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Este pequeno tratado, verdadeira pérola oculta noi escritos

póstumos de Schopenhauer, foi elaborado "como uma


dissecação limpa" para conferir uma sistematliaçlo formal aos
“artifícios desonestos recorrentes nai disputai* Schopenhauer
apresenta 38 estratagemas, lícitos e íllcitot, aoi quall é
possível recorrer para "obter* razio; para deftndl>la quando
ela estiver do nosso lado, e para conqultté«la quando estiver
do lado do adversário. Leitura atraente e multo úttl*. com
frieza classifícatória, Schopenhauer not Indica *o i caminhos
oblíquos e os truques de que te lerve a naiumia humana
em geral para ocultar seus defeltoi*

u m ifi
Esta obra fo i publicada oríginalmerite em alemão com o título
ERISTIK, IN ARTHUR SCHOPENHAUERS HANDSCHRIFTUCHER NACHlAfi,
p or JuUus Frauenstâdi Brockhaus, em Leipzig, em 1864.
Copyright © Adelphi Edizioni s.p.a., Milão, 1991.
para a s notas, apresentação e ensaio de Franco Volpi.
Copyright © 2001, Livraria M artins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1? edição 2001
3? edição 2009

Revisão da tradução
Karina Jannini
Revisões gráficas
Helena Guimarães Bittencourt
Sandra Garcia Cortes
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Pagínação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Intemadooais de Catalc^ção na Publicação (O P)


(Câmara Brasildra do Livro, SP, Brasil)
Schopenhauer.Arthur, 1788-1860.
A arte de ter razão ; exposta ém 38 estratagemas / Arthur
Schopenhauer ; oiganização e ensaio Franco Volpi ; tradução
(a le n ^ ) Alexaiuke Krug, (itidiano) Eduardo Brandão; revisão da
tradução Karina Jannini; a presente tradução foi revista pelo orga­
nizador Franco Volpi. - 3? ed. - São Paulo : Editora WMF Martins
Fontes, 2009. - (Obras de Schopenhauer)

Título original: Eristik, In Arthur Schopenhauers


Handschriftlicher NachlaB.
ISBN 978-85-7827-110-7

1. Filosofia alemã 2. Razão I. Volpi, Franco. II. Título. Dl. Série.

09-02434 CDD-193
índices para cattíc^o ^tem ático :
1. Filosofia alemã 193

Todos os direitos desta edição reservados à


liv ra ria M artins Fontes E ditora IM a.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3101.1042
e-mail: info@wmfinartinsfontes.com.br http:/Avww.wmjmartinsfontes.com.br
ín d ice

Advertência................................................................... VII
Cronologia............. XI
A ARTE DE TER RAZÃO.............................................. 1

Adendos......................................................................... 57
Notas................................ 6l

Schopenhauer e a dialética,
l>or Franco Volpi.......................................................... 69
A dvertên cia

A arte de ter razcío é um pequeno tratado que Scho-


penhauer levou a uma redação quase definitiva., sem, no
entanto, pubHcá-lo. Sua composição remonta muito pro-
vaveírnênte ao final do período berlinense, por volta de
1830-31. O texto manuscrito, sem título, compreende oito
folhas duplas, tamanho ofício, numeradas, mais uma acres­
centada e outras duas meias folhas, num total de 44 pá­
ginas encadernadas e pertencentes ao legado do filóso­
fo. O conteúdo permite relacionar esse texto com o te-
ma tratado nas lições berlinenses sobre a “dianoiologia”,
isto é, a “teoria pensar”, em particular no ca­
pítulo sobre a lógica iPhilosophtsche Vorlesungen, Franz
Mockrauer, org., Munique, Piper, 1913). Aliás, tal relação
(• confirmada por indícios materiais, como o tipo de pa­
pel usado, que é o mesmo em ambos os casos.
Acenos à dialética e, portanto, observações, notas e
m.iteriais sobre o tema, que confluem por fim no peque-
u<i tratado, encontram-se de todo modo em muitos luga-
les da obra schopenhaueriana, nos manuscritos juvenis
•.1 partir de 1817), depois em O m undo, nas lições ber-

vn
- Arthur Scbopenhauer-

linenses e cartas póstumas. A remissão mais signifi­


cativa se encontra em Parerga eparalipomena, onde, no
capítulo sobre “Lógica e dialética” (tomo II, cap. 2, par.
26), é retomada a parte inicial do pequeno tratado, com
a exposição dos primeiros nove estratagemas. Sempre
no mesmo texto, depois de ter contado a gênese do seu
interesse pelo tema, Schopenhauer indica os motivos
que o levaram a desistir de publicar a pequena ôbrã q^^
se çpncluída; “Reuni os artifícios desonestos mais recor­
rentes nas controvérsias e representei c la r^ e n te cada
um deles na sua peculiaridade^ ilustrando-p com exem-,
pios e atribuindo-lhe um nome; por fim, a o ^scentei tam-
bém os meios a serem utilizados contra tais artifícios, por
assim dizer as defesjs cpntta tajs s o resulta­
do foi uma verdadeira dialética erística... Porém, na re­
visão ora empreendida desse meu trabalho passado, acho
que um estudo tão exaustivo e minucioso das vias indi­
retas e dos truques de que se vale a natureza humana
comum para ocultar seus defeitos não é mais conforme
ao meu temperamento e, por isso, deixo-o de lado.” E
pouco adiante; “Eu havia, portanto, reunido e desenvol­
vido cerca de quarenta desses estratagemas. Mas pôr-me
agora a ilustrar todas essas escapatórias da limitação e
da incapacidade, irmãs da obtusidade, da vaidade e da
desonestidade, causa-me náuseas; por isso, detenho-me
nestes ensaios e ressalto com energia ainda maior as ra­
zões alegadas acima, para que se evitem as discussões
com pessoas como quase todos são.”

VIII
. A arte de ter razão .

O pequeno tratado foi publicado pela primeira vez,


com o título Eristik, por Julius Frauenstadt em ArthurScho-
penhauers handschriftlicher NachlaJS, Leipzig, Brockhaus,
1864. A edição definitiva, que é a que deve ser conside­
rada, devemos a Arthur Hübscher; ela consta da sua edi­
ção das cartas inéditas do filósofo (tradução italiana pela
editora Adelphi): Der handschriftlicher NachlaJS, 5 vol.,
Frankfurt a.M., Kramer, 1966-1975 (depois Munique, Deuts-
cher Taschenbuch Verlag, 1985), vol. III, pp. 666-95. Por
fim, uma terceira edição, aliviada de algumas notas de
caráter erudito e adaptada às exigências da leitura fácil,
foi publicada por Gerd Haffmans em sua editora iEris-
tische Dialektik oder Die Kunst, Recht z u behalten, in 38
Kunstgriffen dargestellt, Zurique, Haffmans, 1983). As va-
l iantes no título da obra provêm do fato de que, como
aludimos, p manuscrito não traz título algum. Ele é de-
cluzido do próprio texto/e do que Schopenhauer diz no
trecho supracitado dos Parerga eparalipom ena, em que
a corda o pequeno tratado uma primeira vez çomo Dia-
Iclica erística e uma segunda como Linhas gerais do que
(■essencial em todas as disputas (JJmriJS des Wesentlichen
jeder EHsputatiori).
A presente edição baseia-se na de Arthur Hübscher,
loin uma única modificação. As folhas separadas e não
mmieradas (as chamadas “Nebenbogen”), acrescentadas
.1 jii imeira das oito folhas numeradas de que consta o
m.iiuiscrito, foram colocadas por Arthur Hübscher em
Mi.i c-dição crítica no início do texto, de forma que cons-

IX
- Arthur Schopenhauer .

titui seu exórdio. De fato, elas. contêm alusões históricas


às origens e às principais concepções da dialética e cons­
tituem o material reunido por Schopenhauer, tendo em
vista a redação de uma verdadeira introdução para o tra­
tado. No entanto, o caráter fragmentário e inacabado de
tais indicações fez com que preferíssemos para a presen­
te edição, não crítica, uma colocação diferente, isto é, no
final, com a indicação explícita de que se trata de “aden­
dos”. As inserções do organizador da edição estão entre
colchetes; estas, além da tradução de expressões ou ci­
tações em língua estrangeira, fornecem as referências re­
lativas aos trechos de clássicos citados por Schopenhauer,
conforme o costume crítico e as edições atualmente em
uso. As notas assinaladas com algarismos arábicos são de
Schopenhauer, as assinaladas com asterisco são do orga­
nizador da edição.

Franco Volpi
Cronologia

1788. Nasce Arthur Schopenhauer em Dantzig (Gdansk).


Kant: Kritik derpraktischen Vernunft [Cnúca. da ra­
zão prática].
1790. Kant: Kritik der Urteilskraft[Cáúca. da faculdade de
julgar].
1794. Fichte: Grundlage dergesam ten Wissenschaftslehre
[Fundamentos da doutrina da ciência em seu con.-
junto].
1800. Schelling: System des transcendentalen Idealismus
[Sistema do idealismo transcendental],
1800-5. Destinado por seu pai ao comércio, Schopenhauer
realiza uma série de viagens pela Europa ocidental:
Áustria, Suíça, França, Países Baixos, Inglaterra. Isso
lhe rende um Diário de viagem e um excelente co­
nhecimento do francês e do inglês.
1805. Morre seu pai. Schopenhauer renuncia à carreira
comercial para dedicar-se aos estudos nos liceus de
Gotha e de Weimar.
1807. Hegel: Die Phãnomenologie des Geistes [A fenome-
nologia do espírito].
1808. Fichte: Reden an die deutsche Nation [Discurso à
nação alemã]. Goethe: Die Wahlverwandtschaften
[As afinidades eletivas] e FIíímsí (primeira parte).

XI
.Arthur Scbcpenhauer -

1809-13. Schopenhauer prossegue seus estudos nas uni­


versidades de Gôttingen e de Berlim.
1813- Schopenhauer: Ueberdievierfacbe Wurzel des Satzes
vom zureíchenden Grunde [Da quádrupla raiz do
princípio de razão suficiente] (tese de doutorado).
1814. Morre Fichte.
1815. Derrota de Napoleão em Waterloo. O Congresso de
Viena reorganiza a Europa sob o signo da Santa
Aliança.
1816. Schopenhauer: Ueber das Sehen un d die Farben [Da
visão e das cores].
1818. Hegel na universidade de Berlim, onde lecionará
até sua morte.
1819. Schopenhauer: Die Welt ais Wille u n d Vorstellung
[O mundo como vontade e representação].
1820. Schopenhauer começa a lecionar em Berlim com o
título de privat-dozent. Fracassa.
1825. Nova tentativa na universidade de Berlim. Novo fta-
casso. Schopenhauer renuncia à docência e passa
a viver daí em diante com a herança paterna.
1830. Hegel: Enzyklopãdie der philosophischen Wissen-
scbaften in Grundiss [Enciclopédia das ciências fi­
losóficas] (edição definitiva).
1831. Morre Hegel.
1832. Morre Goethe.
1833. Schopenhauer estabelece-se em Frankfurt, onde re­
sidirá até sua morte.
1836. Schopenhauer: Ueber den Willen in der N atur \D2i
vontade na natureza].
1839. Schopenhauer recebe um prêmio da Sociedade No-
. A arte de ter razão .

meguesa de Ciências de Drontheim por uma dis­


sertação sobre “A liberdade da vontade”.
1840. A dissertação “Sobre o fundamento da moral” não
recebe o prêmio da Sociedade Real Dinamarquesa
de Ciências de Copenhague.
1841. Schopenhauer publica suas duas dissertações de
concurso sob o título de Die beiden Gmndprobleme
derEthiklO s dois problemas fundamentais da ética].
Feuerbach; Das Wesen des Christentum s\h essèncvi
do cristianismo].
1843 Kierkegaard; Frygt og Boeven [Temor e tremor ].
1844, Schopenhauer: O m undo como vontade e represen­
tação, segunda edição acompanhada de Suplemen­
tos. Stimer: Der Eiuzige un d sein Eigentum [O único
e sua propriedade]. Marx e Engels: Die heilige Fa-
m ilie oder Kritik der kritischen Kritik gegen Bruno
Bauer u n d Konsorten [A sagrada família ou Crítica
da crítica crítica contra Bruno Bauer e sócios].
Comte: Discours sur 1’espritpositif\D \scm so sobre
o espírito positivo].
Marx e Engels: M anifest der Kommunistischen Far­
tei [Manifesto do Partido Comunista]. Revolução na
França e na Alemanha. Sua correspondência confir­
ma que Schopenhauer desejou e apoiou a repres­
são em Frankfurt.
ISSl, Schopenhauer: Parerga u n d Paralipomena [Pa-
rerga e Paralipomena]. Êxito e primeiros discípulos,
Frauenstâdt, Gwinner etc.
l.S"i(), Nasce Freud.
IHSU, Darwin: On the Origin o f Species[A origem das es­
pécies].
i HdO, Morre Schopenhauer.

xm
A ARTE DE TER RAZAO
Exposta em 3 8 estratagem as
A dialética erístíca\ é a arte de disputar, mais precisa-
mente a aite de disputar de maneira tal que se fique com
a razão, portanto, p er fa s et nefas^ [com meios lícitos e
ilícitos]. De fato, é possível ter razão objetiva na questão
em si e, no entanto, aos olhos dos presentes, por vezes
mesmo aos próprios olhos, não ter razão. Isso ocorre
(]uando o adversário refuta minha argumentação e vale
tomo se tivesse refutado a própria afirmação, para a qual,
|K)rém, podem ser dadas outras provas; nesse caso, na-
luralmente, a relação é inversa para o adversário: ele fica
t om a razão, não a tendo objetivamente. Portanto a ver-
tlade objetiva de uma proposição e sua validade na apro­
vação dos litigantes e ouvintes são duas coisas distintas.
(A segunda está direcionada a dialética.)
De onde se origina isSo? Da maldade natural do gê-
m ro humano. Se ela tião existisse, se fôssemos inteira-
iiu-nte honestos, em todo debate visaríamos apenas a tra­
zer a verdade ã luz, sem sequer nos preocuparmos se
i l.i corresponde à opinião apresentada de início por nós
.111 à alheia: seria indiferente ou, pelo menos, totalmen-
. Arthur Schopenhavter _

te secundário. Mas agora vem o principal. A vaidade ina­


ta, particularmente suscetível no que concerne à inteli­
gência, não quer que nossa afirmação inicial resulte fal­
sa e a do adversário, correta. Se fosse assim, cada um de­
veria meramente esforçar-se para julgar apenas de modo
justo: portanto deveria primeiro pensar e depois falar.
Porém à vaidade inata associam-se, na maioria dos indi­
víduos, uma verbosidade e uma desonestidade também
inata. Falam antes de pensar e, mesmo se depois perce­
bem que sua afirmação é falsa e que não têm razão, tal
situação deve parecer contrária. O interesse pela verda­
de, que na maioria dos casos foi o único motivo para sus­
tentar a proposição considerada verdadeira, acaba ceden­
do totalmente ao interesse da vaidade; o verdadeiro deve
parecer falso, e o falso, verdadeiro.
Entretanto, mesmo tal desonestidade, a persistência
numa proposição que a nós mesmos já parece falsa, ain­
da encontra uma justificativa: muitas vezes, no início es­
tamos firmemente convencidos da verdade de nossa afir­
mação, porém o argumento do adversário parece come­
çar a derrubá-la; logo cedemos à sua causa, m as é comum
depois acharmos que na verdade tínhamos razão; nossa
evidência era falsa, mas podia haver uma verdadeira para
aquela afirmação: o argumento salvador não nos ocor­
reu de imediato. Sendo assim, surge então em nós a má­
xima de continuar a combater o argumento contrário,
mesmo quando ele parece correto e decisivo, na crença
de que sua própria exatidão seja apenas aparente e que
_ A arte de ter razão .

durante a disputa ainda nos ocorrerá outro argumento


para derrubar aquele ou confirmar nossa verdade de ou­
tra forma: somos assim quase obrigados - ou pelo me­
nos facilmente induzidos - à desonestidade na disputa.
Desse modo, as fraquezas de nosso intelecto e a p>erver-
são de nossa vontade apóiam-se reciprocamente. Por con­
seguinte, aquele que disputa, de maneira geral, não luta
pela verdade, mas em defesa de sua própria tese, agindo
como que pro ara et focis [pelos altares e pelos lares] e
per fa s et nefas, pois, como demonstramos, não pode
proceder de outro modo.
Em geral, cada um tentará, portanto, impor sua pró­
pria asserção, mesmo quando naquele instante ela lhe
parecer falsa ou duvidosa^ Os meios para se ter êxito são,
cm certa medida, oferecidos a cada um pela sua própria
esperteza e maldade: é o que ensina a experiência diá-
t ia no ato de disputar. Gada indivíduo tem, portanto, sua
dialética natural, bem como sua lógica natural. Porém
.1 primeira não nos guia por muito tempo com tanta se-
Kurança como a segunda. Ninguém irá pensar ou inferir
i.u) facilmente contra as leis da lógica: falsos juízos são
liiHlüentes, falsos silogismos, raríssimos. Sendo assim,
iiao é tão comum alguém demonstrar carência de lógica
n.itural: em contrapartida, é mais fácil que demonstre ca-
iciK ia de dialética natural. Esta é um dom natural distri-
Inmio desigualmente (nesse aspecto, idêntica à capaci-
•l.iiic de julgar, que é distribuída de modo bastante de-
e o mesmo ocorre na verdade coni a razão). Pois
. Arthur Schopenhauer ^

muitas vezes nos deixamos confundir ou refutar por argu­


mentações apenas aparentes, quando na verdade temos
razão, ou o inverso: e quem sai vencedor de um litígio
deve-o freqüentemente muito menos à exatidão da sua
capacidade de julgar ao expor a própria tese do que à
esperteza e à habilidade com que a defendeu. Nesse
caso, como em todos os outros, o inato é o melhor; no
entanto, o exercício e a reflexão sobre as expressões com
as quais se derrota o adversário, ou que ele geralmente
utiliza para derrotar, podem contribuir muito para tornar
alguém mestre nessa arte'*. Portanto, ainda que talvez a
lógica não possa dispor propriamente de nenhuma utili­
dade prática, a dialética, sem dúvida, pode tê-la. A mim
parece que Aristóteles também apresentou sua verdadei­
ra lógica (analítica) principalmente como base e prepa­
ração para a dialética, tendo sido esta o principal fator
para ele. A lógica ocupa-se da mera forma das proposi­
ções, enquanto a dialética, de sua substância ou matéria,
do conteúdo; justamente por isso a consideração da fo r­
m a - como consideração do geral - deveria preceder à
do conteúdo - como consideração do particular.
Aristóteles não define o objetivo da dialética de modo
tão rigoroso como eu: embora ele dê a disputa como fi­
nalidade principal, indica ao mesmo tempo a descober­
ta da verdade (Tópicos, I, 2). Em seguida, diz novamente
(Tópicos, I, 12): as proposições devem ser consideradas
filosoficamente segundo a verdade, dialeticamente segun­
do a aparência ou aprovação, a opinião alheia (Só|a).
- A arte de ter razão.

Apesar de ter consciência da distinção e da separação en­


tre a verdade objetiva de uma proposição e sua validação
ou a obtenção de aprovação, não as mantém separa­
das com clareza suficiente para poder atribuir à dialéti­
ca somente a segunda finalidade^ Por isso, ãs suas re­
gras para alcançar este objetivo são freqüentemente mis­
turadas aquelas empregadas na obtenção do primeiro. Eis
por que tenho a impressão de que ele não cumpriu sua
tarefa de modo claro.
Com o espírito científico que lhe é característico, Aris­
tóteles atacou a exposição da dialética nos Tópicos de
modo bastante metódico e sistemático, o que merece ad­
miração, embora o objetivo, manifestadamente prático,
não tenha sido de todo alcançado. Depois de ter consi­
derado nos Analíticos os conceitos, juízos e süogismos
segundo a form a pura, ele passa para o conteúdo, no
([ual precisa lidar, na verdade, apenas com os conceitos,
|wis é neles que reside a substância®. Proposições e si­
logismos são, por si mesmos, mera forma: os"Conceitos
são sua substância. O procedimento é o seguinte: toda
ilisputa possui uma tese ou um problema (estes diferem
.1penas na forma) e proposições que devem servir para
n.'.solvê-los. Trata-se sempre da relação dos conceitos en-
IIV si. Essas relações são primeiramente quatro, ou seja,
11(.‘ um conceito buscamos ou 1) sua definição, ou 2) seu
ijcnero, ou 3) sua particularidade, sua característica es­
sencial, o proprium, o \Siov, ou 4) seu accidens, isto é,
qiKilquer qualidade, não importando se é particular e
- Arthur Schopenhauer.

exclusiva ou não, em suma, um predicado. A uma des­


tas relações deve ser reconduzido o problema de cada
disputa. Esta é a base de toda a dialética. Nos oito livros
dos Tópicos, Aristóteles apresenta todas as relações que
os conceitos podem ter entre si naqueles quatro aspec­
tos e indica as regras para cada relação possível; ou seja,
como um conceito tem de se relacionar com outro para
ser o seu proprium , o seu accidens, o seu genus, o seu
definitum ou definição: quais erros são facilmente come­
tidos na apresentação e, portanto, o que se deve observar
toda vez que estabelecemos tal relação (KaxaaKerxiÇeiv)
e, depois que o outro a estabelece, o que se pode fazer
para derrubá-la (dcvaaKe-uáÇeiv). Ele chama de tóitoç, lo-
ctís, a apresentação de cada uma dessas regras ou de
cada uma de tais relações genéricas daquelas classes de
conceitos entre si, e indica 382 de tais xÓJtoi, de onde re­
sulta o termo Tópicos. A estes ele acrescenta ainda algu­
mas regras gerais - sobretudo no que concerne à dispu­
ta que, no entanto, não são exaustivas.
O TÓJtoç, portanto, não é puramente material, não diz
respeito a um objeto ou a um conceito determinado, mas
refere-se sempre a uma relação entre classes inteiras de
conceitos, que pode ser comum a inumeráveis conceitos,
tão logo estes são considerados um em relação ao outro
num dos quatro aspectos mencionados, o que acontece
em toda disputa. E esses quatro aspectos possuem, por
sua vez, classes subordinadas. Desse modo, a considera­
ção nesse caso ainda é formal em certa medida, porém
- A arte dè ter razão .

não tão puiamente formal eomo na lógica, uma vez que


se ocupa com o conteúdo dos conceitos, mas de uma ma­
neira formal, ou seja, indicando como o conteúdo do
conceito A deve se comportar em relação ao conteúdo
do conceito B para que este possa ser apresentado como
o genus daquele, ou como o seu proprium (caráter dis­
tintivo), ou o seu accidens, ou a sua definição, ou segun­
do as rubricas subordinadas a estes, de oposição, àvxi-
Keígevov, causa e efeito, propriedade e privação etc. Em
torno de tal relação deve girar toda disputa. A maioria
das regras que Aristóteles indica como 'tójtoi sobre essas
relações são as que residem na natureza das relações de
conceitos, da qual todo indivíduo por si só é consciente
e cuja observância por parte do adversário esse mesmo
indivíduo exige espontaneamente, tal como ocorre na
lógica, sendo que nos casos particulares é mais fácil ob­
servar essas regras ou perceber seu descuido do que se
lembrar do xónoç abstrato correspondente: justamente por
isso a utilidade prática dessa dialética não é grande. Aris-
t(')teles quase sempre diz coisas que se entendem por si
mesmas e que a razão saudável também consegue ob-
si rvar por si mesma. Exemplos: “Quando se afirma o ge-
iiiis de uma coisa, a ela também deve convir alguma spè-
( i(-s deste genus. se esta não existir, então a afirmação é
lalsa. Por exemplo: afirma-se que a alma é dotada de m o
t imento-, conseqüentemente, deve ser-lhe própria algu­
ma determinada do movimento, do vôo, da mar-
. ha, do crescimento, da redução etc. Se não for assim.
. Arthur Schopenhauer -

ela também não terá movimento. Portanto, a quem não


couber nenhuma species, também não caberá o genus.
este é o xÓJioç” [Tópicos, II, 4, 111a 33 - b 11]. Este -tótioç
vale tanto para estabelecer como para derrubar proposi­
ções. Trata-se do nono xókoç. E inversamente; se o ge-
nus não couber, também não caberá nenhuma species.
Por exemplo: alguém (afirma-se) teria falado mal de ou­
tra pessoa; se comprovarmos que ele não falou em ab­
soluto, também não terá falado mal, pois onde não há o
genus também não pode haver a species.
Sob a rubrica da particularidade, o proprrium, o locus
215 diz o seguinte: “Primeiramente, para derrubar propo­
sições: quando o adversário indica como particularidade
algo que só pode ser percebido sensoriaknente, a indi­
cação é ruim, pois tudo o que é sensorial toma-se incer­
to assim que sai do âmbito dos sentidos. Por exemplo,
ele expõe como particularidade do Sol a característica de
ele ser o astro mais brilhante a passar sobre a Terra: não
serve, pois quando o Sol se põe não sabemos se ele pas­
sa sobre â Terra, uma vez que está fora do alcance dos
sentidos. Em segundo lugar, para estabelecer proposi­
ções: a particularidade é corretamente indicada quando
se apresenta algo que não é reconhecido sensorialmen-
te, ou, se o é, que existe necessariamente. Por exemplo,
que se indique primeiramente, como particularidade da
superficie, que ela tem cor; esta é, por certo, uma carac­
terística sensorial, mas evidentemente sempre presente
e, portanto, correta” [Tópicos, V, 5, 131 b 19-36]. Isso já

10
- A arte de ter razão.

é O suficiente para lhes dar uma idéia da dialética de Aris­


tóteles. A mim não parece que ela alcance o objetivo:
portanto tentei de outra forma. Os Tópicos de Cícero são
uma imitação de memória dos aristotélicos: extremamente
superficiais e pobres. Qcero não possui absolutamente
nenhum conceito claro do que seja e tenha por objetivo
um topMS, e assim apanha ex ingenio todo tipo de dis­
curso e o adorna abundantemente com exemplos jurídi­
cos. Um dos seus piores escritos,
A fim de apresentar claramente a dialética, devemos,
independentemente da verdade objetiva (que é assunto
da lógica), contemplá-la simplesmente como a arte de f i ­
car com a razão, o que, sem dúvida, será tanto mais fácil
(juando se tiver objetivamente razão. Porém a dialética,
enquanto tal, deve apenas ensinar como se defender de
ataques de qualquer espécie, em particular os desonestos,
1“ igualmente como se pode atacar o que o outro afirma
sem contradizer a si mesmo e, sobretudo, sem ser refu­
tado. Devemos separar nitidamente a descoberta da ver­
dade objetiva e a arte de validar as próprias proposições
lomo verdadeiras: aquela é objeto de uma JtpaYtiaxeía
Itiatado] totalmente diferente, é obra do discernimento,
lia reflexão, da experiência, e por isso não há para ela
nenhuma arte específica. A segunda, todavia, é o objeti-
\ I) da dialética. Esta última foi definida como a lógica das
.tparências: é falso porque, nesse casb, ela teria utilidade
•ipcnas na defesa de proposições falsas. No entanto, mes-
nit) (juando se tem razão, a dialética é necessária para

11
- Arthur Schopenhaner-

defendê-la, e deve-se conhecer os estratagemas deso­


nestos para poder enfrentá-los: muitas vezes, até mesmo
utilizá-los para derrubar o adversário com as mesmas ar­
mas. Eis por que na dialética a verdade objetiva deve ser
colocada de lado ou ser vista como acidental: e a única
preocupação deve ser com a defesa das próprias afirma­
ções e a derrota das alheias. Ao se estabelecerem as re­
gras da dialética, não se pode considerar a verdade ob­
jetiva, pois, em geral, não se sabe onde ela se encontra.
É comum não sabermos se temos razão ou não; muitas
vezes acreditamos tê-la e nos enganamos; com fireqüên-
cia ambas as partes acreditam: pois ventas est in puteo
(èv àÀfjúeia [a verdade está no fundo], Demócri-
to, segundo Diógenes Laércio, IX, 72). Quando nasce o
litígio, em geral cada um acredita ter a verdade a seu
lado; em seguida, ambos ficam em dúvida: é somente o
final que deve constituir e confirmar a verdade. A dialéti­
ca não deve, portanto, aventurar-se na verdade, do mes­
mo modo como o mestre de esgrima não leva em con­
sideração quem de fato está com a razão no litígio que
causou o duelo; acertar e defender, eis o que interessa.
O mesmo vale na dialética: ela é uma esgrima intelec­
tual; somente quando entendida desse modo puro pode
ser apresentada como uma disciplina própria, pois, se
nos colocamos como meta a pura verdade objetiva, re­
tornamos à mera lógica-, se, por outro lado, nos coloca­
mos a realização de proposições falsas, temos então a
mera sofistica. E em ambas seria pressuposto que já sou­

12
- A arte de ter razão.

béssemos o que é objetivamente verdadeiro e falso, po­


rém é raro que haja certe2a sobre isso de antemão. O ver­
dadeiro conceito da dialética, portanto, é o apresentado;
esgrima intelectual para se ficar com a razão ao dispu­
tar. Embora o nome erística seja mais apropriado, o mais
correto seria dialética erística: dialectica erística. E ela é
de grande utilidade: é sem razão que tem sido despre­
zada em tempos recentes.
Nesse sentido, a dialética deve simplesmente ser um
resumo e uma exposição, reconduzidos a um sistema e
a regras, daquelas artes sugeridas pela natureza e utili­
zadas pela maioria das pessoas para ficar com a razão,
mesmo quando, numa contenda, percebe que a verdade
não está do seu lado. É por isso também que seria mui­
to inoportuno se na dialética científica quiséssemos le­
var em consideração a verdade objetiva e a sua revela­
ção, uma vez que não é isso o que acontece naquela dia­
lética original e natural, cujo objetivo é simplesmente o
fato de ter razão. Por conseguinte, a dialética científica,
no modo como a entendemos, tem como tarêfa princi­
pal estabelecer e analisar aqueles estratagemas da deso­
nestidade na disputa, para que nos debates reais eles
possam ser logo identificados e aniquilados. Justamente
|)or isso, em sua exposição, ela deve assumir declarada­
mente como objetivo final apeiias o fato de ter razão,
não a verdade objetiva.
Não me consta que se tenha realizado algo nesse sen-
liilo, embora eu tenha feito uma pesquisa minuciosa a

13
. Arthur Schopenbauer-

respeito^: trata-se, portanto, de um campo ainda inculto.


Para se alcançar tal objetivo, seria necessário criar a partir
da experiência, observar, nos debates que com freqüên-
cia ocorrem no relacionamento social, o modo como
este ou aquele estratagema é utili2ado por uma e outra
parte e, em seguida, reconduzir à sua estrutura geral os
estratagemas que retornam sob outras formas, a fim de
expor certas stratagemata gerais, que seriam então úteis
tanto para uso próprio quanto para frustrar os mesmos
artifícios quando utilizados pelo adversário.
O que segue deve ser visto como uma prim eira ten­
tativa.

14
Antes de mais nada, deve-se observar a essência de
toda disputa, o que de fato se passa nela.
O adversário (ou nós mesmos, não importa) apresen­
ta uma tese. Para refutá-la, existem dois modos e dois ca­
minhos.
1) Os modos, a) ad rem, b) a d hom inem ou ex con-
cessis. isto é, demonstramos que a proposição não con­
corda com a natureza das coisas, com a verdade objetiva
absoluta, ou com outras afirmações e assentimentos do
adversário, ou seja, com a verdade subjetiva relativa: esta
última é uma demonstração apenas relativa e em nada
afeta a verdade objetiva. .
2) Os caminhos, a) refutação direta, b) indireta. A di­
reta ataca a tese em seus fundamentos; a indireta, em suas
implicações: a direta mostra que a tese não é verdadeira;
a indireta, que ela não pode ser verdadeira.
a) Na refutação direta, podemos agir de duas manei­
ras. Ou mostramos que os fundam entos de sua afirmação
são falsos inego majorem-, minoreni), ou então admiti­
mos os fundamentos, porém mostrando que a afirmação

15
. Arthur Schopenhauer -

não resulta deles inego consequentiarrí), ou seja, ataca­


mos a consequência, a forma da inferência.
b) Na refutação indireta, utilizamos a apagogia ou a
instância.
a) Apagogia-, aceitamos a proposição do adversário
como verdadeira: depois mostramos o que resulta quan­
do, vinculada a alguma outra proposição reconhecida
como verdadeira, a utilizamos como premissa para um si­
logismo do qual se origina uma conclusão evidentemen­
te falsa, na medida em que contradiz a natureza das coi­
sas ou as outras afirmações do próprio adversário, sen­
do, portanto, falsa a d rem ou ad hom inem (Sócrates in
Hippia maj. et alias)-, logo, a proposição também era fal­
sa, pois de premissas verdadeiras só podem resultar pro­
posições verdadeiras, embora de premissas falsas nem
sempre resultem proposições falsas. (Se ela de fato con­
tradisser uma verdade totalmente indubitável, então tere­
mos levado o adversário ad absurdum ^
P) A instância, èvamoiç, exemplum in contrarium. re­
futação da proposição genérica mediante indicação dire­
ta de casos isolados, compreendidos em seu enunciado,
para os quais, porém, ela não vale. Desse modo, a pro­
posição genérica é necessariamente falsa.
Este é o arcabouço básico, o esqueleto de toda dispu­
ta: temos, portanto, a sua osteologia. De fato, é para ele
que se dirige fundamentalmente toda disputa. No entan­
to, tudo isso pode se dar de modo real ou apenas apa­
rente, com motivos legítimos ou ilegítimos: e porque não
. A arte d eter razão.

é fácil determinar com segurança algo a respeito é que os


debates são tão longos e obstinados. Ao dar instruções,
também não podemos separar o verdadeiro do aparente,
pois, a esse respeito, nem mesmo os próprios litigantes
têm certeza previamente. Sendo assim, ofereço os estra­
tagemas sem levar em conta o fato de se ter objetiva­
mente razão ou não, pois nem mesmo nós podemos sa-
bê-lo com certeza: isso só deve ser estabelecido mediante
o litígio. De resto, em toda disputa ou argumentação em
geral, deve-se estar de acordo em relação a alguma coi­
sa que se toma como princípio para julgar a questão a
ser tratada: contra negantem principia non est disputan-
dum [não se deve disputar com quem, logo de início,
nega os princípios].

ESTRATAGEMA 1

A expansão. Levar a afirmação do adversário para


além de seu limite natural, interpretá-la da manéira mais
genérica possível, tomá-la no sentido mais amplo possí­
vel e exagerá-la; inversamente, concentrar a própria afir­
mação no sentido mais limitado, no limite mais restrito
possível: pois, quanto mais genérica se toma uma afirma­
ção, a mais ataques ela fica exposta. O antídoto é a co­
locação exata dos p u n cti ou status controversiae.
Exemplo 1. Eu disse: “Os ingleses são a primeira na­
ção no gênero dramático.” O adversário quis experimen­

17
- Arthur Schopenhauer _

tar uma instantia e retmcou: “É sabido que eles não con­


seguiram criar nada na música, logo também não na ópe­
ra.” Eu o rechacei com a lembrança “de que a música
não está compreendida no gênero dramático', este desig­
na apenas a tragédia e a comédia”: o que ele bem sabia,
tendo apenas procurado generalizar minha afirmação para
que ela compreendesse todas as representações teatrais,
conseqüentemente também a ópera e a música, para en­
tão bater-me com segurança.
Se, por outro lado, a expressão usada por nós o favo­
recer, salva-se a própria afirmação, restringindo-a para
além do primeiro propósito.

Exemplo 2. A diz: “A paz de 1814 restituiu a indepen­


dência até mesmo a todas as cidades hanseáticas ale­
mãs.” 5 dá a instantia in contrarium de que, com aque­
la paz, Danzig perdeu a liberdade que Bonaparte lhe
concedera. A salva-se da seguinte forma: “Eu disse todas
as cidades hanseáticas alemãs: Danzig era uma cidade
hanseática polonesa.”
Esse estratagema já era ensinado por Aristóteles: Tó­
picos, MII, 12.

Exemplo 3- Lamarck iPhilosophie zoologique. Paris,


1809, vol. 1, p. 203) nega aos pólipos qualquer sensação,
uma vez que eles não possuem nervos. Ora, é certo, po­
rém, que eles possuem percepção, pois buscam a luz en­
quanto se deslocam artificialmente de ramo em ramo e

18
- A arte de ter razão .

apanham sua presa. Por essa razão, fez-se a suposição


de que a sua massa nervosa estaria vmiformemente es­
palhada pela massa do corpo inteiro, como que fundida
a este, pois eles evidentemente têm percepções sem ter
órgãos sensoriais específicos. Como isso derruba a hipó­
tese de Lamarck, ele argumenta dialeticamente da se­
guinte maneira; “Nesse caso, todas as partes do corpo
dos pólipos deveríam ser capazes de todo tipo de sensa­
ção, movimento, vontade e pensamento; nesse caso, o
pólipo teria em cada ponto do seu corpo todos os ór­
gãos do animal mais perfeito: cada ponto podería ver,
cheirar, saborear, ouvir etc., até mesmo pensar, julgar,
deduzir: cada partícula do seu corpo seria um animal
completo, e o pólipo em si estaria acima do homem,
uma vez que cada célula sua teria todas as faculdades
que o homem possui apenas em seu conjunto. Além dis­
so, não havería motivo para não se estender o que se
afirma sobre os pólipos à mônada, o mais imperfeito de
todos os seres, e por fim também às plantas, que afinal
também vivem, e assim por diante.” Com o uso de tais
estratagemas dialéticos, um escritor revela que em seu
íntimo está consciente da sua falta de razão. Uma vez
que se disse “Seu corpo inteiro é sensível à luz, portan­
to é de natureza nervosa”, ele deduz que o corpo intei­
ro pensa.

19
- Arthur Schopenhauer.

ESTRATAGEMA 2

Utilizar a hom ontm ia para estender a afirmação colo­


cada também para aquilo que, fora da palavra idêntica,
pouco ou nada tem em comum com o assunto em ques­
tão; em seguida, refutá-lo de maneira luculenta para, des­
se modo, dar a si mesmo a impressão de ter refutado a
afirmação.
Observação, synonym a são duas palavras que indi­
cam o mesmo conceito; hom onyma são dois conceitos
designados pela mesma palavra (cf. Aristóteles, Tópicos,
I, 13). Profundo, cortante, alto são hom onym a utilizados
ora para corpos, ora para sons. Honrado e honesto são
synonyma.
Pode-se considerar esse estratagema idêntico ao sofis-
ma ex homonymia-, no entanto, o sofisma óbvio de ho-
monímia não iludirá seriamente.

Omne lumen potest extingui;


Intellectus est lumen-,
Intellectus potest extingui .*

Nesse caso, nota-se de imediato a existência de qua­


tro term ink lum en no sentido concreto e lum en no sen­
tido figurado. Porém, em casos sutis, isso certamente ilu­
de, sobretudo onde os conceitos designados pela mes-

* Toda luz pode ser apagada; / A inteligência é luz; / A inteligência


pode ser apagada.
- A arte de ter razão .

ma expressão são congêneres e se sobrepõem um ao


outro.

Exemplo 1. (Os casos intencionalmente engendrados


nunca são refinados o bastante para poder iludir; deve­
mos, portanto, colhê-los da própria experiência real. Se­
ria muito bom se tivéssemos a possibilidade de dar a
cada estratagema um nome conciso e apropriado, ao qual
pudéssemos recorrer, no momento oportuno, para des­
cartar instantaneamente o uso deste ou daquele estra­
tagema.)
A. “O senhor ainda não foi iniciado nos mistérios da
filosofia kantiana.”
B\ “Ora, o que é cheio de mistérios não me interessa
em nada.”

Exemplo 2. Censurei como insensato o princípio da


honra, segundo o qual quem sofre uma ofensa é deson­
rado, a menos que a responda com outra injúria maior ou
a lave com sangue, do adversário ou o próprio. Como
fundamento, aleguei que a verdadeira honra não pode
ser ferida por aquilo que se padece, mas exclusivamen­
te por aquilo que se faz; pois a qualquer um pode suce­
der de tudo. O adversário atacou diretamente minha ra­
zão: mostrou-me de modo luculento que, se caluniasse
um comerciante, dizendo que ele trapaceia ou comete
ilegalidades, ou que é negligente em seu negócio, isso
seria um ataque ã sua honra, que seria ferida unicamen-

21
- Arthur Schopenhauer _

te pelo que ele padece e que ele apenas podería restau­


rar se impusesse penalidade e retratação a tal agressor.
Nesse caso, portanto, ele utilizou a homonímia para
substituir a honra civil, também chamada de bom nome,
e cuja ofensa ocorre por difamação, pelo conceito cia
honra cavalheiresca, igualmente conhecida como p o in t
dhonneur, e cuja ofensa ocorre por meio de injúrias. E
uma vez que um ataque à primeira não deve ser descon­
siderado, mas repelido mediante refutação pública, um
ataque à segunda não deveria, com o mesmo direito, per­
manecer ignorado, mas ser repelido com injúria maior e
com o duelo. Uma mescla, portanto, de duas coisas es­
sencialmente diferentes, realizada pela homonímia da pa­
lavra honra-, e com isso a homonímia dá origem a uma
mutatio controversiae.

ESTRATAGEMA 3

Tomar a afirmação® apresentada de modo relativo,


KU-tá XI, relative, como se fosse genérica, simpliciter,
àitXôbç, absolute, ou pelo menos compreendê-la sob um
aspecto totalmente diferente, refutando-a então nesse sen­
tido. O exemplo de Aristóteles é: o mouro é negro, po­
rém tem dentes brancos, portanto é negro e ao mesmo
tempo não-negro. Esse é um exemplo inventado que não
iludirá ninguém a sério; tomemos, ao contrário, um da
experiência real.

22
ittÉ H M É Ü i ■HÉI

-A arte de ter razão.

Exemplo. Num diálogo sobre filosofia, admiti que meu


sistema protege e louva os quietistas. Logo em seguida
a conversa recaiu sobre Hegel, e afirmei que a maior
parte das coisas que ele escrevera não tem sentido ou,
pelo menos, que muitas passagens de seus escritos são
tais que o autor coloca a palavra e é o leitor quem deve
dar-lhes o sentido. O adversário não empreendeu uma
refutação a d rem, mas contentou-se em apresentar o ar-
gum entum a d hom inem de que eu acabara de louvar os
quietistas, e estes haviam igualmente escrito muita coisa
sem sentido.
Consenti a esse respeito, retificando, porém, que eu
não louvo os quietistas como filósofos e escritores, ou
seja, por suas produções teóricas, mas apenas como se­
res humanos, por suas ações, em sentido meramente prár
ticcr. quanto a Hegel, porém, estaríamos falando de pro­
duções teóricas. Desse modo, o ataque foi detido.

Os três primeiros estratagemas são congêneres: têm


em comum o fato de o adversário reahnente falar de algo
diferente do que foi afirmado; incorreriamos, portanto,
numa ignoratio elenchi (ignorância da refutação) se nos
deixássemos liquidar por tais estratagemas, pois, em to­
dos os exemplos apresentados, o que o adversário diz é
verdadeiro: não se encontra em contradição efetiva com
a tese, mas apenas aparente; portanto, quem é atacado
por ele nega a conseqüência da sua dedução, ou seja,
que da Verdade da sua proposição se origine a falsidade
- Arthur Schopenbauer _

da nossa. Desse modo, trata-se de uma refutação direta


da sua refutação p er negationem consequentiae.
Não admitir premissas verdadeiras porque se antevê
a conseqüência. Contra isso, usar os dois seguintes re­
cursos, estratagemas 4 e 5.

ESTRATAGEMA 4

Quando se quer fazer uma dedução, não se deve dei­


xar que ela seja antevista, mas, em vez disso, fazer com
que o adversário admita sem perceber as premissas uma
por vez e de modo esparso, do contrário, ele tentará toda
espécie de argúcia; ou então, quando não se tem certe­
za de que o adversário as admitiría, devem-se apresen­
tar as premissas dessas premissas e fazer pré-silogismos;
fazer com que as premissas de vários desses pré-silogis­
mos sejam aceitas de modo desordenado e confuso,
ocultando, portanto, o próprio jogo até que tudo o que
se necessita esteja admitido. Conduza-se, pois, de longe
o assunto. Tais regras são dadas por Aristóteles nos Tó­
picos, VIII, 1.
Não são necessários exemplos.
- A arte de ter razão .

não admitir as verdadeiras, seja porque não reconhece a


sua verdade, seja porque vê que a nossa tese resultaria
imediatamente delas: tomem-se então proposições que
são em si falsas, porém verdadeiras a d homínem, e ar-
gumente-se ex concessis a partir do modo de pensar do
adversário. De fato, o verdadeiro também pode resultar
de premissas falsas, ainda que o falso nunca resulte de
premissas verdadeiras. Igualmente, pode-se refutar fal­
sas proposições do adversário por meio de outras pro­
posições falsas, que ele, no entanto, considera verdadei­
ras: afinal, é com ele que estamos lidando e precisamos
utili2 ar a sua maneira de pensar. Por exemplo: se ele for
adepto de alguma seita com a qual não simpatizamos, po­
demos empregar contra ele, como principia, as senten­
ças dessa seita. Aristóteles, Tópicos, Vin, 9. (Retoma o
estratagema precedente.)

ESTRATAGEMA 6

Faz-se uma petitio principii oculta ao se postular o


que se deseja comprovar: 1) sob outro nome, por exem-
plo, bom nome em vez de honra, virtude em vez de vir­
gindade etc., ou também com conceitos intercambiáveis:
:mimais de sangue quente em vez de animais vertebra-
tlos; 2) ou fazendo com que seja concedido em geral o
(|ue no caso particular é controverso, por exemplo, afir­
mar a incerteza da medicina, postulando a incerteza de
lodo o conhecimento humano; 3) quando, vice-versa.

25
-Arthur Schopenhauer .

dois fatores resultam’mutuamente um do outro, e se deve


demonstrar o primeiro postulando o segundo; 4) quan­
do se deve comprovar o universal, fazendo com que se
aceite cada fator individual (o contrário do n- 2). (Aris­
tóteles, Tópicos, VIII, 11.)
Sobre o exercício da dialética, o último capítulo dos
Tópicos de Aristóteles contém boas regras.

ESTRATAGEMA 7

Quando a disputa for conduzida de modo mais rigo­


roso e formal e houver o desejo de se fazer entender
bastante claramente, aquele que propôs a afirmação e
deve comprová-la procede contra seu adversário fazen­
do-lhe perguntas, a fim de concluir a verdade da afirma­
ção a partir das próprias concessões do outro. Este mé­
todo erotemático era particularmente habitual entre os
antigos (chama-se também “socrático”): a ele se refere o
presente estratagema e alguns que seguem mais adiante
(Jodos livremente elaborados a partir do capítulo 15 do
Liber de elenchis sophisticis de Aristóteles).
Fazèr muitas perguntas de uma só vez e de modo por­
menorizado, a fim de ocultar o que na verdade se quer
ver admitido. Em contrapartida, expor rapidamente a
própria argumentação a partir do que foi admitido; pois
aqueles que são lentos de compreensão não conseguem
acompanhar com exatidão e deixam passar as eventuais
falhas e lacunas na argüição.
m»m\

. A arte de ter razão .

ESTflATAGEMA 8

Provocar raiva no adversário, pois, tendo raiva, ele não


estará em posição de julgar corretamente nem de perce­
ber a própria vantagem. Para deixá-lo com raiva é pre­
ciso ser injusto com ele, de modo declarado, atormen-
tando-o e comportando-se, em geral, com impudência.

ESTRATAGEMA 9

Fazer as perguntas não na ordem exigida pela conclu­


são, mas com transposições de todo gênero: desse modo,
o adversário não saberá aonde se quer chegar e não po­
derá precaver-se: podemos então também usar suas res­
postas para obter conclusões diversas, até mesmo opos­
tas, conforme o que for respondido. Tal estratagema é
congênere com o quarto no que diz respeito a mascarar
o próprio procedimento.

ESTRATAGEMA 10

Quando percebemos que o adversário responde pro-


positadamente com negações às perguntas, cuja respos­
ta afirmativa poderia ser utilizada para nossa proposição,
devemos perguntar-lhe o contrário da proposição que
nos serve, como se quiséssemos sua aprovação, ou pelo

27
- Artbur Schopenhauer .

menos apresentar m ibas para que o outro escolha, de


modo que ele não descubra qual proposição queremos
ver respondida aíirmativamente.

ESTRATAGEMA 11

Se realizamos uma indução e o adversário admite os


casos particulares por meio dos quais ela deve ser colo­
cada, não devemos perguntar se ele também concede a
verdade genérica resultante desses casos, mas introduzi-
la em seguida como já estabelecida e reconhecida, pois
algumas vezes ele mesmo acreditará que a admitiu, e a
mesma impressão terão os ouvintes, porque eles se lem­
bram das várias perguntas sobre os casos particulares, as
quais, no entanto, deverão ter conduzido ao objetivo*

ESTRATAGEMA 12

Se a coriversa for sobre um conceito geral que não pos­


sua o seu próprio nome, mas que, à maneira de um tro­
po, deva ser designado por uma semelhança, devemos
escolher prontamente tal semelhança, de modo que ela
favoreça nossa afirmação. Assim, por exemplo, na Espa­
nha, os nomes que designam os dois partidos políticos,
serviles e liberales, foram seguramente escolhidos por
estes últimos.
MÍÉillíÉiÍÉâílUÉIlHítllt

- A arte de ter razão.

O nome “protestantes” foi escolhido por estes, assim


como o nome “evangélicos”; o nome “hereges”, porém,
foi escolhido pelos católicos.
Isso vale para o nome das coisas, mesmo quando elas
forem mais apropriadas: por exemplo, se o adversário
propôs uma modificação, nós a chamaremos de inova­
ção, pois esta palavra é odiosa. Devemos nos compor­
tar de modo contrário se somos nós a propô-la. No pri­
meiro caso, deve-se chamar a contraposição de “ordem
vigente”, no segundo, de “empecilho”. O que alguém de­
sinteressado e imparcial talvez denominasse “culto” ou
“dogma público” seria chamado de “devoção” ou “pie­
dade” por quem fosse a favor, ou de “bigotismo”, “su­
perstição” pelo seu adversário. No fundo, trata-se de uma
sutil petitio principii-. aquilo que se quer demonstrar é co­
locado de antemão na palavra, na denominação, a par­
tir da qual ele resulta mediante um simples exame ana­
lítico. O que um chama de “assegurar-se da sua pessoa”,
“colocar sob custódia”, o adversário denomina “aprisio­
nar”. Muitas vezes, um orador delata antecipadamente
seu propósito por meio dos nomes que dá às coisas. Um
diz “o clero”, o outro diz “os padres”. Dentre todos os
estratagemas, este é o mais usàdo, de modo instintivo.
Fervor religioso = fanatismo; deslize ou galanteria = adul­
tério; ambigüidades = indecências; dificuldades financei­
ras = bancarrota; “por influência e conhecimento finan­
ceiros” = “por suborno e nepotismo”; “reconhecimento
sincero” = “bom pagamento”.

29
- A rthur Scbopenbauer _

ESTRATAGEMA 13

Para fazer com que o adversário aceite uma proposi­


ção, devemos apresentar-lhe a tese oposta e deixar que
ele faça sua escolha; nosso modo de exprimir tal opos­
to deve ser tão ofuscante a ponto de fazê-lo sentir a ne­
cessidade de consentir com nossa proposição - que, por
sua vez, parece muito provável - , se não quiser cair em
contradição. Por exemplo: ele deve admitir que deve­
mos fazer tudo o que nosso pai manda. Então pergun­
tamos: “Deve-se em todas as coisas ser obediente ou de­
sobediente com os próprios pais?” Ou, se a respeito de
alguma coisa se disser “freqüentemente”, devemos per­
guntar se com “freqüentemente” devem-se compreender
poucos ou muitos casos: ele dirá “muitos”. É como co­
locar o cinza ao lado do preto e chamá-lo de branco e,
junto ao branco, chamá-lo de preto.

ESTRATAGEMA 14

Um golpe insolente ocorre quando, após o adversário


ter respondido a várias perguntas sem favorecer a con­
clusão que temos em mente, apresentamos como com­
provada a conclusão a que queremos chegar, embora
ela não resulte absolutamente das suas respostas, e a ex­
clamamos triunfantes. Se o adversário é tímido ou tolo e
nós temos uma boa dose de impertinência e uma boa

30
- A arte de ter razão .

VOZ, O golpe pode funcionar muito bem. Esse estratage­


ma pertence ^ fallacia non causae u t causae [engano me­
diante o reconhecimento da não-causa como causa].

ESTRATAGEMA 15

Quando a proposição que colocamos é paradoxal e


estamos embaraçados quanto à sua comprovação, apre­
sentamos ao adversário uma tese correta, mas não total­
mente evidente, para que ele aceite ou rejeite, como se
a partir dela quiséssemos produzir a comprovação: se ele,
por desconfiança, a rejeita, levamo-la a d ahsurdum e
triunfamos; se, porém, a aceita, teremos pelo menos afir­
mado algo razoável e deixamos para ver depois o que
acontece. Ou então inserimos o estratagema anterior e
afirmamos que dessa maneira fica comprovado o nosso
paradoxo. Para tanto, é necessária a máxima impertinên­
cia: ocorre, porém, na realidade, e há pessoas que fazem
tudo isso instintivamente.

ESTRATAGEMA 16

Argum enta ad hom inem ou ex çoncessis. Diante de


uma afirmação do adversário, temos de pesquisar se ela
porventura não está de algum modo - conforme o caso
até apenas aparentemente - em contradição com algu-

31

ip n
-Arthur Schopenhauer -

ma coisa que ele tenha dito ou admitido anteriormente,


ou com os dogmas de uma escola ou seita que ele tenha
louvado e sancionado, ou ainda com as ações dos adep­
tos dessa seita, mesmo que sejam falsos e aparentes, ou
com seu próprio comportamento. Se ele, por exemplo,
defende o suicídio, logo lhe gritam: “Por que você não
se enforca?” Ou se afirma que Berlim é um lugar desa­
gradável para morar, bradam-lhe como resposta: “Por que
você não parte logo com a primeira diligência?”
No entanto, de algum modo ainda se poderá encon­
trar algum aborrecimento.

ESTRATAGEMA 17

Quando o adversário nos pressiona com uma contrá-


prova, freqüentemente podemos nos salvar por meio de
uma diferenciação sutil - na qual certamente não havía­
mos pensado antes -, desde que o assunto permita al­
gum duplo significado ou duplo caso.

ESTRATAGEMA 18

Se percebemos que o adversário adotou uma argu­


mentação que nos derrotará, não podemos deixá-lo che­
gar ao ponto de concluí-la, mas devemos interromper,
afastar ou desviar a tempo o andamento da disputa, a
tÊÊÈám ífliÉAl

. A arte de ter razão .

fim de conduzi-la a outras questões: em resuirio, prepa­


rar uma m utatio controversiae.

ESTRATAGEMA 19

Se o adversário exigir expressamente que apresente­


mos algo contra um determinado ponto da sua afirma­
ção, mas nós não temos nada de adequado, precisamos
então tratar o assunto de maneira genérica e, em segui­
da, falar contra tal generalidade. Devemos dizer por que
não se pode confiar numa determinada hipótese física:
sendo assim, discursamos sobre o caráter enganoso do
saber humano e o comentamos de todas as formas.

ESTRATAGEMA 20

Depois de perguntarmos ao adversário a respeito das


premissas e ele as admitir, não devemos, por exemplo,
perguntar-lhe também qual a conclusão que delas resul­
ta, mas deduzi-la nós mesmos; ou melhor, mesmo que
ainda esteja faltando uma ou outra das premissas, nós a
tomamos como igualmente admitida e extraímos a conclu­
são. Tal fato constitui, portanto, um uso da fallacia non
causae u t causae.

33
- A rtbur Scbopenhau^ -

ESTRATAGEMA 21

Se percebemos que o adversário faz uso de um argu­


mento meramente aparente ou sofistico vislumbrado por
nós, certamente podemos anulá-lo, analisando sua natu­
reza capciosa e ilusória, porém é melhor enfrentá-lo com
um contra-argumento iguahnente sofistico e aparente e,
desse modo, derrubá-lo. Pois o que importa não é a ver­
dade, mas a vitória. Se ele, por exemplo, apresenta um
argum entum a d hominem, basta infirmá-lo com um con­
tra-argumento a d hom inem ie x concessis): em geral, é
mais breve apresentar um argum entum a d hominem,
quando este se oferece, do que uma longa análise da
verdadeira natureza do assunto.

ESTRATAGEMA 22

Se o adversário exigir que admitamos alguma coisa da


qual imediatamente resultaria o problema em litígio, de­
vemos recusá-la, fazendo-a passar por uma petitio prin-
cipii-, pois ele e os ouvintes facilmente considerarão idên­
tica ao problema uma proposição estreitamente afim; e
assim nós lhe subtraímos o seu melhor argumento.
- A arte de ter razão -

ESTRATAGEMA 23

A contradição e o litígio estimulam o exagero da afir­


mação. Podemos, portanto, usar objeções para incitar o
adversário a expandir para além da verdade uma afirma­
ção que, em si e dentro de um certo âmbito, podería ser
verdadeira: e uma vez refutada essa exageração, seria
como se tivéssemos refutado também a sua proposição
original. Em contrapartida, quando nos contradizem, de­
vemos tomar cuidado para não exagerar ou estender nos­
sa proposição. Com freqüência, o próprio adversário logo
tentará expandir nossa afirmação para além dos extre­
mos em que a inserimos: devemos detê-lo imediatamen­
te, reconduzindo-o aos limites da nossa afirmação com
um “até aqui foi o que eu disse, e nada além”.

ESTRATAGEMA 24

A fabricação de conseqüências. A partir da proposi­


ção do adversário, usam-se falsas deduções e deturpação
de conceitos para forçar proposições que nela não estão
contidas e que não correspondem absolutamente à opi­
nião do adversário, sendo, pelo contrário, absurdas ou
perigosas: como então da sua tese parecem resultar tais
proposições, que são contraditórias entre si ou em rela­
ção a verdades reconhecidas, isso passa como uma refu­
tação indireta, apagogia: é um novo emprego da falia-
cia non causae u t causae.

35
. Arthur Schopenhatter.

ESTRATAGEMA 25

Este estratagema refere-se à apagogia por meio de


uma “instância”, exem plum in contrarium. A èmYOOYn,
inductio, requer uma grande quantidade de casos para
poder compor seu princípio universal: a dcjtaYtoyn preci­
sa apenas apresentar um único caso ao qual o princípio
não corresponda e este será derrubado: tal caso chama-
se “instância”, èvoTacnç, exem plum in contrarium , ins-
tantia. Por exemplo, a proposição: “Todos os ruminan­
tes possuem chifres” é derrubada mediante a única ins­
tância dos camelos.
A “instância” é um caso de aplicação da verdade ge­
nérica, algo a ser subsumido no conceito principal de tal
verdade, para o qual, porém, ela não vale, sendo por
isso inteiramente derrubada. Entretanto, podem ocorrer
enganos: desse modo, nas instâncias feitas pelo adversá­
rio, temos de observar o seguinte: 1) se o exemplo é
realmente verdadeiro: existem problemas cuja única so­
lução autêntica é que o caso não seja verdadeiro, como
ocorre com muitos milagres, histórias de espíritos etc.; 2)
se ele realmente está compreendido no conceito da ver­
dade apresentada: com freqüêrida isso é apenas aparen­
te, podendo ser esclarecido por meio de uma distinção
precisa; 3) se ele está realmente em contradição com a
verdade apresentada: isso também é muitas vezes apenas
aparente.

36
- A arte de ter razão .

ESTRATAGEMA 26

Um golpe brilhante é a retorsio argumenti: quando


o argumento que o adversário quer usar em seu favor
pode ser mais bem utilizado contra ele. Por exemplo,
ele diz: “É uma criança, não devemos levá-la tão a mal”,
retorsio: “Justamente por se tratar de uma criança deve­
mos castigá-la, a fim de que não persevere em seus
maus hábitos.”

ESTRATAGEMA 27

Se o adversário inesperadamente se zanga diante de


um argumento, devemos insistir energicamente nele: não
apenas porque é bom provocar-lhe a ira, mas também
porque é de supor que tenhamos tocado o lado fraco do
seu raciocínio e que poderemos provavelmente atingi-lo
nesse ponto ainda mais do que se pode entrever num
primeiro momento.

ESTRATAGEMA 28

Este estratagema é utilizável principalmente quando


eruditos disputam diante de ouvintes leigos. Quando não
se dispõe de nenhum argumentum a d rem, muito menos
de um a d hominem, faz-se um ad auditores, isto é, uma

37

p ip p
- Arthur Schopenhauer .

objeção inválida, cuja inconsistência, porém, só pode ser


vislumbrada por alguém versado no assunto: assim é o
adversário, mas não os ouvintes. Aos olhos deles, por­
tanto, ele é vencido, sobretudo se a nossa objeção de al­
gum modo der à sua afirmação uma luz ridícula. Para o
riso as pessoas estão sempre prontas, e aqueles que riem
estarão do nosso lado. Para demonstrar a nulidade da
objeção, o adversário teria de fazer uma longa exposição
e remontar aos princípios da ciência, ou algo do gêne­
ro: para tanto, ele não conseguirá facilmente atenção.

Exemplo. O adversário diz: na formação da crosta ro­


chosa primária, a massa da qual se cristalizou o granito e
toda a rocha restante tomou-se fluida por calor, ou seja,
derreteu: o calor devia atingir cerca de 200° R*: a massa
se cristalizou sob a superfície do mar que a cobria. Colo­
camos o argum entum a d auditores de que com tal tem­
peratura, ou melhor, com muito menos, aos 80° R, o mar
já teria evaporado há muito tempo è flutuaria no ar em
forma de vapor. Os ouvintes riem. Para nos derrotar, ele
teria de demonstrar que o ponto de ebulição não depen­
de apenas do nível de calor, mas iguahnente da pressão
atmosférica, e esta, tão logo aproximadamente metade
da água do mar evaporasse, aumentaria tanto que nem
mesmo a 200° R haveria ebulição. Porém ele não dispo-

• Graus Réaumur. A escala de Réaumur (1683-1757) possui 80 graus


entre os pontos de solidificação e ebulição da água. (N. do T.)

38
- A arte de ter razão .

rá de tempo para chegar a essa formulação, uma vez que,


para quem não sabe nada de física, seria necessário fa­
zer um tratado.

ESTRATAGEMA 29

Se percebermos que seremos vencidos, devemos fa­


zer uma digressão, isto é, começamos de repente com
algo totalmente diferente, como se pertencesse ao as­
sunto e fosse um argumento contra o adversário. Tal es­
tratégia deve ser realizada com certa reserva se a digres­
são continuar a se referir ao thema questionis em geral;
se disser respeito apenas ao adversário, sem tocar abso­
lutamente no assunto, deve ser realizada com insolência.
Por exemplo: eu elogiava o fato de que na China não
há nenhuma nobreza hereditária e os cargos são confe­
ridos unicamente em função de exam ina. Meu adversá­
rio afirmou que a erudição capacitava tão pouco para
exercer cargos quanto os méritos do nascimento (que ele
tinha em certa conta). Mas saiu-se mal. Imediatamente
fez uma digressão, dizendo que na China todas as clas­
ses são punidas com bastonadas, o que ele relacionou
com o costume de beber muito chá, censurando os chi­
neses por ambas as coisas. Ora, quem se embrenhasse
em tudo isso estaria deixando-se desviar e teria per­
mitido que lhe arrebatassem das mãos a vitória já asse­
gurada.

39
. Arthur Schopenhauer _

A digressão é insolente quando abandona totalmente


o assunto em questão e principia mais ou menos assim:
“Sim, e o senhor também afirmou recentemente etc.” De
fato, nesse aspecto ela pertence, em certa medida, ao
“tornar-se ofensivo”, sobre o qual se falará no último es­
tratagema, A rigor, ela é um nível intermediário entre o
argum entum ad personam, a ser tratado justamente no
, último estratagema, e o argum entum ad hominem.
Qualquer disputa entre pessoas comuns demonstra o
quanto esse estratagema é, de certo modo, inato, pois,
quando alguém faz críticas pessoais a um outro, este não
responde, digamos, por sua refutação, mas com críticas
pessoais que ele faz ao primeiro, deixando intocadas e,
portanto, praticamente admitindo aquelas dirigidas a ele
mesmo. Ele age como Cipião, que atacou os cartagine­
ses não na Itália, mas na África. Tal digressão pode fun­
cionar na guerra em determinadas épocas. Numa discus­
são, ela é nociva porque não suscita reação contra as crí­
ticas recebidas, e quem ouve fica sabendo dos defeitos
de ambas as partes. Na disputa é usada em geral fa u te
de mieux.

ESTRATAGEMA 30

O argum entum a d verecundiam. Em vez de motiva­


ções utilizam-se autoridades segundo os conhecimentos
do adversário. Diz Sêneca: unusquisque m avult credere

40
- A arte de ter razão .

quam judicare [cada um prefere crer a julgar. De vita


beata, I, 4]. Trata-se, portanto, de um jogo fácil quando
se tem do próprio lado uma autoridade que o adversá­
rio respeita. Para ele, porém, a autoridade será tanto mais
legítima quanto mais limitados forem seus conhecimen­
tos e suas capacidades. Se estes forem de primeira or­
dem, haverá para ele pouquíssima, quase nenhuma au­
toridade. Eventualmente, ele aceitará a autoridade de pes­
soas especializadas em alguma ciência, arte ou ofício que
ele conheça pouco ou ignore por completo, e mesmo
assim com desconfiança. Pessoas comuns, ao contrário,
têm profundo respeito por especialistas de qualquer tipo.
Elas não sabem que aqueles que fazem de um assunto
sua profissão não amam o assunto, mas os seus ganhos:
também não sabem que quem ensina um assunto rara­
mente o conhece a fundo, pois, em geral, quem o estu­
da a fundo não tem tempo para ensiná-lo. Somente para
o vulgus existem muitas autoridades que merecem res­
peito: se não se possui uma que seja totalmente adequa­
da, deve-se tomar uma que aparente como tal e citar o
que alguém disse em outro sentido ou em outras circuns­
tâncias. Autoridades que o adversário não entende são,
em geral, as que mais funcionam. Os incultos têm um
particular respeito pelas expressões retóricas gregas e la­
tinas. Sendo necessário, é possível não apenas distorcer
as autoridades, mas também falsificá-las ou até mesmo
citar aquelas que foram totalmente inventadas: geralmen­
te o adversário não tem o livro à mão e tampouco sabe

41
. Afthur Schopenhauer.

Utilizá-lo. A esse propósito, o mais belo exemplo é dado


pelo francês Curé, que, para não ser obrigado a pavimen­
tar a rua diante de sua casa como os outros cidadãos,
alegou uma citação bíblica: paveant illi, ego non pavebo
[que temam aqueles, eu não temerei]*. Isso foi o sufi­
ciente para convencer os administradores da comunida­
de. Também podem ser utilizados preconceitos gerais
como autoridades, pois, com Aristóteles, creio que na Éti­
ca a Nicômaco, a maioria pensa: & |j.èv JtoX.Xolç ôokeI
vx\mx ye eívai <pa|xév [chamainos de justas as coisas que,
para muitos, aparentam como tal. Ética a Nicômaco, X,
2, 1172 b 36]; sim, por mais absurda que possa ser, não
há opinião de que o homem não tenha se apropriado,
tão logo tenha sido convencido de que tal opinião é uni-
versahnente aceita. O exemplo age sobre o seu pensa­
mento, bem como sobre a sua ação. São ovelhas que se­
guem o carneiro-guia para onde quer que ele as condu­
za: para elas é mais fácil morrer do que pensar. É muito
curioso que o caráter geral de uma opinião tenha tanto
peso para essas pessoas, uma vez que podem de fato ver
em si mesmas como as opiniões são aceitas sem nenhum
julgamento e apenas por força do exemplo. Mas isso elas
não vêem, pois lhes falta todo conhecimento de si mes­
mas. Apenas os melhores dizem, com Platão, xoíç JtoAAoíç
JtoXXà SoKei [a maioria tem muitas opiniões. Repníblica,

* A anedota se encontra em Claude Adrien Helvétius, D e Ve^rrtt, II,


cap. XIX.

42
- A arte de ter razão .

EX, 576 c], OU seja, o vulgustem muitas patranhas na ca­


beça, e, se quiséssemos nos importar com elas, teríamos
muito o que fazer.
A universalidade de um a opinião, tomada seriamen­
te, não constitui nem uma prova, nem um fundamento
provável da sua exatidão. Aqueles que a afirmam devem
considerar que: 1) o distanciamento no tempo rouba a
força comprobatória dessa universalidade; do contrário,
precisariam evocar todos os antigos equívocos que algu­
ma vez foram universalmente considerados verdade: por
exemplo, estabelecer o sistema ptolemaico ou o catolicis­
mo em todos os países protestantes; 2) o distanciamen­
to no espaço tem o mesmo efeito: caso contrário, a uni­
versalidade de opinião entre os que professam o budis­
mo, o cristianismo e o islamismo os constrangerá. (Segun­
do Jeremy Bentham, Tactique des assemblées législatives,
Genebra-Paris, 1816, vol. 2, p. 76.)
O que então se chama de opinião geral é, a bem da
verdade, a opinião de duas ou três pessoas; e disto nos
convenceriamos se pudéssemos testemunhar como se
forma tal opinião universalmente válida. Acharíamos en­
tão que foram duas ou três pessoas a supor ou apresen­
tar e a afirmar num primeiro momento, e que alguém
teve a bondade de julgar que elas teriam verificado real­
mente a fundo tais colocações: o preconceito de que es­
tes seriam suficientemente capazes induziu, em princípio,
alguns a aceitar a mesma opinião: nestes, por sua vez,
acreditaram muitos outros, aos quais a própria indolên-
- Arthur Schopenhauer _

cia aconselhou: melhor acreditar logo do que fazer con­


troles trabalhosos. Desse modo, dia após dia cresceu o
número de tais adeptos indolentes e.crédulos: pois, uma
vez que a opinião já contava com uma boa quantidade
de vozes do seu lado, os que se seguiram o atribuíram
ao fato de que ela só podia ter conquistado tais votos
graças à consistência dos seus fundamentos. Os que ain­
da restaram foram constrangidos a concordar com o que
já era considerado válido por todos, a fim de não serem
considerados cabeças irrequietas que se rebelam contra
opiniões universalmente aceitas, nem garotos intrometi­
dos que querem ser mais inteligentes do que o mundo
inteiro. A essa altura, o consenso tornou-se uma obriga­
ção. A partir de então, os poucos que têm capacidade
de julgar precisam calar, e os que podem falar são aque­
les completamente incapazes de ter opinião e julgainen-
to próprios, são o mero eco da opinião alheia: contudo
são também defensores tanto mais zelosos e intransigen­
tes dela. Pois, naquele que pensa de outro modo, odeiam
menos a opinião diferente que ele professa do que o
atrevimento de querer julgar por conta própria, experiên­
cia que eles mesmos nunca fazem e da qual, no seu ín­
timo, têm consciência. Em suma, muito poucos sabem
pensar, mas todos querem ter opiniões: o que mais lhes
resta a não ser, em vez de criá-las por conta própria,
aceitá-las totalmente prontas de outros? Uma vez que as­
sim sucede, quanto poderá valer a voz de cem milhões
de pessoas? Tanto quanto um fato histórico que se en­
-A arte de ter razão .

contra em cem historiadores,mas que depois se compro­


va ter sido transcrito por todos, um após outro, motivo
pelo qual, no fim das contas, tudo reflui ao depoimento
de um único homem (segundo Pierre Bayle, Pensées sur
les comètes [A- edição, 1704], tomo I, p. 10).

Dico ego, tu dicis, sed denique dixit et ille:


Dictaquepost toties, nil nisi dieta vides*

Não obstante, quando se discute com pessoas comuns,


pode-se fazer uso da opinião geral como de uma auto­
ridade.
O que se encontra em geral é que, quando duas cabe­
ças comuns disputam entre si, a arma que costumam es­
colher na maioria dás vezes são as autoridades: é com elas
que uma golpeia a outra. Se uma cabeça melhor tiver de
lidar com alguma do gênero, o mais aconselhável é que
se adapte a essa arma, selecionando-a conforme as fra­
quezas de seu adversário. Pois, contra a arma dos funda­
mentos, este é, ex hypothesi, um verdadeiro Siegfried**,
imerso no fluxo da incapacidade de pensar e julgar.

* “Eu o digo, tu o dizes, mas, ao final, aquele também o diz: / Depois


que o disseram tantas vezes, não se vê outra coisa a não ser o que foi dito.”
Mote que se encontra em exeigo na “Parte polêmica” da Farberüebrefíeo-
ria das cores], de Goethe.
•• No original, literalmente, “Siegfried de chifres”, uma das alcunhas
do mítico herói germânico. Alude-se aqui provavelmente à sua virtual in­
vencibilidade. (N. do T.)

45
- Artbur Scbopenhauer .

No tribunal, as disputas na verdade se realizam so­


mente por meio de autoridades; a autoridade das leis
que não suscita dúvidas: a tarefa do discernimento é des­
cobrir a lei, isto é, a autoridade que encontra aplicação
no caso dado. A dialética, porém, possui maigem de ma­
nobra suficiente quando, se necessário, o caso e uma lei
que não estão propriamente em correspondência são in­
vertidos até que se passe a vê-los como adequados um
ao outro: o inverso também ocorre.

ESTRATAGEMA 31

Quando não se souber apresentar nada contra os fun­


damentos expostos pelo adversário, com sutil ironia de­
vemos nos declarar incompetentes: “O que o senhor diz
ultrapassa minha fraca capacidade de compreensão: sem
dúvida estará certíssimo, mas não consigo entender e re­
nuncio a qualquer julgamento.” Com isso, insinuamos
aos ouvintes, junto aos quais temos prestígio, que se tra­
ta de um disparate. Foi o que fizeram os professores da
antiga escola eclética por ocasião do surgimento da Crí­
tica da razão pura, ou melhor, do início do seu contur­
bado prestígio, ao declararem “nós não a entendemos”,
acreditando com isso tê-la liquidado. Quando, porém, al­
guns adeptos da nova escola demonstraram a esses pro­
fessores que eles tinham razão e que realmente não a ti­
nham compreendido, eles ficaram de péssimo humor.

46
. A arte dé ter razão .

Esse estratagema só pode ser utilizado quando se es­


tiver seguro de ter um prestígio decididamente mais alto
que o do adversário junto aos ouvintes. Por exemplo, um
professor contra um estudante. Na verdade, essa situa­
ção pertence ao estratagema anterior e é uma maneira
particularmente maliciosa de fazer valer a própria auto­
ridade em vez das razões. O contragolpe é: “Se me per­
mite, com seu grande acume, deve ser-lhe muito fácil
compreender este assunto, só podendo ser culpa de mi­
nha defeituosa exposição”, e então esfregar-lhe na cara
o tema, de modo que ele, nolens volens, tenha de enten­
dê-lo, e que fique claro que antes era ele quem de fato
não havia entendido. Sendo assim, retorquimos: ele quis
nos insinuar “incongruência”: nós lhe comprovamos sua
“incompreensão”. Tudo com a mais bela cortesia.

ESTRATAGEMA 32

Um modo prático dè afastar ou pelo menos colocar


sob suspeita uma afirmação do adversário contrária a nós
é submetê-la a uma categoria odiada, ainda que a relação
entre elas seja a de uma v a ^ semelhança ou de total in­
coerência. Por exemplo: “Isto é maniqueísmo; isto é aria-
nismo; isto é pelagianismo; isto é idealismo; isto é espi-
nosismo; isto é panteísmo; isto é brownianismo; isto é
naturalismo; isto é ateísmo; isto é racionalismo; isto é es-
piritualismo; isto é misticismo etc.” Com isso supomos

47
- Arthur Schopenhauer.

duas coisas: 1) que-aquela afirmação é realmente idênti­


ca à categoria ou que ao menos está contida nela, o que
nos leva a exclamar: “Ah, isso nós já conhecemos!”, 2)
que essa categoria já foi completamente refutada e não
pode conter nenhum termo verdadeiro.

ESTRATAGEMA 33

“Isto pode ser correto na teoria; na prática é falso.”


Com esse soíisma admitem-se os fundamentos, porém
negam-se suas conseqüências, em contradição com a re­
gra a ratione a d rationatum valet consequentia [de uma
razão ao seu efeito vigora a conseqüência]. A afirmação
citada gera uma impossibilidade: o que é correto na teo­
ria deve valer também na prática: se isso não se confir­
ma é porque há alguma falha na teoria; algo passou des­
percebido e não foi levado em consideração e, por con­
seguinte, é falso também na teoria.

ESTRATAGEMA 34

Se o adversário não dá nenhuma resposta ou informa­


ção direta a uma pergunta ou a um argumento, mas es­
quiva-se por meio de outra pergunta ou de uma respos­
ta indireta, ou mesmo por meio de algo que não per­
tence ao tema e demonstra querer tratar de um assunto

48
- A arte de ter razão .

totalmente diferente, isso é um sinal seguro de que atin­


gimos (às vezes sem saber) um ponto frágil: trata-se de
um emudecimento relativo da parte dele. Devemos, por­
tanto, insistir no ponto em que tocamos e não permitir
que o adversário o abandone, mesmo quando ainda não
conseguimos ver em que consiste a debilidade que
atingimos.

ESTRATAGEMA 35

o qual, tão logo seja praticável, tom a dispensáveis todos


os outros: em vez de agir sobre o intelecto por meio de
fundamentos, deve-se agir sobre a vontade por meio
de motivações, e o adversário, bem como os ouvintes,
caso tenham o mesmo interesse que ele, são imediatamen­
te conquistados para a nossa opinião, ainda que esta te­
nha sido tirada do manicômio: pois, em geral, meia onça
de vontade pesa mais do que uma tonelada de entendi­
mento e convicção. Evidentemente, isso só é possível sob
circunstâncias particulares. Se pudermos fazer o adver­
sário sentir que a sua opinião, caso fosse válida, causa­
ria lom visível prejuízo a seu interesse, ele a abandonará
tão depressa quanto um ferro quente que tivesse agarra­
do por descuido. Por exemplo, um religioso defende um
dogma filosófico: nós o fazemos notar que este está in­
diretamente em contradição com um dogma fundamen­
tal da sua igreja, e ele o deixará de lado.

49
- A rtbur Scbcpenhauer-

Um proprietário de terras afirma a excelência da me­


canização na Inglaterra, onde uma máquina a vapor rea­
liza o trabalho de muitas pessoas: devemos dar-lhe a en­
tender que em breve os carros também serão puxados
por máquinas a vapor, de modo que os cavalos das suas
numerosas estrebarias fatalmente cairão de preço; e en­
tão veremos. Em tais casos, o sentimento de cada um é
regra: quam temere in nosmet legem sancim us iniquam
[com quanta leviandade enunciamos uma lei iníqua con­
tra nós mesmos. Horácio, Sátiras, I, 3, 67].
Deve-se agir do mesmo modo quando os ouvintes,
mas não o adversário, pertencerem ã mesma seita, cor­
poração, ofício, clube etc. que nós. Mesmo que sua tese
esteja correta, basta aludirmos ao fato de ela contrariar os
interesses comuns da referida corporação etc., para to­
dos os assistentes acharem seus argumentos fracos e de­
ploráveis, ainda que sejam excelentes, e os nossos, ao
contrário, verdadeiros e exatos, ainda que tirados do nada;
o coro se proclamará em voz alta a nosso favor, e o ad­
versário abandonará o campo envergonhado. Ou me­
lhor, na maioria das vezes, os ouvintes acreditarão ter
dado sua aprovação por pura convicção. Pois aquilo que
nos é desvantajoso geralmente parece absurdo ao inte­
lecto. Intellectus lum inis sicci non est recipit infusionem
a voluntate et afflectibus [o intelecto não é uma luz que
arde sem óleo, mas é alimentado pela vontade e pelas
paixões. Francis Bacon, Nauum Organon, I, 491. Esse es­
tratagema poderia ser caracterizado pela expressão “agar-

50
- A arte de ter razão .

rar a árvore pela raiz”; geralmente ele é chamado de ar-


gum entum ab utili.

ESTRATAGEMA 36

Assustar e desconcertar o adversário com um palavrea­


do sem sentido. Isso baseia-se no fato de que

Gewôbnlich glaubt der Mensch, wenn er nur Worte hõrt,


Es müsse sich dabei doch auch was denken lassetf.

Se ele então tiver intimamente consciência da própria


debilidade, se estiver acostumado a escutar coisas que
não entende, porém agindo como se as entendesse, po­
demos impressioná-lo ao tagarelar com expressão séria
algum disparate que soe erudito ou profundo, bloquean­
do sua audição, sua visão e seu pensamento**, e fazen-
do-o passar como a prova mais irrefutável de nossa pró­
pria tese. Como é sabido, alguns filósofos utilizaram em

• “Geralmente, quando ouve apenas palavras, o homem crê / que ne­


las também deve haver algo para ser pensado” (Johann Wolfgang Goethe,
Fausto, I, w. 2565-66).
•* Nesta passagem, Schopenhauer provavelmente volta a pensar no
Fausto, de Goethe, retomando as palavras da seguinte cena: “Und in den
Sâlen, auf den Bânken, / Vergeht mir Hôren, Sehen und Denken” [“E nos
bancos das salas, / perco a audição, a visão e o pensamento”] (I, 1886-87)
(N. doT.).

51
- Arthur Schopenhauer _

tempos recentes esse estratagema com o mais brilhante


êxito, mesmo diante do público alemão inteiro. Como,
porém, trata-se de exempla odiosa, recorreremos a um
exemplo mais antigo, retirado de Oliver Goldsmith, em
The Vicar o f Wakefield (cap. VII).

ESTRATAGEMA 37

Cque deveria ser um dos primeiros). Quando o adver­


sário, mesmo tendo razão quanto ao assunto, por sorte
escolhe um argumento ruim, toma-se fácil para nós re-
futá-lo, e depois o fazemos passar por uma refutação do
assunto em si. No fundo, tudo se reduz a fazer um ar-
gum entum ad hom inem passar por um ad rem. Se não
ocorre ao adversário nem aos circunstantes nenhum ar­
gumento mais correto, a vitória é nossa. Por exemplo,
quando alguém, para demonstrar a existência de Deus,
apresenta o argumento ontológico, bastante fácil de ser
refutado. Esse é o modo pelo qual maus advogados per­
dem uma boa causa: querem justificá-la mediante uma
lei que não se coaduna com ela, não lhes ocorrendo a
lei apropriada.

ÚLTIMO ESTRATAGEMA

Quando percebemos que o adversário é superior e que


não ficaremos com a razão, devemos nos tornar ofensi-

52
. A arte de ter razão .

vos, insultantes, indelicados. O caráter ofensivo consiste


em passar do objeto da contenda (pois nele o caso está
perdido) para o contendor, atacando de alguma manei­
ra a sua pessoa. Poderiamos chamar isso de argumen-
tum adpersonam , para diferenciá-lo do argum entum ad
hominem. este se afasta do puro objeto em questão para
se ater ao que o adversário disse ou admitiu a respeito.
No caráter ofensivo, porém, abandona-se completamen­
te o objeto e dirige-se o próprio ataque à pessoa do ad­
versário: tornamo-nos, portanto, insolentes, maliciosos,
insultantes, indelicados. Trata-se de uma apelação das for­
ças intelectuais àquelas do corpo ou à animalidade. Essa
regra é muito popular, pois qualquer um está apto a rea­
lizá-la, o que faz com que ela seja freqüentemente em­
pregada. Cabe agora perguntar qual regra contrária va­
lerá nesse caso para a outra parte. Pois, se ela utilizar a
mesma regra, pode-se chegar a uma rixa, a um duelo, ou
a um processo por injúria.
Cometeríamos um erro muito grande se pensássemos
que seria suficiente não nos tornarmos ofensivos. Pois
mostrar a uma pessoa, com toda serenidade, que ela não
tem razão e, portanto, julga e pensa erroneamente, o que
é o caso em todo triunfo dialético, exaspera-a mais do
que uma manifestação indelicada e insultuosa. Por quê?
Porque, como diz Hobbes em De eive, capítulo I [§ 51:
Omnis anim i voluptas, omnisque alacritas in eo sita est,
quod quis habeat, quihuscum conferens se, possit mag-
nifice sentire de seipso [Todo prazer e todo ardor do es­
pírito residem em ter alguém com quem se comparar e

53
-Arthur Schopenhauer -

assim desfrutar da alta estima de si mesmo], Para o ho­


mem, nada supera a satisfação da sua vaidade, e nenhu­
ma ferida dói mais do que aquela em que a vaidade é
atingida. (Disso provêm expressões como “a honra vale
mais que a vida” etc.) Essa satisfação da vaidade nasce
principalmente da comparação de si mesmo com outras
pessoas, em todos os sentidos, porém principalmente
em relação às capacidades intelectuais. Tal comparação
acontece effective e com muita intensidade na disputa.
Eis o motivo da exasperação do vencido, sem que lhe
aconteça nenhuma injustiça, e eis o motivo do seu re­
curso, como extrem a ratio, a este último estratagema:
dele não se pode escapar por meio da mera cortesia da
nossa parte. Ter muito sangue-frio, entretanto, pode ser
de grande ajuda nessa situação se, na verdade, tão logo
o adversário se tom e ofensivo, respondemos calmamen­
te que aquilo não diz respeito ao assunto, retomando de
imediato a este e continuando a demonstrar a sua falta
de razão, sem atentar para as suas ofensas, portanto, mais
ou menos do modo como Temístocles diz a Euribíades:
jidxcx^ov |iév, áKOuaov 6é [espanca-me, mas ouve-me. Plu-
tarco, Temístocles, 11, 20]. Isso, no entanto, não é dado a
qualquer um.
Sendo assim, a única regra contrária e segura é aque­
la que já Aristóteles indica no último capítulo dos Tôpi-
COS-. não disputar com o primeiro, com o melhor de todos,
mas somente com aqueles que conhecemos e dos quais
sabemos que possuem juízo suficiente para não apre-

54
. A arte de ter razão .

sentar coisas tão absurdas a ponto de serem expostos à


humilhação; e que sejam capazes de disputar com fun­
damentos e não com decisões autoritárias, e de escutar
fundamentos e aceitá-los; e, por fim, que prezem a ver­
dade, gostem de ouvir bons fundamentos, mesmo quan­
do provêm da boca do adversário, e possuam a quantida­
de necessária de eqüidade para suportar a perda da ra­
zão quando a verdade permanecer do outro lado. Con-
seqüentemente, de cem pessoas, talvez haja uma com
quem valerá a pena disputar. Aos restantes deixemos fa­
lar o que bem entenderem, pois desipere estjuris gen-
tium [não ter juízo é um direito humano], e considere-se
o que diz Voltaire; La p a ix vaut encore m ieux que la w -
rité [A paz é preferível ã verdade]; e diz um ditado árabe:
“Da árvore do silêncio pendem os frutos da paz.”
Não há dúvida de que a disputa, como divergência
entre cabeças, freqüentemente é de recíproco proveito,
tanto para a correção dos próprios pensamentos como
para a produção de novos pontos de vista. No entanto,
os dois contendentes devem possuir mais ou menos o
mesmo grau de erudição e inteligência. Se a um deles
faltar a primeira, ele não entenderá tudo, não estará au
niveau. Se lhe faltar a segunda, a exasperação resultan­
te o induzirá a desonestidades e artimanhas, ou à gros­
seria.
Entre a disputa in colloquio privato sive fam ilia ri e a
disputatio sollemnis publica, pro gradu etc. não há ne­
nhuma diferença fundamental. Apenas, talvez, que nes-

55
- Arthur Schopenbauer _

ta Última se exija que o respondem áev3. sempre ficar com


a razão contra o opponem e, por isso, em caso de ne­
cessidade, o praeseso socorra; ou, ainda, que nesta mes­
ma se argumente com mais formalidade e se aprecie re­
vestir os argumentos de uma forma silogística rigorosa.

56
A dendos

Lógica e dialética foram utilizadas como sinônimos já


pelos antigos, embora A,0YÍÇ8aô ai, repensar, refletir, cal­
cular, e ôuxX.éyea^ôai, conversar, sejam duas coisas muito
diferentes, O nome dialética (SuxX.eKtuci^, 5iaX.eKi:iKf|
7tpaY|a.ax8Ía [tratado dialético], 5uxX8ktikòç àvtip [homem
dialético]) foi empregado pela primeira vez por Platão
(como informa Diógenes Laércio): e descobrimos que no
Pedro, no Sofista e no sétimo livro da República ele en­
tende por esta o uso correto da razão e o ato de se exer­
citar nesse uso. Aristóteles emprega xd SiaXexxiKá com o
mesmo sentido: porém, segundo Lorenzo Valia, atribuin­
do-o primeiramente a XoyiKfi. Encontramos nos seus es­
critos XoyiKal Ôuax8p8íai, ou seja, argutiae [dificuldades
lógicas, isto é, cavilação], Jtpóxaoiç A,oyiki^ [prótase lógi­
ca], àjiopía A,OYiicfi [aporia lógica], O termo 5iaX,8KxiKi^
seiia, portanto, mais antigo do que XxyyiKf|. Cícero e Quin-
tiliano usam dialética e lógica com o mesmo significado
geral. Cícero diz no Lucullo [Academicorum libri, II, 28,

57
- Arthur Schopenhaüer -

91]: DialecHcam inventam esse, veri etfa lsi quasi discep-


tatricem [A dialética foi inventada como sendo aquela
que, por assim dizer, decide entre verdadeiro e falso]. Cí­
cero, Tópica, 2; Stoici enim judicandi vias diligenterper-
secuti sunt, ea scientia, quam Dialecticen appellant [Os
estóicos, com efeito, perseguiram diligentemente os mé­
todos do juízo com a ajuda daquela ciência que chamam
de dialéticd\. Quintiliano, De institutione oratoria [XII, 2]:
itaque haec pars dialecticae, sive illam disputatricem di-
cere m alim us [de onde vem esta parte da dialética ou,
como preferimos dizer, arte de d ista r]-, esta última pare­
ce, portanto, ser-lhe o equivalente latino de SiaÀeKxucf].
(Tudo isso segundo Petri Kami dialectica, Audom ari Ta-
laei praelectionibus illustrata, 1569.) Esse uso das pala­
vras lógica e dialética como sinônimos conservou-se
também na Idade Média e na Idade Moderna até os dias
de hoje. No entanto, na Idade Moderna, sobretudo em
Kant, usou-se o termo “dialética” com mais freqüência
num sentido depreciativo, como “arte sofistica de dispu­
tar”, e por isso preferiu-se a denominação “lógica” por
ser menos comprometedora. Ambas, porém, significam
por si só a mesma coisa, e nos últimos anos voltou-se a
considerá-las como sinônimos.

II

É um pecado que, desde a Antiguidade, dialética e ló­


gica tenham sido empregadas como sinônimos e, por
- A arte de ter razão -

conseguinte, eu não possa ter tanta liberdade para sepa­


rar seu significado, como realmente gostaria, e definir a
lógica (de A,0YíÇeai3ai, refletir, calcular - de A,óyoç, pala­
vra e razão, que são inseparáveis) como “a ciência das
leis do pensamento, isto é, do modo de proceder da ra­
zão”, e a dialética (de SiaA,éyea'ôai, conversar: mas toda
conversação comunica fatos ou opiniões: portanto, ou é
histórica, ou é deliberativa) como “a arte de disputar”
(entendendo essa palavra no sentido moderno). Sendo
assim, é evidente que a lógica dispõe de um objeto pu­
ramente a priori, determinável sem a intervenção da ex­
periência, ou seja, as leis do pensamento, o procedimen­
to que a razão (o Xóyoç) segue se for deixada a si mes­
ma e não for perturbada, isto é, quando um ser racional
pensa sozinho e nada o induz ao erro. A dialética, por
sua vez, trataria da comunhão de dois seres racionais que,
portanto, pensam juntos, o que gera uma disputa, ou
melhor, uma batalha espiritual, tão logo eles não concor­
dem como dois relógios sincronizados. Como pura ra­
zão, os dois indivíduos deveríam concordar. Suas diver­
gências nascem da diversidade que constitui a individua­
lidade e são, portanto, um elemento empírico. A lógica,
a ciência do pensamento, isto é, a ciência do procedi­
mento da razão pura, podería então ser construída sim­
plesmente a priori-, a dialética, em grande parte, apenas
a posteriori pelo conhecimento, adquirido com a expe­
riência, das perturbações sofridas pelo pensamento puro
- quando dois seres racionais pensam juntos - por obra
da diversidade da individualidade, e pelo conhecimento

59
_ Artbur Schopenhauer _

dos meios que os indivíduos utilizam uns contra os ou­


tros para fazer valer o pensamento individual de cada
um como puro e objetivo. Com efeito, a natureza huma­
na implica o fato de que, quando no pensamento em co­
mum, no SiaXéyea^dai, isto é, na comunicação de opi­
niões (exceto os discursos de tipo histórico), A percebe
que os pensamentos de a respeito do mesmo objeto
divergem dos seus, sua primeira iniciativa não é reexa­
minar o próprio pensamento para encontrar o erro, mas
pressupor que este esteja no pensamento do outro. Isso
significa que o homem é prepotente por natureza, que
quer ter razão, e aquilo que obtém dessa propriedade é
o ensinamento da disciplina que eu gostaria de chamar
de dialética e que, no entanto, para evitar equívocos, cha­
marei de dialética erística. Esta seiia, portanto, a doutri­
na do modo de proceder pertencente à natural prepo­
tência humana.

60
N otas

1. Entre os antigos, lógica e dialética são geralmente


utilizadas como sinônimos; o mesmo fazem os modernos.
2. Erística seria apenas uma palavra mais difícil para
indicar a mesma coisa. Aristóteles (segundo Diógenes
Laércio, V, 28) reuniu retórica e dialética, cujo objetivo
seria a persuasão, xò môavóv; depois a analítica e a filo­
sofia, cujo objetivo seria a verdade. AkxA,8kxiicí) 8é èoxi
ié%vt[ X.ÓYCOV, Si fjç dvaaxetxíÇopév %\. KaTotcncetxííÇoiiev,
èpcortiaecoç Kal àTioKpíaeooç x&v irpoaSiaA^yoiievcov [A
dialética é a arte do discurso; por meio dela refutamos ou
afirmamos algo a partir da pergunta e da resposta dos in­
terlocutores] (Diógenes Laércio, III, 48, in Vita Platonis).
Aristóteles, na verdade, faz duas distinções: 1) a lógica
ou analítica como a teoria ou indicação para obter os si­
logismos verdadeiros, os apodícticos; 2) a dialética ou in­
dicação para obter os silogismos que valem como verda­
deiros, correntemente considerados verdadeiros, èvSo^a,
probabilia (.Tópicos, I, 1 e 12), a respeito dos quais não
há nada que determine que sejam falsos, tampouco que
sejam (em si e por si) verdadeiros, uma vez que tal fa-

61
- A rthur Sdiopenbauer _

tor não é importante. Mas o que é isso senão a arte de


obter razão, independentemente do fato de a termos real­
mente ou não? Ou seja, a arte de alcançar a aparência da
veidade, sem nos preocuparmos com a situação dos fa­
tos. Portanto, como afirmamos no início, Aristóteles real­
mente divide os silogismos em lógicos e dialéticos, de­
pois em; 3) erísticos ierísticd), nos quais a forma do si­
logismo é correta, porém as proposições em si, a maté­
ria, não são verdadeiras, mas apenas aparentam como
tal, e fínalmente 4) em sqftsHcos (jsofísticd), nos quais a
forma do silogismo é falsa, porém parece correta. Todos
os três últimos tipos pertencem à dialética erística, uma
vez que todos têm por fim não a verdade objetiva, mas
sua aparência, sem levar a primeira em consideração;
portanto, visam a ter razão. Além disso, o livro sobre os
silogismos sofísticos só foi editado mais tarde: era o úl­
timo livro da dialética.
3. Maquiavel prescreve ao príncipe que aproveite todo
fflomento de fraqueza do seu vizinho para atacá-lo: pois,
do contrário, este poderá um dia aproveitar o instante em
que o primeiro estiver fraco. Se remassem a lealdade e
u honestidade, as coisas seriam diferentes: como, porém,
uâo somos obrigados a nos prover delas, não devemos
praticá-las, pois não são bem recompensadas. De forma
semelhante acontece na disputa: se dóu razão ao adver­
sário tão logo ele parece tê-la, dificilmente ele fará o mes-
uio quando o caso se inverter: procederá antes p er ne-
fos, portanto tenho de fazer a mesma coisa. É fácil dizer

62
. A arte de ter razão .

que devemos perseguir apenas a verdade, sem predile­


ção por uma proposição, porém não devemos pressupor
que o outro fará o mesmo, o que implica que nós tam­
bém não devemos fazê-lo. Além disso, se eu quisesse -
tão logo me parecesse que ele tem razão - renunciar à
minha proposição, depois de tê-la examinado a fundo, po­
dería facilmente suceder que, induzido por uma impres­
são momentânea, eu estivesse renunciando à verdade
para adotar o erro.
4. Doctrina sed mm promovei insitam [Mas a doutrina
promove a faculdade inata. Horácio, Carmina, IV, 4, 331.
5. E, por outro lado, no livro de elenchis sopbisticis,
ele volta a se empenhar com afinco em separar a dialé­
tica da sofistica e da erística. A diferença devería consis­
tir no fato de que os silogismos dialéticos são verdadei­
ros na forma e no conteúdo, enquanto os eiísticos ou so-
físticos são falsos. Estes diferenciam-se meramente pelo
objetivo, que nos primeiros (a erística) constitui o ato de
se ter razão e, nos últimos (a sofistica), a obtenção de
prestígio por meio desses silogismos e do dinheiro que
se ganha com tal prestígio. É sempre muito incerto sa­
ber se as proposições são verdadeiras segundo seu con­
teúdo para que disso se tire o critério de diferenciação;
e mais incerto ainda é para quem disputa: o próprio re­
sultado da discussão fornece apenas um esclarecimento
inseguro a respeito. Portanto, na dialética de Aristóteles,
temos de incluir também a sofistica, a erística, a peirás-
tica, e defini-la como a arte de fic a r com a razão ao

63
. Arthur Schopenhauer .

disputar-, evidentemente, o melhor recurso para tal é, an­


tes de mais nada, ter razão na própria questão que se dis­
cute: mas isso, por si só, levando-se em conta a menta­
lidade humana, não é suficiente e, por outro lado, dian­
te da fraqueza do seu intelecto, também não é absoluta­
mente necessário: existem ainda outros estratagemas que,
justamente por independerem do fato de se ter objetiva­
mente razão, também podem ser utilizados quando ob­
jetivamente não dispomos dela: e, se este é realmente o
caso, quase nunca o sabemos com toda certeza.
O meu ponto de vista, portanto, é que a dialética deve
ser separada da lógica de uma maneira mais nítida^ do
que a realizada por Aristóteles, deixando a verdade ob­
jetiva, na medida em que ela é form al, aos cuidados da
lógica, e limitando a dialética à obtenção da razão; em
contrapartida, porém, não se deve separar a sofistica e a
erística da dialética como procede Aristóteles, uma vez
que esta diferença repousa sobre a verdade material ob­
jetiva, sobre a qual não podemos de antemão ter certe­
za absoluta, mas devemos dizer, com Pôncio Pilatos: “O
que é a verdade?”, pois veritas est in puteo-, èv
àA,i^'ôeia [a verdade está no fundo], segundo a sentença
de Demócrito (Diógenes Laércio, IX, 72). É fácil dizer
que ao litigar não se deve ter outro objetivo que não seja
o de trazer a verdade à luz: o problema é que ainda não
sabemos onde ela está. Os argumentos do adversário e
os nossos próprios conduzem-nos ao erro. Aliás, re intel-
lecta, in verbis sim us faciles [assim que alguma coisa é

64
- A arte de ter razão .

compreendida, logo é transforiiiada em palavras]: uma vez


que, em geral, costuma-se adotar o termo dialética como
equivalente de lógica, preferimos denominar nossa dis­
ciplina dialética erística.
6. Os conceitos, no entanto, podem ser colocados sob
certas classes, como gênero e espécie, causa e efeito, pró­
prio e oposto, posse e privação, e outras semelhantes;
para essas classes, valem algumas regras gerais: são es­
tas os loci, xÓJtoi. Por exemplo, um locus de causa e efei­
to é: “A causa da causa é causa do efeito.” Ao aplicá-lo,
temos: “A causa da minha felicidade é a minha riqueza:
logo, aquele que me deu a riqueza é também o causa­
dor da minha felicidade.” Loci de oposição: 1) eles se
excluem, por exemplo, reto e curvo; 2) eles estão no
mesmo sujeito, por exemplo, se o amor tem seu lugar na
vontade (fejiuJuiinxiKÓv), então o ódio também o tem. Se,
porém, este reside no sentimento (i?\)|i,oei5éç), com o
amor ocorre o mesmo. Se a alma não pode ser branca,
então também não pode ser negra; 3) se falta o grau mais
baixo, também faltará o mais alto: se uma pessoa não é
justa, então também não é benévola. A partir disso, vê-
se que os loci são certas verdades genéricas que atingem
classes inteiras de conceitos, às quais, portanto, é possí­
vel remontar, se necessário, a fim de criar, a partir delas,
os próprios argumentos e também para invocá-las como
algo universalm ente óbvio. Contudo, em geral, são bas­
tante enganosos e estão submetidos a muitas exceções. A
seguit, um exemplo de locus: coisas opostas encontram-
se numa relação de oposição, como a virtude é bela, o

65
. Arthur Schopenhat4er _

vício é feio; a amizade é benévola, a inimizade, malévo­


la. Porém: o desperdício é um vício, portanto a avareza
é uma virtude; loucos dizem a verdade, então os sábios
mentem: não funciona. A morte é um desaparecimento,
portanto a vida é um surgimento: falso.
Exemplo do caráter enganoso de tais tópoi: Scotus
Erigena, no livro De praedestinatione, capítulo 3, quer
refutar os hereges que admitiam em Deus duas praedes-
tinationes (uma dos eleitos para a salvação, outra dos
condenados à danação), e utiliza para tanto este topus
(tirado sabe lá Deus de onde): Omnium, quae sunt inter
se contraria, necesse est eorum causas inter se esse con­
trarias; unam enim eandem que causam diversa, inter se
contraria efficere ratio prohibet [As causas de todas as
coisas contrárias entre si devem ser contrárias entre si;
pois a razão proíbe que uma única e mesma causa tenha
como efeito coisas diferentes e contrárias entre si]. Mui­
to bem! Mas a experienXia docet que o calor que endu­
rece a argila é o mesmo que amolece a cera, e uma cen­
tena de coisas semelhantes. E, no entanto, o topus soa
plausível. Ele constrói tranqüilamente sua demonstração
a partir do topus, mas esta não nos interessa mais.
Uma coleção inteira de loci com suas refutações foi
organizada por Baco de Verulamio sob o título Colores
boni et mali. Estes podem servir como exemplo neste
caso. Ele os chama de Sophismata.
Também pode ser considerado um locus o argumen­
to pelo qual Sócrates, no Banquete, àiexaorr^ia. a Agatão,
que havia atribuído ao amor todas as qualidades exce­

66
. A arte de ter razão .

lentes, beleza, bondade etc., o contrário: “Aquilo que se


busca não se tem; ora, o amor busca o belo e o bom; por­
tanto, ele não os tem.” Chega a ter uma aparência plau­
sível a tese segundo a qual haveria certas verdades uni­
versalmente válidas, que seriam aplicáveis a tudo e pelas
quais se podería, portanto, decidir todos os casos singu­
lares, por mais heterogêneos que fossem, sem se apro­
fundar nas suas peculiaridades. (A lei da compensação
é um locus muito bom.) No entanto, isso não é possível
justamente porque os conceitos resultam de abstrações
de diferenças e, portanto, compreendem as coisas mais
diversas, que voltam a se distinguir quando, por meio dos
conceitos, as coisas individuais das espécies mais diver­
sas associam-se entre si e as decisões são tomadas apenas
segundo os conceitos superiores. Loci são também as lex
parstfnontae naturae [leis de economia da natureza] e o
princípio natura nihil fa c it frustra [a natureza não faz
nada inutilrnentej. Por sinal, todos os provérbios são loci
com tendência prática.
7. Segundo Diógenes Laércio, entre os muitos escritos
retóricos de Teofrasto, que se perderam totalmente, havia
um cujo título era 'AYcovitJxiKÒv tfiç Ttepl xohç èpicmicohç
A,óyauç ■decopíaç [Discussão sobre a teoria dos discursos
eristicos], que viría ao encontro de nosso tema.
8. Sophisma a dicto secundum quid a d dictam simpli-
citer [Sofisma que passa de algo dito relativamente a algo
dito em absoluto; Refutações sofisticas, 5, 166 b 38-167 a
1]. Este é o segundo elenchus sophisticus de Aristóteles,

67
- Arthur Schopenhauer .

è^üo xfiç A,é|ecoç: zò ánX&x; àXkà Ttfj fi 7ioí)f| Ttoxè f| npóç xi


A,éYECJ'ôai [refutação sofistica fora do que foi dito, ou seja,
independentemente do modo de expressão: dizer em
absoluto ou não, mas de um certo modo, ou em certo lu­
gar, ou num certo tempo, ou em relação a alguma coisa]:
Refutações sofisticas, cap. 5 [4, 166 b 22],

68
SCHOPENHAUER E A DIALÉTICA
p o r F ranco Volpi
1. Q ual dialética?

“Órgão” da maldade humana natural, instrumento in­


dispensável para enfrentar as discussões com sucesso e,
assim, p>oder satisfazer a natural prepotência humana, em
suma, a vontade de obter razão, independentemente do
fato de tê-la: para Schopenhauer, a dialética é isso, e nada
mais. Eis a razão para a denominação do seu pequeno
tratado, dialética erística, ou seja, uma técnica de argu­
mentação tendo como único objetivo alcançar a vitória
nas controvérsias (em grego: èpíÇeiv), sem se preocupar
com a verdade. Schopenhauer expôs as idéias que mais
tarde confluíram nessa sua pequena obra, nunca publi­
cada, nas lições dadas como livre-docente da Universi­
dade de Berlim, e voltou a expô-las mais tarde nos Parer-
ga e paralipomena.
Nos mesmos anos e na mesma cidade, ou melhor, na
mesma universidade, do alto da sua fama e da sua res­
peitada cátedra, Hegel sustentava uma idéia de dialética
diametralmente oposta. Para ele, a dialética era a própria

71
- Arthur Schopenhauer _

forma de manifestação e desenvolvimento do espírito,


segundo um percurso que, através dos mil meandros do
real, se eleva até o Absoluto, precisamente na forma da­
quele saber que se autocompreende como a manifesta­
ção da própria totalidade. Mas o sucesso que lhe sorria
viu-se truncado pela morte prematura, vitimado que foi
pela cólera, que o atingiu em 1831, após uma epidemia
que grassou na cidade. Schopenhauer, por sua vez, tra­
tou de evitar qualquer risco, partindo ãs carreiras de Ber­
lim para Frankfurt.
Ambos, cada qual a seu modo, tinham e obtiveram
razão. A idéia hegeliàna de dialética, seja com a escola
de Hegel e com os vários hegelianismos, seja com seu
desenvolvimento no âmbito do marxismo, teve grande
sucesso e uma difusão ímpar, a ponto de se tom ar não
apenas um sistema filosófico, mas também uma verda­
deira visão do mundo. Ainda hoje, quando um filósofo
fala de dialética, pensa na concepção de Hegel ou em
suas filiações no marxismo, portanto na dialética enten­
dida como a estrutura do pensamento e da realidade que
o pensamento conhece. Essa concepção da dialética pre­
valeceu por quase dois séculos, ocupando na filosofia o
valor semântico da própria palavra.
A idéia schopenhaueriana de dialética, por sua vez,
não tem uma necessidade particular de seguidores, nem
de cátedras ou escolas de filosofia para se afirmar; ela
retoma, no fundo, uma concepção de dialética mais an­
tiga do que qualquer escola, e suas raízes remontam às

72
. A arte de ter razão .

origens do pensamento ocidental, ao mundo grego; me­


lhor dizendo, para além deste, ela se encontra arraigada
na própria condição humana, a ponto de estar sedimen­
tada até mesmo na linguagem comum, onde a encontra­
mos ainda hoje, visto que até para nós, no nosso falar
cotidiano, “dialética” significa, em geral, habilidade em
discutir, ou seja, exatamente o que Schopenhauer diz.
Mas como aconteceu tudo isso? Como puderam Schopen­
hauer e Hegel - que, além do mais, partiam do mesmo
pensador, isto é, de Kant - chegar a dialéticas tão dife­
rentes e, ainda por cima, cada um com boas razões do
seu lado?

2. As bodas de Mercúrio e Filologia

A história havia começado muito tempo antes, passan­


do por inúmeras e complexas fases e vicissitudes, das
quais nem sempre é possível reconhecer o fio condutor
unitário. Para tentar esclarecer um pouco o tema, pode­
riamos recordar pelo menos algumas etapas essenciais
dessa história. Um ótimo ponto de partida é um texto la­
tino do século V d.C., de fundamental importância pela
função central que desempenhou na mediação entre a
cultura pagã da Antiguidade tardia, de que foi expressão,
e a incipiente cultura do Ocidente cristão, pela qual foi
profundamente acolhido, desfrutando de uma vasta e
prolongada fortuna durante toda a Idade Média. Trata-se

73
. A rthur Schcpenhauer -

do De nuptiis M ercurii et Philologiae, do retor norte-afri-


cano Marciano Capela, em que encontramos, no limiar
da nossa era, uma exposição representativa da dialética
e, portanto, um testemunho significativo da transmissão
do coTpus dialecticum da Antiguidade tardia ao Ociden­
te latino*.
Trata-se de um texto que, numa forma literária mista
de versos e prosa, conforme à tradição da sátira meni-
péia, representa a última tentativa consumada pela Anti­
guidade pagã de oferecer um compêndio sistemático do
conjunto das sete artes liberais, do gênero daquele que
Marcos Terêncio Varrão ofereceu em seus D isciplinarum
Ubrí IX, isto é, daquela articulação do saber que repre­
senta o mais importante canal para a transmissão do pró­
prio saber ao longo de toda a Idade Média até o Renas­
cimento e à Idade Moderna, quando, com a irrupção do
novo ideal da ciência moderna, tal tradição entrará em
crise. Marciano Capela retoma o ideal de Varrão de uma
enciclopédia do saber articulada segundo “artes” ou “dis­
ciplinas” autônomas, cada qual com seu método e seu
objeto, mas o expõe inserindo-o num contexto mitológi-
co-religioso, o que provavelmente explica o apreço que
a obra teve até mesmo na Idade Média cristã.

1. A obra pode ser lida na edição de Adolf Dick, Teubner, Stutgar-


diae, 1925 (com a dden da de Jean Préaux, ibid., 1969, e com cuidenda e
corrigenda sempre de J. Préaux, ÜHd., 1978), ou na edição mais recente de
James Willis, ibid., 1983.

74
- A arte de ter razão.

Os deuses do Olimpo, narra Marciano Capela, preo­


cupavam-se com o fato de que Mercúrio, deus da lin­
guagem e da palavra, ainda não havia encontrado uma
esposa adequada. Para pôr fim ao seu duradouro celiba­
to, arranjaram para ele se casar com uma virgem mortal.
Filologia, símbolo do amor pelo lógos, a qual, depois da
união com Mercúrio, foi recebida entre os imortais. A ce­
rimônia nupcial se dá em presença das divindades olím­
picas, reunidas em tomo de Júpiter. A noiva chega acom­
panhada de sete damas de honra, que personificam as
sete artes liberais: as três do discurso, isto é, gramática,
dialética e retórica (o triviurrí), e as quatro do número,
isto é, geometria, aritmética, astronomia e música (o qua-
driviuní). Cada uma das sete damas de honra expõe os
conteúdos do saber que representa e, no fim das bodas,
será consagrada a união do infinito poder da lingua­
gem com sua manifestação num saber cientificamente
ordenado.
Para nós, é interessante o comparecimento, no quar­
to livro da obra, da Dialética, personificada por uma da­
ma de honra que avança em segundo lugar, logo atrás
da Gramática. Marciano Capela descreve cuidadosamen­
te sua aparência, seu porte e seus atributos. Tem o ros­
to pálido, mas seu olhar é inquieto e penetrante; seus ca­
belos, densos mas ordenadamente trançados, adornam
sua cabeça de modo acurado e completo; usa a túnica e
o pálio de Atenas e traz nas mãos os símbolos do seu
poder: na esquerda, uma serpente enrolada em enormes

75
-Arthur Schopenhauer _

espiras e, na direita* plaquetas com esplêndidas e colori­


das ilustrações, presas por um gancho oculto; e, enquan­
to a esquerda esconde sob o pálio suas insídias viperi-
nas, a direita é a todos exibida. O aspecto da Dialética é,
no conjiinto, agressivo e ameaçador, e ela profere em voz
alta, em tom sacerdotal e divinatório, fórmulas incom­
preensíveis para a maioria; que a afirmativa universal se
contrapõe de modo oblíquo à particular negativa, e que
ambas são conversíveis; fala também de univocidade e
equivocidade e assevera ser a única capaz de distinguir
o verdadeiro do falso.
Uma entrada em cena cheia de tensão, que causa cer­
to mal-estar nos deuses, mas que Brômio, isto é, o “ba­
rulhento” Dioniso-Baco, desdramatiza, observando o
quanto a recém-chegada se parece com uma bruxa char-
latona, que provoca, entre os espectadores, certa hilari-
dade. Mas a deusa Palas, que conhece bem a Dialética,
intervém para dizer que ela não é personagem de quem
se possa zombar, como se verá assim que ela expuser
seus ensinamentos. Júpiter exorta então a jovem a expor
em latim o seu saber. A Dialética declara em exórdio ter
origens gregas, mas que podia expressar-se igualmente
em latim graças ao precioso trabalho de mediação leva­
do a cabo por Varrão, o primeiro a traduzir seus ensina­
mentos na língua dos romanos, depois de aprendê-los
nos textos de Platão e de Aristóteles. No entanto, seu no­
me, Dialética, manteve-se em grego, permanecendo igual
em Atenas e em Roma. A Dialética começa então a ex-

76
- A arte de ter razão.

por seu ensinamento, que compreende, de acordo com


a ordem em uso nas escolas gregas, retomada por Varrão,
todo o corpus de doutrinas da lógica clássica, articulado
do seguinte modo;
1) de loquendo, isto é, a doutrina do significado dos
termos, que compreende os cinco predicáveis (gênero,
espécie, definição, próprio, acidente), os antepraedica-
menta ou instrum enta categoriarum (isto é, a distinção
de diversos tipos de denominação: equívoca, unívoca, plu-
rívoca, própria, alheia), as categorias (substância, quan­
tidade, qualidade, relação, espaço, tempo, fazer, sofrer,
estado, hábito), ps post-praedicamenta (isto é, as quatro
formas de oposição: contradição, privação, contrarieda­
de, relatividade), a definição e a divisão;
2) de eloquendo, isto é, a doutrina do discurso e das
suas partes inom en e verbum, que formam a oratió)-,
3) de proloquendo, que compreende a doutrina da pro­
posição predicativa ou juízo (proloquiuni), que, como
síntese ou diairese de representações, tem a característi­
ca de poder ser verdadeiro ou falso, as differentiae pro-
loquiorum (ou seja, a qualidade afirmativa ou negativa
e a quantidade universal ou particular dos juízos), o pro-
loquiorum affectiones e a conversão das proposições;
4) de proloquiorum summ a, vale dizer, a doutrina do
silogismo como concatenação de proposições e as suas
diversas formas (categórico, hipotético e misto)^.

2. Nâo são tratadas outras duas doutrinas anunciadas inicialmente


como de competência da Dialética, a saber, a doutrina do discurso poétl-

77
. Arthur Scbf^>enhauer .

Depois da exposição desses seus ensinamentos, a Dia­


lética se apresta a continuar com a ilvistraçâo da doutri­
na dos sofísmas, dos raciocínios capciosos, das falácias e
dos enganos que é possível perpetrar por meio da pala­
vra, argumentos tratados nas Refutações sofisticas áe Aris­
tóteles. Mas aqui intervém Palas, que interrompe a Dia­
lética, não apenas para não cansar o auditório, mas tam­
bém porque a exposição dos enganos sofísticos não con­
vém diante de Júpiter e das outras divindades. Diz então
PalaSj dirigindo-se à Dialética para interrompê-la: “Já
chega, ó nobre fonte da ciência profunda (profundae
fo n s decens scientiaè), que desvela as realidades ocultas,
dissertando sem omitir nada que seja pouco claro nem
abandonando nada que seja ignoto.”^
No que concerne à nossa história, dois pontos desse
texto devem ser postos em evidência. O primeiro é que
a dialética é considerada a própria fonte do saber cien­
tífico (fons scientiaè) e é tendencialmente identificada
com a lógica, entendida como o conjunto das regras do
raciocínio e da argumentação corretos, destinadas a dis­
cernir o verdadeiro do falso. O outro é que a dialética,
justamente por sua natureza de fonte do saber, é sepa-

co {.quinta d e iudicando, q u a ep ertin et a d iudicationem poetaru m e t car-


minurrí) e a da dicção retórica {sex ta d e dictione, qu ae dicen d a rhetori-
bus com m odata est).
3. Marciano Capela, D e nuptiis, cit., IV, 423 (208, 14-16 Dick; 146, 7-9
Willis).

78
- A arte de ter razão .

rada com rigor da sofistica e da erística, que do saber só


têm a aparência.
A presença dessa idéia de dialética entre o final do
mundo antigo e o início da nossa era, documentada de
forma tão plástica pelo De nuptiis, ê posteriormente con­
firmada por outros textos muito difundidos na Idade Mé­
dia, em que é possível reencontrá-la, como as Institutio-
nes (cap. 3) de Aurélio Cassiodoro, as Etymologiae (livro
II, cap. 22-31) de Isidoro de Sevilha, ou o De dialectica
de Alcuíno. Ppdemos recordar também o De dialectica (ou
Principia dialecticaè), obra bastante difundida, de auten­
ticidade duvidosa, mas talvez de santo Agostinho, que
define a dialética como a disciplina disciplinarum ou a
scientia veritatis^.
Temos, portanto, na transição do mundo antigo ao
mundo da “idade mediana”, uma idéia decididamente
positiva da dialética, entendida como fonte de ciência,
que não deixa de surpreender, depois de se ler o texto
de Schopenhauer. Perguntamo-nos: como tudo isso foi
acontecer? Como se chegou a ver na dialética a»fonte da
ciência?

4. Santo Agostinho, por sua vez, sustenta a congruência da dialética


com a teologia cristã. De fato, como a estrutura da dialética é disputato-
ria, quem discute é um dialético; sendo assim, são Paulo também o é, já
que discute com judeus e pagãos para defender o verbo; até mesmo a
própria voz de Deus o é, segundo o que está escrito em Is, 1, 18: veni-
te, disputem us, d ic it D om inus.

79
. Arthur Schopenhauer .

3. A dialética dos antigos

Nossa história deve remontar ainda mais ao passado,


às próprias origens da dialética. Graças aos resultados já
consolidados de toda uma série de estudos, podemos
afirmar que a dialética nasce com a democracia atenien­
se do século V a.C., isto é, quando, com a liberdade po­
lítica, reuniram-se as condições que possibilitaram a li­
berdade de pensamento e de expressão. A igualdade dos
cidadãos diante da lei (ioovogíxx) tem - como recorda
Heródoto, partidário da democracia (V, 78) - sua princi­
pal realização no direito igual de palavra nas discussões
públicas (iariYcopía), direito esse que, para os críticos da
democracia, como Isócrates iAreopagítico, 20), degene­
rou na faculdade de dizer qualquer coisa, no falar por
falar (Tcappricía). O autorizado testemunho de Platãò
{Górgias, 46l e; Leis, I, 641 e) confirma-nos que a liber­
dade de palavra (è^ouaía Toi) ÀéYEiv) era maior em Ate­
nas do que em qualquer outra cidade da Grécia, tanto
que se podia atribuir-lhe com todo o direito o apelido de
cidade “amante do discurso” (q)iX,óA,OYOç) ou “de muitos
discursos” (iioX,ú)i0Y0ç)- Nesse contexto histórico-político,
como se sabe, deu-se o nascimento daquele movimento
cultural que foi a sofistica e, portanto, das filosofias de
Sócrates, Platão e Aristóteles, nas quais a dialética adqui­
re uma importância decisiva.
A esse respeito, quanto ao termo como tal, sabemos
que o verbo ôiaXÉYeaúai já é atestado em Homero, mas

80
. A arte de ter razão .

SÓ com Platão passa a ser usado numa acepção propria­


mente filosófica, isto é, no sentido de discutir tendo em
vista a questão em si, ou seja, visando a defender ou ata­
car uma tese, a fim de estabelecer sua verdade ou sua fal­
sidade, e é como tal contraposto a èpíÇexv, ou seja, a con­
tender por contender. Em Platão, também é usado pela
primeira vez em sentido técnico o adjetivo 5iaX,eKXiKÓç
para caracterizar a arte do discurso e quem a pratica. Mas
a dialética já tinha nascido antes de seu nome ser encon­
trado. Aristóteles, de acordo com um fragmento que che­
gou até nós de seu perdido diálogo juvenil sobre o 5 o
/ista, considerava descobridor ou inventor (ehpexijç) da
dialética o eleata Zenão (fr. 65 Rose; 1 Ross; 39 Gigon).
Esse testemunho é confirmado pelo que Platão nos diz
de Zenão, que no Fedro é alcunhado de “Palamedes de
Eléia”, já que, como o personagem homérico, “falava
com tanta arte que as mesmas coisas pareciam, a quem
o ouvia, semelhantes e dessemelhantes, uma e muitas,
paradas e em movimento” {Fedro, 26l d); e a arte de Ze­
não é definida como “arte da antilogia”, isto é, de pro­
duzir contradições.

4. A dialética dos sofistas

Quanto à sofistica, os dois expoentes da dialética que


podem ser relembrados são Protágoras e Górgias. Protá-
goras pratica o que será chamado por Platão de método

81
- Arthur Schopenhauer _

dialético, ou seja, o confronto e a controvérsia entre duas


opiniões contrapostas por meio do diálogo que se dá en­
tre dois interlocutores que procuram refutar-se suces­
sivamente, e que é designado como “discurso breve”
(ppocxuA,OYÍa) para diferenciar-se do “discurso longo”
(paKpoXoYÍa), “monológico”, pertencente à retórica. Pro-
tágoras era conhecido na Antiguidade como o primeiro
a afirmar que sobre qualquer argumento é possível sus­
tentar opiniões opostas (Diels-Kranz, 80 A 1). Temos no­
tícia de uma obra sua que foi perdida, intitulada Antilo-
gías, significando justamente “discursos opostos”, que
inaugurou uma tradição literária da qual nos foi conser­
vado um exemplo significativo nos chamados Dissot ló-
goi, um escrito anônimo que, sobre alguns argumentos
fundamentais (o que é certo e o que é errado? O que é
justo e o que é injusto? O que é decente e o que é in­
decente?), desenvolve “discursos dúplices”, ou seja, opos­
tos um ao outro. A posição filosófica de Protágoras, ba­
seada na convicção de que “todas as opiniões são ver- ,
dadeiras” (Platão, Teeteto, 166 d s.) e de que “o homem é
medida de todas as coisas” (Diels-Kranz, 80 B 1), culmi­
na, como se sabe, numa valorização da opinião (5ó^a) e
da democracia.
Quanto a Górgias, ele merece ser recordado aqui por­
que argumentava segundo um método dialético muito
parecido com o que Zenão seguia, mas com finalidades
filosóficas opostas: não para sustentar a imutabilktede do
ser, mas para tirar dele uma espécie de nülismo ante Ut-

82
- A arte de ter razão .

teram, em que a existência e a dizibilidade do ser são


negadas. Mais que filósofo, Górgias foi sobretudo mestre
de retórica e de erística, isto é, da arte do discurso pra­
ticada com o único fim de persuadir o ouvinte, ou então
de lograr a vitória nas discussões sem se preocupar com
a verdade. De fato, o discurso é entendido por Górgias
como um “grão-senhor” (ôuvdaxriç géyaç), porque nele
é possível sustentar tudo e o contrário de tudo, ou me­
lhor, porque está em seu poder a criação da realidade
que ele significa: o discurso pode até dar a entender aos
gregos a inocência de Helena, coisa que o próprio Gór­
gias pretendeu fazer com seu Encômio de Helena. De um
ponto de vista filosófico, aplicando o método dialético
da refutação também praticado por Zenão, que consiste
em reduzir à contradição a tese oposta à que se preten­
de sustentar, Górgias chega a formular em seu tratado
Sobre o não ser ou sobre a natureza (Ilepl toí) gf| õvtoç
f| Tcepi (púaecoç) suas trê§ célebres teses: o ser não é; se
fosse, não seria cognoscível; se fosse cognoscível, não se­
ria comunicável (àvepixfivemov).

5. A dialética socrâtica

O outro grande pai-fundador da dialética é Sócrates,


que, com seu ensinamento original, apresentado a nós
nos testemunhos de Platão, Aristóteles e Xenofonte, pôs
em prática o método dialético já usado por Protágoras,

83
. Arthur Scbopenhauer .

mas com finalidades e com êxito diferentes. Formalmen­


te, Sócrates praticava o mesmo método da discussão dia­
lética, por meio de perguntas e respostas, também em­
pregado pelos sofistas (a única diferença notável, pelo
menos exteriormente, era que os sofistas cobravam por
seu ensinamento, ao passo que Sócrates não). Sócrates le­
vou tal método a uma perfeição técnica maior por meio
de uma série de procedimentos lógicos, dos quais o pri­
meiro foi o da “refutação” (èXeYXOÇ), que visava a de­
monstrar o caráter contraditório e, portanto, insustentá­
vel de uma opinião examinada. É um procedimento dia­
lético que ocorre no diálogo, na medida em que consis­
te em procurar fazer com que o interlocutor conceda,
mediante perguntas adequadas, determinadas premissas
que permitam inferir conclusões opostas à tese sustenta­
da pelo adversário, colocando-o em contradição com eíe
mesmo.
Na realidade, com Sócrates advém uma mudança de­
cisiva na configuração da dialética, que depende da ati­
tude diferente assumida por ele diante das opiniões. Do
fato de que todas estas últimas se revelam igualmente
refutáveis ou sustentáveis, ele não tira, como Protágoras,
a convicção de que a dialética tenha uma tarefa análoga
ã da retórica, isto é, de persuadir ou dissuadir em rela­
ção a uma ou outra, independentemente da verdade; em
outras palavras, ele não deduz desse fato a tese de que
todas as opiniões são verdadeiras, mas, ao contrário, a
de que todas elas são falsas, ou melhor: como podem

84
- A arte de ter razão.

ser tanto verdadeiras como falsas, elas não possuem aque­


le caráter de saber estável, próprio do universal (xò
KaiWXou), isto é, da ciência (èJtia-tfpTi). A tarefa da dia­
lética passa a ser uma tarefa crítica: ela não deve se co­
locar a serviço desta ou daquela opinião, tanto para sus­
tentá-la quanto para demoli-la, mas, em vez disso, deve
pôr à prova todas as opiniões, procurando refutá-las na
sua pretensão de valer como verdadeiro saber, embora
não o sejam. Desse modo, partindo das opiniões, à dia­
lética socrática faz surgir a exigência do que não é mais
uma opinião, um parecer e um ponto de vista particular,
perspectivo e subjetivo, mas a superação de toda pers­
pectiva e de toda subjetividade, ou seja, é o universal, a
ciência. A dialética socrática, por conseguinte, é livre de
toda e qualquer interferência com a retórica e é claramen­
te praticada com vistas à ciência, mesmo se, na realida­
de, não chega a uma verdadeira apreensão e a uma ver­
dadeira formulação do saber, mas se atém à exigência ra­
dicalmente crítica do “saber que não se sabe”. Será Pla­
tão a desenvolvê-la no sentido do saber epistêmico.

6. A dialética platônica

Para ilustrar apenas em suas linhas essenciais o de­


senvolvimento sistemático que Platão confere ao méto­
do dialético de Sócrates - a ponto de, com a doutrina
das idéias, formular o universal buscado por Sócrates de

85
. Arthur Schopenhauer _

uma forma não-aporética, mas sistemática, e identifican­


do, portanto, a dialética com a filosofia - , seria necessá­
rio um estudo à parte. É verdade que em nosso contex­
to - onde o que interessa está sobretudo na relação en­
tre dialética e erística -, Platão, com a sua dialética, não
parece constituir para Schopenhauer, que, no entanto, o
admira como “divino”, um ponto de referência, enquan­
to Aristóteles certamente o é. Isso porque - e é o que
importa salientar aqui - Platão sustenta uma concepção
de dialética oposta àquela redescoberta por Schope­
nhauer. Com efeito, Platão contesta radicalmente a con­
cepção sofistica, retórica e erística da dialética, porque,
para ele, a dialética não é uma simples técnica argumen-
tativa, desvinculada da referência à verdade do assunto
em questão, mas é, ao contrário, o método rigoroso para
a busca da verdade.
Isso pode ser dito em geral mas, num exame mais
profundo, a concepção platônica da dialética não é a
mesma em todos os diálogos. De fato, ela tem uma evo­
lução no decorrer da qual é progressivamente desenvol­
vida a partir da concepção socrática, que é a que se en­
contra nos diálogos juvenis, até se tomar um verdadeiro
método sistemático de filosofar, que caracteiixa, por sua
vez, os diálogos “dialéticos”, assim denominados porque
neles a teorização da dialética atinge seu ápice.
Uma primeira alusão à dialética se encontra no Mê-
non (75 d), um diálogo que reflete a exigência de desen­
volver de forma positiva o ensinamento socrático e que

86
_A arte de ter razão.

pode ser considerado corão a introdução à filosofia de


Platão, mas no qual ainda prevalece a concepção socrá-
tica, segundo a qual o método dialético é posto em prá­
tica, naturalmente tendo em mira a verdade, isto é, a de­
finição do universal, mas o que é determinante é a con­
secução de um acordo (óixoXoyía) com o interlocutor.
A superação da concepção socrática e a maturação
da concepção tipicamente platônica são testemunhados
na República, em que a dialética, que é o saber que os
governantes do Estado ideal devem possuir, é identifica­
da com o sumo grau do conhecer. No fim do sexto li­
vro, Platão ilustra os graus do conhecer, comparando-o
a uma linha, dividida em quatro segmentos, respectiva­
mente correspondentes aos quatro graus do conhecer: os
dois primeiros constituem a opinião (ôóÇa), isto é, a ima­
ginação e a crença (eixaota, Tiíaxiç), e os outros dois for­
mam a ciência isto é, o raciocínio e a inteli­
gência (ôidvoia, vÓTiaiç). Pois bem, a dialética é identifi­
cada com o saber verdadeiramente científico do último
segmento da linha, que não se detém nas hipóteses, mas
por meio delas ascende a um princípio não-hipotético
(dcvmóúETOv), representado pela idéia do Bem. No entan­
to, como o tema do diálogo não é a dialética como tal,
mas a natureza e a organização do Estado ideal, Platão
não especifica ulteriormente em que consiste o procedi­
mento para ascender das hipóteses ao princípio anipo-
tético, e o procedimento para descer deste último às ou­
tras idéias. Alude, porém, numa significativa passagem

87
- A rtbur Schopenhauer _

{.República, VII, 534 b s.), ao fato de que a dialética as­


cende ao princípio por meio de refutações de todo gê­
nero (Sià Tcávxcov éÀéyxwv SieÇicòv), e tais refutações não
são efetuadas segundo a opinião, mas de acordo com a
própria questão (pti Kaxà SóÇav áXká, Kax’oíxyíav).
A estrutura do procedimento dialético é precisada nos
diálogos posteriores à República. No Fédon, Platão afir­
ma que as hipóteses, isto é, as idéias que são formuladas
para dar conta de proposições particulares, devem ser ve­
rificadas na sua consistência, e isso ocorre, em primeiro
lugar, com o exame das conseqüências que delas deri­
vam, para ver se não estão em contradição entre si, por­
tanto levando toda hipótese a uma hipótese superior,
mais universal, até chegar a algo que seja suficiente em
si mesmo (iKavóv), isto é, não mais redutível a hipóteses
ulteriores {Fédon, 101 d-e). No Parmênides, Platão de­
senvolve posteriormente o método dialético, já sem limi­
tá-lo à verificação de uma determinada hipótese, para
ver se dela derivam conseqüências em contradição entre
si ou com outras teses aceitas, mas estendendo-o também
à hipótese oposta. Temos assim duas hipóteses contra­
ditórias, isto é, tais que uma nega o .que a outra afirma,
e, se uma é refutada, a outra poder-se-á dixer, por isso
mesmo, demonstrada. Vê-se, portanto, que esse método
dialético teorizado por Platão é identificável na sua es­
trutura formal mais com o de Zenão do que com o de
Sócrates, já que, como aquele, examina duas hipóteses
contraditórias, embora se aplique, em continuidade com

88
- A arte de ter razão.

O método socrático, à bvisca do universal. Essa concepção


da dialética também está presente nos últimos diálogos,
isto é, no Fedro, no Sofista e no Filebo, nos quais a dialé­
tica é definida como o método da classificação sistemática
das idéias mediante os critérios da redução (cruvaycoYii)
do particular ao universal e da divisão (fiiaípeoiç) do uni­
versal no particular. O que implica, como se pode com­
preender facilmente, uma contraposição entre a dialéti­
ca, de um lado, e a eiística, a sofistica e a retórica, do ou­
tro, que representam as diversas formas em que o uso
da dialética leva ã negação ou à simulação da verdade e
do saber. Tal contraposição é sustentada com plena cons­
ciência da profunda semelhança entre a filosofia, isto é,
a verdadeira dialética, e a sofistica, na medida em que
ambas fazem uso da arte de contradizer e da técnica da
refutação. A valorização da refutação como alma da dia­
lética e o seu desenvolvimento em sentido construtivo
são, por fim, testemunhados pela Carta sétima, em que
é ilustrado o processo por meio do qual se chega a
apreender os princípios, dizendo que só “quando se
refuta em refutações benévolas (èw eúgevéoiv èXéyxoiç
èA.8yxó|xeva), fazendo uso de perguntas e respostas sem
hostilidade, brilham a compreensão e a inteligência em
torno de cada coisa (è|éXap\|/e (ppóvriaiç jiepl éKaaxov
Kal voüç)” (344 b).

89
. Arthur Schopenhauer _

7. A dialética em Aristóteles

A dialética de Aristóteles foi objeto de tantos e tais es­


tudos, que nem chegamos a pensar em tentar ilustrá-la.
Bastará recordar os traços que a caracterizam na sua ins­
piração de fundo, sobretudo a fim de avaliar melhor a
retomada da erística por Schopenhauer. Como se sabe,
Aristóteles dedica ao estudo da dialética dois escritos do
Organon, os Tópicos, em oito livros, e as Refutações so­
fisticas, que em alguns manuscritos aparecem como o
nono livro dos Tópicos. Afastando-se de Platão, Aristóte­
les insere a atividade dialética no âmbito das opiniões,
retornando nesse sentido à concepção de Protágoras,
mas cumpre precisar que, se é verdade o fato de Aristó­
teles não considerar a opinião como ciência, tampouco
ela será um parecer meramente subjetivo e arbitrário,
como nas degenerações sofisticas e erísticas: ela é, antes,
um ponto de vista capaz de levar ao consenso. A dialé­
tica é, então, um método que serve para discutir bem so­
bre qualquer argumento possivel, partindo de opiniões
notáveis (èvôoÇa) - isto é, de opiniões compartilhadas
por todos, ou pela maioria, ou pelos sábios e, entre es­
tes, por todos ou por aqueles que são mais conhecidos
e estimados - , a fím de demolir uma tese ou defendê-la
(.Tópicos, I, 1, 100 a 1-20). Isso significa que não apenas
os filósofos, os sábios, ou simplesmente os que desejam
se tornar uma coisa ou outra, mas todos os homens exer­
citam de certa forma a dialética, já que todos podem um
dia achar-se na situação de ter de defender ou atacar, isto

90
- A arte de ter razão .

é, de pôr à prova uma tese. Naturalmente, enquanto o


homem comum pratica a dialética sem um método, o ver­
dadeiro dialético o faz de acordo com uma técnica e uma
habilidade argumentativa especificamente exercitada e
desenvolvida iRefutações sofisticas, 11, 172 a 23-36). Aris­
tóteles, por sua vez, vangloria-se de ter fornecido o pri­
meiro tratado já redigido a respeito dos métodos da boa
argumentação {Refutações sofisticas, 34, 183 b 16-184 b
7), enquanto em outros casos, por exemplo no da retó­
rica, já existiam tratados.
Como fica esclarecido logo no início da exposição, a
característica específica do silogismo ou raciocínio dialé­
tico consiste em inferir a partir de premissas “endossá-
veis”, isto é, de opiniões notáveis no sentido indicado,
enquanto o raciocínio científico, apodíctico infere a par­
tir de premissas verdadeiras e primeiras, ou seja, eviden­
tes por si e não em virtude de qualquer outra coisa, e o
raciocínio erístico a partir de premissas que são ilusoria-
mente apresentadas como opiniões notáveis, mas que
na realidade não o são {Tópicos, I, 1, 100 a 27-101 a 1).
Aristóteles menciona ainda outra forma de raciocínio fa-
laz, o “paralogismo”, cuja incorreção não nasce do enga­
no, mas de um erro, e que por isso deve ser distinguido
do silogismo erístico. Trata também, alhures, de outro
tipo de raciocínio, o silogismo retórico ou “entimema”,
que se distingue dos outros pela forma abreviada, ou
seja, geralmente pela omissão de uma premissa (que fica
subentendida).

91
- Arthur Schopenhauer.

Essa distinção entre as diversas formas de raciocínio


é retomada no fim do tratado, quando Aristóteles pro­
põe chamar de “filosofema” o silogismo apodíctico, de
“epiquirema” (isto é, argumentação direta contra um in­
terlocutor) o silogismo dialético, de “sofisma” o silogis­
mo erístiço, e de “aporema” o silogismo dialético que
conclui com uma contradição, logo com uma refutação
(.Tópicos, VIII, 111, 162 a 12-18). Ela é retomada poste­
riormente nas Refutações sofisticas, onde está dito que
“há quatro gêneros de discursos empregados nas discus­
sões; os didascálicos, os dialéticos, os peirásticos e os
erísticos. São didascálicos os que argumentam a partir
dos princípios próprios de cada disciplina, e não das opi­
niões de quem responde (de fato, é necessário que quem
aprende confie); são dialéticos os que argumentam a
contradição a partir dos éndoxa-, são peirásticos, isto é,
examinativos, os que argumentam a partir das opiniões
daquele que responde e que precisamos conhecer se
pretendermos ter ciência (de que modo é definido em
outro lugar); são erísticos os que argumentam a partir de
éndoxa aparentes, mas não reais, sendo autênticos silo­
gismos ou silogismos aparentes” (Refutações sofisticas,
2, 165 a 38-b 8).
Distinguindo as respectivas formas de raciocínio, Aris­
tóteles mantém, portanto, a dialética bem distinta, seja
da ciência, seja da erística, seja da retórica. Mas a espe­
cificidade da dialética é ulteriormente determinada no
segundo capítulo do primeiro livro da obra mediante a
indicação de seus possíveis usos, que são três:

92
- A arte de ter razão .

1 ) a dialética é útil em relação ao exercício (jipòç


vaCTÍav), isto é, serve para se adestrar na prática da argu­
mentação;
2) é útil em relação aos encontros (icpòç xàç èvTsú^eiç),
isto é, serve para conduzir de modo correto as discus­
sões que cada um de nós trava vez por outra;
3) é útil, enfim, com relação às ciências filosóficas (jipòç
TOlç Kaxd (piA,oao(píav éTciCTTfipaç), e precisamente em dois
sentidos:
3 .1 ) em primeiro lugar, porque, aprendendo a desen­
volver as aporias em ambas as direções (jtpòç àpcpÓTepa
Siajiopfiaai), podemos discernir melhor em cada alterna­
tiva o verdadeiro e o falso;
3.2) além disso, porque, “sendo inquisitiva (è^exac-
xiKfi), a dialética possui o caminho para os princípios de
todos os tratados científicos” (10 1 a 36-b 4), isto é, aju­
da a encontrar as proposições iniciais de que parte a de­
monstração apodíctica em cada ciência, proposições que,
como princípios de demonstração, não podem, por
sua vez, ser demonstradas, mas apenas dialeticamente
buscadas.
Não é preciso ilustrar com mais detalhes o significado
desses possíveis usos da dialética para saber que Aristó­
teles a coloca no âmbito da opinião, dos éndoxa e, por­
tanto, reabilita, contra Platão, o valor da opinião; diferen­
temente de Protágoras, no entanto, ele não considera que
a opinião deva estar em conflito com o saber científico,
mas, ao contrário, mostra que ela pode ser útil para a

93
- Arthur Schopenbauer -

aquisição do saber, na medida em que oferece o terreno


do qual partem as demonstrações científicas.
Dito isso, fica claro que também para Aristóteles, ape­
sar de ele reabüitar a opinião, a eristica não pode ser mais
do que uma degeneração da dialética, já que só aparen­
temente - isto é, de forma ilusória - parte de opiniões im­
portantes. No estudo dos silogismos erísticps (èpiaxiKoí,
àYOOviaxiKOÍ), contido nas Refutações sofisticas e tratado
por Platão no Eutidemo, ele pretende desmascarar os
enganos eristicos e fornecer umâ ajuda para nos defen­
dermos deles nas discussões. Para tanto, Üustra as cinco
armadilhas que os sofistas preparam, a saber: a contradi­
ção seguida da refutação (éã,eyxoç), a falsidade (\|/et)ôoç),
o paradoxo (itapáSoÇov), o erro lingüístico (aoXoiKiogóç)
e a conversa vazia (áôoX-eaxfiaai), e mostra então como
evitá-los, caracterizando em particular treze tipios de silo­
gismos eristicos falsos (seis derivados da fallacia dictio-
nis, sete da fallacia extra dictionis, isto é, de vícios ló­
gicos). Ainda nesse contexto, sobretudo nos capítulos 1-
2 e 9 do tratado, Aristóteles salienta as diferenças entre
dialética e eristica.
Schopenhauer, deixando totalmente de lado a utilida­
de científica da dialética sustentada por Aristóteles e,
portanto, abandonando as diferenças com relação à erís-
tica, identifica simplesmente a dialética com esta última
e, considerando apenas seu aspecto técnico-formal, a re­
duz a um conjunto de estratagemas, isto é, a um mero
instrumento argumentativo, a serviço tanto do verdadei­

94
- A arte de ter razão.

ro como do falso, a uma arma paia prevalecer sobre o in­


terlocutor, independentemente da razão ou da falta dela.
Nesse sentido, Schopenhauer, firme nessa convicção de
que a dialética, enquanto instrumento a serviço da natu­
reza perversa e prepotente do homem, não pode ser ou­
tra coisa senão a erística, aproveita o material que o tra­
tado aristotélico lhe coloca abundantemente à disposi­
ção, mas se lamenta do modo não suficientemente erís-
tico em que Aristóteles determinou a dialética. De fato,
a dialética tem para ele como tarefa principal “a (...) preo­
cupação (...) com a defesa das próprias afirmações e a
derrota das alheias” (cf. acima, p. 12 ), portanto “estabe­
lecer e analisar aqueles estratagemas da desonestidade
na disputa” (cf. acima, p, 13). Ele afirma então: “O meu
ponto de vista... é que a dialética deve ser separada da
lógica de uma maneira mais nítida do que a realizada
por Aristóteles, deixando a verdade objetiva, na medida
em que ela é form al, aos cuidados da lógica, e limitan­
do a dialética à obtenção da razão-, em contrapartida,
porém, não se deve separar a sofistica e a erística da dia­
lética como procede Aristóteles... Uma vez que, em geral,
costuma-se adotar o termo dialética como equivalente de
lógica, preferimos denominar nossa disciplina dialética
erística” (cf. acima, pp. 63-5). É significativo a esse res­
peito que, apesar de Aristóteles, Schopenhauer declare
não ter encontrado nenhum estudo do gênero antes
dele. Ele diz ter procurado “de fio a pavio”, provavel­
mente servindo-se sobretudo das Vidas dos filósofos, de

95
- Arthur Scbopenhauer-

Diógenes Laércio, e das Dialecticae institutiones, de Ra-


mus, mas o único escrito que menciona é uma obra per­
dida de Teofrasto, de que Diógenes Laércio conservou
para nós o título (numa forma problemática, porém):
ÂycoviaxiKÒv -rriç jrepl xoúç fepiatiKOÚç Xóyouç úecopíaç
[Discussão sobre a teoria dos discursos erísticos]^.

8. A dialética pós-aristotélica

A essa altura, seria interessante aludir também às ou­


tras concepções da dialética que tinham importância na
Antiguidade, por exemplo, à da Escola megárica, na qual
alguns autores desenvolvem em particular a erística e a
doutrina dos sofismas, ou à da Escola dos estóicos, que
identificam a dialética com a inteira lógica, ou enfim â
de Cícero, com seu compêndio dos Tópicos de Aristóte­
les e sua concepção retorizante da dialética. Mas pode-

5. Já M. Schmidt, D e Tbeophrasto rhetore com m entarius, diss., Hallae,


1839, e, portanto, H. Usener, A nalecta Theophrasteae, diss., Bonnae, 1858,
notavam a formulação gramaticalmente ptoblemátíca do título, em especial
o neutro singular 'AYtovumKÓv [pi^iov?]. Os estudos mais recentes tend«n
ao duplo título no genitivo (que subentende; livro de): 'AYtovwTtiKÃvf| xtiç
Jiepl Toòç èpionicoííç Xóyouç deoniiaç, ou seja. Livro de discursos agonís-
ticos ou de teoria dos discursos eristicos (cf. Mícfaael G. Sollenberger, D io-
genes Laertitts 5.36-57: The "Vita Theophrasti", em T h eofém stm &fEre-
sus. On H is Life a n d Work, org. por WiUiam W. Fortenbaugh, Transaction
Books, New Brunswick-Oxford, 1985, pp. 1-62, em particular pp. 46-7).

96
- A arte de ter razão .

mos deixar tudo isso de lado, pois Schopenhauer não


parece levar em conta essas concepções da dialética; ao
contrário, ele critica abertamente a única delas sobre a
qual gasta algumas palavras, a de Cícero. E, por outro
lado, parece ter ficado claro, pelo menos no que concer­
ne à Antiguidade, aquele aspecto obscuro da nossa his­
tória que pretendíamos iluminar: a relação da dialética
com o saber científico, de um lado, e com o engano erís-
tico, do outro.
Mas devemos retomar aqui a interrogação ao longo
da qual nossa história se desenrolou. Se esta é a dialéti­
ca para os antigos, o que é a dialética, a ciência e a erís-
tica para os modernos? Como foi possível chegar ãs dia­
léticas de Schopenhauer e de Hegel?

9- A dialética dos modernos

Não chega a ser o caso de tentarmos ilustrar aqui a


história da dialética na transição do mundo antigo ao
mundo medieval - o mito narrado por Marciano Capela
pode bastar como testemunho paradigmático - , nem de
nos determos nas controvérsias medievais em tom o da
dialética e da sua relação com a teologia, ou sobre o de­
senvolvimento do gênero literário dos sofismata e das
disputationes. Especialmente este último aspecto seria,
na realidade, interessante para um confronto com a dia­
lética erística de Schopenhauer, mas como ele, à parte
-Arthur Schopenhauer _

um aceno a Scotus Erigena e outro a Francis Bacon, não


parece levar em conta tal gênero de literatura, permitam-
nos prosseguir^.
O mesmo vale para o desenvolvimento da dialética
no Humanismo e no Renascimento, quando também po­
deríam ser registrados interessantes deslocamentos na
idéia de dialética; a nítida e exacerbada oposição à con­
cepção aristotélico-escolástica da dialética, que de todo
modo ainda sobreviveu por muito tempo, até o século
XVII, quando a encontramos nos comentários In univer-
sam dialecticam Aristotelis da Escola de Coimbra; de­
pois, a reabilitação da dialética ciceroniana, entendida
como ars disserendi in utram que partem, com referên­
cia à práxis jurídica; em seguida, o nascimento do “reto-
rismo”, fenômeno crescido seja em coríseqüência do co­
nhecimento de Cícero, seja por causa do ensino parale­
lo de lógica e retórica, que de tal modo acabaram se in­
fluenciando. Todos esses fenôméiíos são ligados a no­
mes de ilustres humanistas, como Lorenzo VaUa iDialec-

6. limlto-me a remeter, a título de exemplo, ao ainda útü estudo de


Martin Grabtnatm, D íe Sophism atalíteratur des 12. u n d 13- Jabrhunderts,
Beitrãge zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters,
vol. 36, tomo 1, Münster, Aschendoiff, 1940, e aos textos reunidos em
D ie m ittelalterlichen Traktate “D e m odo ofíponendi e t r& pondendi”, org.
por R. de Rijk, Beittãge zur Geschichte der Philosophie undHieologie des
Mittelaltets, Neue Folge, vol. 17, Münster, AschendoifF, 1980, que abrange,
entre outras coisas, a edição do Thesaurus philosophorum , de Aganafat, e
o D e m odo qppcm endi e t respondendi, do pseudo Alberto Magno.

98
- A arte de ter razão.

tica, Veneza, 1499), Rodolfo Agrícola (na realidade, Roe-


lof Huysman, De inventione dialectica, Louvain, 1515),
Juan Luís Vives QAdversus pseudodialecticos, Sélestat,
1520), Pierre de La Ramée, dito Ramus (JMalecticaepar-
titiones [depois: instüutioneii, Paris, 1543; Aristotelicae
animadversiones, Paris, 1543); Philip Melanchton iErote-
mata dialectices, Wittenberg, 1547).
O aspecto interessante para a nossa história é a maior
importância atribuída à inventio, isto é, à redescoberta
dos loci como ponto de partida da argumentação isedes
argumentoruni), em relação ao outro momento da dia­
lética, o iudicium , isto é, em relação à forma correta da
conclusão silogística. É precisamente na avaliação dife­
rente da relação entre inventio e iudicium , isto é, entre
tópica e analítica, que está a diferença principal entre a
concepção arístotélico-escolástica e a concepção huma-
nista-ciceroniana. De fato, para esta última, a tópica, istó
é, a dialética, não é uma forma particular de raciocínio,
inferior talvez, já que somente provável, ao raciocínio ana­
lítico, mas é o pressuposto necessário da analítica, uma
vez que fornece os loci com m unes dos quais deve par­
tir todo tipo de raciocínio e argumentação, inclusive o
analítico. Cristaliza-se, desse modo, a distinção entre ana­
lítica e dialética, que, atravessando uma tradição latente,
chega a Kant.
Deveria ser analisada em seguida a crise da dialética
na Idade Moderna, após o nascimento do novo paradig­
ma do saber, representado pela ciência moderna e ba-

99
- Artbur Schqpenhatter-

seado no método matemático; a dialética é então redu­


zida a uma “dialética natural”, que proporciona o único
ordo, o único método possível da pesquisa científica,
precisamente o que vai do conhecido ao desconhecido
- é o que já sucede com Ramus CQuod sit unica doctri-
nae instituendae methodus. Paris, 1557) ou é repelida
cada vez mais como um saber ilusório e aparente.

10. A dialética em K ant

O pensador que, na Idade Moderna, retoma de manei­


ra filosoficamente rigorosa o problema da dialética e lhe
dá uma formulação que permaneceu decisiva, inclusive
para Schopenhauer e Hegel, é Kant. Como se sabe, a
Crítica da razão pura implica na sua arquitetura uma ar­
ticulação em “estética” e “lógica”, e a lógica, por sua vez,
é dividida em “analítica” e “dialética”. Para nós importa
principalmente esta última distinção, já que dela resulta
a concepção kantiana específica da dialética. Kant defi­
ne a analítica como a parte da lógica que resolve a ati­
vidade formal do intelecto e da razão em seus elemen­
tos constitutivos, ou seja, conceitos, juízos e silogismos,
e que os expõe como critérios formais para avaliar a con­
sistência de todo conhecer.
Ora, a pura forma do pensamento não é, por si só, su­
ficiente para produzir um conhecimento verdadeiro, isto
é, não proporciona nenhuma verdade material objetiva.

100
- A arte de ter razão .

mas apenas permite relacionar os objetos com um todo


coerente, de acordo com leis da lógica. “No entanto”, ob­
serva Kant nessa altura, “na posse de uma arte tão espe­
ciosa, que dá a forma do intelecto a todos os nossos
conhecimentos... há algo tão atraente, que essa lógica
geral, enquanto constitui um simples cânone para a ava­
liação, foi adotada, por assim dizer, como um organon,
tendo em vista uma produção real, ou pelo menos uma
ilusória, de asserções objetivas, e na realidade tem sido
mal empregada. Ora, a lógica geral, como suposto orgOr
non, chama-se Dialética.''^
A esse respeito, podem-se fazer duas observações. Em
primeiro lugar, cumpre notar que, com a articulação da
lógica em analítica e dialética, Kant - de um ponto de vis­
ta geral, isto é, sem se preocupar por enquanto com o
que entende respectivamente por analítica e dialética -
parece acompanhar a tradição aristotélica. De fato, con­
forme já acenamos, essa tradição considerava a dialética
uma parte da lógica junto com a analítica, contra o “re-
torismo” ou “ciceronismo”, que via na dialética o pres­
suposto que constitui a base de toda e qualquer argu­
mentação, e contra o “ramismo”, que identificava dialé­
tica com lógica®. Uma confirmação de que, nesse ponto.

7. KriHk d er setnen Vem unft, B 85.


8. Gioigio Tonelli, no estudo D er historische Ursprung d er kantiscben
Term iní “A nalytík" u n d “D üdektik”, em “Archiv für BegrifFsgeschichte”,
Vn, 1962, pp. 120-39, documentou a presença da distinção entre analíti­
ca e dialética na tradição alemã antes de Kant, sustentando que, na Ale-

101
- Arthur Schopenhauer .

Kant se remete a Aristóteles pode ser encontrada tam­


bém nas suas lições de Lógica, publicadas por Gottlob
Benjamin Jâsche (Kônigsberg, 1800), onde Kant diz que
“a lógica atual deriva da lógica analítica de Aristóteles.
Esse filósofo pode ser considerado o pai da lógica. Ele a
expôs como Organon e a dividiu em analítica e dialé-
ticeí’^. De resto, que Kant pretenda ter Aristóteles como
ponto de referência para a sua exposição, fica claro
quando, ao apresentar seu trabalho, no Prefácio da se­
gunda edição da Crítica da razão pura, ele escreve que
a lógica, “de Aristóteles em diante, não teve de dar ne­
nhum passo para trás” e que “até hoje tampouco pôde
dar algum passo para a frente”“ .

manha, após a extinção do lamismo no início do século XVn, dialética


significava, em conformidade com a tradição escolástica, toda a lógica
aristotélica. Somente por influência de aristotélicos estrangeiros, como Ja-
copo Zabarella e Philippe Canaye, afirmou-se, sucessivamente, a distin­
ção entre analítica e dialética, que encontramos em manuais da época.
Entre estes, Tonelli identifica ccxno fonte de Kant o tratado do eclético
Joachim Georg Darjes, In trodu ctio in Artem Inveniendi, seu Logicam
theoretiço-practicam , q u a AneUytica atqu e D ütkcH ca in usum e t iussu
au ditom m suorum m ethoda iis com m oda proponuntur, Jena, 1732, em
que a analítica é definida com o scienHa in ven ien di veritates cutn certitu-
díne, e a dialética como scien tia in ven ien di veritates probabiliter. Em
outro trecho, Darjes esboça uma breve história da ló^ca a partir de
Zenão (sobre o qual serve-se de Gassendi, como fonte). Essa referência
também é assumida por Kant.
9. Immanuel Kant, Eogik, Akademie-Ausgabe, K, 20.
10. Kant, K ritik d er seinen Vem unft, B Vin.

102
. A arte de ter razão .

Ora, uma vez apurada essa referência à tradição aris-


totélica, nota-se que Kant, contra tal tradição a que ele
também se filia, atribui à dialética um significado nega­
tivo, como se vê claramente na definição que o trecho
citado dela nos dá. De fato, com base na sua concepção
filosófica, segundo a qual o pensamento proporciona ao
nosso conhecimento unicamente a organização formal
correta, enquanto seu conteúdo material só pode ser for­
necido pela sensibilidade, Kant chama de dialética a
pretensão ilusória de produzir o conhecimento median­
te a única atividade da razão: “A lógica geral, considera­
da organon, é sempre uma lógica da ilusão iLogik des
Scheins), ou seja, é sempre dialética. Com efeito, dado
que ela não nos ensina absolutamente nada sobre o con­
teúdo do conhecimento, mas apenas as condições for­
mais do acordo com o intelecto, que, aliás, são totalmen­
te indiferentes com relação aos objetos, em tal caso a
pretensão de servir-se dela como um instrumento iorgor
non) para ampliar e estender, pelo menos ficticiamenteí
nossos conhecimentos pessoais, deverá levar unicamen­
te a uma intemperança verbal, consistente em afirmar
com certa verossimilhança tudo o que bem entendermos ,
ou mesmo em contestar o que bem entendermos a nos­
so bel-prazer.”“

11. K ritik d er seinen Vem unft, B 86. O termo Schein é vertido níi tra­
dução de Giovanni Gentile e Giuseppe Lombardo-Radice como “apparen-
za” [aparência], o que não é propriamente errado, mas ambíguo. Mais
preciso seria “parvenza” [aparências], que em italiano também tem uma

103
-A n bu r Schopenbauer .

Embora sem citar jiomes, nem mesmo o de Aristóte­


les, Kant parece atribuir essa concepção negativa da dia­
lética ao pensamento grego em seu conjunto; “Por mais
variado que possa ser o significado em que os antigos
empregaram essa denominação de uma ciência ou arte,
pode-se, no entanto, deduzir com segurança do uso real
desse termo que a dialética não era, para eles, nada mais
do que a lógica da ilusão. Trata-se de uma arte sofistica,
que procura fornecer o colorido da verdade à própria ig­
norância pessoal, ou até mesmo às próprias construções
pessoais intencionalmente ilusórias, com a imitação do
método da indagação aprofundada, prescrito pela lógica
em geral, e com a utilização da sua tópica para embele­
zar qualquer procedimento vazio. A própria definição
negativa da dialética como lógica das aparências ou da
ilusão, como ars sophistica, disputatoria, é reafirmada
na Lógica, onde Kant diz que, “entre os gregos, os dialé­
ticos eram os advogados e os oradores, que sabiam con­
duzir o povo aonde queriam, porque o povo se deixa
enganar pelas aparências. Ela também foi exposta por
certo tempo, na lógica, sob o título de arte da discussão:
um tempo em que toda a lógica e a filosofia eram culti-

acepção pejorativa com respeito a “apparenza”, assim como Schein o tem


com respeito a Erscheinung. É a solução adotada por Amoroso na tradu­
ção da Lógica (cf. nota 10). CoUi, para não dar mai^em a ambigüidades,
traduz, acentuando o sentido do termo alemão, por “ilusão”.
12. K ritik d er seinen Vem unft,'Q

104
. A arte de ter razão .

vadas por certos paroleiros para produzir artificialmente


tais aparências”'^.
Kant realiza, portanto, uma redução completa da dia­
lética à erística. Mas isso significa que, não obstante re­
tome a tradição aristotélica no que concerne à distinção
entre analítica e dialética, ele entende a dialética numa
acepção depreciativa que vai explicitamente de encontro
ã concepção de Aristóteles. Note-se, aliás, que Kant tam­
bém rejeita explicitamente a idéia de dialética afirmada
na tradição aristotelizante da Idade Moderna, em que ele
encontra a distinção entre analítica e dialética, isto é, a
idéia de que a dialética é uma lógica probabilium , ou
melhor, o tipo de racionalidade adequado ao estudo das
coisas que não são necessárias, mas apenas contingentes,
e que, portanto, só tomam possível um conhecimento
provável. De fato, ao definir a dialética como “lógica das
aparências” ou “lógica da ilusão”, ou seja, lógica do que
parece verdadeiro mas não é (scheinbar, verossímil), Kant
repele a idéia de que a dialética possa ser uma lógica do
provável, isto é, do que parece verdadeiro no sentido de
que só o é provavelmente {wahrscheinlich, provável); o
cálculo do provável, na medida em que não é conheci­
mento üusótio, mas verdadeiro, para ele faz parte da ana­
lítica: “A dialética em geral, nós a chamamos mais acima
de lógica da ilusão. Isso não significá que ela seja uma
doutrina da verossimilhança. De fato, esta última é ver-

1 3 . Kant, Logik, A kadem ic-Ausgabe, IX, l6-7.

105
- Arthur Schopenhauer .

dade, porém conhecida mediante razões insuficientes,


cujo conhecimento, por conseguinte, pode ser imperfei­
to, mas nem por isso enganador, não devendo, portan­
to, ser separado da parte analítica da lógica.”'^
Para além da curiosidade historiográfica de identificar
a fonte imediata em que Kant haure a acepção deprecia­
tiva da dialética, ele é, evidentemente, filho do seu tem­
po quanto a esse aspecto. Quero dizer: ele compartilha
a polêmica contra a dialética - freqüente, de Descartes
em diante, nos pensadores da Idade Moderna -, que se
opõe a ela como a uma arte que pretende ensinar a dis­
cutir tudo e que, em vez de nos introduzir no assunto
em discussão, leva-nos a nos perder em lugares-comuns.
E tal polêmica nada mais é senão a polêmica contra o sa­
ber escolástico dos “aristotélicos” em nome da nova ciên­
cia e de seu método, em que muitas vezes é equivoca­
damente envolvido o norhe de Aristóteles, em vez da­
quele dos “aristotélicos”. É o que sucede com o próprio
Kant, quando ele parece atribuir a Aristóteles - na reali­
dade, em patente contradição com os textos - sua con­
cepção depreciativa da dialética como sofistica e eristica:
“Todo conceito, todo título sob o qual se incluem mui­
tos conhecimentos pode ser chamado de lugar lógico. É
nisso que se funda a tópica lógica de Aristóteles, da qual
puderam valer-se professores e oradores, para indagar -
sob certos títulos do pensamento - o que melhor se adap-

14. Kant, K ritik d e r seín en V em unft, B 349.

106
- A arte de ter razão .

ta à matéria em questão, e para sutilizar - ou falar ver-


bosamente - a esse respeito com certa aparência de pro­
fundidade.”*^
De todo modo, é interessante ter em mente a expli­
cação histórica da identificação de dialética e erística que
o próprio Kant fornece nas lições de Lógica. Nestas, ao
esboçar um rápido compêndio de história da filosofia,
ele alude a um originário significado positivo da dialéti­
ca em Zenão - pensador que rta Crítica da razão pura
também é apreciado como “dialético sutil” e é defendi­
do da acusação, movida por Platão, de ser um “sofista
petulante”*®- e fala então de uma degeneração devido
à qual a dialética teria decaído até o ponto de assumir o
significado negativo por ele descrito: “A proposição fun­
damental da filosofia eleática e do seu fundador era: «os
sentidos existe apenas ilusão e aparências, apenas e ex­
clusivam ente no intelecto se encontra a fo n te da verda­
de. Entre os filósofos dessa escola, Zenão se distinguiu
como homem de grande intelecto e agudeza e como dia­
lético Sutíl. A dialética indicava originalmente a arte do
uso puro da razão em referência a conceitos abstratos,
separados de qualquer elemento sensível. Eis o motivo
de tantos elogios dessa arte entre os antigos. Em seguida,
quando aqueles filósofos que rejeitavam por completo o
testemunho dos sentidos foram inevitavelmente derrota­

is. K ritik d ér seinen Vem unft, B 324-5.


l6. K ritik d er seinen Vem unft, B 530.

107
- Aríbur Scbopenbauer -

dos, com essa afirmação, em demasiadas sutilezas, a dia­


lética degenerou na arte de afirmar e contestar qualquer
proposição. Desse modo, ela se tomou um mero exer­
cício para os sofistas, que queriam raciocinar sobre tudo
e se esmeravam em pintar as aparências com as cores da
verdade e em tomar negro o que era branco.”'^
Agora estamos em condições de responder à pergun­
ta que tínhamos formulado: como foi possível chegar às
dialéticas de Schopenhauer e de Hegel?

11. Schopenhauer wexsas Hegel

Ficou claro nesta altura que a redução kantiana da


dialética a uma “lógica das aparências” ou “lógica da ilu­
são”, isto é, sua interpretação em sentido sofistico e erís-
tico, representa a fonte imediata de Schopenhauer, ain­
da que aparentemente este a critique. De fato, ele obser­
va, referindo-se claramente a Kant, mas sem nomeá-lo,
que a dialética “foi definida como a lógica das aparên­
cias” e acrescenta: “é falso porque, nesse caso, ela teria
utilidade apenas na defesa de proposições falsas” (cf.
acima, pp. 11 e 58). Trata-se, evidentemente, de uma crí­
tica que contesta apenas o significado exterior do termo
“aparências” (jScheirt), não o que na realidade Kant en­
tende, e que de todo modo não põe em discussão a acep-

17. Kant, lo g p í, Akademie-Ausgabe, IX, 28.

108
- A arte de ter razão .

ção negativa da dialética sustentada por ele. Com esta


última, portanto, dispomos das coordenadas para com­
preender as razões da equação de dialética e erística
que Schopenhauer, pressupondo Kant e calando He-
gel, dá então como prevista: “A dialética não deve, por­
tanto, aventurar-se na verdade, do mesmo modo como
o mestre de esgrima não leva em consideração quem de
fato está com a razão no litígio que causou o duelo:
acertar e defender, eis o que interessa. O mesmo vale
na dialética: ela é uma esgrima intelectual; somente
quando entendida desse modo puro pode ser apresen­
tada como uma disciplina própria, pois, se nos colocar­
mos como meta a pura verdade objetiva, retomamos à
mera lógica-, se, por outro lado, nos colocamos a reali­
zação de proposições falsas, temos então a mera sofis­
tica. E em ambas seria pressuposto que já soubésse­
mos o que é objetivamente verdadeiro e falso, porém
é raro que haja certeza sobre isso de antemão” (cf. aci­
ma, pp. 11-3).
Quanto a Hegel, que Schopenhauer também chega a
mencionar a esse respeito, foi dito que ele parte igual­
mente de Kant. Mas “Hegel e a dialética” é um tema tão
vasto e tão estudado, que não cabe aqui nem mesmo ini­
ciar tal discussão. Devemos apenas, para justificar a afir­
mação feita, acrescentar um breve apêndice ao capítulo
da nossa história relativo a Kant, que nos permite com­
preender melhor a transição a Hegel. Depois de ter intro­
duzido a dialética no significado negativo que conhece­

109
. Arthur Scbopenbauer-

mos, Kant di2 que, como o ensinamento dessa arte ilu­


sória “não é de modo algum conforme à dignidade da
filosofia”, ele não a pode acolher em seu sistema apenas
para demolir as ilusões que ela produz (pretendendo co­
nhecer as idéias da alma imortal, do mundo e de Deus)
e chama, pois, tal demolição de dialética no sentido po­
sitivo, isto é, a “crítica da ilusão d ia ^tiç d ’^^.
Como se sabe, Kant desenvolve essa tarefa mostran­
do a inevitável produção da ilusão dialética, que leva a
razão a querer conhecer objetivamente o que não passa
de idéias, isto é, de conceitos vazios a que não corres­
ponde nenhuma intuição que possa lhes dar conteúdo:
trata-se da alma imortal, do mundo e de Deus, idéias que
a psicologia, a cosmologia e a teologia dos sistemas ra-
cionalistas da Idade Moderna pretendiam conhecer como
objetos, A parte da dialética transcendental particular­
mente importante para nós é aquela relativa à çosmolo-
gia racional, pois nesta Kant mostra como a razão desen­
volve necessariamente uma “antitética”, isto é, um siste^
ma de antinomias, de proposições opostas, ambas de-
monstráveis (ou refutáveis), sem que em aparência se
delineie uma saída para os dilemas que elas levantam: a
primeira antinomia consiste na demonstração da tese de
que o mundo é finito e, ao mesrno tempo, na demons­
tração da antítese, d^ que é iiifinito; a segunda, na de­
monstração de que toda substância composta consta de

18, Kant, K ritik derseínen Vem unft, B 86.

110
-A arte de ter razão .

partes simples e, ao mesmo tempo, na demonstração de


que nenhuma substância composta consta de partes sim­
ples; a terceira, na demonstração de que, ao lado da cau­
salidade das leis naturais, é necessário admitir uma causa­
lidade mediante liberdade, e na simultânea demonstra­
ção de que tudo advém de acordo com a necessidade das
leis naturais; a quarta, na demonstração de que o mun­
do implica como sua causa, ou parte, um ente necessá­
rio, e na demonstração contrária de que não existe ne­
nhum ser necessário.
Pois bem, em seu significado positivo de crítica da Üu-
são transcendental, a dialética deve resolver essas anti­
nomias da razão e o faz exercitando aquele método que
Kant chama de “método zetético” ou “método cético” -
no sentido do ceticismo crítico e não dogmático - , isto
é, pondo em prática a pesquisa e a dúvida, ou então a
crítica, a fim de desmascarar verdades aparentes e ilusó­
rias, como são a tese e a antítese das antinomias. E esse
era também o método de Zenão, do modo como Kant o
interpreta. Isso explica por que ele, como vimos, o apre­
cia e o defende da acusação de ser um “sofista petulan­
te”, que Platão lhe fez iFedrò, 261 d). A acusação ter-lhe-
ia sido feita “pelo fato de que ele, para mostrar sua arte,
procurava provar uma proposição mediante argumentos
plausíveis e se esforçava, logo depois, para demolir a
mesma proposição com outros argumentos, igualmente
fortes. Ele afirmava que Deus (qúe presumivelmente
para ele não era outro senão o mundo) não é nem fini-

111
- Arthur Schopenhauer-

to nem infinito, não está nem em movimento nem em


repouso, não é nem igual nem desigual a outra coisa. Os
que o julgaram quanto a essa posição acreditaram que
ele tinha querido negar completamente duas proposi­
ções contraditórias entre si, o que é absurdo”'^. E Kant
acrescenta logo em seguida: “Não acho, porém, que seja
justo atribuir-lhe esse erro.”“ De fato, ele não entende o
método praticado por Zenão como a absurda negação de
duas proposições contraditórias (das quais uma é neces­
sariamente verdadeira e a outra, falsa, já que entre con­
traditórios tertium non datuni), mas no sentido da nega-

19 . K ritik dersein en Vemunft,B 530. Note-se de passagem que, neste


ponto, Kant, baseando-se no escrito pseudo-aristotélico D e Melisso, Xe-
nophane, Gorgia, então conhecido pelo título errôneo D e X encpbane, Ze-
none et Gorgia, atribui a Zenão uma doutrina de Xenófanes.
20. Loc. cit. Com isso, Kant, além de defender Zenão da acusação de
Platão, põe-se conscientemente contra uma tradição interpretativa de que
Pierre Bayle havia sido um representante autori2ado. Este, em seu difun-
didíssimo D icH onnaire historique e t critiqu e (Roterdam, 1697, reeditado
várias vezes), escrevia no verbete Zenão. “O destino dessa dialética zeno-
niana parece ter sido mais confundir tudo do que esclarecer alguma
coisa. Zenão se servia dela apenas para discutir com qualquer um e pata
reduzir seus adversários ao silêncio, seja por sustentarem o branco, seja
por sustentarem o preto... Disso resulta a imagem de um homem que cri­
ticava tudo, que destruía muitas opiniões e conservava pouquíssimas
para si.” O remar contra a corrente de Kant é mais uma prova da cons­
ciência com que ele pretendia recuperar o método dialético de Zenão
como crítica da ilusão.

112
. A arte de ter razão ,

ção de duas proposições contrárias, que admitem um


tertium e, portanto, se não podem ser ambas verdadeiras
(pelo princípio de não-contradição), podem, porém, ser
falsas, e a verdade, por conseguinte, pode estar numa ter­
ceira proposição. Kant chama esse tipo de oposição de
“oposição dialética” e a distingue da “oposição analítica”
(por contradição) e da “repugnância real” ou “oposição
real” (sem contradição). Tendo assim mantido sutilmen­
te distinta em sua argumentação a oposição por contra­
riedade da oposição por contradição, Zenão se revela aos
olhos de Kant um dialético sutil, capaz de argumentar
segundo aquele “método zetético” ou “método cético”
por ele apreciado e praticado.
Remetendo-se ã dialética tránscendentol de Kant, He-
gel reconhece a este último o mérito de ter apreendido
a necessidade das antinomias da razão, que ele não in­
terpreta como proposições contrárias, mas como verda­
deiras contradições; atribui-lhe, porém, o erro de ter con­
siderado as antinomias meramente subjetivas,^isto é, o
produto de uma razão finita, incapaz de conhecer a to­
talidade. O fato de a razão desenvolver sua própria an-
titética, que para Hegel é governada pela força da nega­
ção e da contradição, e dever ser estendida não apenas
à cosmologia, mas a todas as idéias, a todos os conceitos
e a todos os objetos, significa que a razão conhece o in­
finito, o Absoluto, a totalidade, já que esta última só pode
ser expressa mediante a contradição. Retomando, por­
tanto, a dialética kantiana em seu sentido positivo, He-

113
_Arthur Schopenhauer -

gel chega a desenvolvê-la como lógica da contradição e


faz dela a alma do seu sistema, ou melhor, a própria ex­
pressão da vida do espírito.
Sendo assim, com Hegel, a dialética alcança seu perfil
filosófico mais elevado. Schopenhauer, pelos motivos que
a história que resumimos esclareceu, responde com uma
operação de força igual e contrária e a reduz aos seus
mínimos termos de arte de obter razão, de “doutrina do
modo de proceder pertencente à natural prepotência
humana” (cf. acima, p. 60). Tal operação, de um ponto
de vista filosófico, é provavelmente menos profunda, mas
se revelou, no fim das contas, mais flexível à mudança
dos tempos. Pois Schopenhauer vinculou a dialética não
a uma filosofia, mas à própria condição do homem como
animal dotado de linguagem, isto é - conforme observa­
va, mais ou menos nos mesmos anos, um mestre de lu­
cidez -, na medida em que é aquele ser a quem os deu­
ses deram a palavra para que pudesse esconder seu
pensamento.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Para aprofundar a história aqui resumida, limito-me a


mencionar alguns estudos essenciais. Devem-se ter em
mente, antes de mais nada, os numerosos trabalhos de­
dicados à dialética por Enrico Berti, nos quais ele não so­
mente propôs uma reconstrução crítica convincente da

114
. A arte de ter razão .

sua história, que me serviu de base para as indicações


aqui fornecidas, mas também sustentou sua atualidade
como lógica própria do discurso filosófico. Entre eles, re­
comendo aqui os dois fundamentais: Contraddizione e
dialettica negli antichi e nei moderni, Palermo, L’Epos,
1987; Le ragioni di Aristotele, Roma-Bari, Laterza, 1989.
Para um panorama da história do problema, ver a mo­
nografia de Livio Sichirollo, Dialettica, Milão, Isedi, 1973
(com bibliografia), e as contribuições de Nicola Abbag-
nano, Enzo Paci, Cario A. Viano, Eugênio Garin, Pietro
Chiodi, Pietro Rossi e Norberto Bobbio, reunidos sob o
título Studi sulla dialettica, Turim, Taylor, 1969, que ofe­
recem uma reconstrução por esboços, mas completa, dos
principais momentos da história da dialética, de Platão a
Marx.
No que concerne à transmissão do corpus dialecticum
antigo à Idade Média, ver Giulio D’Onofrio, Fons scien-
tiae. La dialettica nelVOccidente tardó-antico, Nápoles,
Liguori, 1986, e no que diz respeito à eiística, Sten Eb-
besen, Commentators a n d Commentaries on Aristóteles^
Sophistici Elenchi. A Study o f post-Aristotelian A ncient
a n d M edieval Writings on Fallacies, 3 vol., Leiden, Brill,
1981. E também: Niels J0rgen Green-Pedersen, The Tra-
dition o fth e Topics in the M iddle Ages, Munique, Philo-
sophia, 1984.
Para a dialética na idade do Humanismo e do Renas­
cimento, remeto ao estudo clássico de Cesare Vasoli, La
dialettica e la retórica delVUmanesimo. “Invenzione” e

115
- Arthur Schopenhauer .

“método” nella cultura dei X V e XVIsecolo, Milão, Feltri-


nelli, 1968, e para a Idade Moderna a Wilhelm Risse, Die
Logik der Neuzeit, 2 vol., Stuttgart-Bad Cannstatt, From-
mann-Holzboog, 1964-70, e Wolfgang Rõd, Dialektische
Philosophie der Neuzeit, 2- ed. completamente reelabo-
rada, Munique, Beck, 1986 (1® ed., 1974). A reconstru­
ção global mais completa da história da dialética no pe­
ríodo que vai de Kant a Marx é a de Wolfgang Janke,
Historische Dialektik. Destruktion dialektischer Grund-
form en von K ant bis Marx, Berlim, de Gruyter, 1977 (so­
bre a qual fiz um relatório na “Rivista critica di storia dei-
la filosofia”, 36 , 1981, pp. 196-206). Sobre a dialética
contemporânea, ver La dialettica nelpensiero contempo­
râneo, org. por Valerío Verra, Bolonha, II Mulino, 1976.
Ver enfim o verbete de Ludwig Hetnrich Heydenreich,
Dialektik, em Reallexikon z u r deutschen Kunstgeschich-
te, vol. III, Stuttgait, DrückenmüÜer, 1954, col. 1387-
1400, que contém uma interessante ilustração das icono­
grafias da dialética, todas elas provenientes de duas fon­
tes literárias, a descrição de Marciano Capela supracita­
da e a de Alanus ab Insulis, Anticlaudianus, livro III,
cap. 1.

116
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