pois
a colocam ao alcance do povo, fazendo-o gozar do seu uso pacífico e
habituar-se a servir-se dela. Sem instituições comunais, pode uma nação
dar-se um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade. Paixões
passageiras, interesses de um momento, o acaso das circunstâncias, podem
dar-lhe as formas exteriores da independência, mas o despotismo encerrado
no interior do corpo social cedo ou tarde aparece de novo à superfície”
(Tocqueville, 1987:54).

Os processos de urbanização e industrialização por que passaram os Estados

Unidos desde meados do século XIX e a chegada de levas de imigrantes, geográfica e

culturalmente desenraizados, tornaram a questão da perda do ethos de origem ainda

mais complexa. Assim, não nos deve surpreender que a educação escolar - um meio

próprio para a formação de hábitos - tenha sido pensada por Dewey como algo vital no

processo reconstrução da sociedade americana.

Ao elaborar o seu pensamento pedagógico que inclui uma teoria do hábito e do

uso da inteligência, Dewey partiu de antigas questões filosóficas, mas se aproximou de

reflexões características das nascentes ciências sociais. Isto é o que queremos

demonstrar ao longo dos próximos capítulos.


II

Pensando na prática: a Escola Laboratório da Universidade de


Chicago

1. Introdução

2. A concepção geral da Escola Laboratório

3. Entre o individual e o social

4. Teoria através da prática

5. Um tema organizador

6. Cooperação e reflexão

7. As mãos e a mente
8. Educação, ética e cidadania

9. O laboratório como modelo

Capítulo II

Pensando na prática: a Escola Laboratório da Universidade de Chicago

“A diferença entre a teoria educacional e sua realização na prática é sempre


tão ampla que naturalmente surge a dúvida sobre o valor de qualquer
apresentação de princípios simplesmente teóricos” (John Dewey, em
Mayhew & Edwards, 1936:463).

1. Introdução

John Dewey fez esta declaração por volta de 1936 a Katherine C. Mayhew e

Anna C. Edwards, autoras do primeiro livro sobre a escola experimental que ficou

conhecida como Laboratory School ou Dewey School.48 Como foi indicado, esta escola

laboratório foi organizada por iniciativa de Dewey e de um grupo de professores em

1896 na Universidade de Chicago, e tinha como principal objetivo colocar em prática,

testar e avaliar hipóteses que estavam sendo desenvolvidas no departamento de

pedagogia daquela universidade, por ele dirigido entre 1894 e 1904.49

Este capítulo não é uma tentativa de fazer a reconstrução da Escola Laboratório

nos moldes da escrita etnográfica. As descrições têm a função de situar o leitor, pois foi

a partir das experiências empreendidas naquela escola que Dewey começou a elaborar

48
O livro se chama The Dewey School - The Laboratory School of the University of Chicago (1896-
1903) [1936]. As autoras, que tinham sido professoras daquela instituição, contaram com o apoio
fundamental do próprio Dewey para escrevê-lo. O livro contém várias reflexões do filósofo sobre a
Escola Laboratório, inclusive um apêndice (“The theory of the Chicago experiment”) escrito por ele, em
que faz comentários sobre a filosofia da educação presente naquela escola experimental.
49
O referido departamento foi organizado inicialmente congregando pesquisadores nas áreas de
filosofia, psicologia e pedagogia. Em 1905, foi criado um departamento de psicologia.
uma reflexão sistemática sobre educação, uma episteme. Algumas questões presentes na

organização da Escola Laboratório eram ainda hipóteses sobre uma “nova educação”

nos Estados Unidos. O objetivo deste capítulo é reconhecer e comentar algumas das

idéias elaboradas por Dewey e o grupo de professores que com ele trabalhou em

Chicago, principalmente naquilo que se referem à questão central deste livro, a relação

entre indivíduo e sociedade na educação.

A ulterior sistematização teórica das experiências realizadas - algo feito pelo

próprio Dewey em livros como The School and Society [1899], How we think [1910],

Democracy and education [1916], Human nature and conduct [1922] e Experience and

education [1938] - deu visibilidade a hipóteses que na época de Chicago vinham a

público na forma de conferências, artigos, ensaios, etc., posteriormente reunidos nas

obras completas de Dewey50. A estratégia que adotei neste trabalho foi tentar

acompanhar o processo de elaboração daquilo que seria a sua filosofia ou teoria geral da

educação, como o próprio Dewey chama, partindo de textos escritos por ele durante o

período de Chicago, principalmente aqueles diretamente relacionados à educação

escolar. Este percurso substitui a tentativa de verificar a aplicação na Escola

Laboratório de uma teoria já elaborada previamente.

Ao fazer um balanço após três anos de funcionamento da Escola Laboratório,

Dewey lembrou que no início das atividades ele não tinha idéias e princípios prontos,

mas apenas quatro questões básicas que fundamentavam aquele empreendimento: 1) O

que e como se poderia fazer para criar uma relação de proximidade entre a escola e a

vida doméstica (casa e vizinhança) das crianças?; 2) O que poderia ser feito no sentido

de introduzir temas, em história, ciência e arte, que tivessem valor positivo e

significado efetivo para a vida dos alunos?; 3) Como o ensino formal de habilidades

como ler, escrever e usar figuras poderia ser levado a cabo com experiências do dia-a-

50
A publicação das obras completas de John Dewey foi o resultado de um projeto de pesquisa
desenvolvido na Southern Illinois University e tendo como editora geral a professora Jo Ann Boydston.
dia, de uma forma que as crianças sentissem que tais habilidades são realmente

necessárias?; 4) Como dar o máximo de atenção a cada aluno(a) individualmente?

(Dewey, 1980:59).

Quando era professor assistente de filosofia na Universidade de Michigan,

Dewey começou a publicar textos em que aparecia uma abordagem da natureza do

pensamento atravessada por questões do campo da ética, principalmente pela persistente

preocupação com as implicações morais da ação (Mayhew & Edwards, 1936). 51 Foi da

análise dessas questões no campo da educação que se formou aquilo que neste trabalho

se designa como sua filosofia da educação. Em termos institucionais, o convite para

dirigir um departamento em que filósofos, psicólogos e educadores trabalhariam juntos

criou as condições para se tentar experimentar um outro modo de fazer filosofia, ou

seja, algo distinto de uma especulação teórica sem vínculos com as ações na vida social.

Com a criação da Escola Laboratório Dewey teve amplas oportunidades para

desenvolver uma reflexão sistemática sobre a educação. Dois aspectos começaram então

a se destacar em seus estudos: o primeiro, dizia respeito à tentativa de compreender

como as crianças desenvolvem o pensamento, em uma abordagem muito próxima à da

psicologia do desenvolvimento, e onde a educação é concebida como um processo

contínuo em que o indivíduo amplia gradualmente o seu domínio do meio. O segundo

aspecto era a preocupação com o valor social dos hábitos que a educação escolar pode

formar, principalmente no que diz respeito à construção de uma sociedade democrática.

Estes são dois grandes temas abordados em algumas de suas obras publicadas depois de

1904, mas escritas com base em reflexões elaboradas no período de Chicago. Se no que

diz respeito ao primeiro aspecto (o desenvolvimento infantil) a obra de Dewey não é tão

detalhada quanto, por exemplo, à de Piaget, no que se refere à relação entre hábito,

educação e democracia, a riqueza e atualidade de suas análises parecem inesgotáveis.

51
Dewey publicou Psychology, em 1887, e Outline of Ethics, em 1891.
Desde o final do século XIX estavam sendo configuradas novas idéias sobre

currículo, organização escolar, relações entre professores e alunos, etc.. Ao criar a

Escola Laboratório da Universidade de Chicago, Dewey tinha o propósito de “manter o

trabalho teórico em contato com as demandas da prática”, construindo uma “estação

experimental” para teste e desenvolvimento de métodos que pudessem ser seguramente

recomendados para outras escolas (Dewey, 1972:244).52 Não se tratava de uma escola

destinada à formação de professores, mas de um laboratório que teria papel semelhante

aos das ciências como a Física, a Biologia e a Química.

Segundo Langemann (1996), a opção de John Dewey por um caminho

experimental expressava o “desencanto com a filosofia concebida como um teorizar

abstrato e o seu crescente interesse em determinar se e como a educação poderia prover

a filosofia das bases para a experimentação empírica” (p. 175).

Em uma declaração ao organizador e primeiro presidente 53 da Universidade de

Chicago, Willian Rainey Harper, Dewey defendeu a relevância da Escola Laboratório

afirmando que, exceto aquela experiência que apenas se iniciava, não existiam nos

Estados Unidos oportunidades para um trabalho sistemático e bem equilibrado nos

cursos de Pedagogia:

“Isto significa que os professores das faculdades de Pedagogia, das Escolas


Normais, diretores de centros de formação de professores, supervisores e
superintendentes escolares das cidades têm que realizar seus trabalhos sem
uma adequada preparação ou devem ir para a Alemanha, onde as condições
educacionais são diferentes” (Dewey, 1972:433).54

Dewey comentou, neste mesmo texto, a ausência de uma formação científica

para o corpo docente das escolas primárias e secundárias americanas, sobre quem

repousava a responsabilidade de organizar, dirigir e supervisionar a base de todo o

sistema escolar, mas que era deixado excessivamente a mercê do acidente, do capricho

52
A pedagogical experiment, 1896.
53
Cargo que no Brasil é equivalente ao de reitor.
54
The need for a Laboratory School, 1896.
e da rotina. Indicou então que a Escola Laboratório seria um espaço para estudos

avançados sobre ensino, direção e supervisão. Para Dewey, a liderança das forças

educacionais do país caberia à primeira universidade que construísse uma escola de

observação, demonstração e experiência em conexão com o ensino teórico (Dewey,

1972:434)55. Esta visão da universidade associada à pesquisa se adequava bem aos

propósitos com que fora criada a Universidade de Chicago, há apenas quatro anos antes

da chegada de Dewey (Dykhuizen, 1973).

Cumpre relembrar que as teorias e métodos testados na Escola Laboratório

emergiram em um contexto mais amplo de transformações econômicas, políticas e

sócio-culturais56. Os Estados Unidos viveram nas últimas décadas do século XIX um

intenso processo de urbanização e de industrialização, acarretando, entre outras coisas,

o aumento da participação política e das demandas das classes sociais subalternas. A

filosofia da educação presente na Escola Laboratório também pode ser lida tendo em

vista esse contexto e o anseio de reconstrução de uma sociedade. É característico da

perspectiva pragmatista (ou instrumentalista) considerar o conhecimento como um

instrumento para a ação. Assim, a educação ocupou um lugar central no pragmatismo

americano, pois a escola não poderia ficar alheia às transformações de uma sociedade

que mudava continuamente, devendo ser integrada nesse processo (Cambi, 1999).

Segundo Dewey (1980), as transformações macroestruturais (demográfica,

econômica, etc.), por que vinham passando os Estados Unidos da América do Norte

desde meados do século XIX, aconteciam associadas a mudanças nos hábitos das

pessoas com conseqüências diretas para o processo de socialização das crianças. A

importância da escola primária se insere justamente aí, porque ela é uma das

instituições sociais responsáveis pela formação de hábitos ou pela “modelagem social”,

como designou o sociólogo Norbert Elias (1994). Neste sentido, um dos propósitos da

55
The need for a Laboratory School, 1896.
56
Ver o capítulo I.
Escola Laboratório era encontrar novas práticas para a escola elementar ou primária,

desenvolvendo uma educação escolar adequada àquilo que Dewey chama de uma

sociedade democrática e em contínua mudança, ou seja, uma sociedade progressiva.

Porém, no final do século XIX e início do século XX, uma visão tradicional da

educação escolar era ainda hegemônica nos Estados Unidos, mantendo sua influência

sobre a maioria da população, incluindo professores, diretores de escolas e

superintendentes das secretarias de educação (Tanner & Tanner, 1989).

Embora a ciência ocupe um lugar central no projeto pedagógico de Dewey, ele

via a educação como um preparação moral (social), ao invés de simplesmente

intelectual. Ele considerava que a educação escolar poderia ser algo mais do que o

ensino de teorias e técnicas. A escola deveria ser também um espaço para se

desenvolver a cidadania em um sentido mais amplo.

Em conferência proferida no National Council of Education, em 1902, cujo

título foi “A escola como um centro social” (The school as a social centre), Dewey

indicou que a idéia de transformar a escola pública em uma instituição voltada para

exercitar a cidadania era uma questão muito mais relacionada à prática do que à teoria:

“O significado desta frase, “preparar para a cidadania”, mostra precisamente


o que tenho em mente com a diferença entre a escola como algo isolado e
relacionada apenas ao Estado e a escola como um empreendimento
socializador, em contato sob todos os pontos com o fluxo da vida
comunitária” (Dewey, 1976:82).

Tratava-se de passar de uma noção antiga e limitada de cidadania - escolher bem

os governantes e poder ocupar cargos no Estado - para uma noção ampliada. Como

pretendemos demonstrar, para tornar possível o exercício dessa idéia de cidadania, os

conteúdos escolares não eram suficientes, e sim novas práticas voltadas para a

construção de determinados hábitos:

“A idéia mais antiga de escola era que a sua primeira preocupação seria com
a inculcação de certos fatos e verdades, do ponto de vista intelectual, e a
aquisição de certas habilidades. Quando a escola se tornou pública ou
comum, esta noção foi ampliada para incluir o que poderia fazer do cidadão
um eleitor e legislador mais capaz e correto; mas ainda se pensava que este
objetivo seria alcançado pela linha do treino intelectual” (Dewey, 1976:83).
Mas o propósito de Dewey era fazer com que as crianças incorporassem hábitos

de cooperação social enquanto cresciam. Assim, ao mesmo tempo em que a escola

possibilitava o desenvolvimento dos indivíduos ou a sua individualização, ela daria

conta em processo simultâneo de socializá-los visando a construção e reconstrução de

uma sociedade efetivamente democrática.

Atento às transformações nos padrões de comportamento em curso em uma

sociedade que se urbanizava e se industrializava em ritmo acelerado, Dewey supôs que

a vida escolar seria capaz de suprir em termos de educação algo do que estava sendo

perdido com as mudanças na ordem social. Daí a idéia de que a escola deveria ser

organizada como uma comunidade ou uma “embryonic society”, uma das questões

centrais de seu pensamento educacional.

2. A concepção geral da Escola Laboratório

“A Escola Laboratório foi o resultado da interação de idéias e experiência -


a experiência pessoal de Dewey e seu estudo das idéias que marcavam
profundamente os principais campos do conhecimento, em particular, a
filosofia, a psicologia e a sociologia. Não se questiona que Dewey estava
em débito com as idéias de outros, mas estas idéias passaram por uma
metamorfose em sua mente. Elas foram temperadas por sua própria
experiência, o que talvez explique a importância que ele atribui a esta”
(Tanner, 1997:12).

Voltemos um pouco no tempo, tentando recuperar algo das relações entre

Dewey e a escola antes dele vir a ser um filósofo da educação. Pensemos em Vermont,

sua terra natal, região da chamada Nova Inglaterra (EUA), em torno de 1859. Nesta

época, os Estados Unidos da América do Norte ainda eram uma nação agrária, embora

já estivessem empreendendo um processo de urbanização e industrialização. 57 As

57
Como indicamos no capítulo I, no século XIX os Estados Unidos sofreram mudanças em sua estrutura
econômica e social, deixando de ser uma país agrário para se transformar, de um modo geral, em um
país industrializado e com a maioria da população vivendo nas cidades.
escolas, de um modo geral, faziam uso de procedimentos tradicionais (recitar, repetir,

copiar, memorizar, relembrar, etc.) para ensinar a ler, escrever e usar os números. As

recordações desse tipo de escola, que despertara pouco interesse no jovem Dewey,

foram compensadas de certa forma pelo importante papel que para ele desempenharam

as atividades fora da escola (Jane Dewey, 1989).

Em um texto sobre a Escola Laboratório, Dewey se refere à escola como uma

instituição social e esclarece como fora dela se dá o processo de socialização. Para ele, a

educação escolar deveria seguir esta mesma perspectiva:

“A educação fora da escola procede quase inteiramente através da


participação na vida social ou comunitária de grupos dos quais somos
membros. Pela linguagem e contato pessoal os recursos morais e
intelectuais de um grupo são efetivamente, ainda que inconscientes,
transmitidos para cada membro e colocados à sua disposição. Além disso,
cada indivíduo faz certas coisas (no sentido de jogar e trabalhar) junto com
outros, e assim aprende a ajustar a si mesmo ao meio e também adquire
controle de suas forças” (Dewey, 1972:437).58

É possível também associar o pensamento educacional de Dewey a algumas

idéias que desde o século XVIII vinham transformando a educação na Europa. Entre os

pioneiros de uma nova escola podemos incluir Jean Jacques Rousseau (1712-1778),

Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e Friedrich Fröebel (1782-1852), autores que

levaram para o campo pedagógico uma visão de mundo associada ao romantismo. Ao

fazer comentários sobre o romantismo pedagógico alemão, Cambi (1999) lembra que

este “fez amadurecer uma nova consciência epistemológica do saber educativo

(reconhecendo-o como situado entre filosofia e ciência e colocado problematicamente

no seu ponto de interseção)” (p. 416).

Como assinala o próprio Dewey (1959), a partir da obra de Rousseau ficou clara

a importância de se levar em conta o desenvolvimento natural, o que significava em

58
The University School, 1896.
termos de educação considerar as características próprias das crianças e as suas

diferenças individuais (p. 128).

Em 1774, Pestalozzi organizou uma escola para meninos e meninas carentes na

qual, além das aulas regulares, os alunos aprendiam a cozinhar, tecer, costurar,

antecipando de certa forma a importância da “utilização ativa dos sentidos, em

substituição ao método de fazer decorar palavras” (Dewey, 1959:219). Em Como

Gertrudis ensina a seus filhos [1801], Pestalozzi fez ilações que lembram muito certas

questões que seriam postas por Dewey:

“Assim como as definições, quando precedem as intuições, formam os


néscios e presunçosos, também as dissertações sobre a virtude, quando vêm
antes da prática da virtude, formam os ociosos e orgulhosos. A falta de um
ensino prático e experimental da virtude tem as mesmas conseqüências que
a falta de um ensino prático e experimental no campo científico” (Pestalozzi
apud Abbagnano, 1995:471)

Essa nova visão da educação foi assimilada por Fröebel e a ênfase na atividade

levada adiante. Ele passou a utilizar os jogos como atividades pedagógicas voltadas

para o desenvolvimento das crianças.59 Essas idéias se espalharam pela Europa e não

demoraram a chegar aos Estados Unidos. Deu-se início então à criação daquilo que

Fröebel chamou de Kindergarten, o jardim da infância, um espaço aparelhado para as

atividades das crianças, contando com professores para orientar o processo. O jogo e as

atividades lúdico-estéticas eram os elementos centrais na organização dos jardins da

infância (Cambi, 1999:426).

Quando se discute o legado da “escola nova” - e a filosofia da educação de

Dewey está inserida no contexto de desenvolvimento de uma “nova educação” nos

Estados Unidos -, quase sempre se indica que uma de suas principais características foi

ter trazido o aluno para o centro do processo de educação escolar. Nos Estados Unidos

esta perspectiva ficou conhecida como child-centered education. De fato, alguns

59
Como veremos no capítulo III, Dewey também teceu críticas ao método de Fröebel.
educadores passaram a advogar que o aluno precisava ser analisado e conhecido pelas

ciências-fonte da educação, reconhecido como protagonista do processo educacional e

acompanhado em sua singularidade. Mas esta visão não emergiu sem grandes

controvérsias; ela era parte de um amplo e complexo debate.

Quando Dewey ingressou na Universidade de Chicago em 1894, o campo

educacional americano estava dominado pela luta entre dois grandes grupos que

representavam posições divergentes a respeito do curso que deveria tomar a educação

escolar. Cada um dos lados era liderado por uma figura importante no cenário

intelectual da época. O curioso é que ele tivera em sua formação contato com ambas as

partes. De um lado, William T. Harris, conhecido como o guardião dos ideais

humanistas, e que encorajara o jovem Dewey a seguir profissionalmente no campo

filosófico em um período decisivo de sua vida. De outro lado, Granville Stanley Hall,

professor de Dewey no doutorado na Universidade Johns Hopkins e pioneiro da

psicologia experimental nos Estados Unidos (Kliebard, 1986:34). Humanismo e

experimentalismo formavam as duas grandes correntes em torno das quais se

desenvolveu o referido debate. Se Dewey não foi um mero espectador dessa verdadeira

batalha em torno do currículo, também não tomou partido explicitamente por nenhuma

das tendências. Entre a tradição e a mudança radical, entre o intelectualismo elitista de

Harris e o naturalismo ou “desenvolvimentismo” (developmentalism) de Hall, Dewey

tentou elaborar na Escola Laboratório uma nova concepção de educação ao interpretar

idéias presentes naquele contexto.

Figura proeminente no campo da educação no último quartel do século XIX,

William T. Harris ajudou a construir uma plataforma para o segmento que resistia à

idéia de grandes mudanças no sistema escolar. Mudanças estas que eram justificadas

pelas enormes transformações por que vinha passando a sociedade americana como um

todo e, especificamente, pela transformação intelectual representada pela ciência


moderna. Harris se tornou então o porta voz de um currículo humanista estruturado a

partir das “cinco janelas da alma” (gramática, literatura e arte, matemática, geografia e

história), referências nucleares da civilização ocidental. Como lembra Kliebard (1986),

sua persistente ênfase na racionalidade o colocava em conflito direto com aqueles que,

como Stanley Hall, advogavam uma educação de acordo com a natureza da criança (p.

36).

Organizados a princípio em torno da National Herbartian Society,60 da qual

tomou parte Dewey, e depois liderados por Stanley Hall, estavam aqueles que

defendiam um child-study movement. Os líderes dessa corrente gostavam de relacionar

suas propostas a figuras como Pestalozzi, Fröebel e Rousseau, mas a idéia de que a

“chave” do currículo estava no estudo da criança não alcançou âmbito nacional nos

Estados Unidos antes do final do século XIX (Kliebard, 1986). Foi Hall, ao retornar da

Alemanha onde estudara, que deu um caráter científico à visão “desenvolvimentista”.

Ele fez aparecer a hipótese de que os impulsos naturais da criança poderiam ser usados

para dirigir as questões do ensino (Kliebard, 1986:43). Tendo publicado em 1883 The

Contents of Children’s Minds, Hall se transformou numa espécie de modelo do

pedagogo com formação científica, assumindo a liderança das pesquisas em educação e

psicologia na Universidade Johns Hopkins. Sua posição e prestígio acadêmico nessa

universidade serviram para fazer frente ao hegelianismo de George Sylvester Morris,

que até então vinha sendo uma espécie de mentor intelectual de Dewey. Com Stanlley

Hall, o “movimento pelo estudo da criança” foi identificado como algo científico,

enquanto que o esforço dos humanista para preservar no currículo as grandes

realizações da cultura ocidental era visto como ultrapassada especulação. Uma das

questões básicas dos que passaram a enfatizar o desenvolvimento da criança era que a
60
Fundada em 1895 como um grupo dissidente da National Education Association, a National Herbart
Society congregou educadores americanos - muitos dos quais tinham estudado na Alemanha e se
consideravam como portadores de uma visão científica - que se opunham ao conservadorismo
representado pela corrente pedagógica que defendia a manutenção do tradicional currículo humanista
(Kliebard, 1986:18).
escola tradicional frustrava as suas demandas básicas por atividades, tratando-a como

passivo recipiente e utilizando um programa que contrariava suas tendências naturais. 61

Como se pode notar pela história da Escola Laboratório, Dewey considerava

positiva a perspectiva de realizar estudo científico sobre a criança, mas manteve uma

posição extremamente cautelosa no que diz respeito à aplicação de tais estudos às

exigências práticas da sala de aula. No final da década de 1920 Dewey escreveu o texto

The Sources of a Science of Education, em que discute as relações entre a educação e as

ciências que lhe servem de fonte de conhecimento. Ele indica que a educação estava em

um período de transição de um estado empírico a um estado científico, mas que

“nenhuma conclusão da investigação científica pode ser convertida em uma regra

imediata da arte de educar” (Dewey, 1984:9). Tratava-se do reconhecimento da

complexidade da prática educativa frente aos avanços teóricos das ciências. 62

Nos Estados Unidos, já antes de Hall se tornar uma figura de destaque do campo

educacional, alguns educadores já tinham começado a colocar o foco de suas

preocupações com a escola no modo como as crianças efetivamente aprendem. Horace

Mann ficou conhecido como “the father of American public education” e Francis

Wayland Parker é uma referência fundamental no que diz respeito à renovação da

escola pública americana. Originário da Nova Inglaterra, como Dewey, Francis Parker

se dedicou a procurar novos caminhos para a escola que livrassem as crianças do clima

sombrio e de tédio que reinava nessa instituição. Após a Guerra de Secessão (1861-

1865), Parker passou três anos na Europa, onde entrou em contato com novas teorias

pedagógicas. Em 1875 ele se tornou superintendente das escolas de Quincy,

Massachusetts. Pensar nas necessidades da criança, no seu próprio desenvolvimento

61
Dos estudos com discípulos alemães de Herbart, Hall trouxe a idéia de aplicar uma culture-epochs
theory à pedagogia, ou seja, a visão de que a criança repete em seu desenvolvimento os estágios que a
“raça humana” atravessou no curso da história. A proposição geral dessa teoria era que “a ontogênese
recapitula a filogênese” (Kliebard, 1986:45).
62
Esta foi uma questão também tratada com muita acuidade pelo educador brasileiro Anísio Teixeira
em “Ciência e arte de educar”, um trabalho de 1957 em que ele retoma as idéias que Dewey expusera
no referido texto da década de 20.
(self-development), aprender fazendo coisas e não apenas ouvindo, recitando, repetindo

e relembrando as lições, estas foram algumas das idéias que Parker tentou pôr em

prática. Segundo ele, a criança teria que ser considerada como alguém que se interessa

por determinadas coisas relacionadas às suas experiências anteriores e exteriores à

escola. Em 1883, Parker foi trabalhar perto de Chicago, em Cook County, dirigindo

uma Escola Normal. Ali suas idéias começaram a ser empregadas diretamente na

formação de professores. Em dezoito anos de atividade naquela instituição, ele ajudou a

formar uma nova geração de professores mais abertos à perspectiva experimental. Ele

definiu a escola comum como o “embrião da democracia”, um lugar onde estudantes e

professores poderiam exercitar a responsabilidade mútua (Tanner & Tanner, 1989).

Alguns anos depois, Dewey usaria palavras semelhantes a estas para definir a escola

como uma “embryonic society”. Segundo DePencier (2000), “Parker uma vez disse que

ele e John Dewey compartilhavam as mesmas idéias, mas que Dewey podia expressá-

las em termos filosóficos”. 63

Estes são alguns antecedentes da Escola Laboratório da Universidade de

Chicago, que contava ainda com a contribuição das novas ciências-fonte da educação,

que tomavam progressivamente espaços tradicionalmente ocupados pela filosofia.

Educador, filósofo e atento a questões postas por outros saberes, Dewey

sistematizou nos Estados Unidos os fundamentos de uma nova visão da educação

escolar em que as características e o interesse das crianças passaram a ser considerados

fatores fundamentais. Como alguns intelectuais de sua época, ele também leu na teoria

da evolução de Charles Darwin que as possibilidades para o desenvolvimento humano

63
Em A Rebelião das elites, Christhopher Lasch (1995) dedica um capítulo à análise das idéias de
Horace Mann sobre educação - defesa do realismo histórico, crítica à imaginação, abandono de uma
postura guerreira, idéia de que a educação só pode acontecer na escola, etc. - que teriam tido efeitos
negativos na vida política dos Estados Unidos. Contudo, Lasch (1995) reconhece aspectos do ideário
pedagógico de Mann que nos remetem a Dewey: a construção de “um sistema de escolas públicas
freqüentadas por todas as classes da sociedade”; a rejeição do modelo europeu, “que proporcionava
uma educação liberal para as crianças privilegiadas e treinamento profissional para as massas”; a
abolição do trabalho de menores e a “nítida separação entre igreja e Estado, protegendo as escolas de
influências sectárias”, etc. (p. 173).
são infinitas. Mas Dewey não acreditava que as leis da natureza garantissem a perfeição

máxima da humanidade (Tanner, 1997:14). Sua aposta no uso da inteligência para a

resolução de problemas o afastava do laissez-faire típico do “darwinismo social”.64 Para

Dewey, o progresso humano depende necessariamente do uso da inteligência, esta

entendida como um método de organização cooperativa em busca do conhecimento.

Era justamente esse método que deveria reger a Escola Laboratório da Universidade de

Chicago.

A idéia de escola como uma “sociedade em miniatura” significava que ela seria

concebida como um conjunto de pessoas que dividem a direção do curso da vida

humana resolvendo problemas. Esta era uma concepção efetivamente distinta da escola

tradicional, voltada basicamente para a transmissão de conhecimentos (conteúdo) e

tendo como fundamento de sua organização a hierarquia. Assim, a visão geral de escola

que se desenha a partir das experiências empreendidas na Escola Laboratório é de uma

instituição que deveria vincular a questão do conhecimento ao desenvolvimento de

hábitos considerados adequados a uma sociedade democrática e em permanente

transformação.

Currículo e organização escolar deveriam ser compatíveis com essa perspectiva,

pois dariam expressão a uma nova filosofia da educação. Se as turmas tivessem que ser

menores do que eram na antiga escola, se um maior número de professores fosse

necessário e se um novo tipo de organização escolar tivesse que ser adotado, tudo isto

deveria ser testado na prática. Para Dewey, os sistemas educacionais da cidade de

64
Com “darwinismo social” quero me referir à visão de Herbert Spencer, que fizera com enorme
sucesso em 1882 uma série de conferências nos Estados Unidos para divulgar suas idéias. Um dos
argumentos básicos de Spencer era que haveria um paralelo no âmbito social das leis que Darwin
utilizava em termos de seleção natural. Em outras palavras, “survival of the fittest” ou a sobrevivência
do mais apto seria uma lei não apenas da selva, mas também da civilização. Nos Estados Unidos, foi
Lester Frank Ward, botânico, geólogo e autor de Dynamic Sociology [1883], quem se destacou como
crítico das idéias de Spencer. Para Ward, o “darwinismo social” era uma corrupção da teoria de
Darwin, porque o ser humano tem a possibilidade de intervir pelo uso da inteligência, quaisquer que
sejam as circunstâncias, nas forças cegas da natureza, mudando o curso do progresso social. Devido a
uma “fé prática” ou apenas a uma ilusão, o fato é que Ward dividia com Dewey a visão de que a
educação pode promover a justiça social (Kliebard, 1986:26).
Chicago e dos Estados Unidos necessitavam de reformas substancias, e foi a essa

preocupação técnica e política que veio se juntar a possibilidade de desenvolver

experiências pedagógicas que combinavam questões psicológicas, filosóficas e éticas.

Como já foi indicado, a Escola Laboratório da Universidade de Chicago deveria

ocupar um lugar importante no campo da educação superior. Dewey vislumbrou-a

como um centro de demonstração, observação e experimentação conectado aos

ensinamentos teóricos, como um núcleo do sistema de pesquisa (Tanner, 1997).

Tratava-se da ênfase na perspectiva científica, algo que já vinha ocorrendo na

Alemanha e em poucas universidades norte-americanas (Johns Hopkins e Harvard)

desde a segunda metade do século XIX. No caso da Universidade de Chicago, ela fora

criada tendo como meta fazer da pesquisa o principal motor da instituição (Mills, 1968;

Dykhuizen, 1973). Desde os seus primeiros dias essa universidade emergiu como centro

produtor de conhecimento científico. Neste sentido, a adesão de Dewey a uma

perspectiva experimentalista era bem adequada ao contexto institucional; isto pode ter

sido algo decisivo na disputa que ele travou com Julia Bulkley para o cargo de diretor

do departamento de Pedagogia da Universidade de Chicago.

Para Laurel Tanner (1997), uma especialista em currículo e autora de Dewey’s

Laboratory School - Lessons for today, a mais importante lição da Dewey School foi a

própria idéia de laboratório: “A índole prática americana (e a parcimônia) parecia ter

emprestado a si mesma a idéia de que mudanças no método de ensino deveriam ser

empreendidas unicamente depois de cuidadosamente testadas, de modo que as

conseqüências práticas fossem conhecidas” (p. 18).

Dewey tinha também como premissa que o desenvolvimento intelectual das

crianças deveria ocorrer integrado ao desenvolvimento moral e social das mesmas.

Tratava-se, portanto, de tentar construir um currículo e organizar a escola de tal forma

que efetivamente se harmonizassem os dois fatores fundamentais da educação: o


crescimento físico e intelectual dos indivíduos e a incorporação de valores sociais

voltados para a construção de uma sociedade democrática. Foi o próprio filósofo quem

fez esta declaração:

“A integração de indivíduo e sociedade só é possível quando o indivíduo


vive em uma íntima associação com outros em constante e livre troca de
experiências, e encontra felicidade e crescimento neste processo de
compartilhar com os outros” (Mayhew & Edwards, 1936: 466).

Tal sentença expressa bem a concepção de educação que se experimentou na Escola

Laboratório da Universidade de Chicago.

3. Entre o individual e o social

“A filosofia produzida em Chicago foi derivada largamente do


desenvolvimento da psicologia, justo numa época em que a psicologia
estava começando a se separar efetivamente da filosofia no mundo
acadêmico. Se inicialmente a psicologia esteve subordinada à filosofia em
termos de departamento na Universidade de Chicago, é possível afirmar que
em muitas instâncias foi a “cauda” quem balançou o cachorro” (Rucker,
1969:29).

Como já foi indicado, antes de ir para Chicago, Dewey trabalhara na

Universidade de Michigan, uma instituição com fortes vínculos com o sistema público

de educação daquele estado. Convidado freqüentemente para discutir com os

professores questões relativas à educação, ele começou a elaborar reflexões sobre o

processo de desenvolvimento das crianças, combinando-as com questões do campo da

ética e com a observação do crescimento de seus próprios filhos.

Disposto a encontrar sustentação empírica para suas reflexões e entusiasmado

com a perspectiva experimentalista presente na Universidade de Chicago, Dewey

sugeriu a criação da Escola Laboratório. Como observou sua filha Jane Dewey, que

também era educadora,

“ela [a Escola Laboratório] deveria combinar princípios da psicologia do


desenvolvimento com princípios da associação cooperativa que ele
aprendera em seus trabalhos de Ética. Ao mesmo tempo que deveria libertar
as crianças do tédio intelectual da escola de sua própria infância” (Jane
Dewey, 1989).

Dewey partia assim de questões no âmbito da “psicologia contemporânea” 65 e de

seus estudos de Ética e tentava observá-las na prática educacional. Como ele mesmo

declarou a Katherine Mayhew e Anna Edwards (1936), “o objetivo era testar certas

idéias, que eram usadas como hipóteses de trabalho. Estas idéias eram derivadas da

filosofia e da psicologia, algumas que chamaria talvez de uma interpretação filosófica

da psicologia”(p. 464).

Rucker (1969) observa que um “desvio” importante dos pragmatistas de Chicago

foi o fato de nenhum deles considerar o psicológico como algo puramente individual.

Se o psicólogo aborda os processos mentais, da consciência ou comportamentais, do

ponto de vista do indivíduo, isto não significa que tais processos sejam necessariamente

individuais. Segundo Dewey, “a Psicologia é a tentativa de estabelecer em detalhes a

maquinaria do indivíduo considerado como um instrumento e órgão através do qual a

ação social opera” (Dewey apud Rucker, 1969:76).

De acordo com esta perspectiva, a escola deveria reconhecer certas tendências

ou impulsos das crianças e tomá-los como o alicerce do método educacional. Mas uma

questão se colocava: como utilizar essas tendências ou impulsos dos indivíduos como

forças de crescimento efetivo da vida em grupo? Isto é, como tornar possível o

crescimento individual junto com a formação de hábitos de cooperação social?

Dewey classificou os impulsos básicos em quatro tipos: social, construtivo,

investigativo e expressivo. O impulso social da criança se expressa no desejo de mostrar

para a família e para os outros as experiências de seu ainda limitado mundo. Trata-se de

um interesse auto-centrado (self-centered) e relacionado àquilo que lhe é imediatamente

próximo, mas que serve como chave de sua vida intelectual, pois é o impulso para dizer
65
Tanner (1997) ressalta que, “por psicologia contemporânea, Dewey entendia psicologia do
desenvolvimento, não behaviorismo” (p. 15). Sobre esta questão, ver no capítulo III o item 5. O
pensamento e a ação.
algo sobre as coisas, de mostrar suas idéias aos outros. Neste sentido, observou Dewey,

a linguagem em seu significado amplo é a mais simples forma de expressão social da

criança e o mais importante de todos os recursos educacionais. O segundo impulso é o

construtivo, aquele dirigido a fazer coisas e que encontra sua primeira expressão no

jogo, em movimentos ritmados, em gestos, no fazer crer; este impulso se torna

posteriormente mais definido através da moldagem de materiais, da construção de

formas tangíveis e mais permanentes. O terceiro é o impulso investigativo, que nasce

com freqüência da combinação do impulso construtivo com o social. Seguia-se aí a

hipótese de que as crianças fazem coisas justamente para ver o que acontece; ao

professor caberia então fazer com que uma atividade levasse a outra ainda mais

significativa. A quarto impulso é o expressivo. Como o investigativo, tal impulso parece

emergir dos impulsos de construção e de comunicação, como um refinamento e

expressão maior destes. Assim, utensílios e materiais necessários para expressar idéias

deveriam estar sempre disponíveis nas atividades (Dewey, em Mayhew & Edwards,

1936:41). Estes quatro impulsos ou tendências seriam as fontes primárias para a ação. A

questão do currículo a ser desenvolvido na Escola Laboratório pode ser vista associada

a uma busca de conhecimento sobre esses impulsos básicos, no sentido de utilizá-los no

processo de educação. Até então não havia experiências escolares atentas às condições

de ensino relacionadas a uma tal visão da criança.

A Escola Laboratório funcionou em seus dois primeiros anos (1896-1898) tendo

como guia apenas alguns princípios gerais formulados por Dewey. Ou seja, não havia

de fato nenhuma teoria da educação sistematizada, nem mesmo um plano de

organização específico para a escola.66 Neste sentido, a experiência acumulada nos seis

primeiros meses de funcionamento foi fundamental para a seqüência do trabalho. Tendo

como base os êxitos e particularmente as falhas nas tentativas, foi sendo construído um

66
Este foi um dos motivos por que optamos por tentar “reconstruir” como emergiu na obra de Dewey
aquilo que se chama de uma filosofia ou teoria geral da educação.
conhecimento da criança, de seu comportamento geral, de suas forças e interesses, ao

mesmo tempo em que se faziam revisões no currículo, na organização e na

administração escolar. Apesar das dificuldades, o propósito original da escola se

manteve: dar a cada criança a oportunidade e um método para fazer coisas que

realmente eram de seu interesse, orientando o processo de modo a ressaltar

continuamente o significado social das ações.

As experiências iniciais da Escola Laboratório serviram também para demarcar

alguns estágios no desenvolvimento ou crescimento das crianças. Embora eles não

pudessem ser separados rigidamente, certas necessidades e habilidades características

foram reconhecidas, servindo para a seleção de atividades e técnicas apropriadas para

cada fase do processo de crescimento. Três períodos foram demarcados: o primeiro, que

se estende dos quatro aos oito anos de idade, é aquele em que as conexões entre a escola

e a vida doméstica são mais necessárias. Neste estágio, o fazer e o dizer são formas de

ação importantes no processo de educação, que daria relativamente pouca atenção ao

pensamento reflexivo e às técnicas. No segundo período, entre os oito e os dez anos de

idade, a ênfase estava colocada no desenvolvimento de habilidades como ler, escrever e

usar os números. Mas estas não eram consideradas importantes em si mesmas, senão

como instrumentos necessários para ampliar a experiência da criança. Uma atenção

mais consciente era então exigida na forma de fazer as coisas, algo distinto do simples

fazer por fazer. Este é um período considerado crucial para se assegurar o conhecimento

de regras e técnicas. O terceiro estágio no desenvolvimento das crianças ia dos dez aos

treze anos. As técnicas já aprendidas podiam então ser aplicadas em investigações e

reflexões, levando ao reconhecimento do significado e da necessidade das

generalizações. Este último período marcaria já a passagem para a educação secundária,

com a diferenciação das diversas linhas de trabalho ou das distintas ciências (Mayhey &
Edwards, 1936:54). Dewey indicou a necessidade da escola adequar os conteúdos do

currículo aos estágios de desenvolvimento da criança:

“Nós temos que fixar a atenção primeiramente na criança para descobrir que
tipo de experiência é apropriada para ela, em um período selecionado; para
descobrir, se possível, o que constitui a característica especial da
experiência da criança naquele período; e por que aquela experiência toma
certa forma e não outra. Isto significa observar em detalhes que experiências
são mais significativas e têm maior valor para a criança, e que atitude esta
assume com respeito a elas. Nós procuramos pelo ponto ou foco de interesse
nessas experiências” (Dewey, 1972:172).67

Mas ao considerar os aspectos psicológicos do currículo, Dewey abriu espaço

para se pensar em algo mais do que nas estruturas gerais da mente. Com os saberes de

que dispunha, ele tentou esclarecer como seria possível realizar uma educação que

partisse da experiência do aluno, que utilizasse o seu interesse como mola propulsora,

mas que visasse ao mesmo tempo a formação de disposições permanentes, os hábitos.

Como veremos, a noção de hábito funciona como um elemento mediador entre o

individual e o social.

Algumas propostas da Escola Laboratório pareciam próprias para gerar

polêmicas e equívocos. Uma delas foi justamente a ênfase posta no interesse das

crianças. Vejamos o que disse sobre isso o próprio Dewey, em The School and Society

[1899]. Ele lembra da diferença a ser observada entre, por um lado, despertar o

interesse e, por outro, ser indulgente com o aluno em um dado processo. Ao comentar

uma atividade realizada com desenhos feitos com lápis e papel por crianças de 7 anos

de idade, Dewey ressalta que não se deve perder de vista o geral em um fenômeno

singular. A partir de uma discussão sobre as condições de vida dos seres humanos

quando ainda habitavam as cavernas, os alunos deveriam representar o tema em

questão. De um modo geral, comenta Dewey (1980), a criança gosta de se expressar

através de formas e cores; se ela segue indefinidamente nessa tarefa, seu crescimento

67
The psychological aspect of the school curriculum, 1897.
não é mais que acidental. Porém, se deixarmos que ela dê expressão aos impulsos e,

através da crítica, de questões e de sugestões, lhe for dada a “consciência” do que foi

feito e do que ainda precisa ser feito, o resultado será bem diferente. É importante

destacar nesta explicação a idéia de que se uma boa educação não se dá apenas pela

transferência de conhecimentos, também não pode ser confundida com o laisser faire.

O método de ensino e aprendizagem defendido por Dewey, a partir das experiências na

Escola Laboratório, distanciava-se da velha fixação de lições, mas estava associado a

um processo complexo de reconstrução da experiência dos alunos.

4. Teoria através da prática

O currículo adotado na Escola Laboratório da Universidade de Chicago tinha

como uma de suas referências básicas alguns princípios gerais da organização social dos

seres humanos. Praticamente todas as sociedades preparam alimentos, fabricam algum

tipo de tecido, costuram suas vestimentas e constroem habitações. A partir de atividades

seria possível apresentar às crianças um esboço da vida em sociedade; a escola deveria

ser uma espécie de “introdução à vida social”, onde os alunos seriam impregnados de

espírito de cooperação, ao mesmo tempo em que desenvolviam uma efetiva auto-

direção.

Realizar atividades em conjunto com outros estudantes, e não apenas ao lado

deles, significa que o trabalho de cada um pode contribuir para objetivos comuns.

Dewey considerava que a interação é a “chave” para a saúde da sociedade. Em um

sentido oposto ao desta visão, quanto mais isolados os indivíduos ou quanto mais

restritas as possibilidades de interação social, menos chance eles têm de desenvolver

hábitos de cooperação e interesses compartilhados (shared interests), e tais interesses


são elementos vitais para a construção daquilo que Dewey considerava como uma

sociedade democrática.68

A proposta pedagógica desenvolvida na Escola Laboratório tinha como princípio

que o aprender é uma experiência social. Este é um ponto fundamental para a nossa

discussão, pois diz respeito à questão central deste trabalho. Escutemos então o que nos

diz o próprio Dewey:

“O objetivo [da Escola Laboratório] não era “ajustar” os indivíduos às


instituições sociais, se ajuste significar preparação para adequá-los às atuais
condições da sociedade. Estas não são estáveis nem boas o suficiente para
justificar tal procedimento. O objetivo era ampliar e aprofundar o alcance
do contato e intercurso sociais, da vida cooperativa, de forma que os
membros da escola fossem preparados para fazer de suas relações sociais
futuras algo frutífero e valioso. Nota-se que o lado social da educação
estava posto em primeiro plano. Este fato é contrário a uma impressão sobre
a escola que prevaleceu desde a sua fundação e que muitos visitantes
levaram consigo. É a idéia que vem ocupando um grande espaço nas escolas
progressivas: ou seja, que elas existem no sentido de dar completa liberdade
aos indivíduos, e que elas deveriam ser “child-centered” (centradas na
criança) de forma a ignorar, ou no mínimo fazer pouco caso das relações e
responsabilidades sociais. Em intenção, qualquer que tenha sido a falha na
realização, a escola era “community-centered” (centrada na comunidade)”
(Dewey, em Mayhew & Edwards, 1936:467).

Assim, um dos objetivos da escola seria desenvolver a capacidade de interagir

com outros, isto é, viver em sociedade, pois o processo de desenvolvimento mental é

essencialmente social e se dá pela interação, pela participação no “jogo” social. Dewey

indicou que uma das críticas que se fazia à psicologia tradicional era por considerar que

o desenvolvimento ocorria basicamente no contato dos indivíduos com o meio físico ou

com as coisas.

Contudo, havia razões para que fosse considerada a idéia de que a Escola

Laboratório se dedicava basicamente a ampliar a liberdade pessoal e que advogava um

gritante individualismo. A explicação mais superficial era que os visitantes estavam

acostumados a uma imagem tradicional da escola, onde imperava a quietude e a

68
Ver capítulo IV.
passividade: “Inconscientemente, tais visitantes identificavam o fator “social” em

educação com subordinação à personalidade do professor e às idéias do livro-texto que

deveriam ser memorizadas” (Dewey, em Mayhew & Edwards, 1936:467). 69 Porém, o

que eles encontravam naquela Escola Laboratório de Chicago era um ambiente onde a

atividade e a mobilidade faziam parte das regras, e a imagem que ficava era então a de

um festival de liberdade e descontrole. Por haver poucas experiências e conhecimentos

acumulados, os professores e pesquisadores da Escola Laboratório tiveram que

descobrir por experimentação as tendências dos indivíduos, suas forças e necessidades,

tendo em vista determinados resultados. Neste sentido, o próprio Dewey reconheceu

que, principalmente nos dois primeiros anos, a Escola Laboratório deixou realmente

mais livre e visível o lado individual, tendo em vista acumular informações sobre

formas de ação (Dewey, em Mayhew & Edwards, 1936).

Na Escola Laboratório a idéia de um currículo integrado estava associada a duas

questões: a natureza do conhecimento e a experiência da criança. Em The School and

Society [1899], Dewey (1980) expôs sua critica à compartimentalização e à

estratificação do conhecimento em disciplinas isoladas. A hipótese que sustentava tal

crítica é que a separação rígida entre as diversas áreas do conhecimento pode criar

dificuldades para o aluno realizar no futuro conexões necessárias ao desempenho

profissional. A sugestão dada por Dewey parecia algo muito simples: se as matérias

pudessem ser desenvolvidas em conexão ativa e concreta com o mundo, elas poderiam

também ser correlacionadas entre si sem maiores problemas. Ou seja, se as matérias se

organizassem em torno de temas relativos à vida dos alunos - que é sua origem e

finalidade - a relação entre as partes do currículo se tornaria inevitável.

69
Dewey fazia algumas restrições ao uso do livro-texto. A dependência deste poderia fazer com que a
criança o considerasse como a principal, talvez a única, forma de obter informações, ao invés de
desenvolver o hábito de pesquisar.
Dando início ao processo de ensino e aprendizagem através de algo familiar às

crianças, como as atividades domésticas, a Escola Laboratório funcionava como um

estágio intermediário entre o lar e a sociedade, crescendo gradualmente de uma

instância para a outra:

“Todas as atividades feitas com necessidades básicas e contínuas da vida,


como abrigo, vestimenta e comida, tornaram-se o eixo do desenvolvimento
do currículo. Com esses elementos de unificação, toda a vida, seja em casa,
na escola ou na comunidade, era vista como uma só, e com o mesmo e
contínuo processo de mudança” (Mayhew & Edwards, 1936:24).

Segundo Dewey, o fato de tomar atividades domésticas como referência para o

desenvolvimento do currículo não significava que o propósito da escola fosse ensinar a

cozinhar, costurar ou construir, deixando de lado o desenvolvimento de habilidades

como ler, escrever e contar. A idéia era que estas habilidades emergissem gradualmente

das atividades que integravam o currículo. Ao invés de partir da teoria e vê-la aplicada

posteriormente, na Escola Laboratório a teoria vinha junto com a prática. A necessidade

de medir algo na oficina de madeira, por exemplo, sugeria a aprendizagem de

determinadas operações matemáticas, e não o contrário. Os livros e as habilidades para

ler, escrever e contar eram vistos como ferramentas, instrumentos de conhecimento. As

crianças aprenderiam a usar tais ferramentas como quaisquer outras. Neste sentido,

Dewey chegou a afirmar que nenhum esforço especial seria feito naquela escola para

que as crianças aprendessem a ler aos seis anos, sem que antes elas tivessem percebido

de alguma forma que necessitavam alcançar tal objetivo, dominar tal ferramenta:

“O ensino prematuro da leitura, no atual sistema escolar, envolve um


esforço indevido dos olhos e do sistema nervoso, toma o tempo de matérias
que têm um conteúdo positivo, empregando-o em estudo puramente formal
que a criança pode dominar com menor tensão e mais rapidamente quando
estiver pronta para isto” (Dewey, em Mayhew & Edwards, 1936:26)

A hipótese era que a criança deveria primeiro se familiarizar com o uso da

língua como um meio para descobrir coisas, que de outra forma permaneceriam
desconhecidas, e compartilhar com os outros aquilo que ela tinha descoberto. Assim, ela

poderia aprender a ler através de matérias como Ciência e História, e não

necessariamente em uma disciplina específica. Segundo esta visão, em um “genuíno

desenvolvimento intelectual”70 é impossível separar a obtenção do conhecimento de sua

aplicação: “O divórcio entre aprender e o seu uso é o mais sério defeito de nossa atual

educação”, declarou Dewey (Mayhew & Edwards, 1936:33). A ênfase posta pela

Escola Laboratório em atividades construtivas ou nos chamados trabalhos manuais

estava relacionada ao fato de que tais ocupações poderiam ser conectadas com a vida

dos alunos. Era também uma forma considerada eficaz de assegurar a atenção das

crianças, ao mesmo tempo em que se cultivava o espírito social através do trabalho e da

cooperação. Dewey defendia o uso das mãos como um instrumento para criar hábitos de

diligência e continuidade no trabalho, além de assegurar habilidade, destreza e senso de

construção. Neste sentido, ele pôde advogar com firmeza e tranqüilidade a importância

da inclusão nas escolas dos trabalhos manuais:

“Através de tais atividades a criança também treina os órgãos dos sentidos,


o tato, a visão, e adquire habilidade para coordenar mãos e olhos. Elas
proporcionam da mesma forma uma série de saudáveis exercícios e são
mais naturais para a vida da criança do que mantê-la continuamente quieta,
trabalhando com um livro ou engajada em alguma ação mais formal”
(Dewey, em Mayhew & Edwards, 1936:28).

A idéia de um currículo em desenvolvimento exigia dos professores muitos

conhecimentos específicos e criatividade em cada matéria, no sentido de gerar com os

alunos atividades que pudessem ser utilizadas para a apresentação dos conceitos

científicos. Por trás desta estratégia estava, como indicamos, a idéia de que a

aprendizagem de um conceito deve ter início com uma atividade.

70
A noção de desenvolvimento genuíno, opondo-se à de desenvolvimento artificial, está associada à
extensão com que a criança reconhece na escola relações semelhantes às que obtém fora dela. Dewey
utiliza esta noção tanto para o desenvolvimento intelectual quanto para o moral (Mayhew & Edwards,
1936:32).
Em The Psichological Aspect of the School Curriculum [1897] Dewey (1972)

indica que uma matéria pode ser considera sob dois aspectos: o lógico e o psicológico.

De um ponto de vista lógico, uma matéria é um corpo ou sistema de fatos tidos como

válidos e que se sustentam por certos princípios internos de relação. Sob este ponto de

vista, os fatos são dados como algo já descoberto, classificado e sistematizado; a

matéria (ou tema de estudo) é tratada de um ponto de vista objetivo e o que está em

jogo é se as teorias que servem de explicação se sustentam.

De um ponto de vista psicológico, a matéria é considerada enquanto um modo

de viver uma experiência. Neste sentido, a geografia, por exemplo, não é apenas um

conjunto de fatos e princípios que podem ser classificados e discutidos, mas um

caminho através do qual os indivíduos podem pensar e sentir o mundo, um país, uma

região, etc.. Para Dewey, é deste último ponto de vista que a matéria deveria ser

primeiro apresentada.

Ele considerava que um dos grandes problemas do ensino no final do século

XIX estava no fato das matérias do currículo serem selecionadas e determinadas, como

um todo e em seus vários estágios, tendo como referência apenas uma base lógica ou

objetiva, ao invés de se levar em conta o que ele chamou de “aspectos psicológicos do

currículo”. Os processos de ensino e aprendizagem só então começavam a ser analisado

pela perspectiva da criança, e não apenas como a transmissão de conhecimentos válidos

por si mesmos. Em 1897, após um ano de funcionamento da Escola Laboratório,

Dewey já reconhecia aquilo que ele chamou em The School and Society [1899] de “uma

revolução copernicana na educação”: o processo de transmissão do conhecimento,

através dessa instituição social chamada escola, teria que abandonar de certa forma a

perspectiva em que o professor e o conteúdo se encontram no centro do processo e

acima dos alunos. Dewey (1980) sintetiza suas críticas à “velha escola” observando que

nela o centro de gravidade estava fora da criança: “[Ele] estava no professor, no livro-
texto, em qualquer lugar que você queira, exceto nos instintos imediatos e nas

atividades das crianças” (p. 23). A “escola nova” teve como um de seus princípios

justamente a necessidade de se conhecer o processo de desenvolvimento das crianças

para adequar o ensino a este:

“Agora a mudança que se dá na nossa educação é o deslocamento do centro


de gravidade. É uma mudança, uma revolução, que não é distinta daquela
introduzida por Copérnico ao deslocar o centro astronômico da Terra para o
Sol. Nesse caso, a criança se torna o Sol em torno do qual giram os
instrumentos da educação; ela é o centro que os organiza” (Dewey,
1980:23).

Aparentemente, a análise de Dewey apenas trocava a base lógica, sobre a qual se

estruturava o currículo, por uma base psicológica. Mas ao indicar a necessidade de se

considerar como prioritário o aspecto psicológico, ele chamava a atenção para a relação

que as matérias devem manter com “a experiência que a criança já tem, que pode ser

transformada em um instrumento vital de aprendizagem”, e que até então era

praticamente desprezada (Dewey, 1972:171).71 Ele considera como experiência as

relações ou interações do indivíduo com o mundo, que inclui outros indivíduos. Neste

sentido, a experiência da criança que deve ser incorporada ao processo de ensino e

aprendizagem diz respeito, em última instância, a sua memória, a sua história.

Sobre a necessidade de captar os interesses das crianças para atividades

escolares, tema polêmico nas propostas de Dewey, ele repete em vários textos que isto

não significava que tais interesses estabelecessem o padrão final para o trabalho escolar.

Levar em conta os interesses das crianças significa que nenhum método de ensino pode

ser cogitado sem que as experiências dos alunos sejam consideradas: “Estes interesses,

experiências e impulsos nativos e atuais formam todos a força de uma alavanca com a

qual o professor deve trabalhar, com a qual ele tem de se relacionar ou fracassa

inteiramente” (Dewey, 1972:173). Os interesses funcionariam como sintomas


71
Foi justamente com uma discussão sobre a relação entre experiência e educação que Dewey, em
1938, tentou responder aos críticos e esclarecer os mal-entendidos sobre sua filosofia da educação com
o livro Experiência e Educação.
indicadores, um conjunto de signos que deveriam ser interpretados. O fenômeno da

falta de interesse, por exemplo, seria um indício de que o aluno não está sendo capaz de

controlar e dirigir sua experiência, como poderia fazer em outras circunstâncias.

Assim, quando Dewey coloca que o problema central do ensino é a

“reconstrução da experiência”, ele indica que o método deve relacionar a matéria à

vida, deve partir da experiência e reconstruí-la:

“Somente quando o indivíduo tenha passado por certas experiências, que ele
reconhece como de vital importância, ele estará preparado para considerar o
ponto de vista lógico e objetivo, pronto para enfrentar e analisar os fatos e
princípios envolvidos” (Dewey, 1972:168).72
Segundo Dewey, ao trabalhar com crianças o professor deve ter como referência

fundamental o árduo início do processo, pois há que se conectar a esfera da experiência

dos alunos ou o escopo de experiências que eles podem facilmente captar com o

conteúdo da matéria. Assim, o que ele chamava de “aspecto psicológico do currículo”

diz respeito aos conhecimentos necessários para que o professor estabeleça relações

entre as experiências das crianças e as matérias; relações que se referem não apenas à

criança em geral, mas as suas características específicas, como a idade, gênero, a casa,

os contatos sociais etc. (Dewey, 1972:170). Desta perspectiva, temos que reconhecer

que não há fatos ou matérias relevantes em si. Além disso, um dado aspecto da

realidade pode ser abordado de distintas formas, de acordo com aquilo que se tem em

vista. Um mesmo território, por exemplo, pode ser analisado do ponto de vista da

Botânica, da Geografia ou da História.

Na Escola Laboratório, era tarefa fundamental dos professores realizar

atividades (cultivar um jardim ou visitar uma fazenda, por exemplo) que servissem para

apresentar os conceitos através de uma gradual diferenciação das matérias. Desta forma,

os conteúdos das atividades seriam aos poucos incluídos no conjunto de conhecimentos

sistematizados (Tanner, 1997:45). Para Dewey, a criança parte de uma perspectiva mais

72
The psychological aspect of the school curriculum, 1897.
geral e só aos poucos vai abstraindo o específico. Ele considerava que a matéria

estudada só funciona de uma forma ativa se o aluno partir de questões e tentar resolvê-

las no processo de aprendizagem. O fundamento desse percurso se encontra na visão

pragmatista de que o conhecimento é o produto da relação entre uma questão que surge

e a atividade que a soluciona ou explica. Neste sentido, era preciso criar com os alunos

uma consciência da necessidade de se levar adiante o processo de investigação, e o

interesse seria o motor desse processo. Supunha-se que todas as crianças são

naturalmente pesquisadoras (inquirers) e um dos propósitos da escola deveria ser

justamente utilizar a curiosidade e infundir o senso prático do método de investigação:

“Foi essa idéia em particular - de que o método experimental pode ser


aplicado a vários tipos de problemas - que Dewey estabeleceu como uma
abordagem revolucionária para a educação: a idéia de que pensar é resolver
questões. Para Dewey, investigar, pensar e resolver problemas eram o
mesmo” (Tanner, 1997:83).73

Temas da época, como o crescimento vertiginoso de Chicago ou o problema do

abastecimento d’água daquela cidade, foram utilizados para gerar discussões que

abrangiam várias disciplinas. Outra estratégia era combinar atividades. Conforme

alguns relatos dos professores apresentados por Tanner (1997), uma aula de culinária

podia ser realizada junto com uma aula de Francês. Trabalhos na oficina de metais

serviam tanto para uma aula de ciência quanto para uma de história. Estas combinações

estavam relacionadas com a hipótese de que a conexão entre atividades e matéria é uma

maneira eficiente de se estabelecerem correlações na aprendizagem

5. Um tema organizador

Nos dois primeiros anos de funcionamento, entre 1896 e 1898, a Escola

Laboratório enfrentou dificuldades para empregar a teoria geral da educação que vinha

sendo elaborada por Dewey e os professores no curso de sua própria aplicação. Um

73
Os grifos são meus.
tema geral (organizing theme) foi então sugerido, tornando-se um fator importante para

o desenvolvimento e a organização de um currículo integrado. Dewey escolheu o tema

da civilização. A idéia era que as crianças se engajassem em atividades básicas das

quais elas dependiam e conhecessem as diferentes formas que essas atividades

assumiram ao longo do tempo no processo civilizador. Assim, “elas seriam levadas a

analisar a complexa estrutura social que existe na produção de casas, alimentos, etc.,

das cavernas pré-históricas, passando pela Idade da Pedra e dos Metais, até à civilização

atual” (Dewey, 1972: 231). 74 O “tema organizador” funcionaria em dois sentidos: no

que se refere ao desenvolvimento da humanidade (vida social, conhecimento, técnica) e

no sentido do desenvolvimento das próprias crianças (habilidade, conhecimento, uso de

suas capacidades).

Um dos problemas desta estratégia era a falta de foco do referido tema, pois

inúmeras atividades poderiam ser relacionadas à idéia de civilização. Conforme a

análise de Tanner (1997), prevaleceu aí o espírito de liderança de Dewey, que

aproveitou a criatividade dos professores e alunos da Universidade de Chicago

empenhados na organização de um currículo para aquela escola experimental. Daí

surgiu a idéia das ocupações (social occupation), consideradas por Dewey como

elemento de unificação do currículo.

Através das social ocupations Dewey pensava reproduzir em miniatura

atividades básicas da vida social, tornando possível o contato gradual das crianças com

a estrutura, materiais e modo de funcionamento de uma sociedade e, por outro lado,

criando condições para que elas se expressassem através das atividades, exercitando o

controle de suas próprias forças. Um currículo assim organizado parece tentar criar uma

ponte entre os fins social e individual, que para Dewey era o problema central a ser

resolvido em qualquer teoria educacional. Juntando história, ciência e ação as crianças

74
Plan of organization of the University Primary School, 1895(?).
poderiam aprender como a sociedade vem se desenvolvendo para ser o que é. Mas nem

todas as atividades poderiam ser utilizadas de forma prática em uma escola de ensino

fundamental, para ilustrar como e em que contextos as descobertas e invenções

emergiram e se desenvolveram progressivamente no curso da história. Para isto,

algumas delas pareciam ter um maior alcance, no sentido de mostrar esse processo e

estimular a curiosidade das crianças. A atividade têxtil foi uma das escolhidas. Ela

servia claramente a uma das necessidades do ser humano (vestir-se), desenvolveu-se

progressivamente desde os primórdios da civilização e poderia gerar estímulos nas

crianças para uma abordagem histórica. Elas acompanhariam o processo de

desenvolvimento (material, social, técnico e científico) dessa atividade, desde as

condições mais primitivas até às moderna fábricas com seus sofisticados maquinários e

complexas relações sociais.

Esta forma de organização do currículo de fato guarda semelhanças com a já

referida culture-epochs theory. Contudo, o que se tentava reconstruir na Escola

Laboratório não eram exatamente as fases do curso da história, senão etapas na forma

como o ser humano adquiriu controle do mundo através do uso da inteligência, etapas

no desenvolvimento do conhecimento (Kliebard, 1986:84).

Enfim, o currículo na Escola Laboratório tinha em perspectiva duas dimensões

básicas: a dimensão das crianças (o aspecto psicológico) e a organização lógica do

conjunto de matérias (língua, literatura, música, história, matemática, ciências naturais,

educação física, etc.). Os professores estabeleciam em reuniões semanais as conexões

possíveis entre as matérias que seriam estudadas, e Dewey participava desses encontros

em que se dividiam insights e experiências (Tanner, 1997: 48).75 Como já foi indicado,

a relação entre as matérias foi algo objetivamente proposto por Dewey tendo em vista a

idéia de um currículo integrado. “[Ele] começou com uma concepção total em mente ao

75
Tanner fez estes comentários a partir da análise do boletim University Record, em que se encontram
registrados aspectos do funcionamento daquela Escola Laboratório.
invés de tentar combinar duas ou três matérias” (Tanner, 1997:58). Para Dewey, o

processo de integração do currículo deveria ser regular e progressivo. Embora os

professores da Escola Laboratório fossem especialistas e a escola estivesse organizada

em departamentos, o currículo não era compartimentalizado, pois as matérias se

integravam justamente através do tema geral e pela contínua troca de experiência entre

os professores.76 Em suas reuniões periódicas eles podiam discutir se as atividades

estavam servindo para reforçar a aprendizagem integrada das matérias ou se tinham

falhado nesse propósito (Tanner, 1997:59).

6. Cooperação e reflexão

Os professores da Escola Laboratório tinham que elaborar relatórios semanais de

suas atividades; era a oportunidade de organizar o pensamento e refletir sobre o que

vinham fazendo. Estes relatórios se transformaram em um rico material de pesquisa. 77

Pela análise que fez deles, Tanner (1997) afirma que os professores fornecem provas

convincentes de que, sob certas condições, podem efetivamente desenvolver um

currículo. Contudo, parece pertinente a distinção estabelecida por essa pesquisadora

entre autonomia profissional (professional autonomy) e liberdade intelectual

(intelectual freedom). Para ela, a autonomia profissional não é suficiente para o

desenvolvimento de um currículo integrado, se cada professor seguir simplesmente o

seu próprio caminho. Esta perspectiva era justamente o que Dewey queria evitar. Mas,

por outro lado, não era seu intuito criar amarras para os professores. O problema que

76
A troca do professor generalista (all-round teacher) pelo especialista em cada disciplina foi uma das
primeiras reformulações empreendidas na Escola Laboratório. O rápido desenvolvimento do conheci-
mento científico e o processo de especialização em todos os campos disciplinares tornavam o trabalho
do generalista inadequado para desenvolver com as crianças atividades voltadas para a introdução do
método científico. É como se faltasse ao professor generalista conhecimentos mais aprofundados das
diversas matérias que ele tinha que ministrar. “Dewey não tinha nenhuma ilusão de que um professor
sem conhecimento especializado em um dado campo pudesse desenvolver conceitos e atitudes positivas
das matérias” (Tanner, 1997:100)
77
As linha gerais desse relatórios ou boletins semanais (weekly reports) eram as seguintes: o que
estavam estudando; a razão de estudar isto ou aquilo; o modo como o objetivo foi ou não alcançado.
Vários trechos desses relatórios estão reproduzidos no livro de Tanner (1997).
então se colocou para Dewey foi o seguinte: que liberdade e responsabilidade deveriam

ter os professores na seleção dos temas das matérias e no modo como estes seriam

apresentados às crianças? Sua resposta foi que deveriam ser evitados os extremos a que

fica exposta uma escola. De um lado, a permanente improvisação, que pode destruir a

continuidade de um projeto; de outro, a confiança na definição de fins e métodos com

os quais se supõe que os professores se conformem (Dewey, em Mayhew & Edwards,

1936:366).

Dewey optou pela liberdade intelectual (intellectual fredom). Se fosse necessário

errar, que o erro estivesse sempre na direção de mais liberdade. Porém, a liberdade a

que ele se referia estava associada ao uso criativo da mente quando engajada no

desenvolvimento de um projeto. Os professores tinham liberdade para pôr em prática o

currículo que estava sendo organizando e deveriam desenvolver ao máximo os seus

próprios recursos. No centro dessa concepção de liberdade estava a idéia de

“responsabilidade intelectual”. Se os professores deveriam ser ao mesmo tempo

independentes e estar comprometidos com o seu trabalho, sua preparação profissional

teria que cultivar hábitos que dessem expressão à “responsabilidade intelectual”

(Tanner, 1997:72). Neste sentido, uma importante lição parece ter sido aprendida por

Dewey na Escola Laboratório: não se deve considerar algo garantido que os professores

tenham a base intelectual adequada para utilizar efetivamente uma nova abordagem de

ensino.

No caso em análise, o que se tinha em mente era algo objetivo e prático:

experimentar formas criativas de comunicação que pudessem substituir a ultrapassada

recitação de conteúdos e organizar a escola como uma comunidade. Tentar expandir

hoje em dia o repertório utilizado no processo de ensino e aprendizagem nas escolas,

para incluir a participação, a observação, a análise, a experimentação, a dramatização, a


construção, artes, trabalhos manuais, etc., é de uma forma ou de outra adotar práticas

que nos remetem à Escola Laboratório da Universidade de Chicago.

Um princípio de organização cooperativa foi adotado e servia tanto para o

corpo docente quanto para os alunos. Segundo Dewey, não seria correto exigir dos

alunos aquilo que os próprios professores não conseguem realizar. A escola funcionava

com um tipo de estrutura organizacional em que a cooperação e a troca sistemática de

experiências entre os professores era o substituto do que se chama de supervisão. A

despeito de todos os problemas enfrentados, principalmente com o crescimento da

escola, Dewey declarou o seguinte sobre essa forma de organização:

“Experiência e reflexão me convenceram de que este princípio é


fundamental na organização e administração escolar. Não há substituto para
ele, e a tendência para aumentar a autoridade do superintendente, do diretor
ou supervisor é ao mesmo tempo causa e efeito do fracasso de nossas
escolas em dirigir seu trabalho na base de uma organização social
cooperativa dos professores” (Dewey, em Mayhew & Edwards, 1936:371).

Por trás dessa visão estavam as idéias e a ação de Ella Flagg Young. Esta

professora, que foi também orientanda de John Dewey, advogava o respeito e a atenção

ao processo intelectual de cada membro da escola, apostando que os professores são

capazes de refletir sobre o seu trabalho, individual e coletivamente, e assim podem

modificar adequadamente o curso de suas ações.

Ella Flagg Young78 era mais velha que Dewey e, embora não tivesse nenhum

título acadêmico quando chegou à Universidade de Chicago, contava com muitos anos

de experiência docente e como dirigente no sistema de educação da cidade de Chicago.

Ela foi admitida no doutorado daquela universidade e concluiu sua pesquisa em 1900,

ao mesmo tempo em que trabalhava como coordenadora geral da Escola Laboratório.

Sua tese, publicada em 1906 pela editora da Universidade de Chicago com o título de

Isolation in the school, criticava a divisão hierárquica dentro da escola, principalmente


78
Seria preciso uma outra tese para esclarecer as relações entre Mrs.Young, John Dewey e as pesquisas
em educação realizadas em Chicago naquela época. O que apresento a seguir serve apenas para indicar
a importância de algumas idéias dessa professora para a filosofia da educação de Dewey.
entre administração, supervisão e os professores. Para Young, “a escola não pode

colocar a questão do desenvolvimento de uma formação para a cidadania enquanto os

professores ainda são segregados em duas classes, como os cidadãos em uma

aristocracia” (Young apud Tanner, 1997:95). As duas classes a que Young se refere são

as seguintes: a dos administradores e supervisores e a dos professores. Suas críticas ao

sistema de organização da escola parecem bem coerentes com a perspectiva ética que

Dewey imaginava para educação. Segundo Tanner (1977), Dewey aprendeu com

Young a transpor concepções filosóficas para seu equivalente empírico no campo da

educação:

“Foi com ela que eu aprendi que liberdade e respeito pela liberdade
significam considerar o processo de indagação e reflexão dos indivíduos, e
aquilo que ordinariamente passa por liberdade - liberdade de restrições
externas, espontaneidade na expressão, etc. - só tem significado em conexão
com as operações do pensar” (Dewey apud Tanner, 1997:111).

Mas essas idéias de Young não se tornam problemáticas em uma administração

com uma estrutura rígida e hierarquizada? Neste sentido, é importante pensar na relação

entre organização da escola e currículo, pois uma organização escolar inadequada pode

simplesmente anular tentativas de reformas profundas no currículo. No caso da Escola

Laboratório, se os professores deveriam proporcionar aos alunos experiências que os

levassem a desenvolver hábitos de responsável auto-direção e de cooperação social,

eles mesmos tinham que trabalhar dentro de uma linha participativa e cooperativa. Nos

primeiros anos de funcionamento daquela escola a cooperação foi basicamente de

natureza prática. Mas observações do próprio Dewey nos levam a crer que a cooperação

deveria ter, não obstante, uma acentuada qualidade intelectual na troca de experiências

e idéias. Ele reconheceu que muitas falhas na organização da Escola Laboratório

ocorreram devido ao fato de que a cooperação entre os professores era demasiado

“prática”, e não o suficiente em conteúdo (Mayhew & Edwards, 1936:371).


A idéia de uma “comunidade do saber” (learning community) parece refletir

bem a ênfase dada por Dewey ao caráter social do aprender. Assim, o tipo de

organização adotado na Escola Laboratório visava substituir um modo de interação

voltado para a competição por uma vida escolar fundamentada na cooperação.

No que diz respeito ao planejamento, não é de se estranhar - tratando-se de uma

escola laboratório organizada por um filósofo da educação entusiasmado com a

perspectiva experimentalista - que a opção tenha sido por um processo contínuo de

planejamento, e não pelo desenvolvimento de objetivos rígidos e operações previamente

estabelecidas. Um exemplo dessa flexibilidade foi a mudança, logo no início do

funcionamento da escola, de professores generalistas para especialistas em cada

disciplina. Isto ocorreu devido às conclusões retiradas da própria experiência

empreendida.

7. As mãos e a mente

Como foi comentado no capítulo I, a introdução no sistema escolar dos

chamados trabalhos manuais (manual arts, household arts ou vocational training) se

tornou uma questão polêmica nas discussões sobre educação no final do século XIX nos

Estados Unidos. Alguns advogavam essa forma de ensino porque seria necessário

treinar formalmente os trabalhadores para o sistema industrial (Bowles e Gintis, 1982).

Embora tivesse uma visão distinta desta questão, como se pode ler em The School and

Society79 e em outros textos, Dewey fez uma ampla defesa da incorporação dos

trabalhos manuais ao currículo escolar, gerando controvérsias que mesclam questões

filosóficas e políticas.

79
Em 1899, no terceiro ano de funcionamento da Escola Laboratório, Dewey proferiu três conferências
para os pais dos alunos, com o propósito de explicar as idéias gerais presentes naquela escola e o que
ele entendia por “New Education”, além de tentar refutar certas críticas. À transcrição dessas
conferências foram adicionados outros textos que formam o livro The School and Society.
A discussão nos remete a um tema que perpassa a história do Ocidente e que em

última instância nos remete a Platão: a hierarquia em que o trabalho intelectual aparece

como superior ao trabalho manual, sendo este delegado às classes subalternas da

sociedade. Para tal distinção se encontram justificativas no campo filosófico e elas vêm

sendo utilizada ao longo de mais de dois mil anos. Contudo, Dewey se opunha a esta

perspectiva. Ele construiu sua crítica partindo da história das idéias no Ocidente, desde

a Grécia antiga até as descobertas da psicologia de seu tempo.

Dewey considerava que o antagonismo entre prática e teoria, ação e inteligência,

saber e fazer teve origem nas mesmas condições sociais que geraram a oposição entre

“trabalho para ganhar a vida” e o “gozo de lazeres”. A esta separação entre as atividades

física e mental se vinculam dois modos de educação, a utilitária e a liberal. A utilitária

visa a preparação para profissões “práticas”, em que nem sempre há por parte do

educando um interesse ativo pelos fins a que obedece a ocupação. A educação liberal

seria aquela em que o saber é considerado como um fim em si mesmo.

Na base desse debate se coloca a distinção entre o mundo sensível e o mundo

inteligível, que eqüivale de certa forma à separação entre experiência e razão. A

oposição entre estes dois termos é relacionada por Dewey (1959) ao fato da filosofia

ateniense, principalmente a elaborada por Platão, ter começado como uma crítica aos

padrões de conduta de sua época: “A situação tendia a pôr em discussão a existência ou

não existência de qualquer coisa constante e universal nos domínios da natureza e da

sociedade” (p. 289). Na busca por algo que substituísse as incertezas de uma sociedade

que se transformava, a razão foi eleita o verdadeiro guia, enquanto elemento

supostamente estável e permanente. A experiência () estava associada ao

trabalho dos órgãos dos sentidos, às impressões que se conservam na memória;

vinculava-se também aos costumes, ao saber adquirido na prática, mas não baseado no

conhecimento dos princípios. Inferia-se então que a razão era algo distinto e superior à
experiência: “A razão era a faculdade com que se apreendiam o princípio e a essência

universais (Dewey, 1959:289). Apesar de reconhecer as grandes divergências entre

Platão e Aristóteles, Dewey afirmou o seguinte:

“Eles concordavam em identificar a experiência com os interesses


puramente práticos, e, por conseqüência, tendo como alvo os interesses
materiais e como órgão o corpo humano. Por outro lado, o conhecimento
existia por si mesmo, livre de associações com a prática, e tinham como
fonte e órgão um espírito perfeitamente imaterial; as suas relações eram
com interesses espirituais ou ideais” (Dewey, 1959:288).

Esta clivagem marcou profundamente alguns aspectos da educação escolar no

Ocidente, que são visíveis ainda hoje: a desconfiança e mesmo o desprezo pelas

impressões sensoriais, a desatenção com o corpo, a visão de que o conhecimento é tanto

mais alto quanto mais se aplique ao exame das próprias idéias, a superioridade atribuída

à lógica e à matemática em comparação com os saberes aplicados, o menosprezo pelas

artes e ofícios como meios de educação intelectual (Dewey, 1959). Tudo isto se

relaciona a uma teoria do conhecimento em que razão e experiência são consideradas

separadamente e como termos opostos.

Com o advento da ciência moderna e do método experimental, operou-se uma

transformação significativa dessa teoria. A razão deixava de ser considerada uma

faculdade remota e ideal, passando a ser vista como um instrumento por meio do qual a

ação se torna fecunda em significados; a experiência já não tinha um sentido restrito

apenas à prática e aos costumes, mas se tornava um fator vital na construção do

conhecimento: “Quando o ato de tentar ou experimentar deixa de ser cego pelo instinto

ou pelo costume, e passa a ser orientado por um objetivo e levado a efeito com medida

e método, ele torna-se razoável - racional” (Dewey, 1959:300). Esta seria a noção de

experimentação ou “experiência ordenada”, de Francis Bacon (1561-1626). Para

Dewey, a grande lição do método experimental é a de que os homens, se quiserem

descobrir algo, necessitam da ação. Isto seria uma prova de que a atividade pode ser
intelectualmente fecunda e em nada inferior ao puro pensar. Pode parecer evidente que

tal visão deveria ter posto em cheque a oposição entre estudos puramente intelectuais e

estudos práticos. Mas não foi exatamente o que aconteceu.

Enfim, a inserção dos trabalhos manuais na escola era considerada pelos

pragmatistas de Chicago como muito mais do que uma forma de treinamento mecânico:

“Eles [os trabalhos manuais] eram uma parte necessária do processo de


desenvolvimento da inteligência do estudante. Intelecto não é uma
faculdade mental isolada, mas uma função corporal; e parte do
funcionamento do intelecto é coordenação do corpo, relação entre mãos e
olhos, habilidade para moldar e manipular materiais com algum propósito.
A defesa do ensino vocacional nas escolas públicas vem diretamente de uma
rejeição do dualismo corpo-mente. Educação é o desenvolvimento orientado
de funções ativas do organismo humano, funções estas que são ao mesmo
tempo físicas e mentais” (Rucker, 1969:98).80

Para Dewey e Mead, a segregação entre estas duas formas de ensino era um

poderoso meio de perpetuar as diferenças entre as classes econômicas e sociais. Por

terem sido consideradas por muito tempo como atividades destinadas às classes

subalternas, os trabalhos manuais encontravam resistência. A defesa de sua introdução

nas escolas foi também uma tentativa por parte dos pragmatistas de Chicago de fazer

valer a idéia de uma “escola nova” para todos os americanos.

Se até então havia uma nítida e consentida distinção entre, por um lado, a

educação liberal ou para a mente e propedêutica ao ensino superior e, por outro, a

educação vocacional ou para o trabalho, Dewey empreendeu no campo educacional

(com o auxílio de argumentos da crítica filosófica e da psicologia) uma luta importante

para refutar hipóteses que davam sustentação à referida hierarquia. É neste ponto que a

insistência na continuidade entre o teórico e o prático ganha importância:

“A inteligência é concebida como um conjunto de hábitos, não um estoque


de idéias; uma habilidade para lidar com o que se confronta com você, não
uma faculdade de sempre dar a resposta esperada; um senso de proporção e

80
Os grifos são meus.
do relativo valor das coisas, não um exato conhecimento de caminhos
aceitáveis” (Rucker, 1969:99).81

De acordo com Dewey, as discussões sobre a “nova educação” deveriam partir

de uma visão ampla, porque as modificações nos currículos e métodos de educar são

produtos das transformações sociais e também tentativas de satisfazer as demandas da

sociedade. Se a conexão entre a marcha geral das transformações e a “nova educação”

pudesse ser feita, esta perderia o seu caráter isolado, deixaria de ser concebida como

algo que procedia apenas de engenhosas mentes de pedagogos lidando com certas

crianças e apareceria como parcela da evolução social (Dewey, 1980:6).

Assim procedendo, a primeira grande questão que é levada em conta por Dewey

é o processo de industrialização, a aplicação da ciência (tecnologia) que utiliza em

grande escala as forças da natureza. Junto a este processo, milhões de pessoas foram

deslocadas para as cidades, abandonando antigos hábitos de vida. É importante esta

alusão à industrialização e à urbanização porque, como já indicamos, os Estados Unidos

e a cidade de Chicago em especial estavam sendo profundamente afetados por ambos os

processos no final do século XIX. Neste contexto, indagava Dewey, por que a educação

escolar não seria também atingida?

Antes do sistema industrial emergir com toda a sua força, a família e a

vizinhança eram elementos importantes na comunidade enquanto agências de

socialização. Em muitos lugares, os suprimentos de comida, vestuário, móveis e

materiais de construção eram produzidos na própria região. As crianças podiam ser

gradualmente iniciadas em atividades domésticas e começavam a aprender fazendo

(learning by doing). Segundo Dewey (1980), “não podemos subestimar o fator de

disciplina e formação do caráter envolvido nesse tipo de vida; a formação de hábitos de

ordem e diligência e a idéia de responsabilidade, de obrigação de fazer algo, de

81
Esta noção de inteligência se aproxima daquilo que Bourdieu chama de “razão prática”, “senso do
jogo” ou “senso prático”.
produzir” (p. 8). Este é um ponto importante a ser enfatizado porque, segundo Dewey

(1980), se a memória e certa disciplina podem ser desenvolvidas através de lições de

matemática, por exemplo, “nenhum treinamento dos órgãos dos sentidos na escola,

introduzido com o objetivo de adestrar, pode competir com a atenção e plenitude do

“senso de vida” que vem através do contato e participação diários em ocupações que

são familiares” (p. 8). O problema é que a indústria e a divisão do trabalho tinham

praticamente eliminado tais atividades domésticas.

Como foi indicado, Dewey argumentava que a “nova educação” deveria

valorizar a atividade e introduzir no currículo os trabalhos manuais. Entre as razões

então assinaladas para justificar essa introdução estavam a possibilidade de despertar

nas crianças o interesse e a atenção, mantendo-as alertas e ativas; a oportunidade de

exercitar a prática da cooperação e também de prepará-las para obrigações práticas que

teriam que desempenhar no futuro em suas próprias vidas. Tais razões não são

subestimadas por Dewey, mas sua argumentação ia além. O que nos interessa aqui

reforçar é que, para ele, trabalhar em madeira ou em metal, tecer ou coser deveriam ser

considerados métodos de vida (methods of life), e não exatamente estudos específicos:

“Temos que concebê-los [os trabalhos manuais] em seu significado social,


como um tipo de processo pelo qual a sociedade se mantém, como
instâncias que familiarizem as crianças com as necessidades vitais da vida
comunitária, e como um caminho pelo qual essas necessidades tenham se
tornado possíveis pelo incremento da habilidade humana; enfim, como
instrumentos através dos quais a escola pode ser feita uma genuína e ativa
forma de vida comunitária, ao invés de um lugar isolado em que se aprende
a lição” (Dewey, 1980:10).82

Esta defesa dos trabalhos manuais estava associada a uma crítica à determinada

visão da educação hegemônica no Ocidente:

“É uma educação quase inteiramente dominada por uma concepção


medieval de aprendizagem. É algo que apela em sua maior parte
simplesmente aos aspectos intelectuais de nossa natureza, ao nosso desejo
de aprender, de acumular informações e de ter controle dos símbolos da

82
Os grifos são meus.
aprendizagem; não aos nossos impulsos e tendências para fazer, criar,
produzir, seja em forma de arte ou de algo útil”(Dewey, 1980:18).

Algumas implicações dessa concepção acima descrita e tantas vezes criticada

por Dewey podem ser vistas até hoje na divisão hierárquica entre “cultured” people e

“workers” ou na rígida separação entre teoria e prática (Dewey, 1980:18). Ele também

chamou a atenção para o fato de que em grande parte dos seres humanos o interesse

teórico não é dominante, e em muitos casos, quando esse interesse é despertado, as

condições sociais impedem a sua adequada realização.

Para ilustrar a distância então existente no sistema escolar entre a idéia de

aprendizagem como absorção de conteúdos e como participação ativa em um processo

de construção, Dewey narra a seguinte história ocorrida quando da montagem da Escola

Laboratório. Ele procurava o mobiliário adequado às atividades que as crianças

deveriam desenvolver na escola e ouviu a seguinte exclamação de um comerciante de

material escolar: “I’m afraid we have not what you want. You want something at which

the children may work; these are for listening” (Dewey, 1980:21). A diferença posta aí

entre trabalhar (work) e ouvir (listening) não parece ser um mero jogo de palavras.

Dewey toma esta história para ilustrar a discussão sobre um certo modelo de escola, em

que quase tudo estava desenhado para que os alunos ouvissem e assimilassem os

conteúdos já prontos que neles eram depositados.83

Outra observação relevante diz respeito ao número de alunos e ao modo como as

cadeiras estavam dispostas em sala de aula: em filas e reunidas em grande número,

como um agregado de unidades consideradas de modo uniforme e com poucas chances

para ajustes, conforme as variadas demandas (Dewey, 1980:23). Dewey descreve com

detalhes e questiona o que seria um modelo disciplinar de escola. Falo de disciplina

aqui como sinônimo de técnica específica de dominação, sujeição e produção.


83
Não utilizo o verbo depositar por acaso, mas para lembrar que, 60 anos depois dessas lições de
Dewey, o educador brasileiro Paulo Freire retomou, em outro contexto e com uma forte ênfase na
“conscientização” dos alunos, a crítica a um modelo “bancário” de educação.
Uniformidade, regularidade, divisão do espaço e multiplicação do tempo eram algumas

das características de um modelo de organização que foi amplamente utilizado em

escolas, fábricas e prisões (Foucault, 1987).84

Vale ressaltar que, no caso do pragmatismo de Chicago, a defesa do learning by

doing parte da crítica a certos dualismos da filosofia e tem implicações nos campos do

conhecimento e da política. Ou seja, a abrangência da mudança de perspectiva é bem

maior. Para o que estamos tentando demonstrar, a questão das ocupações na escola

serve para ilustrar também a possibilidade de se criar um maior vínculo entre

desenvolvimento individual e integração social.

8. Educação, ética e cidadania

Uma das idéias importantes na organização da Escola Laboratório da

Universidade de Chicago era que o desenvolvimento intelectual das crianças não

deveria ocorrer separado da educação moral ou formação do caráter. Considerava-se

que a escola é capaz de desenvolver hábitos que predispõem as crianças para

determinada conduta. Segundo Dewey, o caráter se expressa no conjunto ativo de

hábitos:

“Não estivessem todos os hábitos em atividade contínua e influenciando


todo ato, não poderia existir tal coisa que se denomina caráter; existiria,
sim, simplesmente, um feixe de atos desconexos e isolados. Caráter é a
interpenetração de hábitos. Se cada hábito existisse em um compartimento
estanque e em atividade sem afetar ou ser afetado por outros, caráter não
existiria, isto é, a conduta não seria uniforme, mas simplesmente uma
justaposição de reações incoerentes e situações isoladas” (Dewey, 1988:29)

A escola tradicional que estava sendo questionada por Dewey tinha como núcleo

de sua dinâmica a transmissão de conhecimentos teóricos. Mas no que diz respeito aos

princípios éticos, ele supunha que era pouco consistente transmitir teorias sobre os bons

costumes ou teorias morais: “Não há nada na natureza das idéias sobre moralidade, nas
84
Em sua tese de doutorado sobre Anísio Teixeira, Mendonça (1993) alerta para a crítica de Dewey ao
modelo fabril de escola.
informações sobre honestidade, pureza ou bondade que converta tais idéias em bom

caráter ou boa conduta” (Dewey apud Tanner, 1997:33). A formação do caráter ou a

educação moral deveria permear todos os aspectos do currículo e da vida escolar. Isto é,

a formação moral estaria associada à prática, à experiência, à dinâmica social da escola:

“Os valores sociais são abstratos até que eles tomem parte e se manifestem
na vida dos alunos. Temos que perguntar, portanto, o que eles significam
quando traduzidos em termos de comportamento dos indivíduos... Temos
que considerar a criança como agente (agent) ou executante (doer), e os
métodos pelos quais ela reproduz em sua própria vida os conteúdos da vida
social” (Dewey, 1972:76).85

Para Dewey, considerar a educação moral como o ensino sobre a virtude é

manter uma visão estreita do próprio processo de aprendizagem. Ele afirma que não

deve haver dois conjuntos de princípios éticos ou duas formas de teoria ética, uma para

a vida dentro da escola e outra para fora dela. Porém, assinala que toda teoria ética tem

duas faces, pois ela pode ser considerada de dois diferentes pontos de vista, um social e

outro psicológico. Trata-se de uma distinção importante, pois para se abranger toda a

esfera da conduta é necessário estar atento a esses dois aspectos. Isto acontece porque

um indivíduo é sempre um ser social e, ao mesmo tempo, a sociedade é uma sociedade

de indivíduos. Assim, não há o indivíduo por si mesmo, pois ele vive em, para e por

uma sociedade. Por outro lado, uma sociedade não existe exceto nos e através dos

indivíduos que a constituem (Dewey, 1972:55). Desta perspectiva, uma questão clássica

da ética - dizer a verdade, por exemplo - pode ser abordada tanto de uma perspectiva

social quanto psicológica. Esta diz respeito ao indivíduo em particular e aquela se refere

aos efeitos de sua ação na vida em sociedade.

Como foi indicado, a distinção é necessária porque a conduta comporta esses

dois aspectos. Por um lado, ela é ação, um modo de operar, é alguma coisa que alguém

faz, pois só há ação quando há agente. A conduta é um processo com uma forma ou

85
Ethical principles underlying education, 1897.
modo específico, a realização de um agente. A psicologia fixa assim o como (how) da

conduta, como o indivíduo age ou opera. Por outro lado, há algo que é feito, há fins,

realizações, resultados, do mesmo modo que há meios e processos. Este seria o aspecto

considerado de um ponto de vista social, que não se refere simplesmente ao indivíduo

que age, mas a uma situação, o que (what) o indivíduo faz ou necessita fazer tendo em

consideração algo maior do que ele.

No caso da escola, a criança que está sendo educada é membro de uma

sociedade e deve ser pensada e cuidada como tal. A escola é fundamentalmente uma

instituição montada pela sociedade para realizar determinado trabalho ou exercer certa

função de manter a vida e fazer avançar o bem-estar social. Para Dewey (1972), o

sistema educacional que não reconhece este fato como algo relacionado a uma

responsabilidade ética está abandonado. É neste sentido que ele critica a limitada função

social que se atribuía à escola, relacionando-a a uma noção estreita de cidadania - a

capacidade para votar e cumprir as leis. Educar para a cidadania era e ainda é uma das

funções normalmente atribuídas à escola. Por pensar a criança como um todo orgânico -

que inclui os aspectos intelectual, moral e físico -, Dewey sugeriu que os princípios

éticos que regem o trabalho escolar fossem considerados de uma perspectiva também

orgânica. Assim sendo, não basta olhar para a criança apenas como eleitor e sujeito da

lei, pois ela é também membro de uma família, será trabalhador(a) engajado(a) em

determinadas funções necessárias para a vida em sociedade, integrante de uma

determinada comunidade e alguém que contribuirá para a manutenção de certos valores.

Para a criança ocupar um lugar relacionado a todas estas funções e a outras mais, é

preciso que ela seja educada em ciência, arte, história, que maneje ferramentas de

comunicação, métodos de pesquisa, que tenha certos hábitos:

“Isolar formalmente a cidadania de todo um sistema de relações no qual ela


está inserida, supor que há qualquer matéria em particular ou modo de
tratamento que possa fazer da criança um bom cidadão, supor, em outras
palavras, que um bom cidadão é nada mais do que um membro muito
eficiente e útil da sociedade, alguém com todas as suas forças do corpo e da
mente sob controle, é uma superstição que se espera desapareça brevemente
da discussão educacional” (Dewey, 1972:59).86

É importante notar neste texto citado, bem como em vários de seus textos sobre

educação, o fato de John Dewey está se referindo às crianças de uma sociedade definida

como “democrática e progressiva”. Isto significa falar de determinados padrões de

comportamento: crianças que deveriam ser educadas para a liderança e para a

obediência, para ter auto-direção e poder dirigir outras, sendo hábeis para assumir

posições e ter responsabilidade. Dewey lembra que a necessidade de educar para a

liderança era algo importante tanto para o campo político quanto para o industrial.

Tendo em vista este contexto de uma sociedade em permanente mudança (progressiva)

e impulsionada pelo desenvolvimento científico e industrial, ele afirma que seria

impossível educar alguém para posições fixas na vida. Neste sentido, a escola teria que

proporcionar ao aluno um tipo de educação que possibilitasse a sua adaptação às

transformações em curso na sociedade, mas que ao mesmo tempo lhe desse

instrumentos para moldar e dirigir as mudanças. Assim, o melhor modo de preparar o

aluno seria engajá-lo na dinâmica da própria vida, desenvolvendo hábitos duráveis e de

utilidade social (Dewey, 1972:62).

Como foi indicado, Dewey considerava que o ensino teórico de princípios

morais na escola era algo formal e mesmo patológico, exceto se a própria escola fosse

concebida como uma comunidade. Esta foi a opção adotada pela Escola Laboratório. O

ensino de princípios morais é patológico se a ênfase está posta na correção do que foi

feito de forma errada pois a preocupação com a vida moral dos alunos consistiria em

ficar atento aos seus desvios em relação às regras e à rotina da escola, ao invés de visar

a formação de hábitos positivos (Dewey, 1972:62). Por outro lado, considerar o ensino

de princípios morais formal é também dizer que os hábitos especialmente enfatizados

86
Ethical principles underlying education, 1897.
na escola são criados ad hoc. Pontualidade, regularidade, aplicação, não-interferência

no trabalho do outro, todos estes hábitos normalmente destacados pela escola são

moralmente importantes porque o sistema escolar que os impõe tem determinadas

formas, as quais tendem a ser preservadas. Porém, Dewey (1972) afirma que a

característica fundamental do ponto de vista moral e com o qual todos os hábitos

desenvolvidos na escola deveriam estar relacionados é “o interesse no bem-estar da

comunidade”.87 Seria possível aplicar “esta concepção de escola como uma comunidade

social, que reflete e organiza de uma forma típica princípios de toda a vida comunitária,

tanto no método quanto nas matérias de ensino” (p. 63).

No que diz respeito ao método, este princípio significa, como já foi indicado,

que a ênfase é posta na construção do conhecimento através de atividades. Dewey

ressaltou a falha de não se reconhecer quão individualista é o método que se

fundamenta na pura absorção de conteúdos. 88 Recitando, repetindo e copiando, os

alunos trabalham isoladamente e sem a necessidade de repartir tarefas ou compartilhar

atividades, o que atrofia gradualmente o espírito social. Ele nos interroga se em tal

processo a falta de cultivo moral não é tão grande quanto a falta de cultivo intelectual.

Mais grave ainda é que isto estava e ainda está vinculado a padrões individualistas de

comportamento que positivamente são inculcados (Dewey, 1972:64).

Entre os elementos do método criticado por Dewey estão o medo, a rivalidade e

a emulação. Quando todos os alunos fazem uma só tarefa isoladamente, eles são

julgados pela capacidade de apresentar o mesmo conjunto de fatos e idéias. Ou seja, a

diferenciação e a localização em um sistema de hierarquização teriam como base um

padrão puramente “lógico”. Assim, o aluno mais “fraco” gradualmente vai aceitando a

87
No ensaio Ethical principles underlying education, Dewey utiliza alternadamente e sem uma
distinção nítida as expressões moral habits e ethical habits.
88
Este parece ter sido um aspecto menosprezado pelas correntes pedagógicas chamadas de
“conteudistas”. Isto serve para assinalar não apenas a distância que tais correntes mantêm da filosofia
da educação de John Dewey, mas também de uma reflexão sociológica e de aspectos do pensamento de
Paulo Freire, cujas semelhanças com a obra de Dewey não podem ser dissimuladas, ainda que tenham
sido pouco exploradas em estudos feitos no Brasil.
sua posição de contínua e persistente inferioridade, enquanto o mais “forte” se destaca.

Por este método, as crianças são prematuramente lançadas em uma forma de

competição, quando necessitariam participar de processos cooperativos.

Uma das hipóteses formuladas por Dewey era que os métodos que utilizam as

forças ativas da criança, sua capacidade de construção e produção, poderiam mudar o

núcleo ético (centre of ethical gravity), da absorção de conteúdos - que em geral é

solitária e egoísta - para atividades essencialmente sociais. Ora, segundo Dewey (1959),

“as qualidades moral e social do procedimento são, em última análise, idênticas uma à

outra” (p. 392).

É comum ouvirmos que um dos objetivos da educação escolar é a formação do

caráter, e que podemos perceber o significado disto através das ações dos alunos. Em

outras palavras, significa a modelagem dos impulsos, os quais devem ser organizados

em modos de ação definidos e conservados, os hábitos.

Os princípios éticos subjacentes à educação que estiveram presentes na Escola

Laboratório da Universidade de Chicago estavam inseridos na visão geral de educação

que movia aquela experiência. Visava-se o crescimento intelectual e moral dos

indivíduos através de atividades que proporcionassem o desenvolvimento de uma

mentalidade experimental e a formação de hábitos de cooperação social. Assim sendo, a

tarefa dos educadores, pais ou professores, era tornar possível que as idéias adquiridas

pelas crianças e jovens fossem assimiladas de um modo que conduzissem à ação, como

forças que dirigem a conduta. Ao discutir “o experimentalismo de Dewey sobre os

valores”, Putnam (1997) chega à seguinte conclusão:

“Dewey não mantém a opinião de que as escolas só deveriam “ensinar fatos


e habilidades” e deveriam considerar os “juízos de valor” como
idiossincrasias pessoais... Tampouco ele pensa que as escolas deviam
“ensinar valores”, no sentido de ensinar “um esquema de virtudes
independentes”. O que as escolas deveriam ensinar é a experiência de
aplicação da inteligência a questões de valor” (p. 265).
A nítida preocupação com a relação entre educação escolar e princípios éticos

põe as experiências da Escola Laboratório e as idéias de Dewey em uma posição

curiosa no que diz respeito a uma abordagem científica. Ao invés de isolar o estudo

sistemático da educação do tema dos valores, o projeto da Escola Laboratório tentou

combiná-los. Além disso, tentava-se colocar o método científico a serviço da vida e da

construção de uma sociedade democrática. A idéia era tornar a perspectiva experimental

familiar aos alunos através de atividades relacionadas ao cotidiano, às suas

experiências; atividades que funcionariam também como um exercício de novos

valores.

Um segundo aspecto, relacionado ao anterior, é que as experiências da Escola

Laboratório negavam a perspectiva de que se deve isolar as várias partes de um

processo. No caso da educação escolar, seria a separação entre o desenvolvimento das

funções cognitivas e a formação do caráter, a questão do comportamento (Mayhew &

Edwards, 1936:426).

9. O laboratório como modelo

Em 1899 Dewey encerrou uma conferência explicando que era a necessidade de

experimentar algo que servisse de modelo para uma nova educação escolar o que estava

por trás da Escola Laboratório da Universidade de Chicago. Ele lembrou que havia

apenas 20 anos que fora criada na Universidade de Michigan a primeira disciplina de

pedagogia nos Estados Unidos, e que poucas universidades tentavam estabelecer

conexões entre teoria e prática desenvolvendo pesquisas nessa direção. Uma das

exceções era justamente a Universidade Columbia, em Nova York, para onde ele

seguiu para trabalhar em 1904, após desentendimentos com o reitor da Universidade de

Chicago a respeito da direção e funcionamento da Escola Laboratório.


O laboratório era algo que estava por trás de quase todos os grandes

empreendimentos daquela época, como as fábricas, sistemas de transportes, etc. Mas

Dewey alertou que o laboratório não poderia ser confundido com os próprios

empreendimentos: “Há uma diferença entre ensaiar e testar uma nova verdade ou

método e aplicá-lo em larga escala, tornando-o disponível para muitos” (Dewey,

1980:56). Ele não esperava que escolas imitassem literalmente a Laboratory School da

Universidade de Chicago, pois aquele trabalho fora realizado para fornecer uma

demonstração da viabilidade dos princípios e métodos propostos.

Ao fazer uma avaliação daquele empreendimento na década de 1930, Dewey

reconheceu o alto grau de dificuldade enfrentado pelos professores e lamentou o fato de

algumas escolas terem abandonado de forma radical a idéia de direção das ações

individuais e muitas outras continuarem tratando as crianças como seres fictícios. Ele

reconheceu também que muito ainda tinha a aprender sobre a diferença entre despertar

uma visão social e impor ajustes sociais (Mayhew & Edwards, 1936).

Tendo como referência o que foi apresentado até aqui, uma afirmação de

Mayhew & Edwards (1936) sobre aquela instituição parece conclusiva: “A escola deve

ser um lugar onde a atividade individual pode ser social também no caráter, um

ambiente onde as crianças trabalhando desenvolvam suas forças individuais e, ao

mesmo tempo, utilizem-nas para promover a atividade de seu grupo” (p. 458).

Trata-se de uma perspectiva que considera cada indivíduo como potencialmente

criativo, mas ao mesmo tempo reconhece que ele é sempre alguém que interage com

outros, um membro de uma sociedade. Fazer a aproximação entre o interesse do aluno

com o desenvolvimento de hábitos de cooperação social parece ter sido a questão maior

de um método em que indivíduo e sociedade são considerados funções de um mesmo

processo e não se excluem.


Trinta anos após a criação daquela escola experimental, as professoras Katherine

Mayhew e Anna Edwards reconheceram que a gradual quebra de rigidez em algumas

escolas públicas em certas comunidades dos Estados Unidos tinha sido uma conquista

importante. Contudo, a grande maioria das crianças americanas continuava entrando aos

seis anos no “antigo” sistema educacional, onde ficavam durante doze anos estudando

para progredir individualmente, tendo por base a competição entre os membros do

grupo. Individualismo e competição eram dois elementos muito presentes no sistema

escolar americano. A Escola Laboratório da Universidade de Chicago experimentou

mudar tal situação com uma visão do desenvolvimento da criança que se combinava

com a preocupação com a formação de hábitos de cooperação social.

III

Socialização e hábito

1. Introdução

2. Socialização

3. Habit

4. O desenvolvimento contínuo

5. O pensamento e a ação

6. O hábito de refletir

7. Pensar como arte

8. O jogo e o trabalho

9. Linguagem e experiência

Capítulo III
Socialização e hábito

“Somos “irracionais” quando se impõe o hábito ou o impulso... Somos


“racionais” se reconstruímos por via reflexiva ‘antigos objetivos e hábitos’”
(Wright Mills, 1968:478).

1. Introdução

Como vimos no capítulo II, a relação entre educação escolar e formação de

hábitos ocupou um lugar importante no pensamento pedagógico de John Dewey no

período de Chicago. Tendo como base de análise os livros Como pensamos [1910],

Democracia e Educação [1916] e Natureza humana e conduta [1922], o objetivo deste

capítulo é ratificar a hipótese acima, considerando que a ênfase nessa relação é uma das

diferenças fundamentais entre a “escola nova”, ao menos na visão de Dewey, e a escola

tradicional. A perspectiva aberta pela filosofia da educação de Dewey diz respeito não

apenas a um projeto pedagógico-político inscrito em uma certa vertente do liberalismo

americano; nela também se encontra uma nova compreensão da relação entre indivíduo

e sociedade, e é neste sentido que algumas de suas reflexões - junto com a de outros

pragmatistas de Chicago - estão na origem das ciências sociais nos Estados Unidos.89

Na obra de Dewey, a noção de hábito funciona como um ponto de interseção

entre corpo e mente, entre o material e o simbólico, entre indivíduo e sociedade. Trata-

se de um instrumento crucial para ampliar a idéia de educação, entender as críticas a um

modelo pedagógico voltado quase que exclusivamente para a transmissão de conteúdos

e, por fim, elaborar uma noção menos genérica e difusa daquilo que se chamou de

“escola nova”. Nas primeiras seções apresento a noção de hábito em conexão com a

questão da socialização. Complementam o capítulo discussões sobre aspectos que julgo

importantes no pensamento pedagógico de Dewey e relevantes para a compreensão

deste trabalho: a relação entre pensamento e ação, a idéia de pensamento reflexivo, as

diferenças e semelhanças entre jogo e trabalho e os vínculos entre linguagem e

89
Ver Anexos.
experiência. Alguns desses aspectos já apareceram nos capítulos anteriores “aplicados”

na organização da Escola Laboratório da Universidade de Chicago e ganham aqui

reforço teórico.

A estrutura deste capítulo, que não difere da dos demais, tem como referência

Democracia e Educação. Nesta obra, cada capítulo é um módulo quase independente.

Ela se parece a um mosaico formado por partes distintas ou fragmentos, que juntos

compõem a idéia e a sua “demonstração”.

Esta pesquisa teve início e aqui prossegue com uma questão geral - entender a

relação entre indivíduo e sociedade na educação - investigada na obra de John Dewey,

especificamente nos trabalhos gerados a partir das experiências realizadas por ele e

colaboradores na Universidade de Chicago. As respostas se encontram na configuração

do mapa/mosaico que consegui compor a partir de um determinado “observatório”. Há

pontos do relevo que se destacam por motivos distintos, como certos fragmentos que

brilham mais, embora isto não anule a relevância de elementos menores, mais opacos,

menos visíveis. Melhor se percebe uma montanha se dela se acerca um vale; e se neste

corre um rio, ainda que pequeno, podemos ver o declive do terreno e quiçá localizar o

mar.

2. Socialização

A educação, em seu sentido mais amplo, é o principal instrumento de

continuidade da vida humana. Em um determinado grupo social os indivíduos cumprem

o seu ciclo vital e morrem, mas a vida do grupo pode continuar, com sua memória, sua

cultura. Se a educação escolar surgiu associada a um tipo específico de transmissão do

legado cultural, principalmente através de textos escritos, ela está indissoluvelmente

ligada a um processo anterior e contínuo que tem possibilitado a sobrevivência da vida

humana na Terra. Sobre esta questão, Dewey (1979) afirma o seguinte:


“Não fosse esse processo pelo qual as realizações de uma geração formam
os estímulos que dirigem as atividades da seguinte, a história da civilização
se escreveria na areia e cada geração teria de procurar por si, penosamente e
se pudesse, um caminho que a arrancasse à selvajaria. Aprendendo a
entender e dizer palavras, as crianças aprendem muito mais do que palavras:
adquirem um hábito que lhes descerra um novo mundo (p. 205).

As sociedades criaram e continuam a criar meios através dos quais se dá a

socialização, que garante a reprodução e também a renovação daquilo que vai sendo

acumulado no curso da vida social:

“A sociedade subsiste, tanto quanto a vida biológica, por um processo de


transmissão. A transmissão efetua-se por meio da comunicação - dos mais
velhos para os mais novos - dos hábitos de proceder, pensar e sentir. Sem
esta comunicação de idéias, esperanças, expectativas, objetivos, opiniões,
entre os membros da sociedade que estão a sair da vida do grupo, e os que
na mesma estão a entrar, a vida social não persistiria” (Dewey, 1959:3). 90

À medida que a “civilização progride”, afirma Dewey (1959), torna-se mais

difícil aprender participando diretamente das atividades com os mais velhos, salvo

ocupações muito simples. Isto demanda um esforço deliberado, intencional, para criar

instâncias de socialização capazes de manter a vida social em curso.

Esta discussão serve para marcar a passagem de uma visão meramente formal da

educação para uma perspectiva mais ampla e profunda. Como venho tentando

demonstrar, aparece em algumas obras de Dewey a questão da formação de hábitos, de

disposições intelectuais, morais e estéticas, enfim, algo que vai além da visão da

educação como treino das faculdades ou assimilação de conhecimentos (conteúdos). Do

ponto de vista da análise teórica, esta visão da educação como socialização está próxima

da que formulara Durkheim (1979). Contudo, Dewey se distingue por sua grande

preocupação com a crescente formalização da educação e o conseqüente isolamento da

escola da experiência dos alunos. Dando preeminência à transmissão de informações

90
Parece inevitável recordar que, por volta de 1910, Durkheim apresentara em um de seus cursos na
Sorbonne a noção de educação como socialização, que se encontra no primeiro capítulo do Sociologia e
Educação, uma de suas obras póstumas, publicada apenas em 1922.
técnicas expressas em símbolos, a escola parecia abdicar de sua capacidade de formar

certos hábitos:

“Quando a aquisição de conhecimentos e a aptidão intelectual técnica não


influem para criar uma atitude mental social, a experiência vital ordinária
deixa de ganhar maior significação, ao passo que, na mesma proporção, o
ensino escolar cria homens meramente “eruditos”, isto é, especialistas
egoístas” (Dewey, 1959:9).91

Um dos desafios da proposta de Dewey para uma “nova escola” era tentar restabelecer

um certo equilíbrio entre vida e educação, e entre formação de hábitos e transmissão de

conteúdos.

Como vimos acima, encontram-se em sua obra passagens que se aproximam da

linguagem utilizada pelas ciências sociais: “O modo por que nosso grupo ou classe faz

as coisas tende a determinar quais os objetos que necessitam de atenção e a traçar assim

as direções e limites da observação e da memória” (Dewey, 1959:18). Justamente em

um capítulo que se chama “A educação como função social” ele explica o “modo pelo

qual um grupo social conduz os imaturos à sua própria forma social” e qual o papel que

a escola pode desempenhar nesse processo. Dewey (1959) se interroga a respeito do

caminho pelo qual os mais jovens assimilam os pontos de vista dos mais velhos,

tornando-se mentalmente semelhante a eles. Considera então que em termos gerais o

método mais eficaz de realizar esta passagem está relacionado à ação do meio, ao

ambiente em que os indivíduos vivem, que reforça certas convicções e enfraquece

outras, formando suas “disposições mentais para a ação”. As palavras “ambiente” e

“meio” significam aí algo mais do que lugar; elas se referem também às coisas e

relações que exercem influência sobre a formação de alguém. Assim, na medida em que

as atividades de um indivíduo estão diretamente associadas às de outros, temos a noção

de meio social.

91
Os grifos são meus.
De acordo com Dewey, não há grandes dificuldades em se observar como o

meio modela aspectos da ação. Com o exemplo do condicionamento de cães e cavalos

ele esclarece o sentido daquilo que se chama de adestramento ou treino. Contudo, deve

ser percebida a diferença essencial entre adestrar e educar. Aí aparece justamente o

papel desempenhado pelo meio social. Ao participar de atividades comuns, os

indivíduos modificam os impulsos originais de suas ações, o que não ocorre pelo

implante direto de certas idéias, nem pelo estabelecimento de meras variações

musculares, como no caso do adestramento.

A importância da linguagem para a “aquisição” de conhecimento é apontada por

Dewey (1959) como a causa principal da noção comum de que o conhecimento é

transmitido diretamente de uma pessoa a outra. Esta visão estreita da linguagem parece

sugerir que transmitir uma idéia a alguém seria como fazer um som ferir os seus

ouvidos, o que faria da comunicação um processo apenas físico. Mas Dewey resgata

justamente a dimensão social da linguagem:

“O simples fato de que a linguagem consiste em sons mutuamente


inteligíveis basta para mostrar que sua significação exige que haja uma
experiência compartilhada” (Dewey, 1959:16).

A garantia para a compreensão de uma linguagem reside assim no fato de que as

coisas e os sinais sejam relacionados em uma atividade conjunta, estabelecendo-se uma

conexão operante. Segundo Dewey (1959), o uso da linguagem para a transmissão e

aquisição de idéias seria a extensão e aperfeiçoamento do princípio de que “as coisas

adquirem significação quando usadas em uma experiência partilhada ou em uma ação

conjunta” (p. 17). Quiçá a linguagem não fosse um instrumento tão eficaz se não tivesse

como base usos mais tangíveis de meios materiais. Já antes de falar, uma criança vê as

pessoas de seu ambiente social usarem de determinadas maneiras e habitualmente coisas

como cadeira, prato, talheres, livro, caneta, dinheiro, arma, etc.. As coisas, como os

signos da linguagem, funcionam como elementos das relações em que vão sendo
estabelecidos os significados. Assim, Dewey (1959) considera que os hábitos de utilizar

as coisas da natureza e os produtos da arte humana constituem o mais profundo modo

de regulação ou controle:

“Quando as crianças vão para a escola já possuem juízo - têm


conhecimentos e aptidões para julgar, aos quais se pode recorrer por meio
do uso da linguagem. Mas esses juízos nada mais são que os hábitos
coordenados de reações inteligentes que anteriormente foram necessárias
para o uso das coisas em relação com o modo por que as outras pessoas as
usavam. Essa influência é inevitável; dela se impregnam as atitudes
mentais” (p. 35).

Distanciando-se de uma perspectiva puramente racionalista e tentando superar

dicotomias como externo/interno, prático/teórico, experiência/razão, encontramos na

filosofia da educação de Dewey a noção de hábito (habit), em que elementos corporais

e mentais se integram numa perspectiva de continuidade entre o biológico e o

simbólico. Esta noção, que aparece em Democracia e Educação [1916] de forma mais

sistematizada, já estava presente, como foi indicado no capítulo II, nas experiências da

Escola Laboratório da Universidade de Chicago e em textos escritos naquela época,

como The School and Society [1899].

Dewey (1959) parece ter compartilhado com as ciências sociais, que estavam se

constituindo no final do século XIX e início do século XX, a visão de que “o meio

social cria as atitudes mental e emocional do procedimento dos indivíduos” (p. 17). Ele

reconhece também que o influxo educativo ou formativo exercido pela sociedade age

independentemente de qualquer propósito intencional. Assim, o modo por que o grupo

ou classe social faz as coisas tende a modelar as nossas disposições mais profundas:

“Exatamente como os sentidos requerem objetos sensíveis para estimulá-los,


nossas faculdades de observar, recordar e imaginar não funcionam espon-
taneamente, mas são movidas pelas exigências impostas pelas ocupações
sociais habituais. A urdidura essencial de nossa disposição de espírito é
formada, independentemente dos cursos escolares, pelas referidas
influências. O que o ensino consciente e deliberado pode fazer é, no
máximo, libertar as aptidões assim formadas para mais um amplo
desenvolvimento, purgá-las de algumas de suas rudezas e fornecer objetos
que tornem sua atividade mais rica de significação” (Dewey, 1959:19).
A contínua e penetrante influência do meio social tem, portanto, efeitos

fundamentais na formação ou modelagem dos indivíduos. Dewey destaca três

dimensões nesse processo: os hábitos da linguagem, as maneiras e a apreciação estética.

O modo de falar e as dimensões do vocabulário, por exemplo, formam-se nas relações

ordinárias da vida e se desenvolvem como uma necessidade social. No caso das

maneiras, elas são adquiridas de forma eficaz nos atos cotidianos, respondendo a

estímulos efetivos, e não como conhecimentos teóricos transmitidos. No que diz

respeito à apreciação estética, ele contesta a noção comum de que o gosto seria

simplesmente uma questão pessoal, ressaltando a importância de disposições que jazem

abaixo do plano da reflexão e que se formam no incessante movimento de nossas

interações com o meio social:

“Raras vezes reconhecemos em que extensão as idéias conscientes que


temos do valor de algumas coisas e do desvalor de outras são devidas a
padrões mentais de cuja existência absolutamente não temos consciência.
Mas pode-se generalizar dizendo-se que as coisas que aceitamos como
certas sem exame ou reflexão são precisamente as que determinam nosso
pensamento consciente e nossas conclusões” (Dewey, 1959:20).

Dewey faz comentários sobre a elaboração dos padrões de valor que um

indivíduo possui dando o exemplo do gosto musical. Alguém pode ser capaz de

conversar com certa propriedade sobre música clássica, e até acreditar que as qualidades

deste tipo de música constituam os seus próprios paradigmas musicais. Mas se o que

este indivíduo se habituou a ouvir e realmente admirar no passado foram ragtimes, os

padrões fixados para julgar música serão próximos aos do ragtime:

“O que ele pessoalmente aprendeu a apreciar lhe determina mais fortemente


a atitude do que o que lhe for ensinado como coisa que seja mais
conveniente dizer-se; sua atitude mental habitual assim fixada cria sua
“norma” real para a apreciação de música em suas experiências
subseqüentes” (Dewey, 1959:257). 92
92
O modo como Dewey indica a presença do social na formação do gosto pode nos remeter à análise
sociológica que Pierre Bourdieu realizou posteriormente a respeito deste tema. Ao ser indagado em um
seminário em Chicago, por Loïc Wacquant, sobre semelhanças entre sua análise e as reflexões do
filósofo americano, Bourdieu reconheceu as afinidades: “No fundamental, e sem tratar de expor aqui
A importância fundamental de se reconhecer o processo educativo que

prossegue involuntariamente é nos levar a notar que o modo mais eficaz de influir na

formação dos mais jovens é atuando sobre o meio em que eles vivem, pensam e sentem:

“Jamais educamos diretamente e, sim, indiretamente, por intermédio do ambiente”

(Dewey, 1959:20). E não seria a escola um exemplo típico de um meio ou ambiente

especialmente preparado para influir no desenvolvimento físico, intelectual e moral dos

mais jovens?

De um modo geral, considera-se que as escolas começaram a existir quando as

tradições sociais se tornaram muito complexas. Parte importante do legado cultural

passou então a ser transmitida através de símbolos escritos. Uma sociedade com um alto

nível de diferenciação tende a tornar cada vez mais difícil a sua assimilação in toto.

Assim, uma das funções básicas desta instituição social denominada escola seria,

segundo Dewey, criar um ambiente simplificado, em que certos aspectos da vida

cultural são selecionados como meios para uma progressiva compreensão das coisas.

Uma outra tarefa da escola seria a de filtrar e eliminar o máximo possível os aspectos

desvantajosos do ambiente social:

“À proporção que uma sociedade se torna mais esclarecida, ela compreende


que importa não transmitir e conservar todas as suas realizações, e sim
unicamente as que importam para uma sociedade futura mais perfeita. A
escola é seu principal fator para a consecução deste fim” (Dewey, 1959:22).

Dewey marca aí o aspecto construtivo da escola, potencialmente capaz de ampliar o

universo dos alunos e contribuir para a melhoria da organização social. Ele certamente

não duvidava de que as crianças vão à escola para aprender algo. O que a sua filosofia

todos os pontos em comum e as diferenças, assinalarei que a teoria do habitus e do sentido prático
apresenta numerosas similitudes com aquelas teorias que, como a de Dewey, destinam um lugar central
ao habit, entendido não como o costume repetitivo e mecânico, mas como uma relação ativa e criadora
com o mundo, e rechaçam todos os dualismos conceituais sobre os quais se fundamentam, quase em sua
totalidade, as filosofias pós-cartesianas: sujeito e objeto, interno e externo, material e espiritual,
individual e social, etc.” (Bourdieu & Wacquant, 1995:84).
da educação nos permite questionar é se o aprender ocorre de forma mais adequada

quando se torna “uma ocupação conscientemente isolada”, excluindo o “senso social

derivado da participação em uma atividade de interesse e valor comuns” (Dewey, 1959:

42). Uma educação escolar desse tipo pode proporcionar aos alunos excitação sensorial,

atividade motora e conteúdos técnicos específicos, mas certamente não lhes garante

espírito de cooperação e solidariedade. A hipótese de Dewey (1959) parece bastante

clara:

“Só se consegue mentalidade social dedicando-se os homens à atividade


conjunta, na qual o uso de materiais e utensílios, por parte de uma pessoa,
se relaciona conscientemente com o uso que outras pessoas fazem de suas
aptidões e recursos” (p. 42).

Se os livros e a teoria podem fazer algo neste sentido, o que Dewey propunha

era que as escolas desenvolvessem atividades nas quais os alunos tomassem parte

conjuntamente, para que pudessem experimentar o sentido social de suas ações.

3. Habit

Dewey considerava como características fundamentais dos jovens a imaturidade

e a plasticidade. Imaturidade tem o sentido de força para se desenvolver; plasticidade

seria a capacidade de aprender com a experiência, de modificar uma ação considerando

fatos anteriores, ou o poder de extrair e reter dos fatos algo aproveitável para a

resolução de dificuldades futuras. Segundo Dewey, a nossa capacidade de desenvolver

hábitos está diretamente relacionada ao que ele define como plasticidade. Uma aptidão

física especializada para uma dada função pode assegurar eficiência imediata, mas é

restrita a determinados usos e pouco plástica, se comparada à aprendizagem de um ato,

pois isto “obriga a aprender-se a variar seus fatores, a fazer combinações sem conta

destes, de acordo com a variação das circunstâncias” (Dewey, 1959:48). Ele dá como

exemplo a diferença entre a rapidez com que um filhote de galinha começa a bicar com
perfeição o alimento, poucas horas depois do seu nascimento, e o tempo que leva uma

criança para coordenar a visão e os membros, tornando-se capaz de alcançar com

precisão um objeto. A aquisição de hábitos está associada à nossa capacidade de variar

as reações ou respostas, até que encontremos uma conduta adequada.

Dewey (1959) afirma que um hábito é em primeiro lugar “uma aptidão

executiva, uma capacidade de fazer” (p. 49). Trata-se de uma capacidade de utilizar de

forma ativa as condições existentes para alcançar objetivos. Ele lembra que

normalmente somos inclinados a dar menor importância ao domínio do ambiente, se

comparado ao comando do próprio corpo, ou confundimos ajustamento com simples

conformidade com o meio. Se o hábito consiste na aptidão para atuar em certos

ambientes, há que se reconhecer o seu aspecto passivo. Isto se nota no processo de

adaptação, mas que pode servir de ponto de apoio para a formação de “hábitos ativos”

(Dewey, 1959:51). Contudo, o significado de hábito não se esgota em seu aspecto

motriz:

“Importa na formação de uma disposição intelectual e emocional tanto


quanto um acréscimo de facilidade, economia e eficácia de ação. Todo
hábito indica uma inclinação - uma preferência e escolha positivas das
condições necessárias à sua manifestação... Um hábito significa, por outro
lado, uma atitude de inteligência. Onde existe um hábito, existe o
conhecimento dos materiais e do aparelhamento a que se aplica a atividade,
há uma compreensão certa das situações em que o hábito atua” (Dewey,
1959:51).

Ao desenvolver um hábito o indivíduo cria através da experiência disposições

para uma ação mais fácil e eficaz numa dada direção. Isto significa que o hábito

converte a experiência em algo aproveitável em outras oportunidades. É o que

posteriormente, em Educação e Experiência [1938], Dewey (1963) chamou de

princípio da continuidade da experiência. Uma dada experiência pode modificar a

qualidade das experiências subsequentes, e a continuidade seria o critério pelo qual é


possível discerni-las, na medida em que afetam para melhor ou pior as atitudes que irão

interferir na qualidade de experiências futuras.

O hábito se constitui como modos de observar, pensar, refletir, manejar certos

utensílios. Estes modos fazem de um engenheiro, operário ou negociante justamente

aquilo que cada um é. Em Natureza humana e conduta [1922], Dewey (1988) chega a

afirmar que o cientista e o filósofo, como o marceneiro e o político, conhecem com seus

hábitos, não com suas “consciências”. Contudo, ele afirma também que “é o elemento

intelectual de um hábito que lhe garante o uso variado e elástico e, por conseguinte, o

seu contínuo crescimento” (Dewey, 1959:52). Este é um ponto importante de sua teoria,

pois se contrapõe à fixidez da rotina, normalmente identificada com ações repetidas de

forma mecânica:

“Os hábitos se reduzem a rotineiros modos de proceder, ou degeneram em


modos de proceder a que nos escravizamos na medida em que a inteligência
se dissocia dos mesmos. Hábitos rotineiros são hábitos irreflexivos; “maus”
hábitos são hábitos tão apartados da razão que se acham em conflito com as
conclusões da deliberação e decisão conscientes” (Dewey, 1959:52).

Se, como foi indicado, Dewey associa a aquisição de hábitos ao que ele define

como plasticidade - “à nossa aptidão para variar as reações ou respostas” -, os hábitos

dissociados da inteligência põem termo a esta característica, condenando-nos à

repetição. Em termos de educação, ele dá o seguinte exemplo:

“O método de vistas curtas que recorre à rotina e repetição maquinais para


garantir a eficácia exterior do hábito e a habilidade motora, sem
correspondente esforço mental, significa uma voluntária supressão de
horizontes ao crescimento” (Dewey, 1959:53).

O pensamento reflexivo e as atividades ou ocupações ativas parecem funcionar

na teoria da educação de John Dewey como contrapontos ao aspecto passivo do hábito e

à repetição mecânica no ensino. Ao apresentar essas idéias no livro Aspectos

Americanos de Educação [1928], Anísio Teixeira (1928) afirma que somente um meio

que assegure o amplo “uso da inteligência na formação dos nossos hábitos” pode
contrabalançar a tendência à inércia e à fixidez; ou seja, é o desenvolvimento de

habilidades executivas acompanhado do uso do pensamento que pode manter “uma

plasticidade constante e uma constante capacidade de progresso” (p. 21). 93 A análise de

Mills (1968) deste aspecto da filosofia de Dewey não parece muito distinta da que fez

Teixeira: “Somos “irracionais” quando se impõe o hábito ou o impulso... Somos

“racionais” se reconstruímos por via reflexiva ‘antigos objetivos e hábitos’” (p. 478). A

relação entre hábito e uso da inteligência pode ser também ilustrada, como fez Newton

Sucupira (1960), por uma situação em que há ruptura de equilíbrio e “o sistema de

hábitos não basta para resolvê-la”. Isto suscita o uso da inteligência, do pensamento

reflexivo, que pode transformar “a situação problemática em uma situação

determinada” (p. 86).

Tudo isto nos ajuda a entender melhor a noção de educação como reconstrução

da experiência, a importância atribuída por Dewey à capacidade (do aluno e do

professor) de refletir sobre a experiência e de reordenar o curso da ação, e também a

idéia de desenvolvimento ou crescimento como algo contínuo.

Dewey ressalta que a disposição para refletir não é espontânea e nem um

presente dos deuses; ela emerge das circunstâncias, da vida social, como ocorreu na

Grécia antiga. Porém, quando se generaliza, estabelece um novo costume, “que é capaz

de exercer a mais revolucionária influência sobre os outros costumes” (Dewey,

1988:56). Se considerarmos os hábitos como rotinas irrefletidas, a reflexão seria o

esforço inteligente de reajustamento dos hábitos. Assim, a idéia de racionalidade pode

ser associada ao uso da inteligência, esta que Dewey considerava, como bem lembra

Putnam (1997), “não como um feixe de “faculdades”, mas como uma atividade em

processo de reorganização da experiência através da ação” (p. 265).

93
Ainda na referida obra, Teixeira (1928) define hábito da seguinte forma: “Hábito, no sentido
educativo, não é o hábito rígido ou fixo ou rotineiro. Hábito significa facilidade, economia, eficiência
de ação, e ainda disposição intelectual a mudar, a progredir, a desenvolver” (p. 20).
Segundo Dewey, a adaptação a fins ou a “racionalidade externa” precede a

“racionalidade da mente” (reasonableness of mind). Isto significa que a racionalidade

não é uma dádiva original, mas uma resultante das relações dos organismos com o

mundo, das adaptações objetivas dos seres humanos. Dewey tentou desmontar a noção

de razão como um “antecedente pré-formulado” que se pode evocar ou uma espécie de

panacéia.94 Ele a define como uma disposição resultante, cooperação de várias

disposições (curiosidade, exploração, experimentação, diligência, verificação, etc.) ou o

produto de um labor penoso de hábitos que necessitam ser continuamente trabalhados

(Dewey, 1988). Ainda que a razão seja associada à adaptação, isto não significa que ela

se constitua de meros reflexos dos fatos:

“[A razão] instaura uma atitude de crítica, de investigação, e torna os seres


humanos sensíveis à brutalidade e à extravagância dos costumes. Em breves
palavras, ela se transforma em um costume de expectativa e vigilância, uma
demanda ativa de sensatez em outros costumes (Dewey, 1988:56).

Esta perspectiva nos permite entender melhor a relação que o pragmatismo

estabelece entre razão e ação ou a idéia de que “a expressão genuína da razão (e da

bondade na conduta) reside no conhecimento das condições que efetivamente

possibilitam a ação” (Dewey, 1988:48).

Pelo que vimos até agora, é bastante consistente uma conclusão de Holder

(1995), ao tentar encontrar uma nova base epistemológica para o pensar, seguindo uma

abordagem deweyana:

“Ela [esta abordagem] oferece um “meio-termo” entre os extremos do


cognitivismo e do irracionalismo, ao mostrar como a experiência cognitiva
emerge (de) e está perpassada por experiências não-cognitivas (emoções,
hábitos, imaginação). Assim, somente em uma epistemologia naturalista,
isto é, em uma abordagem epistemológica onde processos cognitivos como

94
Cassirer (1994), em A Filosofia do Iluminismo, descreve da seguinte forma a idéia de razão presente
no chamado “século das luzes”: “O século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da
razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a
cultura. De todas as variações dos dogmas religiosos, das máximas e convicções morais, das idéias e
dos julgamentos teóricos, destaca-se um conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua
consistência são justamente a expressão da essência própria da razão” (p. 23).
o pensar envolvem de uma forma essencial estruturas não-cognitivas da
experiência, pode o quebra-cabeça de racionalidade e irracionalidade ser
resolvido” (p. 8).

Quanto à questão ética ou moral, no que se refere à ação ela fica imbricada na

filosofia de Dewey, por um lado, na esfera social, e, por outro, no papel atribuído por

ele ao uso da inteligência. Para fins práticos, moral significa costumes, modos,

disposições estabelecidas. Assim, ela pode ser vista como algo dependente das

condições efetivas em que se formam os hábitos. Como o meio é multilateral, as

disposições têm sempre um cunho plural. Isto parece abalar a idéia de uma objetividade

integral da moral. Porém, Dewey considera que a objetividade só pode ser assegurada

se associada com a ação. Ele não reconhece nenhuma dicotomia forte entre o factual e o

valorativo e apresenta a seguinte definição de moral:

“A moral consiste em desenvolver a conscientiousness95, habilidade para


avaliar o significado do que estamos fazendo e usar este julgamento para
dirigir o que fazemos, não por meio do cultivo direto de alguma coisa
chamada consciência (conscience), razão ou faculdade do conhecimento
moral, mas pelo incentivo daqueles impulsos e hábitos que a experiência
tem mostrado que nos fazem sensíveis, generosos, imaginativos e imparciais
no compreender a tendência das atividades que se desenvolvem” (Dewey,
1988:144).

Para concluir esta parte, podemos nos perguntar o seguinte: como estabelecer

uma relação mais direta entre a questão da socialização e a noção de hábito? Se a

socialização fosse um processo automático, a geração mais jovem de uma determinada

sociedade seria a cópia ou a reprodução das anteriores. Mas a socialização se processa

através de instituições sociais (família, escola, religiões, clubes, turmas, mídia, etc.), do

meio em que alguém vive. Além disso, é algo que ocorre ao longo do tempo e opera

sobre as características específicas de cada ser, sobre seus corpos, em um processo

simultâneo à individualização. Neste sentido, a noção de hábito parece importante

95
Conscientiousness seria uma disposição adquirida para estar atento e ser capaz de entender o que
acontece à nossa volta. Isto serve para marcar a diferença entre conscientiousness e conscience, que
seria (se existisse) algo como uma parte da mente capaz de dizer se o que estamos fazendo é
moralmente correto ou incorreto.
justamente por contemplar de alguma forma estes dois aspectos. Isto é, a reprodução de

disposições gerais (a sociedade nos indivíduos) e a possibilidade de variação das

mesmas.

A despeito do reconhecimento do vetor de conservação presente no processo de

socialização, o que Dewey ressalta no mecanismo de formação dos hábitos é a sua

relação com a plasticidade do ser humano e o caráter ativo da inteligência. Talvez seja

por isso que ele não renuncia à idéia de que através de uma educação ativa das crianças

e dos jovens haveria possibilidade de se construir e reconstruir uma sociedade mais

democrática. Se os adultos têm seus hábitos já formados, os jovens e principalmente as

crianças ainda não estão totalmente submetidas aos costumes estabelecidos.96

Com o conceito de hábito é possível escapar, por um lado, do determinismo dos

impulsos e, por outro lado, do meio. O hábito é algo adquirido na vida social, mas nem

por isso imutável. A plasticidade do ser humano e o valor atribuído por Dewey à

inteligência permitem que se resgate o aspecto dinâmico do hábito.

Por fim, não parece ser mera coincidência que a noção de hábito (habit) retome

de certa forma aspectos da hexis () aristotélica, categoria que se referia à condição

ou posse de algo, cujo vocábulo equivalente em Latim é habitus. Durkheim empregou

este termo em A evolução pedagógica [obra póstuma publicada em 1938], para falar do

ensino nas escolas monacais. É que para ser cristão não basta saber certas fórmulas ou

conhecer determinadas crenças; o cristianismo consiste numa “certa atitude da alma,

num certo habitus de nosso ser moral” (Durkheim, 1995:35). Bourdieu, posteriormente,

tendo por base a idéia de um “sistema de disposições duráveis”, desenvolveu o conceito

de habitus, que é um dos pilares de suas pesquisas sociológicas. Estas observações

servem para reforçar a hipótese sobre a proximidade entre algumas reflexões de Dewey

e as ciências sociais.
96
Segundo Mills (1968), “Dewey não deseja situar as questões de caráter educacional no plano moral e
político, de onde os adultos devem tomar decisões. Quer que tanto a mudança como a orientação da
mesma tenham suas raízes na criança” (p. 476).
4. O desenvolvimento contínuo

Uma questão importante que se insere na discussão sobre a noção de hábito é a

crítica de Dewey à falsa idéia de crescimento ou desenvolvimento, quando se considera

que este seja “uma evolução, uma marcha para um alvo”. 97 Esta crítica aparece em

forma de comentários sobre algumas idéias de Fröebel e de Hegel.

Dewey afirma que o reconhecimento, por parte de Fröebel, da importância das

aptidões das crianças, sua atenção para com elas e a influência para induzir outros a

estudá-las representam a contribuição individual mais eficaz para a idéia de

desenvolvimento dentro da moderna teoria educacional. Porém, ele discorda da

esquemática noção de desenvolvimento apresentada por Fröebel, que o define como “o

desdobramento de um princípio latente e já formado” (p.62). Segundo a análise de

Dewey (1959),

“Fröebel ligou os fatos concretos da experiência com o ideal transcendental


do desenvolvimento, considerando os primeiros como símbolos do último.
Considerar símbolos as coisas conhecidas, de acordo com alguma arbitrária
fórmula a priori - todas as concepções a priori são arbitrárias - é um
incitamento para a fantasia romântica se prender a analogias que lhe
agradem, tratando-as como leis” (p. 63).
Na base da pedagogia de Fröebel estava a intuição da profunda unidade do real,

um dos lemas do movimento romântico. Esta perspectiva o levou a tentar desenvolver

um instrumento educativo que desse conta da idéia de consonância entre o nosso ser e a

natureza. Partindo de seus estudos de mineralogia, “Fröebel se esforçou por encontrar

as figuras materiais primitivas que fossem a expressão simples da força única que anima

o universo” (Abbagnano & Visalberghi, 1996:482). O resultado foi a teoria dos sólidos

geométricos, cujo caráter apriorístico, matematizante e abstrato não pode ser

dissimulado. Os sólidos (esfera, cubo, cilindro, etc.) serviam para iniciar a criança na

compreensão da “essência” da natureza e na apreensão das formas elementares do real


97
A esta idéia estariam ligadas três outras, com fortes repercussões na educação: a noção de
imaturidade como deficiência; a noção de adaptação, considerada como ajustamento estático a um meio
fixo, e a idéia de hábito como algo rígido e mecânico (Dewey, 1959:54).
(Cambi, 199:426). Para Dewey (1959), o amor de Fröebel ao simbolismo abstrato

absorveu o melhor da sua intuição profunda, “e o desenvolvimento infantil teve como

substituto um plano autoritário, tão arbitrário e extremamente imposto como nunca a

história da educação vira outro igual” (p. 63)

Quanto a Hegel (1770-1831), Dewey (1959) considera que ele foi um crítico

rigoroso e eficaz da psicologia que considerava o espírito uma disposição já formada de

uma pura individualidade, mostrando o significado do “espírito objetivo” (linguagem,

arte, religião, governo, etc.) na formação mental dos indivíduos:

“Sua filosofia, assim como a de Fröebel, faz, em certa direção, uma


contribuição indispensável a uma válida concepção do processo da vida. Era
evidente para ele a fragilidade de uma abstrata filosofia individualista; viu a
impossibilidade de eliminar a influência das instituições históricas” (Dewey,
1959:63).

Mas a necessidade de encontrar um equivalente concreto do inacessível “espírito

absoluto” tomou na obra de Hegel um aspecto mais institucional do que simbólico,

afirma Dewey. O filósofo alemão parecia obcecado pela idéia de uma “finalidade

absoluta”. Isto o teria levado a colocar as instituições em uma escala no curso da

história, cada uma delas em seu tempo e lugar, como estágios necessários do processo

de auto-realização do “espírito absoluto”: “Consideradas assim como graus ou estágios,

sua existência prova-lhes a perfeita racionalidade, pois constituem um elemento

integrante do total, que é a Razão” (Dewey, 1959:64). Trata-se de uma perspectiva

evolutiva da história. Neste sentido, “o desenvolvimento e a educação pessoais

consistem na assimilação passiva do espírito das instituições existentes. A essência da

educação é, pois, a conformidade e não a transformação” (Dewey, 1959:64). Tal forma

de idealismo se fundiu no final do século XIX com a teoria da evolução biológica. A

evolução seria uma força destinada a realizar seus próprios fins; o progresso social

passou a ser considerado um “crescimento orgânico” e não uma seleção experimental.


Este parece ter sido o ponto de inflexão do hegelianismo de Dewey, que fez uma clara

opção por uma perspectiva experimental.

Ao apresentar a sua idéia de desenvolvimento, Dewey afirma que este não tem

outro fim a não ser o próprio crescimento. E se a imaturidade da criança não significa

deficiência ou falta em relação à vida adulta, a educação não deve ser o simples

depósito de conhecimentos e regras morais em um ser incompleto. A educação é a

empresa de suprir as condições que asseguram o desenvolvimento, e este ocorre ao

longo de toda a vida. Isto ajuda a esclarecer a noção de “educação progressiva” - a que

se transforma permanentemente -, já que o desenvolvimento não é coisa que se

complete em determinada fase da vida, mas algo contínuo. A “educação progressiva” é

aquela que possibilita a formação de “hábitos ativos”, este que “subentendem reflexão,

invenção e iniciativa para dirigir as aptidões a novos fins” (Dewey, 1959:57). Tais

hábitos seriam próprios para uma sociedade em permanente mudança, uma sociedade

progressiva.

Ao discutir este tema, Dewey (1959) retoma a “teoria da disciplina formal” e

certas idéias de Herbart. Para ele, o mérito de Johann Friedrich Herbart (1776-1841) foi

“ter retirado a tarefa do ensino da região da rotina e do acaso, e tê-la trazido para a

esfera do método consciente. Ensinar tornou-se uma atividade com escopo e processos

definidos, em vez daquele conjunto de inspirações casuais e de subserviência à

tradição” (p. 77). Mas no rígido método de Herbart o conteúdo das matérias acaba

tendo valor bem maior do que o processo através do qual ele é construído ou

assimilado. A educação se efetua pela instrução, enquanto assimilação de conteúdos; ela

é vista como “uma edificação feita, de fora para dentro, no espírito”. Desta perspectiva,

o espírito seria em última instância uma questão de conteúdo, pois ele simplesmente

reage conforme o que se lhe apresente, formando apercepções, noções (Vorstellung).

Estas, qualitativamente diferenciadas, persistem abaixo da superfície da consciência,


podendo formar pela ação mútua aquilo que se chamam de faculdades (atenção,

memória, percepção). Mas um problema fundamental é assinalado por Dewey (1959)

na concepção herbartiana de educação: “[Ela] não toma em conta a existência num ser

vivo de funções ativas e especiais que se desenvolvem pela re-direção e combinação em

que entram quando se põem em contato ativo com seu ambiente” (p. 77).

Uma outra teoria analisada por Dewey, e que estivera em voga antes que a noção

de desenvolvimento ganhasse importância, é a da disciplina formal: “Tinha ela em vista

o ideal legítimo de que o resultado do processo educativo seria o criarem-se aptidões

especiais para as realizações” (Dewey, 1959:65). Mas esta teoria toma um atalho ao

considerar certas capacidades como fins ou objetivos diretos e conscientes da educação,

e não como resultados do desenvolvimento. Haveria um número de capacidades a

serem desenvolvidas e caberia à educação adestrá-las “em repetições constantes e

gradativas”. Isto nos faz supor a existência de alguma forma não exercitada:

“De um lado, o mundo exterior apresenta o material ou conteúdo do


conhecimento por meio de sensações passivamente percebidas. Por outro
lado, no espírito já existem certas faculdades como a atenção, a observação,
as de reter, comparar, abstrair, combinar, etc.” (Dewey, 1959:66).

Porém, as supostas faculdades inatas, já formadas e a espera de

desenvolvimento, eram para Dewey mitológicas, assim como ele também considerava

um mito a idéia de desenvolvimento espontâneo das aptidões naturais, o que de certa

forma sugerira Rousseau.98 Segundo Dewey (1959), o equívoco fundamental da “teoria

da disciplina formal” é o seu dualismo, a separação entre atividades e faculdades:

“Não existe a coisa que se chama aptidão para ver, ouvir, ou recordar em
geral; há aptidões para ver, ouvir e recordar alguma coisa. É disparate falar
em exercitar-se, em geral, uma aptidão mental ou física, separadamente da
matéria implicada em seu exercício” (p. 70).

98
Ao comentar a contribuição do autor de Emílio, Dewey ressalta que sua “teoria de seguir a natureza”
foi um passo importante no sentido de uma visão menos formal e abstrata do espírito e de suas
faculdades.
Enfim, para Dewey (1959) o que há “é um grande número de tendências

originárias, modos instintivos de proceder, baseados nas relações originárias dos

neurônios no sistema nervoso central” (p. 67). Elas são muitas e de variedade

indefinida, são tendências que reagem de determinado modo às transformações do

meio, mas não são faculdades intelectuais latentes. A modelagem das tendências se dá

pela seleção e coordenação das reações difusas provocadas em dado momento pelos

estímulos, e não pelo aperfeiçoamento obtido através do treino, como a ginástica opera

com os músculos. Quanto mais especializada for a reação, mais rígida e menos

transferível se torna a outros modos de procedimento a aptidão adquirida com a prática,

e menor qualidade intelectual terá o “adestramento”. Enfim, conclui Dewey (1959),

“capacidades como as de observação, memória, raciocínio, gosto estético, representam

resultados organizados da ocupação de nossas inatas tendências ativas, em

determinadas matérias” (Dewey, 1959:71).

Desta perspectiva, Dewey indica que é inútil empreender o desenvolvimento da

observação, memorização, etc., se não se determina o fim visado com o exercício:

“O necessário é que uma pessoa observe, grave na memória e adote para


matéria de seus juízos as coisas que a tornarão um membro competente e
eficiente da comunidade em que se acha associada a outras pessoas; se não
fosse assim, faria o mesmo efeito mandar o aluno observar cuidadosamente
as fendas da parede ou mandá-lo decorar listas de palavras de uma língua
para ele desconhecida. É isso mais ou menos o que fazemos ao adotar a
teoria da disciplina formal” (Dewey, 1959:72).

Dewey associa essa discussão com a distinção entre educação geral e educação

especial. Certamente algumas espécies de atividade são de maior amplitude que outras,

o que significa a coordenação de diversos fatores, possibilitando um largo campo de

movimentos e readaptações. Ele dá como exemplo a variação de situações

proporcionada pelo jogo, se comparado com a ginástica de aparelho. O jogador adquire

a prática de fazer novas combinações no curso da ação, cujo foco se desloca


continuamente.99 Assim, quando uma atividade abrange uma maior extensão e

determina constantes mudanças no seu desenvolvimento, dela resultará uma educação

mais geral, no sentido de amplitude e plasticidade. Segundo Dewey (1959), “na prática

escolar a educação satisfaz a essas condições e por isso será geral, na proporção em que

tomar em conta as relações sociais” (p. 72).

5. O pensamento e a ação

No prefácio da primeira edição de Como pensamos [1910], Dewey (1979)

afirmou que tentaria refutar a objeção de que a “atitude mental científica tem pouca

importância no ensino das crianças e dos jovens”. Ele almejava associar o moderno

espírito científico, seu método experimental, a uma certa atitude presente na infância,

caracterizada por uma viva curiosidade, imaginação e pelo gosto da investigação. Além

disso, um dos objetivos daquela obra era relacionar as reflexões sobre a lógica do

pensamento com a lógica da construção do conhecimento na escola.

Segundo Dewey, o pensar não se dá por uma espécie de combustão espontânea.

A necessidade de solucionar um problema, resolver uma dúvida ou superar uma

dificuldade é que seria o fator básico e guia de todo o mecanismo de reflexão:

“O pensamento tem como ponto de partida o que se denominou


apropriadamente uma bifurcação de caminhos, uma situação ambígua, que
apresenta um dilema, que propõe alternativas. Não existe reflexão quando
consentimos que nossa atividade mental passe insensivelmente de um
assunto para outro, ou que nossa imaginação se entregue livremente a seus
caprichos. Caso se apresente, porém, uma dificuldade, um obstáculo, no
processo de alcançar uma conclusão, precisamos deter-nos” (Dewey,
1979:23).

Desta perspectiva, situações de incerteza ou de dúvida seriam fatores

fundamentais do processo de construção do conhecimento. Porém, não se trata da

dúvida em si, a dúvida formal e introspectiva de Descartes. Esta já fora criticada por

99
Bourdieu (1996) também utiliza o exemplo do jogo quando discute a questão do “senso prático” ou
“razão prática”.
Peirce, ao alegar que não podemos partir de uma “dúvida absoluta”. 100 Também para

Dewey a dúvida surge de dificuldades ou obstáculos no curso das ações, algo que nos

impele a procurar soluções para os problemas e funciona como o fim regulador: “A

natureza do problema a resolver determina o objetivo do pensamento e este objetivo

orienta o processo do ato de pensar” (Dewey, 1979:24).

Esta visão serve para ilustrar bem a lógica pragmatista que se encontra em

Dewey, no sentido de que o pensamento e a ação aparecem relacionados de forma

intrínseca. Isto significa, por exemplo, que dizer a uma criança que pense, se isto

significar abstrair da realidade em que ela se encontra, seria algo não apenas infrutífero,

mas até mesmo absurdo. Para Dewey, não há reflexão nem conhecimento verdadeiro

sem uma situação que provoque o “desajuste” necessário ao processo de construção do

conhecimento.

Com um exemplo simples - o de uma criança que toca em uma chama e se

queima -, que já fora utilizado por ele no texto The concept of reflex arc in Psychology

[1896], Dewey (1979) reitera a importância da experiência no processo de

aprendizagem e na conformação das normas de ação:

“A criança que se queimou tem medo do fogo: uma conseqüência dolorosa


contribui muito mais para uma inferência correta do que uma erudita
preleção sobre as propriedades do calor” (p. 32).

Devemos observar que a importância atribuída neste caso à experiência não

implica na idéia de um simples condicionamento mecânico do comportamento, pois a

noção de inferência supõe um processo de reflexão em que os estímulos são

“reconhecidos”.101
100
“É certo que uma pessoa pode, no curso de seus estudos, encontrar razões para por em dúvida o que
tinha como crença; mas em tal caso duvida porque tem uma razão positiva para fazê-lo, e não por causa
da máxima cartesiana” (Peirce apud Joas, 1993:19). Segundo Joas (1993), esta perspectiva não se
confunde com a defesa de autoridades inquestionáveis frente às pretensões de alguém que pensa. Trata-
se de uma argumentação em favor de submeter o conhecimento a situações em que se apresentem
problemas reais. Isto é, substituir o conceito central do cartesianismo - o do eu que duvida sozinho -
pela idéia de busca da verdade no curso da ação (p. 19).
101
Dewey (1979) considera a inferência como “o núcleo de toda ação inteligente” (p. 100). Aí se
encontra uma das diferenças fundamentais entre a sua análise e o behaviorismo de Watson.
Vejamos como Dewey abordou de forma mais detalhada esta questão. No

referido artigo de 1896, considerado um marco da abordagem funcionalista na

psicologia, ele apresentou uma crítica à noção de “arco reflexo”. 102 A discussão estava

associada à que seus colegas da Universidade de Chicago, James Angell e Adison

Moore, expunham no ensaio Reaction-Time: A Study in Attention and Habit.

Lançavam-se ali ataques diretos aos dualismos antigos e modernos (corpo-mente,

estímulo-resposta, sensação-idéia) e foram estabelecidas bases para uma visão da

atividade mental como processo (Rucker, 1969:59). Dewey abandonava então os

últimos elementos transcendentais de sua filosofia, elaborando o que seria uma visão

naturalista da experiência.103 Ele criticou a noção de “arco reflexo” por ser uma visão

que considerava como coisas completamente distintas os estímulos aos sentidos, a

atividade central da mente e a resposta motora. Para Dewey (1975), eles eram funções

daquilo que se designou como ato, um movimento coordenado.

Em sua análise, ele substitui o esquema estímulo-resposta, descrito como um

patchwork com partes desconexas e mecanicamente associadas, por um feixe complexo,

o ato, no qual o estímulo dos sentidos, as conexões centrais e a resposta formam um

todo, um circuito orgânico, que mantém, reforça e transforma o ato. Em um ato, a

função interpretativa modifica o estímulo ao elaborar a resposta. Um estímulo tem valor

diferenciado de acordo com aquele que o recebe ou é estimulado. Em uma série de atos,

há uma contínua reconstrução e o significado do estímulo é interpretado como uma

reavaliação do presente ato à luz do que aconteceu anteriormente e de suas

conseqüências (Dewey, 1975:99). Segundo Dewey, a teoria do “arco reflexo” indicava

a sobrevivência do dualismo metafísico formulado por Platão, de acordo com o qual a

102
Rucker (1969) observa que talvez o mais importante aspecto desta abordagem para a psicologia
tenha sido “o deslocamento da preocupação com a estrutura da mente para uma preocupação com as
suas funções”(p. 62). O funcionalismo evita a distinção entre corpo e mente ao considerar a atividade
mental como uma forma particular das funções do organismo em interação com o seu meio.
103
A distinção entre corpo (body) e alma (soul) estivera ainda presente em seu texto Psychology, de
1887 (Rucker, 1969).
sensação é algo ambíguo (situada na fronteira entre o corpo e a alma), a idéia (o

processo central) é puramente psíquica e o ato (ou movimento) algo apenas físico (p.

104).

A visão de um circuito orgânico constituído por estímulo, conexão central e

resposta, enfatizando a função interpretativa, tornou-se para Dewey um princípio pelo

qual o valor educativo da experiência poderia ser analisado (Mayhey & Edwards,

1936:415). Tal perspectiva, embora tenha sido chamada na época de behaviorism,

diferencia-se do esquema mecânico e automático explorado por Watson, e que ficou

conhecido pelo mesmo nome. A diferença é que esta tendência da psicologia trata o

comportamento como uma cadeia de respostas a estímulos, que mantêm uma relação

meramente externa: “Em tal concepção não há lugar para comportamento consciente,

ação com um propósito deliberado que se distingue de uma ação automática, não há

lugar para o conflito de idéias” (Mayhey & Edwards, 1936:453). 104

Rucker (1969) observou que o forte preconceito de Watson em relação à

filosofia, manifestado inclusive em sua afirmação de que era incapaz de entender o que

diziam Dewey e Mead, ilustra uma perspectiva que não admite coisa alguma

pressuposta ou implicada além do que é diretamente observável no comportamento do

indivíduo. Mas como afirma Mead, “o comportamento de um indivíduo só pode ser

compreendido em termos do comportamento do grupo social do qual é membro”, já que

seus atos individuais estão relacionados com atos sociais, nos quais estão implicados

outros membros do grupo. Para a psicologia social, o todo (sociedade) é anterior à parte

(indivíduo). Isto é, a parte (indivíduo) deve ser explicada em termos do todo

(sociedade), não o inverso (Mead apud Rucker, 1969:81).


104
Em 1903 John Broadus Watson recebeu o título de Doutor em Filosofia (Ph.D.) pela Universidade de
Chicago, no departamento do qual Dewey era diretor. Nesta universidade, Watson trabalhou com
psicologia experimental até 1908, transferindo-se então para a Universidade Johns Hopkins. Porém,
suas relações com a filosofia em geral e com Dewey, em particular, nunca foram boas, conforme
declarações do próprio Watson sobre os seus estudos em Chicago: “Eu nunca sabia sobre o que ele
[Dewey] estava falando, e, infelizmente, eu ainda não sei... Eu fiz vários cursos com Mead. Não
entendia suas aulas, mas ele manteve interesse em minhas experiências com animais” (Rucker,
1969:69).
Joas (1993) assinala que as críticas de Dewey e Mead se referem às teorias que

reduzem a ação a uma determinação dos estímulos externos. Além disso, o modelo de

ação proposto por eles mostra uma modificação operada na idéia de intencionalidade,

em comparação com as teorias que consideram que a ação é a realização de fins já

estabelecidos:

“No pragmatismo, precisamente porque este considera todas as operações


psíquicas à luz de sua funcionalidade com respeito à ação, não é possível
sustentar a idéia de que a determinação de um fim seja um ato consciente
per se que transcorre fora de contextos de ação. Pelo contrário, a
determinação de um fim só pode ser o resultado da reflexão sobre as
resistências encontradas pela conduta orientada em diversas direções” (Joas,
1993:21).105
Como seria impossível seguir simultaneamente por vários caminhos ou obedecer aos

vários impulsos, uma questão ou motivo dominante passa a reger o processo, guiando a

ação e permitindo que os outros impulsos funcionem como subordinados.

6. O hábito de refletir

Segundo Dewey (1979), se não podemos ser ensinados a pensar, “temos de

aprender como pensar bem, especialmente como adquirir o hábito geral de refletir” (p.

43). Trata-se de um aspecto do pensar que ele aproxima do processo de investigação

científica, e este ocupa um lugar vital na sua visão de educação. Mas é importante

marcar que para Dewey o hábito de refletir se desenvolve a partir da vida dos alunos.

No caso da educação escolar, o professor funciona como um guia que pilota uma

embarcação, cuja energia propulsora vem dos que aprendem, de suas experiências,

desejos e interesses. Assim, quanto melhor o professor conhecer tais forças em ação,

melhor ele poderá dirigir as atividades para que se formem hábitos de reflexão (Dewey,

1979:44). O número e a qualidade dos fatores implicados nesse processo variam de

pessoa a pessoa, mas há algumas tendências gerais que podem ser aproveitadas: a

curiosidade, a sugestão e a ordem.

105
Os grifos são meus.
Dewey considera que a curiosidade é um fator básico da interação do organismo

com o meio. Cada órgão dos sentidos ou motor está naturalmente disponível para ser

acionado, para interagir. Se está acordada, qualquer criatura está envolvida em um

processo de agir sobre o meio e de receber estímulos, impressões. Esse processo de

interação constitui a própria estrutura daquilo que se chama de experiência. A

curiosidade seria então a soma de todas as tendências dirigidas para fora, para o meio,

um fator básico da experiência e ingrediente primário do pensar reflexivo (Dewey,

1979:45). Ela se desenvolve desde a “abundante energia orgânica” do bebê, com sua

contínua atividade de exploração, passando pelo estágio em que sofre o influxo dos

estímulos sociais, até se converter em elemento basicamente intelectual ou no interesse

de descobrir as respostas às interrogações nascidas do contato com pessoas e coisas.

Assim, afirma Dewey (1979), “o problema fundamental para o educador, seja pai ou

professor, é utilizar para fins intelectuais a curiosidade orgânica de exploração física e

de interrogação verbal” (p. 47). 106 Isto pode ser conseguido no processo de

desenvolvimento se a curiosidade for relacionada a objetivos que exijam a inserção e a

busca de objetos, atos e idéias:

“A curiosidade assume um caráter definitivamente intelectual quando, e


somente quando, um alvo distante controla uma seqüência de investigações
e observações, ligando-as umas às outras como meios para um fim”
(Dewey, 1979:47).

O que parece implicado neste esquema explicativo é que o desenvolvimento se dá por

uma passagem gradual e contínua entre o físico e o simbólico.

Quando fala de sugestão, Dewey se refere ao processo em que uma experiência

presente aparece como semelhante a algo de experiências anteriores, evocando ou

sugerindo alguma coisa ou qualidade comum, o que ocorre independente de nossa

intenção e vontade: “Não nos podemos obrigar a ter idéias ou não tê-las, assim como
106
Como foi indicado no capítulo II, ao classificar as tendências ou impulsos básicos das crianças
Dewey associou a linguagem ao impulso social. Ainda que uma criança tenha expressão quase auto-
centrada, ela interage através de instrumentos adquiridos nas relações com o meio.
diretamente não nos podemos obrigar a ter sensações das coisas... As idéias, nesse

sentido primitivo e espontâneo, são sugestões” (Dewey, 1979:48). É a possibilidade de

controlar as condições que determinam a ocorrência de uma sugestão e aceitar a

responsabilidade do emprego da sugestão para ver o que dela decorre que torna

significativo o “Eu” como agente e fonte do pensamento (Dewey, 1979:49).

Uma sugestão tem distintos aspectos ou dimensões, como a facilidade com que

ocorre, a extensão ou variedade e a profundidade. Segundo Dewey, a usual classificação

das pessoas como “inteligente” ou “estúpida” tem normalmente como referência a

presteza ou facilidade com que delas emergem sugestões quando lhes são apresentados

objetos ou fatos. Mas, no caso da escola, ele considerava que o professor não tem o

direito de diagnosticar “estupidez” ou “inteligência” somente com base nas sugestões

referentes às matérias escolares, pois tais reações dependem de muitos fatores que se

conjugam: a forma como a matéria foi explicada anteriormente, o tema em questão, a

velocidade e a profundidade exigidas para a resposta, os conhecimentos acumulados, o

ambiente, etc.. Dewey dá o exemplo de um aluno “fraco” em geometria que poderia

mostrar-se suficientemente arguto se a matéria fosse apresentada em conexão com

trabalhos manuais. Ele lembra ainda que certas crianças são repreendidas pela lentidão

com que elaboram respostas, quando a demora poderia significar concentração no

problema proposto, ao passo que a rapidez também pode estar associada à

superficialidade e inconsistência da abordagem.

Converter sugestões em reflexão exige uma outra dimensão, a propriedade da

ordem. Para Dewey, o pensamento reflexivo ocorre apenas quando o fluxo de

pensamentos se torna uma sucessão ordenada, que contém as idéias precedentes e se

dirige por uma questão ou problema. Mas para muitos o desenvolvimento de “hábitos

de ordem no ato de pensar” é indireto:

“É mais comum que se pense para realizar alguma coisa além do


pensamento, do que por simples amor do pensamento. É através da ordem
de ação que toda a gente, no início, - e a maioria, provavelmente, a vida
inteira - consegue alguma ordem de pensamento” (Dewey, 1979:56). 107

Enfim, o desenvolvimento do pensamento reflexivo demandaria a coordenação

dessas três grandes forças ou tendências. No que diz respeito à educação, é preciso

preparar atividades que despertem nos alunos a curiosidade, estabelecer condições para

se aproveitar o fluxo de sugestões vindas da experiência e trabalhar com questões que

favoreçam uma certa ordem na sucessão das idéias ou sugestões.

Ao relacionar a reflexão à experiência, Dewey (1979) indica que os professores

devem abandonar a noção de que o pensar é uma faculdade imutável e associá-lo aos

“diversos modos pelos quais as coisas adquirem significação para o indivíduo”,

lembrando ainda que os indivíduos diferem entre si (p. 53). O pensamento não é visto

como um mecanismo que reduz o diverso a um mesmo produto, mas como “um poder

de coordenar e unir as sugestões específicas despertadas por coisas específicas”

(Dewey, 1979:54). Também não é o conteúdo em si que atesta o uso do pensamento,

mas o modo como se desenvolve e orienta uma investigação significativa. Desta

perspectiva, tanto estudar a língua grega quanto aprender a cozinhar podem ser

consideradas atividades intelectuais. Retoma-se aqui uma das questões centrais da

filosofia da educação de John Dewey, a preocupação com a separação entre o teórico e

o prático:

“O exagerado valor, como meio de adestramento mental, emprestado aos


assuntos teóricos em detrimento dos trabalhos práticos, é devido em parte,
indubitavelmente, à circunstância de que a profissão do docente inclina-se a
preferir pessoas cujo interesse teórico é especialmente acentuado e afastar as
de marcada capacidade de execução. Os professores, tendo sido
selecionados nessa base, julgam os alunos e as matérias pelo mesmo padrão,
estimulando uma unilateralidade intelectual” (Dewey, 1979:67).

Enquanto exalta o que seria o pensamento reflexivo, Dewey (1979) também

critica a tendência de julgar a educação pelos seus “resultados exteriores”, o que pode
107
Dewey deixa transparecer aí uma visão típica do pragmatismo, ao destacar o forte vínculo entre ação
e pensamento.
ser observado no grande valor que se atribui à “resposta certa”. Em vez de pensar no

processo de desenvolvimento de atitudes, o professor, em geral, visa que o aluno

reproduza o conteúdo que lhe foi fornecido ou que nele foi depositado, para usar uma

expressão de Paulo Freire: “Enquanto (consciente ou inconscientemente) esse objetivo

tiver a supremacia, a educação do espírito continuará ponto acessório e secundário”,

afirmou Dewey (1979:72).

O grande número de alunos em cada sala de aula e a inclinação dos pais e

autoridades para exigir avaliações tangíveis do progresso escolar serviam e ainda

servem para corroborar um sistema educacional que valoriza basicamente “resultados

exteriores”. Tal modelo exige dos professores o conhecimento das matérias em parcelas

definidas e prescritas e, por isso mesmo, dominadas com relativa facilidade. Mas isto é

quase o oposto do que propunha Dewey, como vimos na análise da Escola Laboratório

da Universidade de Chicago. Isto é, uma educação escolar que adotasse como escopo “a

melhoria das atitudes e métodos intelectuais dos estudantes”, tocando diretamente na

questão do comportamento, da formação de hábitos. O problema é que este caminho

exige uma formação mais cuidadosa dos professores, pois requer conhecimento do

trabalho mental dos educandos e também um vasto domínio das matérias, que

possibilitam a seleção e aplicação oportuna das atividades (Dewey, 1979:72).

É importante lembrar que embora tenha ressaltado a relevância do pensamento

reflexivo, Dewey considerava que a educação abrange também o cultivo do gosto

(estética), o desenvolvimento de disposições morais (ética) e a formação de atitudes

práticas. Ele não desdenhava a aprendizagem como processo de retenção e acumulação

de informações (conteúdo). Isto era e continua sendo um truísmo, um lugar comum no

campo da educação. O que havia de novo e ainda hoje é relevante em sua filosofia da

educação é a justa atenção dada à experiência e aos aspectos duradouros da educação.108


108
Quando uso os termos aspectos duradouros da educação não os associo a uma perspectiva em que a
noção de estrutura é concebida como algo que, em última instância, anula os indivíduos. Penso que a
noção de hábito (como uma matriz de ação) não pode ser reduzida nem à idéia de consciência
Reforçando suas críticas ao descaso com que a escola tratava a experiência dos alunos

em relação à construção do conhecimento, Dewey (1979) chegou à seguinte conclusão:

“Uma das razões pela qual muito do ensino elementar é tão inútil para o
desenvolvimento de atitudes reflexivas é que, ao ingressar na escola, a
criança sofre uma ruptura em sua vida, uma ruptura com as suas
experiências, saturadas de valores e qualidades sociais. Pelo seu isolamento,
o ensino escolar é, portanto, técnico; e a maneira de pensar que a criança
possui não pode funcionar, porque a escola nada tem de comum com suas
experiências prévias “(p. 75).

7. Pensar como arte

Em Como pensamos [1910], Dewey emprega o termo “lógico” no sentido de

forma de um processo real, psicológico. O modo de pensar de cada ser humano varia

porque depende de seus hábitos, enquanto “as formas da lógica são constantes,

imutáveis, indiferentes à matéria que contém” (Dewey, 1979:80). Mas o pensar sempre

se reporta a um contexto e está associado a um problema a resolver. Para Dewey, o

famoso silogismo sobre Sócrates seria uma abstração ou formalização de algo que, de

fato, ocorreu com o filósofo ateniense.109 Mas Sócrates não morreu porque a conclusão

desse silogismo é formalmente verdadeira, como também não duvidamos por uma

necessidade intrínseca e formal de duvidar.

Dewey parte dessa idéia de lógica como configuração de um dado processo para

criticar duas tendências educacionais opostas. Ele não deixa explícito quem seriam os

representantes dessas tendências, mas pelas características das mesmas e pela simetria

com que estão apresentadas podemos supor o seguinte: em um lado, estaria a “escola

tradicional”, voltada para a transmissão de conteúdos e organizada a partir de uma

rígida estrutura disciplinar, e, em contraste com ela, estaria alguma corrente da própria

individual, nem a um mecanismo impessoal e abstrato, em que o indivíduo funciona como mero suporte
físico.
109
Silogismo é uma dedução formal em que duas proposições, chamadas premissas, são postas e delas
se tira uma terceira, logicamente implicada, chamada conclusão. O exemplo mais familiar de silogismo
é um sobre Sócrates: Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal.
“escola nova”. A primeira tendência indica que a mente humana é tão ilógica em seus

processos que a forma lógica precisaria ser nela impressa por ação externa:

“Presume que as qualidades lógicas pertencem unicamente ao conhecimento


organizado e que as operações mentais se tornam lógicas apenas através da
absorção de material logicamente formulado, já pronto” (Dewey, 1979:87).

Neste caso, a formulação lógica não seria o resultado de nenhum processo de pensar

empreendido e conduzido por uma questão, mas algo feito por outra mente e

apresentado já pronto. “Então, por algum passe mágico, seu caráter lógico transfere-se

para a mente dos alunos” (Dewey, 1979:87). Em outras palavras, essa tendência se fixa

nas propriedades formais das matérias, tendo como palavras-chave “disciplina” e

“esforço consciente”. A segunda tendência aceita a mesma premissa subjacente à

anterior, ao presumir que “a mente é naturalmente hostil à forma lógica” (Dewey,

1979:89). Disso se infere que a ordem lógica, sendo estranha às operações naturais da

mente, tem importância quase nula para a educação. O importante então seria “dar

liberdade de ação a impulsos e desejos, sem atenção a qualquer crescimento

definitivamente intelectual” (Dewey, 1979:89). As palavras-chave dessa corrente são

“liberdade”, “auto-expressão”, “individualidade”, “interesse”.

Lendo-se tais palavras assinaladas por Dewey, encontramos aí justamente aquilo

que de uma forma geral se associa à “escola nova”. Contudo, o próprio Dewey (1979)

aponta o erro básico de ambas as tendências, pois elas ignoram que “a mente possui, em

cada grau de desenvolvimento, sua própria lógica. Acolhe sugestões, verifica-as pela

observação de objetos e acontecimentos, obtém conclusões, experimenta-as em ação,

descobre que elas se confirmam, ou necessitam de correção, ou merecem ser rejeitadas”

(p. 90).110 Uma escola que advoga a “auto-expressão livre” esquece de que aquilo que

demanda expressão nas atividades das crianças também é de caráter intelectual, e que

110
Podemos entender, assim, por que Dewey emprega o termo “lógico” significando a forma de um
processo real. Ele parte da análise de um dado processo, como faz a psicologia experimental, e recorta
o que seria a configuração desse processo, sua forma, sua lógica.
um dos problemas da educação é “a transformação das forças naturais em forças

adestradas e provadas; a transformação da curiosidade mais ou menos casual e da

sugestão esporádica em atitude de investigação, vigilante, cauta, esmerada” (Dewey,

1979:91).

Como vimos no capítulo II, Dewey considerava que o psicológico e o lógico são

aspectos conexos do processo educativo, e que a disposição lógica que caracteriza as

matérias não é a única possível, podendo mesmo ser indesejável até que a mente do

aluno tenha atingido um ponto de maturidade e seja capaz de entender por que tal

forma, e não outra, foi adotada. Enfim, ele reconhece que o termo “lógico” tem vários

significados, mas que há um sentido vital em termos de educação e está associado ao

processo de pensar reflexivo: “Neste propósito, “lógico” aplica-se ao ato de regular os

processos espontâneos de observação, sugestão e verificação; isto é, significa pensar,

como arte” (p. 92).111

É possível perceber aí uma perspectiva distinta das duas anteriormente criticadas

e que tinham como divisas, respectivamente, a rígida disciplina e a pura liberdade. No

primeiro caso, o que está em jogo é uma concepção negativa de disciplina, que Dewey

relaciona a atos mecânicos, tendo por objetivo fazer com que o conteúdo penetre na

mente dos alunos através de exercícios repetidos à exaustão. O resultado seria a

aquisição de “maneiras exteriores de agir uniformes” (Dewey, 1979:93). Porém, ele

encontrou no campo da arte uma outra noção de disciplina, associada a uma

identificação ativa com os objetivos que determinam a atividade, e que resulta na

aquisição de uma dada capacidade pela prática, que não se reduz à repetição mecânica:

“A disciplina é um produto, um resultado, uma realização, não coisa


imposta do exterior. Toda educação verdadeira termina em disciplina, mas
procede, ocupando o espírito em atividades úteis, por amor das próprias
atividades” (Dewey, 1979:93).

111
Os termos aparecem grifados no texto de Dewey.
Por outro lado, para definir liberdade no processo educativo, Dewey expõe as

suas crítica à corrente educacional que a identifica com espontaneidade, naturalidade ou

descarga mais ou menos casual de impulsos:

“A liberdade não consiste em manter uma atividade exterior ininterrupta e


desimpedida; é algo que se consegue através da vitória, pela reflexão
pessoal, sobre as dificuldades que impedem uma ação imediata e um êxito
espontâneo” (Dewey, 1979:94).

8. O jogo e o trabalho

Segundo Dewey, educadores e psicólogos supuseram muitas vezes que é pela

simples imitação que as crianças reproduzem os procedimentos de outros. Afirmando

que raramente elas aprendem por um processo de imitação consciente e considerando

que uma imitação inconsciente não seria exatamente uma imitação, ele formula a

seguinte hipótese:

“As palavras, os gestos, os atos, as ocupações de outra pessoa se coadunam


com um impulso já ativo e sugerem algum modo de expressão adequado,
algum fim, em que esse impulso encontrará satisfação” (Dewey, 1979:206).

Uma criança, por exemplo, pode experimentar gestos empregados por um

adulto. Na aparente repetição automática estariam implicados processos de observação,

seleção, teste e confirmação dos resultados. Além disso, há um fator crucial implícito

aí, a liberdade para experimentar. Contrapondo-se a uma visão mecanicista, presente no

esquema estímulo-resposta, Dewey desenvolveu desde o seu famoso ensaio de 1896

sobre o arco reflexo uma perspectiva em que a ação é vista como um todo. Em

Democracia e Educação [1916] ele apresentou esta questão da seguinte forma:

“Suponhamos que uma pessoa joga uma bola para o lado de uma criança;
esta a apanha e a joga em sentido contrário, e o brinquedo continua. Neste
caso o estímulo não é a vista da bola, nem do companheiro de brinquedo. É
a situação - o jogo da bola. A “resposta” não é apenas rolar a bola para
trás; é fazê-lo de modo que o companheiro possa pegá-la e devolvê-la, a fim
de que o brinquedo continue. O “padrão” ou modelo não é o ato da outra
pessoa. Toda a situação requer que cada qual adapte seus atos tendo em
vista o que a outra pessoa fez e vai fazer. Pode surgir a imitação, mas o seu
papel é subalterno” (Dewey, 1959:38).
Além disso, quando está brincando uma criança pode subordinar a situação

“real” a um significado “ideal”. Uma pedra pode ser uma mesa, e um cabo de vassoura,

um cavalo. Exercitando a liberdade, ela define e constrói “um mundo de significações,

uma reserva de conceitos”, algo vital em toda operação intelectual (Dewey, 1979:207).

Dewey relaciona o brincar com o trabalho para discutir a questão das atividades

na escola. Este é um ponto que nos interessa. Mas ele lembra que é importante não

confundir a distinção psicológica entre brincar ou jogar e trabalhar com a distinção

econômica. O trabalho pode ser considerado como uma “atitude mental”, visto de

dentro e pensado em referência à educação. Assim, trabalho é definido como o

“interesse em materializar de modo adequado uma significação (sugestão, propósito,

fim) em forma objetiva, por meio de materiais e processos apropriados” (Dewey,

1979:209). Uma criança pode, a partir das significações formadas durante o brincar,

orientar o desenvolvimento da atividade, procurando fazer com que ela se aplique a

determinadas coisas:

“Neste terreno, trabalho significa atividade dirigida pelos fins que o


pensamento propõe ao indivíduo, como coisa a realizar; significa engenho e
inventiva para escolher meios próprios, para traçar planos; assim, significa,
em suma, que as expectativas e as idéias são verificadas nos resultados
reais” (Dewey, 1979:209).

Trata-se de uma noção de trabalho distinta da repetição mecânica de operações

ditadas por outros, uma “atividade exterior”, em que praticamente pensamento nenhum

é exigido. Dewey ressalta a importância educativa do trabalho enquanto “ação

inteligente”, pois torna possível a construção de significados e a sua verificação em

condições reais. Desta perspectiva, não é o produto que define o valor do trabalho:

“Deve-se julgá-lo do ponto de vista do plano, da invenção, do engenho, da observação,

exercitados pelo imaturo” (Dewey, 1979:210).


Esta análise estabelece um elo de ligação entre o brincar e o trabalhar, que

possibilita uma melhor distinção entre os mesmos sem reduzi-la à oposição entre

produto (trabalho) e processo (brincar). O brincar é associado ao “interesse por uma

atividade tal como decorre de momento a momento”, enquanto o trabalho, como foi

indicado, é uma atividade em que o interesse se mantém por um “fio de continuidade”

que liga umas às outras as sucessivas fases da ação (Dewey, 1979:210). Ambas as

atividades podem ser livres, posto que providas de motivação intrínseca ou de interesse

pela própria atividade112. São as condições econômicas que tendem a modificar esta

relação, transformando “os jogos em excitações ociosas para a classe abastada e o

trabalho em esforço desagradável para os pobres” (Dewey, 1959:227). Quando o

trabalho é combinado com a atitude do jogo, ele é arte, pelo menos na sua qualidade,

afirma Dewey.

Ao ressaltar a importância educacional do jogo e do trabalho, ele está ratificando

a relação entre viver e aprender, entre experiência e educação, entre imaginação e

pensamento, entre desenvolvimento do indivíduo e interação social. Mas não se deve

confundir as ocupações ou atividades na escola com o trabalho no sentido econômico:

“É falta de imaginação supor que as ocupações comuns a que se entregam


os adultos sob o império da necessidade não possam ser executadas pelas
crianças com perfeita espontaneidade e alegria. Não é o que se faz, mas o
estado de espírito com que se faz, que determina se uma atividade é
utilitária ou se é espontânea e criadora” (Dewey, 1979:213).

Dewey contrasta a divisão do trabalho no sistema industrial, feita em função do

produto, com a organização da escola onde as atividades deveriam estar livres da ênfase

econômica. Neste caso, o objetivo das atividades não estaria no produto, mas no

desenvolvimento das forças sociais. Tal independência da perspectiva utilitária pode

112
Dewey (1979) dá como exemplo desse interesse a atitude artística. Não sendo “puramente interior,
nem puramente exterior; nem meramente mental, nem simplesmente material”, a arte produz
transformações significativas das coisas para o espírito.
fazer das atividades práticas na escola algo associado à arte. 113 Dewey não deixa

dúvidas em suas críticas a uma visão estreita da educação escolar. Para ele, se

olhássemos de um outro ponto de vista perceberíamos que atividades como tecelagem,

marcenaria, metalurgia, culinária, etc. poderiam dar orientação à criança para

acompanhar o progresso da humanidade na história, seja pelos materiais usados ou

pelos princípios técnicos envolvidos (Dewey, 1980:13). Como vimos no capítulo II,

esta estratégia foi adotada na Escola Laboratório. Segundo tal enfoque, seria possível,

por exemplo, concentrar toda a história da humanidade na evolução do uso das fibras de

linho, lã e algodão e na confecção de nossas roupas. Isto se refere a um exemplo

utilizado por Dewey, em The School and Society [1899], sobre a observação de crianças

com idades entre 10 e 13 anos que desenvolviam atividades de tecelagem na Escola

Laboratório.114

Como já foi mencionado nos capítulos anteriores, a introdução nas escolas dos

Estados Unidos de ocupações, agrupadas em geral sob o nome de trabalhos manuais,

esteve presente na pauta de discussões da Era Progressista no final do século XIX. Este

tema se reveste de particular importância na teoria da educação de Dewey, pois era seu

propósito tornar as atividades na escola “instrumentos de formação de hábitos

intelectuais vivos, persistentes, eficientes” (Dewey, 1979:214). Partindo do instinto

realizador infantil, os trabalhos manuais serviriam como meios para a introdução de

problemas que se resolvem pela experimentação, abrindo espaço através da prática para

a aquisição de conhecimentos científicos e o desenvolvimento de hábitos de

cooperação. Contudo, Dewey não fez uma aposta cega nesta forma de ensino,

113
O sociólogo alemão Hans Joas (1993), em Pragmatism and Social Theory, ressalta que “para Dewey
o pragmatismo era nada menos do que um meio de criticar aqueles aspectos da vida americana que
fazem da ação um fim em si mesmo e que concebem os fins de modo demasiado estreito e demasiado
‘prático’” (p. 22).
114
Trata-se de um tipo de argumentação característica do pragmatismo deweyano, onde o dizer mantém
uma permanente conexão com o que foi experimentado, distanciando-se da pura especulação
reconhecendo que não existe nenhum meio mágico capaz de garantir os resultados

intelectuais desejados:

“Tão facilmente quanto as livrescas, podem as [atividades] manuais ser


ensinadas pela rotina, pela imposição, pela convenção. Mas seria viável
planejar um trabalho inteligente e consecutivo - em jardinagem, cozinha,
tecelagem, coisas simples de ferro ou madeira - que trouxesse como
inevitável resultado não só um acervo de conhecimentos de importância
prática e científica, em botânica, zoologia, química, física e outras ciências,
mas também (o que é mais importante) uma familiaridade com métodos de
investigação e prova experimental” (Dewey, 1979:215).

Como se pode notar, essa defesa da introdução no sistema escolar de ocupações

ou trabalhos manuais combina critérios de ordem científica - a necessidade de empregar

em vários níveis da vida social o método científico de base experimental - com uma

perspectiva filosófica e política de superação de antigos dualismos. No caso da

educação escolar, a preocupação se referia também ao desequilíbrio entre o abstrato (a

teoria) e o concreto (as coisas):

“Nada mais antinatural do que a instrução por meio das coisas sem
pensamento, percepções dos sentidos sem juízos que se lhes liguem. E se o
abstrato a que tendemos supusesse o pensamento sem as coisas, o fim seria
formal e vazio, porque uma verdadeira reflexão se refere sempre, mais ou
menos diretamente, a coisas” (Dewey, 1979:217).

Dewey não restringe a noção de concreto a uma referência material, pois uma

idéia (de número, por exemplo) é concreta quando se percebe claramente seu uso,

significado e relações. De forma inversa, objetos materiais empregados no ensino (de

aritmética ou de geografia, por exemplo) podem se tornar abstratos se não esclarecem e

proporcionam significados além deles próprios.

É importante notar como a visão de educação que encontramos em obras de

Dewey escritas a partir das experiências da Escola Laboratório da Universidade de

Chicago está construída, não apenas como uma forma de análise crítica da escola

tradicional, mas também como uma retificação de abusos da “escola nova”. À

exagerada ênfase posta no concreto, Dewey contrapôs a idéia de partir do concreto para
o abstrato, sendo que o “partir” representa a fase dinâmica do processo. Em uma

observação que fez a respeito da relação entre o teórico e o prático ele não poderia ser

mais pragmático, no melhor sentido que se pode atribuir a este termo:

“O pensamento teórico não é de espécie mais elevada que o pensamento


prático. Mas a pessoa que disponha de ambos os tipos de pensamento é
superior àquela que possua um só. Os métodos que, ao desenvolver as
aptidões intelectuais abstratas, enfraquecem os hábitos de reflexão prática
ou concreta são tão alheios ao ideal educativo como os métodos que, ao
cultivarem a capacidade de planejar, inventar, combinar ou prever, deixam
de garantir um certo prazer de pensar, independentemente das
conseqüências práticas” (Dewey, 1979: 225).

Desta perspectiva, um dos objetivos da “nova educação” por ele advogada seria

assegurar o equilíbrio entre os dois tipos de pensamento, tendo em consideração um

processo contínuo de crescimento.

9. Linguagem e experiência

Essa busca de equilíbrio também se faz presente no horizonte da linguagem. Um

dos problemas centrais da vida escolar é justamente a relação entre as aplicações prática

e intelectual da linguagem. Soa ainda bastante atual a proposta de Dewey para que a

escola orientasse as linguagens oral e escrita dos alunos, usadas a princípio basicamente

com fins práticos, de tal modo que gradativamente se tornassem instrumentos

destinados conscientemente a transmitir o conhecimento.

Ele assinala que se não existisse a mediação da linguagem, que representa ou

substitui as coisas, a experiência humana quase se nivelaria com a dos irracionais:

“Cada passo da selvageria para a civilização depende da intervenção de meios que

dilatem o círculo da experiência simplesmente imediata e lhe comuniquem mais

profunda e mais ampla significação, relacionando-as com coisas que podem unicamente

ser representadas ou simbolizadas” (Dewey, 1959:255). Tão grande é a dependência


que temos das letras no processo de mediação ou representação das experiências, que

não é raro se considerar inculta uma pessoa apenas iletrada ou analfabeta.

Porém, há sempre a possibilidade de que os símbolos percam o seu valor

representativo e, ao invés de evocarem sua relação com a experiência, tornem-se um

fim em si. A este perigo se acha particularmente exposta a educação formal. Daí a

sugestão de Dewey para que a escola incorporasse em seu programa ocupações ativas:

“Antes que o ensino possa com segurança começar a comunicar fatos e


idéias por meio de sinais, a escola deve proporcionar situações autênticas ou
verdadeiras, nas quais a participação pessoal do educando incuta a
compreensão da matéria e dos problemas que a situação promove” (Dewey,
1959:256).

Segundo a análise de Dewey, um vocabulário restrito tanto pode resultar de

limitações do campo da experiência - quando o contato com pessoas e coisas não

demanda um vocabulário muito amplo - quanto de descuido pessoal, de acomodação.

Neste sentido, uma das tarefas cruciais da escola é tentar ampliar as funções da

linguagem através do enriquecimento do vocabulário das crianças, tornando os termos

mais precisos e fazendo com que elas adquiram o hábito de falar de modo coerente.

Mas em grande parte o vocabulário das matérias escolares estava desprovido de ligação

orgânica com as idéias e palavras utilizadas fora da escola. Isto favorece a ampliação do

vocabulário passivo dos estudantes.115 Há, contudo, que tornar maior e mais inteligente

o contato do aluno com as pessoas e as coisas, e o cultivo das palavras no contexto em

que foram ouvidas ou lidas, ampliando o acervo ativo de palavras e significados.

Quanto à precisão do vocabulário, Dewey (1979) sugere que se busque nomear os

diversos matizes da significação, pois “a importância relativa do aumento de precisão é

tão grande quanto a importância absoluta do capital” (p. 238).

115
Uma distinção possível entre vocabulário ativo e passivo é a seguinte: o vocabulário passivo é
formado por palavras que só sabemos os seus significados quando elas são lidas ou ouvidas; o ativo, por
palavras de que somos capazes de empregar deliberadamente, na fala ou na escrita, com domínio
preciso dos significados (Dewey, 1979:237).
Dewey retoma em Como pensamos [1910] uma reflexão que já aparecera dez

anos antes, em The School and Society [1899], e que está muito bem sintetizada na

seguinte sentença: “Pelo método tradicional, a criança deve dizer alguma coisa que ela

tenha aprendido. Mas há uma enorme diferença entre ter alguma coisa para dizer e ter

de dizer alguma coisa” (Dewey, 1980:35; Dewey, 1979:243). Reitera-se aí a crítica à

pouca relação entre o universo da escola e a vida dos alunos, ou entre o mundo dos

livros e das lições e o mundo da experiência. “Depois, afirma Dewey (1979), nos

admiramos, estultamente, de que tão pouco valha na vida o que se estuda na escola” (p.

256).

A idéia de reconstrução ou reorganização da experiência serve tanto para a

análise do desenvolvimento do indivíduo quanto da sociedade. No que se refere ao

indivíduo, é possível retomar a discussão com o exemplo já mencionado da criança que

toca na chama de uma vela. Não há experiência simplesmente no fato dela por o dedo

na chama. A associação entre este movimento e a dor que a criança sofre é que

constitui a experiência. Daí por diante, o fato de pôr o dedo no fogo significa também a

possibilidade de uma queimadura. Experiência, portanto, diz respeito à construção de

significados e relações referentes a uma dada situação. Aprender da experiência, afirma

Dewey (1959), é poder fazer associações retrospectivas e prospectivas das interações

com as coisas no mundo: “Experimenta-se o mundo para se saber como ele é; o que se

sofre em conseqüência torna-se instrução - isto é, a descoberta das relações entre as

coisas” (p. 153).

Assim, podemos inferir junto com Dewey que a experiência é, inicialmente, uma

ação ativa-passiva, mas não necessariamente cognitiva; e que o valor da experiência se

encontra na percepção das relações a que ela conduz. Tais conclusões parecem

coerentes com uma definição do pensar apresentada por Dewey e que é bem

característica da perspectiva pragmatista: “Pensar é o esforço intencional para descobrir


as relações específicas entre uma coisa que fazemos e a conseqüência que resulta, de

modo a haver continuidade entre ambas” (Dewey, 1959:159). Retomamos assim a idéia

de que o pensar não é uma combustão espontânea, pois necessita sempre de uma

situação objetiva, que surge da interação entre o indivíduo e o mundo, daquilo que se

chama de experiência. Reforça-se também, pelo princípio da continuidade da

experiência, a relação entre esta e o hábito.

IV

Ciência e Democracia

1. Introdução

2. O espírito experimental

3. Educação para a democracia

Capítulo IV

Ciência e Democracia

“Apreender a validade relativa das nossas convicções e ainda assim


defendê-las sem vacilar é aquilo que distingue um homem civilizado de um
bárbaro” (Schumpeter apud Rorty, 1994:73).

1. Introdução
Neste capítulo, dois temas já mencionados aparecem com um tratamento mais

específico, embora conciso. Ciência e democracia marcam efetivamente o pensamento

de John Dewey e podem ser relacionadas. Quiçá esta relação se dê principalmente pelo

aspecto experimental do moderno método científico, no sentido de unir a teoria à

pratica (na experimentação), mas também pela ênfase posta por Dewey no caráter

provisório e progressivo do conhecimento científico. Sua aposta na experiência e na

ação social pode nos ajudar a entender por que ele chegou a chamar o pragmatismo

americano de “filosofia da democracia”. Para Rorty (1997a), o que Dewey tinha em

mente com isto era que o pragmatismo e os Estados Unidos eram “as expressões de um

estado de ânimo esperançoso, progressista [melioristic], experimental”. Isto é, esse país

e a corrente filosófica que nele mais se destacou sugerem que “em política podemos

substituir o tipo de conhecimento que os filósofos usualmente tratam de alcançar pela

esperança” (p. 9).

2. O espírito experimental

A introdução de atividades na educação escolar foi pensada por Dewey não

apenas como uma forma de desenvolver hábitos de cooperação social, mas também

como um caminho para se chegar aos conceitos nas diversas áreas de estudo. Desta

perspectiva, ele pôde criticar duas tendências do campo educacional: a primeira

tendência era a que introduzia grande variedade de experiências, atividades e materiais,

mas que não realizava a “ponte” necessária entre o simples passatempo ou a pura

liberdade e a intelectualização ou reconstrução da experiência; a outra tendência era a

que divulgava a crença de que as crianças formam os conceitos, não pela experiência

com as coisas, mas pela análise minuciosa dos objetos, que seriam comparados até que

fossem excluídas as diferenças, restando apenas o cerne do que lhes é comum. Segundo

Dewey (1979), a criança começa com qualquer significado que tenha obtido na primeira
experiência com um dado objeto (ver, pegar, brincar, etc.); daí então ela transporta

dessa experiência para outras subseqüentes certas expectativas quanto às características

e comportamento, antecipando e testando “hipóteses” formuladas (p. 157). Assim, o

significado vai sendo gradualmente definido.

O campo científico já demonstrara que é possível pensar de forma eficaz

fazendo uso do método experimental. Mas Dewey desejava que a “escola nova”

introduzisse esse método já nas primeiras séries do ensino fundamental. Não se tratava

de construir para as crianças laboratórios com aparelhos sofisticados, mas de introduzir

o espírito experimental nas escolas e criar uma alternativa ao ensino tradicional.

De uma perspectiva científica, a formulação de hipóteses depende, segundo

Dewey (1979), do estado da cultura e dos conhecimentos da época, da experiência do

investigador e até certo ponto do acaso. Assim, vários fatores se combinam no processo

de elaboração do conhecimento. Se o aparecimento de uma dada sugestão ou insight,

interessante ou desprezível, não é algo diretamente ou racionalmente controlado, “a

aceitação e uso da sugestão são suscetíveis de controle, caso se possuam hábitos de

pensamento reflexivo” (Dewey, 1979:169). Uma observação não se opõe ao

pensamento e nem é dele independente; também não é o dado em si que fornece a

hipótese para um problema. É o estudo minucioso das informações, examinadas e

comparadas experimentalmente com outras situações, e a eliminação do que não é

relevante e pode levar a erro que possibilita a formação de conceitos e teorias

explicativas:

“A técnica da investigação científica consiste, assim, em vários processos


que tendem a evitar a “leitura” precipitada de significações: expediente cujo
fim é proporcionar um relato puramente “objetivo”, imparcial, dos dados a
interpretar.” (Dewey, 1979:172).

Ao enfatizar a importância do método científico experimental, Dewey apontou

algumas desvantagens de um pensamento puramente empírico, como a possibilidade de


fixação em falsas crenças, a dificuldade para lidar com o novo e a tendência para inércia

mental e dogmatismo. Já o método experimental, ao invés de esperar que a natureza ou

o acaso apresente certas conjunções que nos induzam à noção de regularidade, funciona

pelo esforço deliberado para criar as condições de prova.

Para Geneyro (1991), autor de La democracia inquieta: E. Durkheim y J.

Dewey, o motivo que levou Dewey a reivindicar o método experimental da ciência

como modelo - adequado inclusive para questões éticas - passa mais por uma questão de

atitude que de técnica. Peirce, que durante sua formação convivera com a disputa entre

a filosofia de “seminário” e a filosofia de “laboratório”, insistira que a filosofia deveria

tornar-se científica. De certo modo isto significava afirmar o seguinte:

“Há uma atitude da mente e um método de investigação, manifestado não


invariável nem exclusivamente, mas primariamente, pelos cientistas
naturais, e que todos investigadores podem e devem adotar”
(Haack,1998:42).

No caso de Dewey, a ciência o entusiasmou por sua potencialidade de aplicação

prática, mas principalmente devido à perspectiva experimental e ao caráter progressivo.

Isto significa que qualquer teoria cedo ou tarde será corrigida ou abandonada, e torna a

liberdade de investigação um fator imprescindível, tanto para o desenvolvimento da

ciência quanto para a vida política em uma democracia. Como Rorty (1997) chama a

atenção, trata-se de uma perspectiva falibilista:

“Se nós apreendermos que o coração do pragmatismo é a sua tentativa de


substituir a noção de crenças verdadeiras enquanto “representações da
natureza das coisas” e, ao invés disso, pensarmos em crenças como regras
auspiciosas de ação, então fica fácil recomendar uma atitude experimental,
falibilista” (p. 94). 116

116
A perspectiva falibilista se tornou famosa com Karl Popper (1902-1994). Em um outro texto, Rorty
(1997a) observa que se Dewey tivesse lido Popper haveria aplaudido seu falibilismo, mas “teria
deplorado os dualismos que ele, como Carnap, dão por supostos. Porque o empirismo lógico, do qual
Carnap e Popper foram representantes - o movimento que pôs o pragmatismo bruscamente de lado nos
departamentos de filosofia norte-americanos depois da Segunda Guerra Mundial - reinventou as
marcantes distinções kantianas entre fato e valor, e entre ciência, por um lado, e metafísica e religião,
por outro” (p. 20).
Na década de 1940, Wright Mills formulou sobre o tema da relação entre Dewey

e o saber científico uma pergunta importante: por que Dewey não enfrentou o problema

político do poder em relação à ciência e à tecnologia? Segundo Mills (1968), uma das

razões teria sido que, pelos menos até a Primeira Guerra Mundial, a tecnologia de fato

permitiu que uma economia em plena expansão como a americana experimentasse

controlar as forças da natureza. Aparentemente todas as classes sociais obtinham algum

tipo de benefício do desenvolvimento industrial. Nos Estados Unidos, os resultados

mais visíveis da ciência estavam nos bens de consumo que as corporações colocavam

no mercado, graças às pesquisas desenvolvidas em laboratórios (Mills, 1968:435).

Também a posição social de Dewey era propícia a construir uma visão positiva da

ciência:

“Os grupos com os quais Dewey tinha contato mais freqüentes e aos quais
se dirigia estavam elevando-se na hierarquia do mundo profissional e
especializado. Foram precisamente esses grupos que participaram
intensamente nas práticas científicas e nas atividades tecnológicas, e os que
através das atividades realizadas se elevaram na estrutura hierárquica e de
classe da sociedade em processo de industrialização” (Mills, 1968:436).

Em outras palavras, o prestígio do esquema de ação e de pensamento imputado à

ciência ocorria dentro de um contexto de crescente industrialização e era ressaltado por

numerosas opiniões que assinalavam os resultados positivos da aplicação da tecnologia

e o êxito das profissões vinculadas a tais resultados: “Dewey generalizou a aplicação do

esquema no campo da educação e da análise política. Nestes contextos, e sobretudo no

último deles, o “método científico” se converte no “método da inteligência”, e este

método se equipara com a “democracia liberal” (Mills, 1968:437).

3. Educação para a democracia

Quando analisa as relações entre educação e sociedade, em Democracia e

Educação [1916], Dewey faz um retrospecto histórico desde a Grécia de Platão até os
Estados Unidos de sua época. O que se deduz dessa análise é que o objetivo da

educação, de uma forma geral e da educação escolar especificamente, variou

consideravelmente ao longo da história. Isto significa que o sentido da socialização é

dado basicamente pelas disposições do grupo social, e está relacionado ao contexto em

que se situam as instituições responsáveis pela transmissão do legado sócio-cultural,

entre as quais se insere a escola. Este argumento aparece na seguinte sentença do

próprio Dewey: “Toda educação ministrada por um grupo tende a socializar seus

membros, mas a qualidade e o valor da socialização dependem dos hábitos e aspirações

do grupo” (Dewey, 1959:89). Enfim, não é difícil concluir com o autor o seguinte: “A

concepção da educação como um processo e uma função social não tem significação

definida enquanto não definimos a espécie de sociedade que temos em mente” (Dewey,

1959:104).

Dewey (1959) ressalta que termos como “sociedade” e “comunidade” podem

significar muitas coisas e ser usados de diferentes formas. Por exemplo, a palavra

“sociedade” é empregada com um sentido laudatório ou normativo (de jure) ou com um

sentido de descrição (de facto). Em filosofia social, segundo ele, quase sempre é o

primeiro que predomina, concebendo-se a sociedade como algo único pela sua própria

natureza, sendo postas em relevo as qualidades comuns, a comunhão de propósitos, a

fidelidade aos interesses públicos, etc. Mas a observação de fatos a que o termo

sociedade se refere nos leva a encontrar uma pluralidade de associações, boas e más,

que incluí desde escolas até “engrenagens políticas que se mantêm unidas pelo interesse

da pilhagem” (Dewey, 1959). Uma grande cidade, por exemplo, compõe-se de uma

enorme variedade de outras unidades mais ou menos relacionadas entre si:

“No interior de uma cidade moderna, malgrado sua nominal unidade


política, existem provavelmente mais comunidades e diversidade de
costumes, tradições, aspirações e espécies de governo ou de influência do
que existiram em todo um continente em uma era remota” (Dewey,
1959:22).
O reconhecimento da questão da diversidade e de suas implicações para a

educação escolar ganha realce com as atuais discussões sobre multiculturalismo. Mas já

estava presente na noção de melting pot, a “mistura” relativa à formação de uma nação

composta por diferentes etnias com distintas origens e costumes. Este fenômeno

ocorreu de forma acentuada na configuração social de cidades como Chicago e Nova

York, onde Dewey viveu, ensinou e escreveu quase toda sua obra. “Foi essa situação,

talvez, mais do que qualquer outra, afirmou Dewey (1959), que acarretou a exigência

de institutos educativos que fornecessem uma coisa semelhante a um ambiente

homogêneo e bem equilibrado para as pessoas mais jovens”. Neste sentido, a escola

pública é reconhecida por ele como um meio capaz de contrabalançar “as forças

centrífugas geradas pela justaposição de diferentes grupos dentro de uma mesma

unidade política” (Dewey, 1959:23). Isto é, ela tentaria “coordenar, na vida mental de

cada indivíduo, as diversas influências dos vários meios sociais em que ele vive”

(Dewey, 1959: 23).117 Dewey considerava que a convivência na escola de jovens de

diferentes etnias e religiões, de costumes distintos, era algo positivo na medida em que

proporcionava “um meio novo e mais vasto”, “um descortino de horizontes mais

amplos”.

Com a Primeira Guerra Mundial, houve nos Estados Unidos uma espécie de

“histeria antigermânica”, acarretando problemas para os alemães que tinham ido viver

na América do Norte no século XIX. Em 1916, ano da publicação de Democracia e

Educação, Dewey pronunciou na National Education Association um discurso em

defesa do pluralismo cultural:

“Termos tais como irlandês-americano, hebreu-americano ou germânico-


americano são termos falsos, porque parecem assumir algo já existente
chamado América, ao qual os outros fatores podem ser acrescentados. O
fato é que o genuíno americano, o americano típico, tem ele mesmo uma
personalidade com hífen. Isto não quer dizer que seja em parte americano e
117
Essa preocupação de Dewey com as conseqüências da influência de diversos meios sobre os
indivíduos parece semelhante ao temor de Durkheim pela anomia. Ou seja, o perigo da perda de
referência e de coesão nas sociedades em processo acelerado de diferenciação e individualização.
que se acrescente algum ingrediente estrangeiro. Quer dizer que... é
internacional e inter-racial em sua estrutura. Não é americano e polaco ou
alemão. O americano mesmo é polaco-alemão-inglês-francês-espanhol-
italiano-grego-irlandês-escandinavo-boêmio-judeu, etc. O que há que ver
nisto é que o hífen conecta em lugar de separar. E isto ao menos quer dizer
que nossas escolas públicas ensinarão a cada um a respeitar os outros, e se
esforçarão para nos esclarecer a todos sobre a grande contribuição passada
de todas as partes de nossa estrutura composta” (Dewey apud Putnam,
1997:253).118

Putnam ressalta que Dewey pensava em como evitar os conflitos étnicos na

sociedade americana, mas também em combater uma ruptura em termos de classes

sociais.119 No âmbito da educação, estas duas questões podiam ser relacionadas, posto

que as crianças mais pobres quase sempre vinham de famílias não anglófonas (Putnam,

1997:254).

Quando discutimos a questão da socialização, indicamos que toda educação

ministrada por um dado grupo tende a reproduzir sua vida social e que a qualidade e o

valor da socialização dependem dos hábitos e das aspirações do grupo. Neste sentido,

Dewey considerava que uma sociedade que não apenas se transforma, mas faz da

mudança um ideal - uma sociedade progressiva -, terá normas e métodos educativos

diferentes dos de outras sociedades que simplesmente aspiram à perpetuação de seus

costumes. Isto põe em jogo o problema da escolha de uma “medida de valor dos

diferentes modos de vida social”. Podemos cair na tentação de criar com a imaginação

alguma coisa que vemos como uma sociedade ideal, ou considerar como válida a

reprodução da sociedade tal como se encontra. A proposta feita por Dewey (1959), para

evitar esses dois extremos, é “extrair os traços desejáveis das formas de vida social

existentes e empregá-los para criticar os traços indesejáveis e sugerir melhorias” (p. 89).

Ele trabalha com os seguintes princípios: primeiro, que objetivos devem ser gerados a

118
Os grifos são meus.
119
Em 1934, no simpósio The meaning of Marx, Dewey (1934), ao responder a questão Why I am not a
communist, afirmou que reconhecia a existência de conflitos de classe como um dos fatos fundamentais
da vida social, mas que era “profundamente céptico em relação à luta de classe como o meio pelo qual
tais conflitos possam ser eliminados e genuínos avanços sociais alcançados” (p. 88).
partir das condições existentes, garantindo alguma exeqüibilidade; segundo, que em

qualquer grupo social se encontram interesses comuns e uma certa “interação e

reciprocidade cooperativa com outros grupos”.

Como já foi assinalado, a idéia de uma sociedade democrática e progressiva

funciona como a referência central do pensamento pedagógico e político de John

Dewey. Ele a define como uma sociedade na qual “existem convenientes e adequadas

oportunidades para a reconstrução dos hábitos e das instituições sociais por meio de

amplos estímulos decorrentes da eqüitativa distribuição de interesses e benefícios

(Dewey, 1959:108). Mas para que existam e se ampliem os valores comuns em uma

sociedade é necessário dispor de oportunidades para um mútuo dar e receber. Isto

significava, para Dewey, a criação de “empreendimentos e experiências de que todos

participassem”, pois a falta de um razoável intercâmbio entre os diversos grupos sociais

desequilibra o livre jogo dos estímulos:

“Quanto mais as atividades se restringem a umas tantas linhas definidas -


como sucede quando as divisões de classes impedem a mútua comunicação
das experiências - mais tendem a se converter em rotina para a classe de
condição menos favorecida, e a se tornar caprichosas, impulsivas e sem
objetivos para a classe em boa situação material” (Dewey, 1959:91).

O isolamento tende a gerar, no interior dos grupos sociais, a rigidez e os ideais

estáticos e egoístas. Dewey via nisto um sério problema político e cultural, afirmando

que uma separação rígida entre a “classe privilegiada” e a “classe submetida” impede

uma “endosmose social”. Os prejuízos que afetam a classe dominante são menos

materiais e menos visíveis, mas igualmente reais: “Sua cultura tende a tornar-se estéril,

a voltar-se para se alimentar de si mesma; sua arte torna-se uma ostentação espetaculosa

e artificial; sua riqueza se transmuda em luxo; seus conhecimentos superespecializam-

se; e seus modos e hábitos se tornam mais artificiais” (Dewey, 1959:90).

Tomando como referência um certo “ideal democrático”, Dewey propôs

critérios para orientar a reconstrução social, aplicando-os aos problemas da educação. O


primeiro critério está relacionado ao reconhecimento de que os interesses recíprocos são

fatores cruciais de regulação e direção social. 120 O segundo diz respeito não apenas a

uma cooperação mais livre entre os grupos sociais, mas também à mudança de hábitos,

sua contínua readaptação às situações criadas pelos intercâmbios. Ora, para Dewey

(1959), “estes dois traços são precisamente os que caracterizam a sociedade

democraticamente constituída” (p. 93).

A associação entre educação e democracia é algo muito comum. Uma

compreensão superficial desta relação se restringe à idéia de que um governo que se

funda no voto popular não pode ser eficiente se aqueles que o escolhem e lhe obedecem

não forem devidamente educados. Como uma sociedade democrática repudia o

princípio da autoridade externa, para o lugar dessa a educação traz o interesse

voluntário e a aceitação consciente (Dewey, 1959). Mas Dewey apresenta uma

definição de democracia que nos faz pensar em uma relação bem mais complexa e

profunda entre esta e a educação. Aí está uma noção fundamental, quiçá a pedra angular

de sua filosofia da educação:

“Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, primacialmente,


uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente
comunicada” (Dewey, 1959:93).

Além disso, ele considera que uma “sociedade móvel”, dinâmica, ainda que

dividida em diferentes classes, está cheia de “canais distribuidores de todas as

mudanças”, por onde circulam interesses comuns e que podem ser ampliados:

“A extensão, no espaço, do número de indivíduos que participam de um


mesmo interesse de tal modo que cada um tenha de pautar suas próprias
ações pela ações dos outros e de considerar as ações alheias para orientar e
dirigir as suas próprias, eqüivale à supressão daquelas barreiras de classe,
raça e território nacional que impedem que o homem perceba toda a

120
Vale aqui retomar alguns comentários de Hans Joas. Segundo este sociólogo, a teoria da ordem
social do pragmatismo está guiada por uma concepção de controle social no sentido da auto-regulação e
resolução coletiva de problemas. Em termos específicos, a noção de social control usada por Dewey
“não se referia à garantia de conformidade social, senão a uma consciente auto-regulação, à idéia de
autogoverno efetivada através da comunicação e do entendimento bem como da resolução dos
problemas coletivos”(Joas, 1993:25).
significação e importância se sua atividade. Esses mais numerosos e
variados pontos de contato denotam maior diversidade de estímulos a que
um indivíduo tem de reagir; e incentivam, por conseguinte, a variação de
seus atos; asseguram uma liberação de energias que ficam recalcadas
enquanto são parciais e unilaterais as incitações para a ação, como ocorre
com os grupos que com os seus exclusivismos fecham a porta a muitos
outros interesses” (Dewey, 1959:94).

Não é difícil encontrar na filosofia da educação de Dewey a indicação de que a

educação escolar, principalmente quando ministrada em escolas públicas, pode ser um

instrumento indispensável, ainda que não seja o único, para ampliar esses “numerosos e

variados pontos de contato” entre os diferentes grupos, contribuindo para a mobilidade

social. Mas Dewey (1959) afirma também que para isto ocorrer não basta que a

educação escolar não seja considerada como instrumento de exploração de uma classe

social por outra. As experiências escolares devem ser asseguradas com tal amplitude e

eficácia que, de fato, sirvam para reduzir os efeitos perversos das diferenças

econômicas e sócio-culturais. Para realizar tal objetivo, Dewey fez sugestões que hoje

podem parecer óbvias em termos de gestão: modificações nas concepções tradicionais

de matéria de estudo, método de ensino, disciplina e organização escolar, de forma que

a “nova escola” pudesse manter os jovens sob sua influência educativa até eles estarem

aparelhados para iniciar as carreiras profissionais; indicou ainda que a administração

pública proporcionasse as condições necessárias e complementasse os recursos das

famílias121, para que os jovens se habilitassem a auferir proveito das experiências

escolares, etc.

Assim como Durkheim, Dewey reconheceu que uma das funções cruciais da

educação em geral é transmitir às novas gerações o legado cultural da sociedade a que

pertencem. Entretanto, reduzir a educação a isto é próprio das sociedades estáticas.

Dewey tinha em perspectiva as sociedades democráticas e progressivas:

121
Algo que nos faz lembrar os programas de bolsa-escola.
“Estas se esforçam por modelar as experiências dos jovens de modo que, em
vez de reproduzirem os hábitos dominantes, venham a adquirir hábitos
melhores, de modo que a futura sociedade adulta seja mais perfeita que as
suas próprias sociedades atuais” (Dewey, 1959:85).

Talvez uma outra maneira de interpretar a filosofia da educação de John Dewey

seja como uma crítica à tradição que tentou fazer da metafísica um substituto dos

costumes, uma fonte e garantia dos valores sociais mais elevados. Como lembra Rorty

(1997a), Dewey queria desviar a atenção do eterno para o futuro. Isto seria possível

transformando a filosofia, negando que ela pudesse ser um fundamento a-temporal, a-

histórico para os costumes, e tornando-a um tipo de compreensão necessária para lidar

com os problemas à medida que eles surgem.

Epílogo
Epílogo

Em várias partes deste livro, a começar pelo título, aparecem pares de conceitos:

indivíduo e sociedade, vida e escola, texto e contexto, progressivismo e pragmatismo,

teoria e prática, mente e mãos, lógico e psicológico, jogo e trabalho, linguagem e

experiência, ciência e democracia, etc.. Eles não formam necessariamente pares de

opostos, mas servem para indicar uma estratégia, pois a tensão entre essas noções

permeou a interpretação que aqui apresento da filosofia da educação de John Dewey.

Sabemos que sem uma questão e o incômodo que ela provoca, sem um

“espanto” inicial - que os gregos na Antigüidade chamaram de thauma -, nenhuma

filosofia, nenhuma ciência, nenhuma pesquisa tem início e se efetiva. Uma insatisfação

com a tradicional visão do indivíduo como algo contrário à sociedade, da “escola nova”

como uma corrente uniforme e basicamente “individualista” e a vontade de ampliar o

conhecimento sobre o pragmatismo americano funcionaram como balizas no

desenvolvimento desta pesquisa.


A relação entre indivíduo e sociedade na educação escolar foi o fio condutor das

leituras que realizei nos últimos quatro anos. Ela está associada ao problema da tensão

entre socialização e individualização, que não é, certamente, um tema original. De

Durkheim a Bourdieu, de Dewey a Norbert Elias, filósofos, sociólogos e psicólogos

vêm tentando apresentar teorias mais claras, consistentes e capazes de lançar luz sobre o

elo entre o “eu” e o mundo ou entre indivíduo e sociedade. O núcleo deste trabalho, ou

seja, a tese é a retomada desta relação com o objetivo de apresentá-la através da

filosofia da educação de John Dewey. Tinha como hipótese inicial que, da perspectiva

dos pragmatistas de Chicago (principalmente Dewey), essa relação era bem mais

complexa e matizada do que uma simples oposição de linhagem maniqueísta. Além

disso, como foi indicado na Introdução, algumas interpretações do legado da “escola

nova” no Brasil feitas a partir da década de 1970, principalmente no que dizem respeito

às idéias de Anísio Teixeira, me desafiaram ainda durante o mestrado para uma leitura

mais ampla da obra de John Dewey. Este autor foi um dos expoentes da “escola nova”

nos Estados Unidos e a referência intelectual mais clara de Anísio Teixeira.

Empreendi então uma busca de respostas para essas questões em um campo

específico, o da educação, e a partir da obra de um autor, o filósofo e educador John

Dewey. Contudo, foi pelo diálogo com a sociologia (Durkheim, Mills, Joas, Elias,

Bourdieu) que direta ou indiretamente consegui construir o texto apresentado. Isto

talvez crie problemas taxionômicos para alguns leitores. Mas a possibilidade de situar

este “observatório” na fronteira entre campos do conhecimento está relacionada com o

próprio núcleo da pesquisa, com a sua tese, com características do campo da educação e

das idéias de John Dewey. Se tradicionalmente a filosofia e, a partir dela, a psicologia

eram os saberes mais apropriados para se investigar o indivíduo, sem as contribuições

do campo da história e da sociologia tornam-se inviáveis quaisquer especulações sobre

a relação entre indivíduo e sociedade. Ainda que se feche um pouco mais o foco,
investigando essa relação no que diz respeito especificamente à educação, a importância

da sociologia e da história não desaparece. Neste sentido, as obras de Durkheim e

Bourdieu, só para dar alguns exemplos, demonstram de forma objetiva a importância da

educação - seja como campo de conhecimento, seja como prática social - para o

desenvolvimento das pesquisas em ciências sociais.

Pelo que foi apresentado, podemos retomar algumas questões. Será que se

justifica a hipótese de que Dewey advogou uma educação completamente voltada para a

criança (child-centered), em detrimento de uma visão mais societária? Encontram-se no

projeto pedagógico de Dewey traços evidentes de “um mecanismo de recomposição da

hegemonia da classe dominante” com o objetivo de rebaixar o nível de ensino destinado

às camadas populares, já que aquela se sentira ameaçada pela crescente participação

política das massas?

Do que pude aprender ao longo desta pesquisa, especificamente com as

características do projeto pedagógico desenvolvido por Dewey na Escola Laboratório

da Universidade de Chicago (capítulo II), uma determinada visão da “escola nova” deve

ser cuidadosamente reconsiderada, ao menos no que se refere às idéias desse filósofo e

educador. E uma tal revisão implica também matizar certas críticas que foram feitas a

Anísio Teixeira, principal divulgador da filosofia da educação de John Dewey no

Brasil. Assim, uma de minhas expectativas ao iniciar esta pesquisa parece ter sido

confirmada. Isto é, a oportunidade de ampliar o nosso conhecimento do pragmatismo

americano era também um caminho para a construção de uma visão menos difusa da

“escola nova”. Talvez tenha passado para alguns leitores a falsa idéia de um discurso

laudatório, quando o que procurava era reconstruir a visão de um autor através de seus

próprios textos.

Em termos pessoais, esse percurso é minha modesta homenagem ao professor

Anísio Teixeira (pelos 100 anos de seu nascimento comemorados em 2000), que
seguindo as idéias de John Dewey considerava a educação escolar um instrumento

imprescindível na construção de uma sociedade democrática. Seja por uma aposta

política ou pela ilusão do conhecimento, compartilho com esses autores a visão de que o

sistema educacional é o coração da democracia, entendida não apenas como uma forma

de governo, mas também como “uma forma de vida associada, de experiência conjunta

e mutuamente comunicada”.

Considerando com Norbert Elias (1994) que a consciência dos indivíduos,

qualquer que seja sua forma, é específica à sociedade, tentei inicialmente relacionar

alguns aspectos do processo de formação de John Dewey com os contextos (familiar,

religioso, econômico, profissional, etc..) em que isto se deu. Dentre as questões

abordadas, destaco a relação estabelecida por Mills (1968) entre a história do

pragmatismo e a história da profissão acadêmica nos Estados Unidos. Neste sentido, a

formação intelectual de Dewey e sua trajetória universitária e profissional servem para

ilustrar a ascensão de novos valores ligados a uma sociedade urbana e perpassada pelo

conhecimento científico; servem também para explicitar certas questões de sua filosofia

da educação, que foi elaborada a partir desses contextos, mas também como uma crítica

aos mesmos.

A rígida separação entre educação para a mente e educação para as mãos, por

exemplo, parecia apenas dar continuidade à “racionalidade” da distinção entre trabalho

manual e trabalho intelectual, fundamentada em última instância no reconhecimento do

isolamento e da superioridade da razão frente à experiência. Mas tal superioridade,

argumentava Dewey, não fora posta em cheque pelo método experimental da ciência

moderna?

Nas décadas finais do século XIX a ciência já estava integrada em amplos

setores da sociedade americana, tendo criado instituições que congregavam tanto

filósofos como homens de negócio. Universidades e organizações sociais laicas


passaram a ocupar espaços que antes eram domínio das igrejas. Foi nesse contexto que

Dewey optou por seguir a carreira docente. Ao obter um título de Ph. D., que passara a

hierarquizar os professores universitários, ele seguiu uma trajetória que seria quase o

padrão profissional no século XX no campo acadêmico. Ainda durante o doutorado,

podendo escolher entre a profundidade filosófica do hegelianismo e uma perspectiva

naturalista e experimental, Dewey, ao invés de optar claramente por uma das partes,

seguiu em frente e pôde formular um modo peculiar de exercer a filosofia, integrando

às suas reflexões estudos de natureza científica, isto é, estudos fundados na observação

e na experiência, em hipóteses e revisões contínuas de suas conclusões. Neste sentido,

sua filosofia da educação nem segue a linha da teorização pura ou simplesmente

especulativa - que desde Platão tem caracterizado o campo filosófico - nem tampouco

renuncia ao direito de existir enquanto um “observatório” específico das ações

humanas. Em termos gerais, a obra de Dewey pode ser caracterizada como uma

filosofia da ação e para a ação. O antropólogo Clifford Geertz (2001), em reflexão

recente, afirmou o seguinte sobre esta questão: “Depois de Dewey, ficou muito mais

difícil encarar o pensamento como uma abstenção do agir, a teorização como uma

alternativa ao compromisso e a vida intelectual como um monacato secular, isento de

responsabilidade por ser sensível ao Bem” (p. 30).

Ao resgatar aspectos não cognitivos da experiência, a obra de Dewey mantém a

tensão entre o horizonte físico e o simbólico (mental), sem considerá-los como opostos.

Trata-se de uma forma de superar dualismos e um retorno, em outros termos, a uma

concepção biológica de psyche. Contudo, a visão da educação como um processo

complexo que mantém relações fundamentais com a reprodução e a transformação da

vida social parece ter servido para equilibrar em sua obra uma perspectiva naturalista. A

ênfase que ele pôs no uso da inteligência para a resolução de problemas e a crença na
educação como uma “chave” para o progresso social funcionam como indicadores de

uma visão crítica ao “darwinismo social”.

A filosofia da educação que se configurou em Chicago, no final do século XIX e

início do século XX, emergiu em um contexto no qual a expansão do capitalismo

industrial monopolista minava paulatinamente antigos padrões morais da República de

1776. Assim, a chamada Era Progressista tentou combinar a modernização da sociedade

norte-americana com o resgate de antigos valores, como o comunitarismo e um

individualismo de bom estofo moral. Na filosofia da educação de Dewey encontramos

marcas dessa mesma proposta. Isto nos ajudou a compreender certas características do

projeto pedagógico da Escola Laboratório da Universidade de Chicago: por exemplo, a

ênfase em uma socialização que, ao mesmo tempo, deveria levar em conta os interesses

dos alunos (indivíduos) - estes que estavam sendo cada vez mais examinados pelas

ciências que funcionavam como fontes para a educação - e o desenvolvimento de

hábitos de cooperação adequados à construção de uma sociedade democrática e

progressiva, tudo isto sem perder de vista a perspectiva experimental da ciência

moderna.

Com a criação daquela escola Dewey teve amplas oportunidades para

desenvolver a filosofia como uma reflexão sistemática sobre a prática da educação.

Dois aspectos devem aí ser destacados: primeiro, a tentativa de saber como as crianças

desenvolvem o pensamento, uma abordagem cognitiva. Desta perspectiva, o

crescimento foi concebido como um processo contínuo em que o indivíduo amplia

gradualmente o seu domínio do meio social a partir da interação com o mesmo, ou seja,

a partir da experiência. O segundo aspecto era a preocupação com o valor social dos

hábitos que a educação escolar pode formar, uma abordagem normativa.

Uma das questões em pauta na Escola Laboratório era tentar fazer com que as

crianças desenvolvessem espírito de cooperação social enquanto cresciam. Assim, na


medida em que se processava a formação dos alunos como indivíduos

(individualização), a escola deveria dar conta simultaneamente de socializá-los visando

o desenvolvimento de hábitos de cooperação social. Isto toca diretamente no problema

de como utilizar as tendências ou impulsos dos alunos como forças de crescimento de

cada indivíduo e do todo, a sociedade. Ou seja, como a educação escolar pode

favorecer, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do indivíduo e a construção de uma

sociedade democrática.

Atento às transformações nos padrões de comportamento em curso em uma

sociedade que se urbanizava e se industrializava, Dewey supôs que a escola seria capaz

de suprir em termos de educação algo do que estava sendo diluído e mesmo destruído

com as mudanças na ordem social. É neste sentido que interpreto uma das questões

centrais de seu pensamento pedagógico, ou seja, a idéia de que a escola deveria ser

organizada como uma comunidade ou uma “embryonic society”.

É importante também ressaltar nessas considerações finais que, na visão de

Dewey, se uma boa educação não se dá pela simples transferência de conhecimentos

(conteúdo), também não pode ser confundida com o laisser faire. O método advogado

por ele, que vimos através de uma leitura geral da organização da Escola Laboratório da

Universidade de Chicago, punha ênfase nas atividades, por sua importância tanto do

ponto de vista epistemológico quanto do ponto de vista moral ou social. Através das

social ocupations Dewey pensava em reproduzir em miniatura atividades básicas da

vida social, tornando possível o contato gradual das crianças com a estrutura, materiais

e modo de funcionamento de uma sociedade. Mas visava também criar condições para

que elas se expressassem individualmente, exercitando o controle de suas próprias

forças ou autocontrole. A concepção de escola como uma “comunidade do saber”

(learning community) reflete bem a ênfase posta no caráter social do aprender. Dewey

considerava que um dos principais obstáculos à organização da escola como uma


comunidade ou sociedade em miniatura era justamente a falta de atividades comuns e

socialmente produtivas. Por tudo que vimos, longe estamos de um pensamento que

pode ser associado facilmente a uma perspectiva individualista.

É importante ratificar que nesta pesquisa a noção de hábito (habit) ocupou um

lugar central. Mas não foi pela simples apresentação da definição que se encontra em

Dewey que pensei resolver a questão central do livro, ou seja, a relação entre indivíduo

e sociedade. Vimos, por um lado, o conceito de socialização, que em Democracia e

Educação [1916] se assemelha ao que Durkheim formulara quase que simultaneamente.

Ele nos ajuda a entender a função do meio na modelagem social dos indivíduos. Como

foi indicado, se a socialização fosse um processo automático, uma geração mais jovem

de uma determinada sociedade seria a cópia ou a reprodução das anteriores. Porém, a

socialização se processa por intermédio de instituições sociais (como a família, a escola,

as religiões, os clubes, a mídia, etc.), isto é, através do meio; é algo que ocorre ao longo

do tempo e opera sobre as características e as diferenças individuais. Assim sendo, a

noção de hábito, parece importante justamente por dizer algo sobre um processo em que

a socialização se dá de forma simultânea à individualização. Ou seja, o hábito tem

origem na interação dos seres humanos com o meio social, mas ele se estrutura em cada

um. Neste sentido, não seria o hábito a incógnita da equação que relaciona indivíduo e

sociedade?

Do ponto de vista teórico, a noção de hábito possibilita que se superem certos

determinismos (dos impulsos e do meio, por exemplo). O hábito se desenvolve na vida

social através da experiência, mas não se trata de algo fixo, que apenas gera atos

estanques. A plasticidade do ser humano e o recurso da inteligência nos sugerem que a

aprendizagem é algo efetivamente distinto do adestramento. Assim, o hábito, ao ser

combinado com a inteligência, pode ser visto também como uma matriz de criação, tal

como se apresenta na atividade artística. Ao destacar o papel da inteligência ou


pensamento reflexivo, Dewey nos dá pistas para entender a possibilidade de

transformações no comportamento, a despeito do vetor de conservação ou reprodução

presente no hábito. Assim, quando o nosso sistema de disposições (hábitos) não é

suficiente para agir em uma situação de desequilíbrio, a inteligência é acionada como

forma de restabelecer, pela ação, o equilíbrio.

Um hábito torna a experiência aproveitável em outras oportunidades. Isto sugere

que experiência e hábito são duas noções que estão diretamente relacionadas. No

âmbito da educação, a importância atribuída por Dewey à experiência também fazia

parte de uma reação da “escola nova” à rigidez da “antiga escola”, em que a vida dos

alunos era pouco considerada na elaboração dos métodos de ensino e aprendizagem.

Por fim, dissemos algo sobre ciência e democracia, elementos centrais na obra

do autor estudado. É necessário marcar que nela não se encontram apenas elogios à

organização social americana e nem mesmo uma ode simplista ao progresso científico.

A tensão entre aspectos da modernização (industrialização/urbanização) e a idéia de

resgatar antigos valores (comunitarismo) mostra o reconhecimento por parte de Dewey

de desafios postos à compreensão da ordem social americana no final do século XIX:

surgimento das grandes metrópoles, perda do espírito comunitário, concentração da

riqueza na mãos de poucos grupos econômicos, “darwinismo social”, necessidade de

assimilações de um enorme contingente de imigrantes, diversidade cultural, etc..

Ao final deste percurso, penso que em nada contribui para a compreensão do

pragmatismo americano e das idéias do próprio Dewey identificá-lo simplesmente com

a figura do filósofo ingênuo - que não foi capaz, como tantos outros, de pensar no papel

vital (determinante, diria Marx) que a estrutura econômica desempenha na dinâmica da

sociedade, na qual se dá a educação escolar -, nem tampouco com a imagem de um

pensador perspicaz e perverso na defesa do capitalismo. Dewey continua importante

como um filósofo e educador que refletiu sobre a educação moderna, e o fez, como
vimos, a partir de determinados contextos, mas tendo em vista principalmente a questão

da democracia.

A idéia de democracia é em sua obra uma espécie de Norte da bússola. E para

que a educação escolar seja eficaz na construção de uma sociedade democrática é

fundamental que ela proporcione o desenvolvimento de determinados hábitos. Uma das

questões mais conhecidas da chamada “escola nova” foi a defesa de um papel ativo do

aluno no processo de ensino e aprendizagem; aluno que passara a ser o núcleo desse

processo. Dewey acrescentou a tal aspecto a idéia de eficiência social, definida por ele

como a “capacidade de compartilhar do dar e receber da experiência comum” (Dewey,

1959:131). Ela seria conseguida não pela transferência ou depósito de conteúdos

revolucionários, mas pelo envolvimento dos alunos em atividades com significados e

valores sociais. Quiçá aí se encontre o elo procurado entre democracia e educação

escolar.

Com o crescimento de sua reputação, Dewey teve o nome relacionado a diversas

reformas educacionais em todo o mundo, refletissem elas ou não suas idéias. Ao mesmo

tempo em que a teoria geral ou a filosofia da educação arduamente elaborada no

período de Chicago era transformada na caricatura do learning by doing ou

simplesmente negligenciada (Kliebard, 1986). Como indica este autor, um paradoxo

envolve John Dewey. Embora tenha recebido ainda em vida reconhecimento mundial,

ganhando um lugar no panteão dos grandes educadores, sua atual influência nas escolas

americanas tem sido superestimada ou distorcida. Reformas educacionais propostas por

ele permaneceram em grande parte confinadas ao mundo das idéias, ao invés de

aplicadas efetivamente. Quiçá a questão de por que certas teorias não são traduzidas na

prática seja tão importante quanto saber por que outras o são.

Carlos Otávio Fiúza Moreira, cidade do Rio de Janeiro, julho de 2001.


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Anexos

O pragmatismo e a Escola de Chicago

Para tentar compreender algo das relações entre o pragmatismo americano e a

tradição sociológica que ficou conhecida como Escola de Chicago, vamos primeiro

tentar definir, em termos muito gerais, de que estamos falando. Consideramos o

pragmatismo como uma visão de mundo e uma corrente filosófica, mas que não chegou

a formar um movimento organizado; desenvolveu-se principalmente nos Estados

Unidos a partir do último quartel do século XIX, tendo como seus principais

protagonistas Charles S. Peirce, William James, John Dewey e Herbert Mead. Quando

falamos de Escola de Chicago, referimo-nos basicamente a um conjunto de professores,

estudantes e de seus trabalhos de pesquisa sociológica realizados entre 1915 e 1940 na

Universidade de Chicago.122 No final da década de 1930, a tradição sociológica que ali

se desenvolvera começou a mudar de enfoque e perdeu prestígio, e após a Segunda

Guerra Mundial a sociologia produzida nos Estados Unidos passou a ser

hegemonicamente representada pela teoria funcionalista de Talcott Parsons. Na década

de 60, teóricos mais jovens questionaram o predomínio de Parsons e retomaram

enfoques “interacionistas” em diversos subcampos empíricos (Alexander, 1997). Foi a

122
Esta delimitação cronológica está em Coulon (1997).
volta transformada de uma tradição, especialmente através da formulação que lhe dera

Herbert Blumer.

A idéia de interação social esteve presente na filosofia social que se desenvolveu

em Chicago com Dewey e Mead no final do século XIX e terminou influenciando a

tradição de estudos sociológicos que ficou conhecida como Escola de Chicago. Porém,

a expressão “interacionismo simbólico” só apareceu em 1938, com Herbert Blumer.

Com isto, ele vinculou a sociologia que se desenvolvera em Chicago à perspectiva

interacionista definida por Mead. O sociólogo alemão Hans Joas, autor de Pragmatism

and social theory, afirma o seguinte:

“O interacionismo simbólico é visto como a continuação de certas partes do


pensamento e da obra da heterogênea rede interdisciplinar de teóricos,
investigadores sociais e reformadores sociais da Universidade de Chicago
que exerceram uma influência fundamental na sociologia americana entre
1890 e 1940, durante justamente a fase de institucionalização da disciplina”
(Joas, 1993:17).

Seja quando falamos de Escola de Chicago, seja quando nos referimos ao

“interacionismo simbólico”, é possível considerar algumas de suas relações com o

pragmatismo de Chicago. Por exemplo, eles têm em comum a idéia de que os hábitos e

a consciência dos indivíduos são elaborados por meio das interações sociais. Dewey

explorou tal perspectiva no âmbito da educação, tendo Mead dado um tratamento a esta

questão mais próximo da linguagem da psicologia social. Levine (1997) indica que a

síntese pragmatista apresentava um triplo desafio para a sociologia:

“A sociologia precisava desenvolver uma concepção de fenômenos sociais


que caracterizasse os processos mentais subjetivos de agentes mas
entendesse tais processos subjetivos como efeitos e causas de processos
sociais. Precisava desenvolver uma concepção de dinâmica social que
descrevesse os estados de desordem como ocorrências naturais que
propiciavam oportunidades para a inovação adaptativa. Acima de tudo,
precisava ajudar a criar públicos que pudessem exercer alguma espécie de
controle moral esclarecido sobre problemas correntes e direções futuras.
Essas tarefas foram abordadas com extraordinária criatividade por Charles
Horton Cooley, William I. Thomas e Robert Ezra Park” (p. 234).
De uma forma geral, a Escola de Chicago destacou a natureza simbólica da vida

social e os processos de interação entre os agentes. De uma perspectiva distinta da de

Durkheim, considerava-se de vital importância para as pesquisas sociológicas a

concepção que os agentes tinham do mundo social. A objetividade científica almejada

por Durkheim fez com que ele desconfiasse das descrições “pessoais” dos agentes.

Coulon (1995) ressalta que foi com o “interacionismo simbólico” que pela primeira vez

na história da sociologia foi dado um lugar teórico ao agente como intérprete do

mundo social. Neste sentido, havia que se por em prática métodos de pesquisa que

dessem atenção aos pontos de vista dos agentes, desenvolvendo técnicas que captassem

os significados de suas práticas dentro de um dado contexto. Cooley, Thomas e Park

foram pioneiros na criação de metodologias destinadas a captar, de uma perspectiva

sociológica, justamente as realidades subjetivas (Levine, 1997:236).

Alexander (1997) associa essa ênfase na visão do indivíduo, ainda que de uma

perspectiva sociológica, a certas características da formação cultural dos Estados

Unidos, relacionando o “individualismo moral” ao legado religioso do puritanismo e do

protestantismo evangélico. Os Puritanos desenvolveram uma religião onde a

introspeção é um elemento nuclear. Eles eram “individualistas”, principalmente em sua

versão evangélica, entendendo que as pessoas podiam ter uma relação direta com Deus,

sem a necessidade da intermediação de instituições hierarquizadas ou regras formais.

Ralph Waldo Emerson e Henry Thoreau deram versões seculares para essa tradição,

enfatizando as liberdades individuais sobre o determinismo social. Contudo,

permaneceu valendo a idéia de que para o indivíduo sobreviver era necessário trabalhar

duro, ter disciplina e introspeção. De um maneira geral, seja na versão religiosa ou

secular, estes “individualistas” não renunciavam à idéia de uma ordem social coesiva,

baseada no autocontrole ou em um poderoso controle informal.


Na esfera econômica, a visão do trabalho como fonte de oportunidades

ilimitadas estimulou a expansão para o Oeste agrícola e se combinou com o mito do

fazendeiro laborioso. O individualismo utilitário de Spencer, que proclamava os

benefícios da diferenciação das funções e capacidades dos indivíduos, foi abraçado

pelos novos capitalistas que apareceram nos Estados Unidos na segunda metade do

século XIX. Porém, a reação a tal postura não demorou muito. No final do século

passado já se podiam vislumbrar os primeiros sinais de questionamento, que foram

paralelos à reação antindividualista que na Europa alimentou o nascimento da

sociologia. Segundo Joas (1993), o primeiro livro importante da nascente sociologia

americana, Source Book for Social Origins (1907), de William I. Thomas, pode ser

entendido também como uma resposta a Spencer.

Segundo a análise de Alexander (1997), há nesse contexto uma ironia que deve

ser observada, pois foi da angústia criada pela desordem decorrente das transformações

econômicas em curso que nasceu uma ênfase na experiência que daria novo alento ao

indivíduo, contribuindo para “forjar um liberalismo novo, mais otimista e reformista,

um audaz e militante renascimento da fé na riqueza e criatividade da ação individual no

mundo” (p. 165). Assim, o pragmatismo pode também ser associado à reação a uma

ordem social em crise, que demandava mudanças e depositava suas esperanças na idéia

de que a sociedade pode controlar a si mesma. Tal enfoque, que ficou conhecido como

social control, “afirmava que as pessoas, mediante interações com os demais, aderem a

obrigações sociais, obrigações que surgiram desse processo de interação” (Alexander,

1997:166). Se uma sociedade enfrenta situações de desequilíbrio e conflito, a própria

dinâmica social leva a esforços que tendem a retomar o equilíbrio. Neste sentido, as

transformações e mudanças no processo se produzem pragmaticamente, pela tentativa

de restabelecer uma situação de “normalidade”.


Enfim, é possível afirmar que o pragmatismo americano surgiu associado a uma

onda de ativismo e de lutas por reformas sociais nos Estados Unidos. Uma coisa,

entretanto, não deve ser esquecida, a complexa relação entre uma visão coletivista e o

compromisso com os indivíduos. Trata-se de uma tensão que não se resolve com

facilidade, e aparece tanto no pragmatismo - considerado como uma filosofia social ou

como uma filosofia da educação - quanto na tradição sociológica que se formou sob sua

influência.

Na segunda metade do século XIX os Estados Unidos passaram por um

processo intenso de industrialização e urbanização. Foi também um período de grandes

migrações, com o deslocamento de populações do campo para os centros urbanos e a

chegada à América de grandes contingentes de estrangeiros. Estes provinham, em sua

maior parte, de tradições culturais muito distintas das que caracterizavam os pioneiros

da Nova Inglaterra, os chamados de WASP (White, Anglo-Saxon, Protestant), cujas

famílias vieram originalmente do norte da Europa e integraram o grupo social

dominante.

A urbanização, a industrialização e formas mais agressivas das práticas

capitalistas foram pondo em cheque a antiga ordem e transformando a estrutura social

norte-americana. A sociologia nos Estados Unidos nasce e se institucionaliza em uma

época em que a sociedade clamava por reformas. Contudo, não havia tantas lições na

história sobre processo semelhante:

“Havia pouca precedência para a construção de um Estado-nação altamente


industrializado e urbanizado, à base de imigração maciça e heterogênea. E
havia ainda menos precedência para a construção de uma unidade nacional
sobre essa base, através de meios democráticos. (...) O grande influxo de
camponeses para os Estados Unidos provocava, entre os abastados e os
educados, grande receio de guerra social (e mesmo de classe) e predomínio
da populaça” (Fisher e Strauss, 1980:601).

Na segunda metade do século XIX, em parte devido à enorme crise social por

que passava a sociedade americana, tomaram força os movimentos sociais religiosos. É


relevante indicar que os primeiros sociólogos dos Estados Unidos em sua maioria

mantinham alguma forma de relação com as igrejas e guardavam delas a “paixão

evangélica e a retórica moralista” (Coser, 1980:379). Assim, ao menos por um tempo,

religiosos reformistas e cientistas sociais se engajam em um processo de

questionamento da ordem social, ao mesmo tempo em que a sociologia dava os

primeiros passos para compreender os mecanismos que organizam e desorganizam esta

mesma ordem:

“As orgias da especulação da era dos barões ladrões, a violenta repressão do


movimento trabalhista que se iniciava, o crescimento em grande parte
descontrolado das cidades, o fim do desbravamento do interior, os milhões
de novos imigrantes amontoados em cortiços terríveis e explorados sem
piedade nas minas de carvão e em fábricas insalubres - esses, e muitos
outros elementos de crise e decadência, levaram pastores, que antes eram
tolerantes, bem como outros cidadãos preocupados, ao movimento
progressista. Eles estavam ansiosos por transformar a América num país
mais de acordo com a mensagem moral da doutrina cristã” (Coser,
1980:380).

Mas é possível também explicar este deslocamento do clero protestante em

direção ao movimento social devido à perda de prestígio político e econômico dos

religiosos. Líderes morais incontestáveis até à Guerra Civil, eles começam a perder

espaço diante das transformações da sociedade. Novas tendências de idéias seculares,

com destaque para as reflexões de Darwin, passaram a contestar a força da doutrina

religiosa. Esse movimento de setores das igrejas para a sociologia pode ser considerado,

segundo Hofstadter, como uma “tentativa de restabelecer, através da liderança secular,

parte da influência espiritual e da autoridade e prestígio social que os religiosos haviam

perdido” (Coser, 1980:381).

Na Era Progressista, muitos profissionais (educadores, jornalistas, sociólogos,

sindicalistas, empresários, etc..), religiosos ou não, estiveram envolvidos em

movimentos por reformas na sociedade americana. A primeira e a segunda gerações de

sociólogos daquele país também participaram desse processo. Embora suas crenças na

possibilidade de aperfeiçoamento moral do homem ainda mantivessem uma forte


influência do fervor religioso, alguns já trabalhavam para que a sociologia se tornasse

efetivamente uma disciplina acadêmica. Trata-se também de uma época marcada pelo

surgimento de uma classe média “profissional”. No caso do pragmatismo de Chicago,

este formou seu primeiro público com pessoas que estavam construindo uma posição

social com base na profissionalização e na possibilidade de ascensão social.

Fisher e Strauss (1980) indicam que nessa época a idéia de que os intelectuais

deveriam oferecer sua colaboração na formulação de uma política nacional encontrou

grande aceitação, e o desenvolvimento das universidades americanas deu ênfase à

perspectiva de uma influência especializada. Os homens de negócios e os legisladores

dos estados liberaram grandes somas de recursos para a educação superior. As

universidades passaram a funcionar de certa forma como centros produtores de análises

e soluções dos problemas em curso.

A expansão sem precedentes do sistema de ensino superior, iniciada no final do

século XIX, é de fato um fator importante para se entender o desenvolvimento e a

institucionalização da sociologia nos Estados Unidos. Várias instituições universitárias

que se tornariam mundialmente conhecidas surgiram a partir de 1870 123 e sem o peso

das tradições centenárias das universidades européias, sendo mais receptivas às novas

disciplinas, principalmente no campo das ciências sociais. Embora tenha sido fundada

por uma organização religiosa, a Universidade de Chicago, por exemplo, logo se tornou

um centro de atividades científicas onde o pragmatismo teve forte presença com Dewey

e Mead. Neste contexto, não é difícil entender por que os temas principais da tradição

sociológica que ali se desenvolveu no início do século XX foram problemas da vida

moderna e das grandes cidades: imigração, marginalidade, relações raciais, etc.

Segundo Alexander (1997), diante da crise por que passava a sociedade norte-

americana no século XIX, os intelectuais se inclinaram a reagir às restrições de

123
A Universidade Johns Hopkins foi fundada em 1876 e a de Chicago iniciou suas atividades em 1892.
oportunidades individuais que resultavam dela, e passaram a criticar o formalismo e o

fatalismo dos sistemas filosóficos europeus: o apriorismo de Kant, a metafísica formal

de Hegel, o mecanicismo de Spencer, etc. (p.165). Era preciso passar do formalismo

para a experiência, pois afinal de contas todos esses sistemas eram produtos da vida

humana. É ai ou é daí que surge o pragmatismo, entendido assim como um movimento

mais amplo. Peirce, James, Dewey, Mead e outros expressaram em seus trabalhos de

filosofia, psicologia e educação, ainda que de ângulos distintos, interpretações possíveis

dessa transformação intelectual que transcorreu na América do Norte no final do século

XIX.

A filosofia social de Dewey, Mead e seus colegas de Chicago tem algo das

críticas de Peirce ao formalismo cartesiano, mas também da psicologia de William

James. Embora tenha trabalhado em Harvard, James exerceu alguma influência sobre a

Escola de Chicago, ainda que indireta. Com ele estudou Herbert Mead e vem de James

a idéia da mente como algo que se modifica permanentemente, expandindo-se com

novas experiências.124

A filosofia elaborada na Universidade de Chicago entre 1894 e 1931, data que se

refere ao fim ou à dissolução de um grupo de professores de filosofia, psicologia,

educação e sociologia pioneiros naquela universidade (Tufts, Dewey, Mead, Moore,

Angel), representou, de uma forma geral, uma importante transformação do clássico

dualismo que considera o mundo como uma realidade externa e a mente como uma

realidade interna. Para os pragmatistas, tudo que conhecemos é produto da atividade,

esta que nos leva a encontrar novos problemas, e assim o mundo conhecido muda

progressivamente:

“O conceito central na filosofia desenvolvida em Chicago é o de atividade


(activity). Esta que é ao mesmo tempo biológica, psicológica e ética e está
diretamente relacionada ao conceito de função, à noção de processo
orgânico. Isto envolve a idéia de um agente que deseja, sente e tem
124
Esta visão da mente foi também fundamental para o desenvolvimento da perspectiva de Charles
Horton Cooley (1864-1929), que enfatizou a ligação indissolúvel entre o “eu” e a sociedade.
emoções, e implica um objeto ou fim em vista do qual o movimento está
dirigido. Mas nesta visão de atividade concreta a função biológica não é
apenas um processo mecânico, nem o agente um ser espiritual sobrenatural,
nem o fim é qualquer tipo de absoluto. Função envolve crescimento,
agentes são elementos naturais de processos naturais e fins são sempre
tentativas, que mudam continuamente” (Rucker, 1969:6)

Ainda segundo Rucker (1969), a perspectiva que emerge com tal ênfase na

atividade tem três importantes características. Primeiro, é uma teoria do processo, e os

agentes e os objetos são como resultados do processo. Segundo, os agentes são seres

essencialmente sociais e a consciência é produto de processos nos quais os agentes

interagem. Terceiro, os fins ou objetivos são relativos às condições de atividade em um

dado momento, e um genuíno processo evolutivo é aquele no qual contam reais

novidades, invalidando fins preconcebidos, fixos, da ação (p. 6).

De todos os quatro nomes normalmente associados ao pragmatismo foi George

Herbert Mead quem exerceu uma influência mais direta sobre a sociologia de Chicago

que veio a ser conhecida como “interacionismo simbólico”. 125 Ele é considerado o

filósofo dos sociólogos. Em seus funerais, em 1931, Dewey observou que Mead passou

a sua vida tentando resolver a antítese proposta por Wilhelm Wundt - “o problema da

mente e da consciência individual em relação ao mundo e à sociedade” (Dewey apud

Farr, 1998:79).

O termo “interacionismo simbólico”, como indicamos anteriormente, foi criado

por Herbert Blumer em 1937. Era uma tentativa de aproximar uma vertente da

sociologia da psicologia de Mead, uma teoria social do aparelho psíquico que relaciona

o “eu” à sociedade. Mead indicou que a consciência deve ser entendida como um fluxo

oriundo das relações dinâmicas entre a pessoa e o ambiente; a linguagem foi vista por

ele como “uma complexificação específica dos mecanismos de sinalização que ocorreu

125
Esta hipótese, que é quase uma unanimidade, foi contestada por J. David Lewis e Richard L. Smith
no livro American sociology and pragmatism, de 1980.
na evolução da espécie humana e torna essa espécie diferente de todas as outras” (Farr,

1997:102).

Mead introduziu uma distinção entre o I e o me. É como se o “sujeito” (self)

comportasse dois aspectos, “simultaneamente ativo e objeto de si mesmo e da

sociedade” (Domingues, 2001:27). O “eu”, respondendo pelo aspecto ativo do sujeito,

seria a reação do organismo às atitudes dos outros, “anterior à reflexividade no que

tange à ação” (Domingues, 2001:27). O “mim” seria a série organizada de atitudes dos

outros que o indivíduo assume através do intercâmbio comunicativo ou simbólico

(Coser, 1980:407). Aparece aí a idéia de internalização do “outro”, da sociedade, algo

que nos lembra de certa forma Durkheim e mesmo Freud:

“As pessoas nascem dentro de estruturas sociais que não criaram, e são
constrangidas pelo “outro generalizado”, pelas normas, costumes e leis que
canalizam suas ações. Tudo isso faz parte do sujeito (self) como elementos
constitutivos, e não obstante o “eu” (I) sempre reage a situações pré-
formadas de uma maneira singular” (Coser, 1980:407)

Esta tensão parece sugerir uma instância que amenizaria o determinismo social, abrindo

possibilidades para a criatividade dos agentes.

Mead trouxe de seus estudos com Wundt, em Leipzig, a teoria dos gestos, que

serve para explicar como a contingência da ação individual se integra à estrutura

simbólica: “Sua compreensão da gesticulação nos jogos permite sustentar que os gestos

individuais são instituições sociais” (Alexander, 1997:171). Para Mead, o jogo é uma

analogia, uma espécie de microcosmo dos sistemas e grupos sociais, em que a ordem

coletiva se corresponde com a experiência generalizada de seus membros. Neste

sentido, as instituições são vistas como uma “organização de atitudes”, ao invés de

“ordens estruturadas e objetivas” (Alexander, 1997:171).

Os gestos de um jogador, por serem socialmente determinados, servem para

indicar que o individual pode expressar o social. Mas o gesto é também um elemento de

expressão da individualidade e serve para mostrar como se modifica o social. O gesto


envolve uma temporalidade, e esta é, para Mead, a essência da contingência. “Como os

gestos acontecem no tempo, implicam o exame de diversos cursos de ação. Por isso,

cada novo gesto tem uma propriedade que emerge e o distingue dos anteriores”

(Alexander, 1997:171).

Colocando a raiz do pensamento e da linguagem na interação e considerando o

sujeito como um produto das relações sociais, Mead deixou aberta a possibilidade de

investigação pelas ciências dos elos entre os processos sociais e as ações dos indivíduos.

Ainda segundo Alexander (1997), “a teoria social pragmatista e o pensamento norte-

americano em geral habitualmente tomam o individualismo 126 como uma pressuposição,

por isso a comunidade e a ordem coletiva quase sempre apenas ocupam um lugar

residual. Mead se destingue porque adota a tática contrária: trata de explicar a

contingência como um momento na ação social coletivamente estruturada” (Alexander,

1997:169).

Entre 1915 e meados da década de 30 a história da sociologia americana quase

que se confunde com a história do departamento de sociologia da Universidade de

Chicago. Lá estava o estilo mais evidente de pesquisa, lá era publicada a primeira

revista da disciplina (America Journal of Sociology, fundada em 1895) e foi lá que se

formaram muitos dos sociólogos que deixaram sua marca na profissão. Aquele

departamento iniciou seus trabalhos em 1892, sob a direção de Albion Small. Embora

seguisse pessoalmente a tradição historicista alemã, Small convidou pesquisadores que

trabalhavam em várias tradições, como a etnografia urbana, psicologia social, ecologia

urbana, patologia social, etc.. Esta configuração intelectual encontrou na própria cidade

de Chicago um verdadeiro “laboratório social” para investigações. Os estudos

orientados para trabalhos de campo se tornaram a marca inicial da sociologia que ali se
126
Alexander (1997) comenta dois significados possíveis para “individualismo”: 1) considera-se que a
contingência define a natureza da ordem social. Esta seria algo que inevitavelmente se negocia, que
emerge da interação entre os indivíduos e não tem raízes coletivistas; 2) um nível de análise empírica:
referência ao elemento aberto e não determinado que forma parte de cada ato individual.
desenvolveu. Só nos anos 30 é que a análise estatística passou a ocupar um lugar

importante na Escola de Chicago.

A Albion Small é atribuído o mérito de ter insistido sobre a necessária

objetividade das pesquisas sociológicas. Como uma ciência, a sociologia teria que se

fundamentar em pesquisas empíricas e dar a conhecer a estrutura da sociedade. Vários

autores são enfáticos em desmentir a reputação dos sociólogos de Chicago como

descobridores de fatos, mas sem formação teórica. Os membros das primeiras gerações

eram espíritos muito bem formados e estavam familiarizados com a teoria social

européia; muitos deles inclusive estudaram em universidades da Europa, principalmente

na Alemanha.

Algumas características básicas da sociologia praticada na chamada Escola de

Chicago são as seguintes: a) ênfase na pesquisa empírica e insistência dos pesquisadores

em produzir conhecimentos úteis para a solução de problemas sociais concretos; b)

sociologia urbana, com destaque para os estudos relativos à imigração, como a questão

da assimilação dos estrangeiros pela sociedade americana; c) desenvolvimento de novos

métodos de investigação: utilização científica de documentos pessoais, trabalho de

campo sistemático, ampliação das fontes (diários, cartas, autobiografias, poemas, etc.);

d) até a Segunda Guerra Mundial, o enfoque era claramente orientado para o que hoje

se chama de perspectiva qualitativa.

Para concluir, e também devido à dificuldade de definir exatamente a diferença

entre a Escola de Chicago e o que veio a ser chamado de “interacionismo simbólico”,

vamos apresentar apenas algumas informações sobre duas figuras que, junto com

Herbert Mead, parecem ter delineado a perspectiva interacionista e indicado os

caminhos da Escola de Chicago. Refiro-me a William Isaac Thomas (1863-1947) e a

Robert Erzra Park (1864-1944). Sob a influência destes homens, os sociólogos de


Chicago se tornaram mundialmente conhecidos, em especial por trabalhos sobre as

relações raciais e os problemas urbanos.

Thomas foi um dos primeiros graduados na Universidade de Chicago, tendo sido

aluno de John Dewey e desfrutado de uma forte amizade com Herbert Mead.

Trabalhando nessa universidade como professor, ele forjou um nexo importante entre o

pragmatismo e a investigação sociológica. Construindo sua obra entre a etnografia e a

Völkerpsychologie, Thomas permaneceu, no que diz respeito à metodologia, fiel a um

procedimento etnográfico aplicado a objetos não “exóticos” (Joas, 1993). Em termos

teóricos, ele pode ser situado no horizonte da psicologia social, que então prestava

cuidadosa atenção à influência da cultura na conduta individual e coletiva. Thomas

destacou, mais ainda que os filósofos pragmatistas, o caráter cultural dos hábitos e a

integração das iniciativas individuais com as da coletividade. Entendendo que a cultura

abarca os mais variados recursos materiais, técnicos e cognitivos de uma sociedade, o

método adotado por Thomas permitiu o uso de procedimentos que tornavam possíveis

reconstruir “as perspectivas subjetivas dos atores” (Joas, 1993:30). Tratava-se, portanto,

de uma estratégia metodológica muito distinta da proposta por Durkheim em As regras

do método sociológico. Para Durkheim, embora capazes de descrever os fatos sociais

que os rodeiam, os agentes fazem descrições ambíguas demais para que o pesquisador

faça um uso científico das mesmas. Assim sendo, tais manifestações “subjetivas” não

pertenceriam ao domínio da sociologia, ciência do social. “O interacionismo simbólico,

ao contrário, afirma que é a concepção que os agentes têm do mundo social que

constitui, em última instância, o objeto essencial da investigação sociológica” (Coulon,

1995:20). Joas (1993) nos chama a atenção para o fato de que para a Escola de Chicago

e, em particular, para Thomas a demarcação entre os seus estudos e a psicologia não era

algo importante como fora para Durkheim. 127


127
Como vimos na Introdução, Wundt já indicara que parte da psicologia, a Völkerpsychologie, deveria
ser uma ciência social. Tal perspectiva evitaria a identificação imediata desta ciência com o
individualismo atomista que alguns pragmatistas tentaram combater.
O tema em que mais avançaram as reflexões de Thomas diz respeito às

transformações de uma sociedade tradicional em uma sociedade moderna. Tentava-se

explicar como novas instituições sociais podem ser criadas a partir das velhas. Mas as

explicações deveriam evitar tanto a ênfase na ação individual isolada quanto os

determinismos:

“A Sociologia, para Thomas e Park, devia explorar a contradição existente


nos seus próprios pressupostos: descobrir o âmbito da liberdade de ação, em
especial para a promoção da mudança social, frente aos limites sociais que a
própria mudança tornava necessários” (Fisher e Strauss, 1980:603).

Quiçá pelo compromisso com as mudanças ou mesmo pela marca do

individualismo, o fato é que esta tradição sociológica desenvolveu uma abordagem

segundo a qual “os sociólogos deviam estudar como as pessoas eram forçadas pelas

instituições e ao mesmo tempo eram capazes de ir além de suas limitações” (Fisher e

Straus, 1980:603).

É importante destacar ainda que a perspectiva histórica e a visão da vida social

presentes nos estudos sociológicos de Chicago, tendo aqui William Thomas como

referência, tornaram no mínimo questionáveis as categorias bipolares que tiveram

grande presença no começo da sociologia: comunidade e sociedade, solidariedade

mecânica e solidariedade orgânica. Segundo Joas (1993), “estas oposições foram

substituídas por processos contínuos de desintegração institucional, de formação exitosa

ou fracassada de novas instituições” (p. 31). Componentes vitais das sociedades

anteriores, como a família e os grupos étnicos, permaneciam, ainda que transformados,

na sociedade moderna. As relações entre ação individual e coletiva ou entre

desorganização e reorganização individual e coletiva não foram tratadas de uma

perspectiva excludente, isto é, “a oportunidade para a reorganização individual também

existe sob condições de desorganização social” (Joas, 1993: 32).


Uma das obras paradigmáticas da Escola de Chicago é o extenso estudo feito por

Thomas e Znaniecki sobre os imigrantes poloneses, The polish peasant in Europe and

America. Destaca-se neste trabalho a amplitude das fontes (cartas, periódicos, informes

de paróquias e tribunais, etc.) utilizadas para documentar as modificações de uma

sociedade dominada pelo parentesco para outra baseada em associações urbanas.

Thomas trabalhou em Chicago até 1918, quando teve que se retirar daquela

universidade por desavenças políticas. Ele foi substituído por Robert Park, que até os

anos trinta se tornou a figura mais importante da sociologia de Chicago.

Park estudou filosofia em Harvard e Heidelberg (Alemanha), onde realizou

estudos que culminaram na tese A massa e o público. Ele sofreu a influência de John

Dewey e da atmosfera da Era Progressista ainda na graduação na Universidade de

Michigan, onde trabalhara Dewey antes de se transferir para a Universidade de Chicago

em 1894. Da obra deste ele manteve um particular interesse pela idéia de democracia

como ordem social e pela comunicação pública como um dos pré-requisitos para a

democracia (Joas, 1993:33).

Park trabalhou como jornalista cerca de 10 anos antes de ingressar, em 1914, na

Universidade de Chicago como professor. Ele também se interessou pelo estudo das

relações raciais nos Estados Unidos, e, ao dar atenção à presença de uma população de

afro-descendentes na sociedade americana, apontou para a necessidade de reflexões

sobre a democracia em condições de heterogeneidade cultural, algo fundamental frente

à imigração em massa e ao processo de incorporação de novos americanos. É longa a

lista de trabalhos escritos sob sua orientação com temas como quadrilhas urbanas,

favelas, etc.. Park trabalhou com a noção de “representações coletivas”, que são

constituídas a partir do processo de comunicação e vão desde os sistemas de símbolos

religiosas até a opinião pública e a moda. Segundo Joas (1993), as semelhanças com as
reflexões desenvolvidas por Durkheim em As Formas Elementares da Vida Religiosa

são claras. Contudo, ele destacou mais do que Durkheim as formas modernas e

quotidianas de aparição das representações coletivas. Além da “ordem moral” - a que

diz respeito à ação coletiva que se regula por referência a valores e significados -, Park

trabalhou com outra ordem, a “ecológica” ou “biótica”. Este modelo foi tomado do

estudo das plantas. O introdução de um outro tipo de ordem pode ser explicada pela

dificuldade de se entender os desvios sistemáticos dos resultados da ação coletiva no

que diz respeito às intenções ou de compreender os resultados das ações não

coordenadas (Joas, 1993:34).

Restaria ainda falar sobre Ernst Burgess, amigo e colaborador de Park; sobre

Herbert Blumer, que criou a expressão “interacionismo simbólico”; sobre Everett

Hughes, o sociólogo do trabalho e das ocupações mais destacado daquela escola de

sociologia, dentre outros. A predominância da Escola de Chicago já esmaecera no final

da década de 30, mas foi no começo do anos 50 que ela efetivamente perdeu seus

representantes mais importantes. Nessa época, Burgess se aposentou e Blumer se

transferiu para a Califórnia.

Por fim, após estes breves dados sobre a história da Escola de Chicago, tentemos

resgatar algumas questões gerais que podem de certa forma indicar a força e a

fertilidade desta tradição para a teoria social. Como ressalta Joas (1993), a teoria

pragmática da ação que se fez presente naquela escola sociológica é radicalmente

distinta dos modelos utilitaristas. Estes reconhecem apenas a ação racional e não podem

explicar ações que se desviam da “racionalidade”, exceto através de uma categoria

residual. Porém, o pragmatismo se serviu do conceito de atividade como meio de obter

um nova compreensão da relação entre consciência e ação, ou como um meio de

superar a filosofia da consciência. Joas (1993) lembra ainda que a tentativa de

superação da perspectiva utilitarista foi constitutiva da própria sociologia (Durkheim,


Weber, Pareto), mas terminou por gerar o problema da concentração na dimensão

normativa. Por contraste, o “interacionismo simbólico” não dá por suposto o caráter

determinista das normas interiorizadas.

2. Norbert Elias e John Dewey: uma pequena aproximação

No âmbito das ciências humanas as análises da relação entre indivíduo e

sociedade têm seguido quase sempre perspectivas que instalam um abismo entre estas

duas “funções” da vida social. Tal separação é associada pelo sociólogo judeu-alemão

Norbert Elias, em A sociedade dos indivíduos [1939], à “coisificação” do indivíduo e da

sociedade. Isto tem efeitos no campo educacional, na medida em que a educação escolar
é um processo específico de socialização. Elias (1994) foi muito preciso ao formular o

problema da relação entre indivíduo e sociedade::

“Para onde quer que nos voltemos, deparamos com as mesmas antinomias.
Temos uma certa idéia tradicional do que nós mesmos somos como
indivíduos. E temos uma certa noção do que queremos dizer quando
dizemos “sociedade”. Mas essas duas idéias - a consciência que temos de
nós como sociedade, de um lado, e como indivíduos, de outro - nunca
chegam realmente a coalescer. Decerto nos apercebemos, ao mesmo tempo,
de que na realidade não existe esse abismo entre indivíduo e sociedade.
Ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda
sociedade é uma sociedade de indivíduos. Mas, quando tentamos reconstruir
no pensamento aquilo que vivenciamos quotidianamente na realidade,
verificamos, como naquele quebra-cabeça cujas peças não compõem uma
imagem íntegra, que há lacunas e falhas em constante formação em nosso
fluxo de pensamento” (Elias, 1994:16).

Este autor destacava a falta de modelos conceituais que tornassem

compreensível a efetiva relação entre estes dois termos. Indagava também sobre como

um certo número de indivíduos compõem entre si algo distinto de um aglomerado de

seres isolados, como é que os indivíduos formam uma sociedade, como essa sociedade

pode ser modificada e ter uma história que segue um curso não determinado exatamente

por qualquer dos indivíduos que a compõem. O problema, segundo Elias (1994), é que

ao se enfatizar a proeminência da sociedade sobre os indivíduos ou ao destacar a

relevância do bem-estar destes para a manutenção da sociedade, o que surgem são

apenas grandes controvérsias.

No livro a que nos referimos acima - uma espécie de complemento teórico de O

Processo Civilizador [1939] -, Elias (1994) tenta fugir de um modelo dicotômico e

lembra que estes dois termos, sociedade e indivíduo, foram sendo definidos e

redefinidos ao longo da história. Se o sentido de indivíduo está relacionado à uma

determinada sociedade na qual se insere, sendo aquele portador de características dessa

sociedade, não haveria que tentar considerá-los como “coisas” distintas, senão através

de relações. Mas os modelos explicativos tendem a querer solucionar uma coisa à custa

da outra. Diante de tal situação, Elias (1994) propôs a seguinte questão: “E se uma
compreensão melhor da relação entre indivíduo e sociedade só pudesse ser atingida pelo

rompimento dessa alternativa ou isto/ou aquilo, desarticulando a antítese cristalizada?”

(p. 18)

De fato, se considerarmos com maior cuidado tanto os indivíduos quanto uma

sociedade formada por eles, verificaremos que nenhum dos dois existe sem o outro.

Pensar a sociedade como um “todo” não é nada óbvio, diz Elias (1994), pois isto nos

evoca a idéia de algo completo em si, com contornos e limites discerníveis, uma

estrutura visível. Mas as sociedades não têm exatamente essa forma, são sempre mais

ou menos incompletas, abertas para o passado e para o futuro, “um fluxo contínuo, uma

mudança mais rápida ou mais lenta das formas de vida” (p. 20). A ordem - que

certamente existe e nos permite falar em sociedade e, por conseqüência, em

socialização, educação, escolarização, etc. - não se apresenta diretamente e de forma

natural. Ela precisa ser compreendida através das posições que ocupam os agentes, de

seus trajes, seus rituais, das formas específicas de comportamento. Trata-se, portanto,

de uma “ordem invisível” da vida em comum. Mas esta ordem assinala as funções

destinadas a cada um dos agentes dentro da dinâmica social e, conforme a análise de

Elias (1994), a liberdade de escolha entre as funções depende do ponto em que alguém

nasce e cresce nessa rede ou teia humana, “das funções e da situação de seus pais e, em

consonância com isso, da escolarização que recebe” (p. 21). Isto é, “laços invisíveis”

unem os indivíduos aparentemente desvinculados, pois suas funções são

interdependentes e se estabelecem dentro de uma certa rede.

Conforme este modelo explicativo, os seres humanos nascem e vivem numa

rede de relações móveis e em cada conjunto de indivíduos o “contexto funcional” tem

uma estrutura específica, que não é exatamente somatória. Ela tem suas leis próprias,

das quais dependem efetivamente as metas e oportunidades dos indivíduos. Embora

essa estrutura não seja criação de indivíduos particulares, tampouco o “contexto


funcional” existe fora deles. Os indivíduos formam os elos de uma cadeia e a sociedade

pode ser definida como uma “rede de funções que as pessoas desempenham umas em

relação às outras” (Elias, 1994:23). Trata-se de um tipo especial de esfera em que se

formam as “estruturas sociais”. “Leis sociais” ou “regularidades sociais” se referem “às

leis autônomas das relações entre as pessoas individualmente consideradas” (Elias,

1994:23). Ou seja, estrutura e regularidade se referem a relações e não a coisas ou a

algo que se considere como tal. Neste sentido, não se pode atribuir às regularidades que

se observam nas relações humanas uma substancialidade que transcende tais relações.

Desistir de pensar em termos de substâncias isoladas e únicas, em “coisas”, e começar a

pensar em termos de relações e funções, em rede, é uma das lições cruciais da obra de

Norbert Elias.

A descoberta desta ferramenta intelectual funcionou como uma espécie de

alavanca para o estudo que fiz sobre a relação entre indivíduo e sociedade na filosofia

da educação de John Dewey. Ela parecia completar, pela articulação entre estes dois

termos, algo que Durkheim e Dewey ensaiaram com as noções de socialização e hábito

(habit).

As características do adulto não provêm diretamente e por um único caminho

daquilo que seriam as características naturais distintivas da criança. Estas podem dar

margem a uma grande profusão de individualidades de acordo com as relações que se

estabeleçam no curso da vida entre os indivíduos:

“Ao nascer, cada indivíduo pode ser muito diferente, conforme sua
constituição natural. Mas é apenas na sociedade que a criança pequena, com
suas funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se
transforma num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres
humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao mundo se
transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que tem o caráter de
um indivíduo” (Elias, 1994: 27).

Este processo de individualização varia de sociedade para sociedade, e mesmo

dentro de um grupo social ele não é necessariamente igual, posto que variam as
situações por que passam as pessoas e as funções que elas ocupam no curso da vida.

Como indicou Durkheim (1995), estas variações são menos numerosas nas sociedades

mais simples do que nas complexas, que se encontram em um estágio mais avançado de

diferenciação funcional. Isto significa considerar a individualidade como produto de um

processo socialmente condicionado. Ou seja, as funções que o indivíduo adulto assume

não estão traçadas desde o início de sua vida na natureza do recém-nascido:

“O que advém de sua constituição característica depende da estrutura da


sociedade em que ele cresce. Seu destino, como que venha a se revelar em
seus pormenores, é, grosso modo, específico de cada sociedade” (Elias,
1994:28).

O estudo realizado por Elias do “processo civilizador” mostrou como a

“modelagem”, a formação de cada pessoa, depende do desenvolvimento histórico do

padrão social, da estrutura das relações humanas. Neste sentido, uma maior ou menor

individualização em uma dada sociedade não depende de mutações de pessoas ou de

certas concepções de figuras talentosas, já que está associada a modificações que

envolvem uma rede de relações.

Elias (1994) toma a conversa entre duas pessoas para ressaltar que “fenômenos

reticulares”, funcionando a partir de uma interdependência contínua, não podem ser

satisfatoriamente representados nem pelo modelo físico da ação e reação das bolas de

bilhar e nem pelo modelo fisiológico da relação entre estímulo e resposta. 128

“As idéias de cada um dos parceiros podem mudar ao longo da conversa. É


possível, por exemplo, que eles cheguem a um certo acordo no correr da
conversação. Talvez um convença o outro. Neste caso, alguma coisa passa
de um para o outro. É assimilada na estrutura individual das idéias deste.
Modifica sua estrutura e, por sua vez, é modificada ao ser incorporada num
sistema diferente” (Elias, 1994:29).

A direção e a ordem seguida em um processo desse tipo só podem ser explicadas

pelas relações que se estabelecem entre os agentes. É essa contínua moldagem,


128
Como vimos no capítulo II, a crítica ao esquema estímulo-resposta se encontra em um dos textos de
Dewey, “The reflex arc concept in psichology”, publicado em 1896.
construção e reconstrução, que se estabelece pela relação entre as partes que caracteriza

o “fenômeno reticular”. Mas a idéia de rede, proposta por Elias para explicar a relação

entre indivíduo e sociedade, só pode ser entendida efetivamente se a sociedade for

considerada como tendo sido formada por indivíduos que foram crianças, ou seja, seres

humanos que passaram por um processo educacional:

“A historicidade de cada indivíduo, o fenômeno do crescimento até a idade


adulta, é a chave para a compreensão do que é a “sociedade”. A
sociabilidade inerente aos seres humanos só se evidencia quando se tem
presente o que significam as relações com outras pessoas para a criança
pequena” (Elias, 1994:30).

Segundo esta perspectiva, é através da “modelagem social” que a criança vai se

tornando um indivíduo. Sem o processo de introjeção das regras sociais a criança

continuaria sendo pouco mais que um animal. Neste sentido, a individualidade só pode

ser entendida em termos das relações estabelecidas no transcurso da formação, e está

diretamente vinculada com a estrutura da sociedade em que alguém cresce: “O

indivíduo sempre existe, no nível mais fundamental, na relação com os outros, essa

relação tem uma estrutura particular que é específica de sua sociedade” (Elias,

1994:31). Sua marca individual, sua individualidade é elaborada a partir da história de

suas relações.

Creches, jardins da infância, escolas, universidades, etc. são instituições que

surgiram ao longo da história para realizar modelagens específicas das pessoas que

vivem em sociedade. Como bem chamara atenção Dewey em Democracia e Educação

[1916], quanto mais complexo se torna esse processo, mais longo é o tempo necessário

de preparação das crianças para as funções adultas e mais instituições sociais são

necessárias.

A análise de Elias (1994) realça que a “moldagem sociogênica das funções

psíquicas” compensa nos seres humanos a falta de predeterminação hereditária (padrão

comportamento) para o trato com os outros seres. A auto-regulação não se submete


simplesmente ao controle de mecanismos reflexos hereditários, pois exige um grau de

construção superior ao de outros animais. Graças a isto, a estrutura do comportamento

humano é tão diversificada, o que pode ser observado nas diferentes culturas. É também

devido a essa necessidade de moldar a auto-regulação que surge a possibilidade de

variações “individuais” na forma de auto-regulação (Elias, 1994:36). Em tal

peculiaridade da psique humana, com sua maleabilidade e dependência do social, Elias

encontra a razão para não tomar o indivíduo isolado como referência primordial para

entender a estrutura da sociedade. Daí a sugestão para que se considere a estrutura da

relação entre os indivíduos para se compreender a sua singularidade. As transformações

estruturais, que podem seguir numa direção específica, têm origem no entrelaçamento

de atos, necessidades, idéias e impulsos de indivíduos dispostos em rede, em grupos

funcionais e nações interdependentes. Assim, as mudanças sociais têm origem não na

natureza dos indivíduos isolados, mas na estrutura de suas relações. Enfim, “a história é

sempre a história de uma sociedade, mas, sem a menor dúvida, de uma sociedade de

indivíduos” (Elias, 1994:45).

Quando Dewey, trabalhando na Universidade de Chicago no final do século

XIX, deslocou seu exercício da filosofia da pura especulação para o exame do

comportamento de crianças em uma escola, ele estava ampliando as possibilidades, tal

como podem fazer os cientistas sociais, de conhecer o indivíduo em suas relações com

outros em um dado meio. Isto é, Dewey pôde fazer da filosofia da educação uma

análise próxima daquilo que Elias (1994) chama da “estreita e profunda medida em que

a interdependência das funções humanas sujeita os indivíduos” (Elias, 1994:26).

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