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ou
...os gaúchos que levaram o maxixe a Paris
Não dá pra deixar barato essa informação: sabe lá o que é nascer negro
na pequena São Gabriel, em 1878, e querer fazer carreira cantando e
dançando no Rio de Janeiro?!? Dá pra imaginar a possibilidade estatística
disso se concretizar!?! Mas Geraldo tinha iguais porcentagens de bossa,
manha e vontade. Armado com esses atributos, somados a sua sempre citada
elegância1, arrasou no Salon Paris, em plena Rua do Ouvidor. Era metade da
dupla que havia fundado, Os Geraldos, e que então se completava com a
castelhana Margarita.
1“O Geraldo deitou elegância e botinas de polimento”, lembra João do Rio ao elencar os “bardos e
cantores” daquele momento em seu livro “A Alma Encantadora das Ruas”.
1
A partir da entrada do século, os dois se transferem para as casas de
chope e cafés-cantantes da Lapa e da Praça Tiradentes – como o Ao Chopp
Grande -, além de teatros como o Moulin Rouge e o Maison Moderne. O
clima era do vaudeville reinante de então.
Em 1905 (há quem fale em 1907), Geraldo – que também ganhava uns
trocados como serenatista, contratado para cantar às janelas das amadas
alheias - troca de parceira, numa venda casada de cama & palco. No lugar de
Margarita, a também negra e gaúcha Antonina “Nina” Teixeira: porto-
alegrense nascida por volta de 1880 (e que morreu possivelmente na década
de 1940, no Rio).
Os Geraldos eletrizariam as plateias cariocas, em duetos picantes e
muito teatrais, dançando maxixes plenos de sacanagem e cantando
cançonetas e lundus cheios de duplo sentido. A bem da verdade, as vezes
de um sentido só: aquele mesmo. Ou vocês acham que foi o funk carioca que
inventou a canção de putaria?
O sucesso cresceu tanto que, empolgados, um belo dia eles levam seu
show para a rua, em pleno Passeio Público, Largo da Lapa. Ainda que fosse
região da alta prostituição, embelezada pelas “francesas” do Alcazar Lírico,
as apresentações da dupla causaram tanto delírio quanto escândalo. Coisas
da Belle Époque tropical. Um momento jamais repetido, quando as pessoas
compravam, levavam pra casa e ouviam nos seus gramofones canções que
seriam impensáveis nos moralistas e moralizantes anos da Era Vargas.
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Um belo exemplo do repertório da dupla era a singela
marcha Vassourinha, de Felipe Duarte e Luiz Figueira, cuja letra dizia:
Ela:
Ele:
Ela:
Ele:
Ela:
Queres de Abano
Passar a varredor?
Os dois:
Varre, varre querida Vassourinha
Abana, abana meu Abanador
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Lançam muitos discos.
Entre 1902 – quando a Casa Edison lança o primeiro suplemento de
gravações feitas no Brasil – e o final da década de 1910, Geraldo é um dos
únicos seis (s-e-i-s!) cantores populares a gravar no país inteiro. Sua
parceira, então, é uma raridade ainda maior. Entre 1904 e 1912, Nina grava
sozinha uma dúzia de canções – um feito e tanto: eram raras as cantoras
brasileiras nas décadas anteriores à explosão de Carmen Miranda (anos
1930), e até 1929 não existe nenhuma outra cantora de verdade indo ao disco
– apenas eventuais atrizes de teatro de revista arriscando seus dotes vocais.
Geraldo também gravaria discos solo. Mas, ao que parece, juntos é que
a mágica se dava, Nina e Geraldo.
E não era só na Edison. Também deixam muitos registros para a Casa
A Electrica, a segunda gravadora com fábrica própria da América Latina e
que ficava em... Porto Alegre (daqui a pouco tem um capítulo inteiro sobre
isso).
Um outro marco relevante, este local, é que, se somamos discos solo e
os da dupla, Geraldo empata com o compositor e instrumentista Octavio
Dutra (de quem logo falaremos) como os artistas gaúchos que efetivamente
deixaram registros fonográficos que constituam uma discografia nestes anos.
E que dão um amplo panorama musical das primeiríssimas décadas do
século XX, No caso de Geraldo: fados, canções patrióticas, romanzas,
modinhas, tanguinhos, cançonetas, motivos humorísticos e muitos desafios
nortistas - o último grito de então.
Para a Casa Edison/Odeon de Fred Figner, foram 15 discos só em 1905
(dos gravados ainda só de um lado – ou seja: uma música por bolachão);
mais quatro em 1907; cinco em 1909 (incluindo o supersucesso Vem Cá,
Mulata); sete em 1910 e 14 outras gravações sem data. Já para os Discos
Gaúcho, 45 músicas em 1915, espalhadas entre discos com uma ou duas
músicas. E há ainda 10 gravações para o selo Phoenix, realizadas em 1913.
Uma curiosidade interessante: parte importante do repertório da dupla era
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de pérolas compostas pela maior hitmaker de então, a já bastante veterana
(e sempre revolucionária) Chiquinha Gonzaga. Corriam tempos arejados.
O duo vai se tornando tão popular que é contratado para uma
temporada no México, e dali parte para a Europa.
Em 1908, os salões portugueses e parisienses estavam arrebatados
pelos impulsos demoníacos do maxixe. Paris e Lisboa já conheciam o ritmo,
levado para lá por bailarinas e companhias de revista brasileiras, mas
seriam Os Geraldos – vindos do recente êxito de suas apresentações na
grande Exposição Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, no
Rio - que iriam popularizar definitivamente a novidade, resultando numa
intensa epidemia de exotismo tropical. Um trabalho interessante sobre essa
cena é De La Matchitche a La Lambada, da pesquisadora francesa Ariane
Witkoski. Ainda que ela cometa erros, como afirmar que Geraldo e Nina
eram irmãos: Très vite, les Parisiens découvrent le vrai maxixe, grâce aux
Irmãos Geraldos [Geraldo Magalhães et Nina Teixeira] qui se produisent
au Théâtre Marigny en 1908.
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E que sucesso! Foi um dos seis discos mais vendidos e executados na
primeira década do século, com novos surtos de popularidade a cada
carnaval.
Na abertura da deliciosa gravação, que capitaliza ao máximo o recente
êxito europeu, o locutor anuncia:
Ele:
Vê lá como estão gostando! Ah, Nina, mas lá no Brasil é que é
gostoso. (…) Eles tão de boca aberta, olhando pra gente!
Ela:
Olha aquele francês: tá todo babado!
2 Mesmo com a evidência das gravações de 1909, há quem jure que ele só voltou em 1913.
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Alda, que não era boba nem nada, achou melhor arrastar o marido de
volta para seguras terras lusitanas. Conseguiu o feito em 1915 – e uma das
últimas coisas que fazem antes de viajar é gravar a citada Caraboo, que
vira Minha Caraboo. Quando a música se consagra como o maior sucesso do
Carnaval de 1916, eles já não estavam no Brasil pra ver.
Seguem atuando juntos nos teatros de revista portugueses até 1926. Aí,
aos 48 anos, Geraldo se emprega como vendedor de uma companhia de
vinhos e só muito raramente a dupla volta a se apresentar - e sempre em
Portugal. Surpreendentemente, seguem casados até 1970, quando Geraldo
morre, dia 11 de julho, aos 92 anos de idade.
Mortificada pela saudade de seu garboso príncipe negro, a portuguesa
Alda se vai poucos meses depois.