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Introdução à Filosofia da Religião

William L. Rowe
Tradução de Vítor Guerreiro
Revisão Científica de Desidério Murcho
Para a Peggy
Índice

Prefácio à quarta edição 11


Agradecimentos 13
Introdução 15

1. A ideia de Deus 19
2. O argumento cosmológico 39
3. O argumento ontológico 63
4. O argumento do desígnio (o antigo e o novo) 87
5. Experiência mística e religiosa 109
6. Fé e razão 139
7. O problema do mal 169
8. Milagres e a mundividência moderna 199
9. Vida depois da morte 219
10. Predestinação, presciência divina e liberdade humana 241
11. Muitas religiões 263

Glossário de conceitos e ideias importantes 281


Leitura complementar 290
Índice remissivo 293
Prefácio à quarta edição

Durante a segunda metade do século XX e nos primeiros anos do século XXI,


deu­‑se um crescimento sem precedentes da filosofia da religião, tanto em
termos da quantidade de filósofos que a ela se dedicam como em termos de
desenvolvimentos importantes no seu seio. E é provável que a área continue a
florescer, atraindo alguns dos melhores jovens filósofos para trabalhar nos seus
vinhais. Reflectindo os mais importantes avanços na filosofia da religião neste
período de crescimento contínuo, o que se segue merece especial atenção:
1. Durante séculos, os pensadores religiosos procuraram mostrar que a
crença religiosa não só é consistente com o pensamento racional mas
também que se pode sustentá­‑la com argumentos racionais. O desen‑
volvimento da teoria cosmológica do Big Bang resultou num argumento
do desígnio a favor da existência de um ser inteligente que terá ajustado
as condições iniciais da origem do universo de modo a tornar possível a
vida que conhecemos. E há também um argumento contra a capacidade
de a selecção natural darwinista explicar sistemas biológicos «irredu‑
tivelmente complexos» ao nível molecular. Um curso introdutório em
filosofia da religião tem de informar os estudantes acerca destes argu‑
mentos, além dos argumentos tradicionais a favor da existência de Deus.
2. Tem­‑se valorizado crescentemente e procurado compreender outras
tradições religiosas além das ocidentais, com a sua dupla ênfase na
ignorância, e não no pecado, como fonte das atribulações humanas,

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Introdução à Filosofia da Religião

e no esclarecimento, e não na salvação pessoal, como solução para as


atribulações humanas. Com esta nova consciência das diferenças pro‑
fundas entre as religiões do mundo, surge naturalmente a questão de
saber se se pode continuar a defender sensatamente que apenas uma
destas religiões (a nossa) é a verdadeira e o único caminho para a vida
além­‑túmulo. O filósofo e teólogo John Hick tem desenvolvido uma
perspectiva denominada «pluralismo religioso». É importante que os
estudantes de filosofia da religião contactem com esta perspectiva, bem
como com as críticas que lhes foram dirigidas.
3. O problema do mal continua a ser um importante tópico de discussão.
Trata­‑se da questão de a enorme quantidade de mal aparentemente des‑
necessário que há no nosso mundo, um mal que não cumpre qualquer
finalidade boa que possamos imaginar, contar ou não como indício con‑
tra a existência de um deus sumamente perfeito. Alguns filósofos argu‑
mentam que a disparidade entre o conhecimento humano e o divino é
tal que a nossa incapacidade para discernir qualquer bem que exigisse a
permissão de tais males por Deus não nos dá qualquer razão para pensar
que a sua existência é improvável. Esta perspectiva, conhecida como
«teísmo céptico», levanta questões de importância central para o pro‑
blema de se saber se o mal no nosso mundo nos dá ou não razões para
pensar que a existência de Deus é improvável, questões que se devem
incluir num curso de filosofia da religião.
Nesta edição, procurei tratar destas questões.

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer aos revisores da primeira edição: George L. Abernathy,


Monroe C. Beardsley, Donald Burrill, John Fisher, Robert O. Long, Geddes
MacGregor e Walter Stromseth. Estou grato aos revisores da segunda edi‑
ção: Pieranna Garavaso, Universidade do Minnesota­‑Morris; S. S. Rama Rao
Pappu, Universidade de Miami; Louis Pojman, Academia Militar dos EUA;
William L. Power, Universidade da Geórgia; Paul Tidman, Universidade
Estatal do Illinois; e Donald J. Zeyl, Universidade de Rhode Island. Gostaria
também de agradecer aos revisores da terceira edição: Kelly James Clark,
Calvin College; Jude P. Dougherty, Universidade Católica da América; Frank
Murphy, Universidade da Carolina do Leste; e George I. Mavrodes, Univer‑
sidade do Michigan. E gostaria de agradecer aos revisores da presente edi‑
ção: James Baillie, Universidade de Portland; Minh Nguyen, Universidade
do Kentucky Oriental; Henrietta Wiley, Universidade de Denison; Frederik
Kaufman, Ithaca College; Ted Guleserian, Universidade Estatal do Arizona;
Richard Miller, Universidade da Carolina do Leste; Peter Vernezze, Weber
State; John Beaudoin, Universidade do Illinois do Norte; Hugh Wilder, Col‑
lege of Charleston; Paul Hughes, Universidade do Michigan­‑Dearborn; Keith
Korcz, Universidade do Louisiana­‑Lafayette; e Russell Lascola, Universidade
Politécnica Estatal da Califórnia­‑San Luis Obispo.

W.L.R.

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Introdução

Temos de contar a religião, sem dúvida, juntamente com a arte e a ciência, entre
os aspectos mais fundamentais e ubíquos da civilização humana. Como tal, é
digna do escrutínio e do estudo mais cuidadosos. Mas a religião é um aspecto
tão complexo da vida humana e de tão vastas consequências que jamais uma
só disciplina poderá estudá­‑la exaustivamente. Por isto se estuda a religião em
diferentes disciplinas: filosofia, história, antropologia, sociologia, psicologia.
A filosofia da religião é um dos ramos da filosofia, como a filosofia da
ciência, a filosofia do direito e a filosofia da arte. Podemos compreender
melhor o que é a filosofia da religião começando pelo que não é. Em pri‑
meiro lugar, não se pode confundir a filosofia da religião com o estudo da
história das principais religiões de acordo com as quais os seres humanos
têm vivido. Ao estudar a história de uma religião particular — o cristianismo,
por exemplo — leríamos algo sobre a sua origem a partir do judaísmo, a vida
de Jesus, a emergência da igreja cristã no seio do império romano, o desen‑
volvimento das doutrinas características da fé cristã. Pode­‑se levar a cabo
estudos semelhantes a respeito de outras religiões importantes: judaísmo,
islamismo, budismo, hinduísmo. Embora tais estudos sejam importantes
para a filosofia da religião e por vezes possa haver sobreposição de ambas as
áreas, não as podemos confundir.
Em segundo lugar, não se pode confundir a filosofia da religião com a
teologia. A teologia é uma disciplina em grande medida interior à religião.

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Introdução à Filosofia da Religião

Como tal, desenvolve as doutrinas de uma fé religiosa particular e procura


fundamentá­‑las quer na razão comum à humanidade (teologia natural) quer
internamente, na palavra revelada de Deus (teologia revelada). Embora a
filosofia da religião se interesse fundamentalmente por estudar a maneira
como as pessoas que têm crenças religiosas as justificam, o seu interesse
primário não é justificar ou refutar um conjunto particular de crenças reli‑
giosas mas avaliar os géneros de razões que as pessoas dadas à reflexão têm
apresentado a favor e contra as crenças religiosas. A filosofia da religião,
ao contrário da teologia, não é fundamentalmente uma disciplina interior
à religião, mas uma disciplina que estuda a religião de um ponto de vista
abrangente. Do mesmo modo que a filosofia da ciência e a filosofia da arte,
a filosofia da religião não faz parte do objecto de estudo a que se dedica. É
importante reconhecer, contudo, que a teologia, em particular a teologia
natural, e a filosofia da religião se sobrepõem consideravelmente. Quando
Tomás de Aquino discute os diversos argumentos a favor da existência de
Deus, ou quando procura analisar o que se quer dizer com a ideia de que Deus
é omnipotente, quando Anselmo examina determinadas noções importantes,
como a eternidade e a auto­‑existência, é difícil classificar o seu trabalho como
algo que pertence exclusivamente à teologia. Também se pode, obviamente,
entender que este é um trabalho filosófico acerca de determinados aspectos
da religião. Apesar destas sobreposições, contudo, não se deve identificar a
filosofia da religião, enquanto disciplina, com a teologia.
Podemos caracterizar melhor a filosofia da religião como o exame crítico
das crenças e dos conceitos religiosos fundamentais. A filosofia da religião
examina criticamente conceitos religiosos fundamentais como o conceito
de Deus, o conceito de fé, a noção de milagre e a ideia de omnipotência.
Examinar criticamente um conceito complexo como o de Deus é fazer duas
coisas: distinguir as concepções fundamentais de Deus que têm surgido na
religião e decompor cada concepção nos seus componentes fundamentais.
Como veremos, há diversas concepções distintas do divino. Há, por exemplo,
a ideia panteísta de Deus, bem como a ideia teísta de Deus. A filosofia da

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Introdução

religião procura distinguir entre estas diferentes ideias de Deus e trabalhá­


‑las detalhadamente. Uma filosofia da religião abrangente teria de analisar
cada uma destas diferentes ideias de Deus. Neste livro introdutório, contudo,
teremos de limitar a nossa análise detalhada ao principal conceito de Deus
que emergiu na civilização ocidental, a ideia teísta de Deus.
A filosofia da religião examina criticamente as crenças religiosas fun‑
damentais: a crença de que Deus existe, de que há vida depois da morte, de
que Deus sabe, mesmo antes de nascermos, o que iremos fazer, de que a
existência do mal é de algum modo consistente com o amor de Deus pelas
suas criaturas. Examinar criticamente uma crença religiosa envolve explicar
a crença e examinar as razões que têm sido apresentadas a favor e contra a
crença, tendo em vista determinar se há ou não qualquer justificação racio‑
nal para afirmar que essa crença é verdadeira ou falsa. O nosso objectivo ao
levar a cabo este exame não é persuadir ou convencer mas fornecer ao leitor
um contacto com o tipo de razões que têm sido apresentadas a favor e con‑
tra determinadas crenças religiosas fundamentais. Ao examinar as crenças
religiosas seria desonesto afirmar que as minhas próprias perspectivas acerca
destas crenças, e das razões oferecidas a favor ou contra elas, não são visíveis
no texto. Certamente que são. Mas tentei apresentar de um modo convin‑
cente e cogente as perspectivas de que discordo, como eventualmente fariam
os seus mais robustos defensores. E a minha esperança é a de que o leitor
trate os meus próprios juízos do mesmo modo que procurei tratar os juízos
de outros: não como ideias para aceitar como verdadeiras, mas como ideias
dignas de reflexão séria e exame cuidadoso. Ler com este espírito o livro é
entregar­‑se à própria disciplina para a qual foi concebido como introdução;
é filosofar acerca das questões fundamentais na religião.
Procurei abranger boa parte dos tópicos que os filósofos da religião têm
geralmente em conta. Nenhum livro introdutório, contudo, pode esperar
ser exaustivo. Tópicos como a natureza da religião, o conceito de oração, a
ética religiosa, são importantes, mas as limitações impostas a um livro intro‑
dutório impediram a sua inclusão. Não obstante, abrangeu­‑se uma grande

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Introdução à Filosofia da Religião

quantidade de tópicos centrais da disciplina, tão meticulosamente quanto é


razoável conseguir­‑se num primeiro curso de filosofia da religião.
O livro divide­‑se em quatro partes. Na primeira (Capítulo 1), explica­‑se
a concepção particular de divindade que tem predominado na civilização
ocidental — a ideia teísta de deus — e distingue­‑se entre esta e outras noções
do divino. A segunda parte pondera as principais razões que se têm apre‑
sentado para defender a crença de que o deus teísta existe. Entre o Capítulo
2 e o 4, discutem­‑se os três principais argumentos a favor da existência de
Deus, argumentos que apelam a factos supostamente acessíveis a qualquer
pessoa racional, religiosa ou não. O Capítulo 5 considera a experiência reli‑
giosa e mística enquanto fonte de justificação da crença teísta. E no Capítulo
6 examina­‑se o papel que a fé pode desempenhar na formação e na justifi‑
cação da crença religiosa. Consideramos também a importante questão de
a crença em Deus poder ou não ser inteiramente racional independente‑
mente de haver quaisquer indícios a seu favor. Na terceira parte examina­‑se
o problema do mal, que alguns filósofos supõem dar uma base racional para
o ateísmo, a crença de que o deus teísta não existe. Na quarta parte, entre
o Capítulo 8 e o 11, considera­‑se uma série de tópicos centrais na religião
teísta. Nestes tópicos incluem­‑se os milagres, a questão da vida depois da
morte, as dificuldades de harmonizar a ideia de presciência divina com a
crença na liberdade humana e os problemas colocados pela existência de
diversas religiões.

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Capítulo 1 
A ideia de Deus 

Em 1963 foi publicado um pequeno livro da autoria de um bispo anglicano, livro que 
causou  um  tumulto  religioso  no  Reino  Unido  e  nos  Estados  Unidos.1  Em  Honest  to 
God, o Bispo John Robinson atreveu‐se a sugerir que a ideia de deus que predominou 
durante séculos na civilização ocidental é irrelevante para as necessidades dos homens 
e mulheres de hoje em dia. A sobrevivência da religião no Ocidente, argumenta Robin‐
son,  exige que  se  rejeite  esta imagem  tradicional  de  deus,  a  favor de  uma  concepção 
profundamente  diferente,  concepção  cuja  emergência  Robinson  afirmou  ter  visto  na 
obra de pensadores religiosos do século XX, como Paul Tillich e Rudolf Bultmann. 
Robinson  previu  correctamente  a  reacção  que  a  sua  tese  ia  provocar,  sublinhando 
que  encontraria  inevitavelmente  resistência,  como  traição  daquilo  que  se  afirma  na 
Bíblia. Não só as pessoas ligadas à igreja, na sua vasta maioria, se oporiam à perspecti‐
va  de  Robinson,  como  a  afirmação  de  que  a  ideia  de  deus  já  morrera  ou  que  pelo 
menos  estava  moribunda  provocaria  ressentimento  nos  que  tinham  rejeitado  a  sua 
crença em deus. Na correspondência com o director do londrino Times, em artigos de 
revistas  académicas  e  nos  púlpitos  de  dois  continentes,  Robinson  foi  atacado  como 
ateu disfarçado de bispo e só raramente defendido como profeta de uma nova revolu‐
ção que ocorria no interior da tradição religiosa judaico‐cristã. Um olhar sobre algu‐
mas das ideias de Robinson ajudar‐nos‐á a distinguir diferentes ideias de deus e a con‐
centrarmo‐nos naquela que será o centro das nossas atenções ao longo da maior parte 
deste livro. 
Antes de surgir a crença de que o mundo no seu todo está sob o controlo soberano 
de um único ser, as pessoas acreditavam amiúde numa pluralidade de seres divinos ou 
deuses, posição religiosa a que se chama politeísmo. Na antiguidade grega e romana, 
por exemplo, os diversos deuses controlavam diferentes aspectos da vida, de modo que 
se venerava, naturalmente, vários deuses — um deus da guerra, uma deusa do amor, e 
por  aí  em  diante.  Às  vezes,  porém,  podia‐se  acreditar  que  há  diversos  deuses  mas 
venerar  apenas  um,  o  deus  da  própria  tribo,  posição  religiosa  a  que  se  chama  heno‐
teísmo.  No  Antigo  Testamento,  por  exemplo,  há  referências  frequentes  a  deuses  de 
outras tribos, embora os hebreus se mantenham fiéis ao seu próprio deus, Jeová. Len‐
tamente, porém, surgiu a crença de que o nosso próprio deus é o criador do Céu e da 
Terra, o deus que não é apenas o da nossa própria tribo mas de todos, perspectiva reli‐
giosa a que se chama monoteísmo. 
Segundo Robinson, o monoteísmo, a crença num só ser divino, sofreu uma mudan‐
ça  profunda,  mudança  que  Robinson  descreve  com  a  ajuda  das  expressões  «lá  em 

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cima» e «lá fora». O Deus «lá em cima» é um ser localizado no espaço acima de nós, 
presumivelmente a uma determinada distância da Terra, numa região conhecida como 
«os Céus». Esta ideia de Deus está associada a uma certa imagem primitiva em que o 
universo consta de três regiões, os Céus em cima, a Terra em baixo e a região das tre‐
vas  sob  a  Terra.  Segundo  esta  imagem,  a  Terra  é  frequentemente  invadida  por  seres 
dos outros dois domínios — Deus e os seus anjos do Céu, Satanás e os seus demónios 
da região subterrânea — que combatem entre si pelo controlo das almas e do destino 
dos que habitam o domínio terreno. Esta ideia de Deus como ser poderoso que está «lá 
em  cima»,  numa  determinada  região  do  espaço,  foi  lentamente  abandonada,  afirma 
Robinson. Agora explicamos às crianças que os Céus não estão de facto sobre as suas 
cabeças, que Deus não está literalmente algures lá em cima, no Céu. Em lugar de Deus 
como  «o  velhote  no  Céu»,  surgiu  uma  ideia  de  Deus  muito  mais  sofisticada,  a  que 
Robinson se refere como a ideia de Deus «lá fora». 
Mudar do Deus «lá em cima» para o Deus «lá fora» é mudar de uma concepção de 
Deus como um ser localizado no espaço a uma certa distância da Terra para uma con‐
cepção  de  Deus  como  algo  distinto  e  independente  do  mundo.  Segundo  esta  ideia, 
Deus não está em qualquer local ou região do espaço físico. É um ser puramente espi‐
ritual,  um  ser  pessoal,  perfeitamente  bom,  omnipotente,  omnisciente,  que  criou  o 
mundo, mas não faz parte dele. É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, jul‐
ga‐o, orienta‐o para o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi len‐
tamente  desenvolvida  ao  longo  dos  séculos  por  grandes  teólogos  ocidentais  como 
Agostinho, Boécio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem sido a 
ideia dominante de Deus na civilização ocidental. Se rotulamos o Deus «lá em cima» 
como «o velhote no Céu», podemos rotular o Deus «lá fora» como «o Deus dos teólo‐
gos tradicionais». E é o Deus dos teólogos tradicionais que Robinson considera ter‐se 
tornado irrelevante para as necessidades das pessoas de hoje em dia. Quer Robinson 
tenha ou não razão — e é muito duvidoso que tenha — é inegavelmente verdade que 
quando  nós,  que  herdámos  maioritariamente  a  cultura  da  civilização  ocidental,  pen‐
samos em Deus, o ser em que pensamos é em muitos aspectos importantes parecido 
com o Deus dos teólogos tradicionais. Será útil, portanto, ao clarificar as nossas pró‐
prias ideias acerca de Deus, explorar com maior detalhe a concepção de Deus que sur‐
giu no pensamento dos grandes teólogos. 

Os atributos de Deus 
Vimos  que,  segundo  muitos  teólogos  importantes,  se  concebe  Deus  como  um  ser 
perfeitamente  bom,  distinto  e  independente  do  mundo,  omnipotente,  omnisciente  e 
criador do universo. Duas outras características que os grandes teólogos atribuíram a 
Deus são a auto‐existência e a eternidade. A ideia de Deus que predomina na civiliza‐
ção ocidental é portanto a ideia de um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas 
distinto  e  independente  dele,  todo‐poderoso  (omnipotente),  omnisciente,  eterno  e 
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auto‐existente.  Claro  que  esta  lista  dos  elementos  mais  importantes  dessa  ideia  de 
Deus só é esclarecedora para nós na medida em que compreendamos os próprios ele‐
mentos.  Como  é  ser  omnipotente?  Como  compreender  a  ideia  de  auto‐existência? 
Como  se  concebe  a  distinção  e  independência  de  Deus  perante  o  mundo?  O  que  se 
quer dizer ao afirmar que Deus, e só Deus, é eterno? Só na medida em que pudermos 
responder a estas e a outras perguntas semelhantes compreenderemos a ideia central 
de Deus que surgiu na civilização ocidental. Antes de passarmos ao estudo da questão 
da  existência  de  Deus,  portanto,  é  importante  enriquecer  a  nossa  apreensão  desta 
mesma ideia, procurando responder a algumas daquelas questões fundamentais. 

Omnipotência e perfeita bondade 

Na sua grande obra, Summa Theologica, S. Tomás de Aquino, que viveu no século 
XIII, procura explicar o que é para Deus ser omnipotente. Depois de indicar que, para 
Deus, ser omnipotente é ser capaz de fazer tudo o que é possível, Tomás explica cui‐
dadosamente que há dois tipos de possibilidade, a possibilidade relativa e a possibilida‐
de  absoluta,  e  investiga  a  que  tipo  de  possibilidade  se  alude  quando  se  afirma  que  a 
omnipotência de Deus é a capacidade de fazer tudo o que é possível. Algo é uma pos‐
sibilidade relativa quando um ser ou mais pode fazê‐lo. Voar por meios naturais, por 
exemplo, é possível relativamente às aves mas não relativamente a meros seres huma‐
nos. Algo é uma possibilidade absoluta, porém, se não é uma contradição nos termos. 
Derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez é algo muito difícil de fazer, mas 
não é uma  contradição nos termos; na verdade, isso já foi ocasionalmente feito. Mas 
derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez depois de este nos ter colocado em 
xeque‐mate  não  é  apenas  algo  muito  difícil  de  fazer:  não  se  pode  fazer  sequer,  visto 
que é uma contradição nos termos. Tornar‐se um solteiro casado, fazer a mesma coisa 
ser ao mesmo tempo redonda e quadrada, derrotar alguém no xadrez depois de ele nos 
ter colocado em xeque‐mate são coisas que não são possíveis em sentido absoluto; são 
actividades que, implícita ou explicitamente, envolvem uma contradição nos termos. 
Tendo explicado os dois tipos diferentes de possibilidade, Tomás indica que tem de 
ser  à  possibilidade  absoluta  que  se  alude  quando  se  explica  a  omnipotência  de  Deus 
como a capacidade de fazer tudo o que é possível. Porque se nos referíssemos à possi‐
bilidade relativa, a nossa explicação não seria mais do que afirmar que «Deus é omni‐
potente» significa que Deus pode fazer tudo o que está em seu poder. E embora seja 
seguramente  verdade  que  Deus  pode  fazer  tudo  o  que  está  em  seu  poder,  isso  nada 
explica.  «Deus  é  omnipotente»,  portanto,  significa  que  Deus  pode  fazer  tudo  o  que 
não  envolve  contradição  nos  termos.  Quererá  isto  dizer  que  há  coisas  que  Deus  não 
pode  fazer?  Num  certo  sentido,  significa  precisamente  isso.  Deus  não  pode  fazer  a 
mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada e não pode derrotar‐me num 
jogo  de  xadrez  depois  de  eu  o  ter  colocado  em  xeque‐mate.  Claro  que  Deus  podia 
sempre colocar‐me em xeque‐mate antes de eu conseguir fazer‐lhe o mesmo. Mas se 

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Deus  —  por  uma  razão  qualquer  —  pudesse  fazer‐me  entrar  num  jogo  de  xadrez  e 
deixar que eu o colocasse em xeque‐mate, então Deus não poderia ganhar aquele jogo 
de  xadrez.  Poderia  aniquilar‐me  e  ao  tabuleiro  de  xadrez,  mas  não  poderia  ganhar 
aquele  jogo.  Portanto,  há  muitas  coisas  que  Deus,  apesar  da  sua  omnipotência,  não 
pode  fazer.  Seria  um  erro,  porém,  concluir  a  partir  daqui  que  o  poder  de  Deus  é  de 
algum modo limitado, que há coisas que Deus não pode fazer mas que poderia fazer se 
o  seu  poder  fosse  maior.  Pois  o  poder,  como  observa  Tomás,  abrange  apenas  aquilo 
que é possível. E nada há que seja possível fazer mas que Deus não possa fazer por fal‐
ta  de  poder.  Assim,  conclui  Tomás:  «Tudo  o  que  implique  contradição  não  está  no 
âmbito da omnipotência divina, porque isso não pode ter o aspecto da possibilidade. 
Pelo que é mais apropriado afirmar que não se pode fazer tais coisas, do que afirmar 
que Deus não as pode fazer.»2 
Mas  não  haverá  coisas  que,  ao  contrário  de  fazer  um  quadrado  redondo,  não  são 
contraditórias e no entanto Deus não as possa fazer? Cometer suicídio ou praticar uma 
má  acção  não  envolvem  contradição.  Muitos  teólogos,  contudo,  negaram  que  Deus 
possa  autodestruir‐se  ou  praticar  o  mal.  Porquanto  essas  acções  são  inconsistentes 
com  a  natureza  de  Deus  —  com  a  sua  eternidade  e  perfeita  bondade.  Poder‐se‐ia 
objectar que as perfeições de Deus implicam apenas que este não se autodestruirá nem 
praticará o mal, e não que não o possa fazer — Deus tem o poder de praticar o mal, 
mas,  como  é  perfeitamente  bom,  nunca  exercerá  esse  poder.  O  que  escapa  a  esta 
objecção,  contudo,  é  que  atribuir  a  Deus  o  poder  de  praticar  o  mal  é  atribuir‐lhe  o 
poder de deixar de ter um atributo (a perfeita bondade) que faz parte da sua própria 
essência  ou  natureza.  Ser  perfeitamente  bom  faz  tanto  parte  da  natureza  de  Deus 
como ter três ângulos faz parte da natureza de um triângulo. Deus não poderia deixar 
de ser perfeitamente bom tal como um triângulo não poderia deixar de ter três ângu‐
los.  Perante  esta  dificuldade,  talvez  seja  necessário  corrigir  a  explicação  de  Tomás 
acerca do que significa Deus ser omnipotente. Em vez da mera afirmação de que isto 
significa que Deus tem o poder  de fazer tudo o que seja uma possibilidade absoluta, 
diremos que significa que Deus pode fazer tudo o que é uma possibilidade absoluta e 
que  não  seja  inconsistente  com  qualquer  um  dos  seus  atributos  fundamentais.  Como 
praticar o mal é inconsistente com a perfeita bondade e como a perfeita bondade é um 
atributo  fundamental  de  Deus,  não  haverá  conflito  entre  o  facto  de  Deus  não  poder 
fazer o mal e o facto de ser omnipotente. 
A  ideia  de  que  a  omnipotência  de  Deus  não  inclui  o  poder  de  fazer  algo  que  seja 
inconsistente  com  qualquer  um  dos  seus  atributos  fundamentais  pode  ajudar‐nos  a 
resolver aquilo a que se tem chamado o «paradoxo da pedra». Segundo este paradoxo, 
ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar, ou não 
tem  esse  poder.  Se  tem  o  poder  de  criar  tal  pedra  então  há  algo  que  Deus  não  pode 
fazer: levantar a pedra que criou. Por outro lado, se não pode criar tal pedra, então há 
também algo que não pode fazer: criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar. 

14 
 
Em qualquer dos casos há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é omnipoten‐
te. 
A solução deste quebra‐cabeças é ver que criar uma pedra tão pesada que Deus não 
a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos atributos essenciais de Deus — 
o atributo da omnipotência. Porquanto se existe uma pedra tão pesada que Deus não 
tem o poder de a levantar, então Deus não é omnipotente. Logo, se Deus tem o poder 
de criar tal pedra, tem o poder de fazer com que lhe falte um atributo (omnipotência) 
que lhe é essencial. Então, a solução adequada do quebra‐cabeças é afirmar que Deus 
não pode criar tal pedra, do mesmo modo que não pode praticar uma má acção. Isto 
não  significa,  evidentemente,  que  haja  uma  pedra  na  série  infinita  das  pedras  que 
pesam mil quilogramas, dois mil quilogramas, três mil quilogramas, quatro mil quilo‐
gramas, e por aí em diante, que Deus não pode criar. No caso de uma má acção, Deus 
não pode praticar essa acção porque a sua perfeita bondade lhe é essencial. No caso de 
uma pedra tão pesada que não a possa levantar, Deus não pode criar tal pedra porque 
a sua omnipotência lhe é essencial. 
Vimos que não se pode compreender a omnipotência de Deus como algo que inclui 
o  «poder»  de  causar  estados  de  coisas  logicamente  impossíveis  ou  de  realizar  acções 
inconsistentes com seus os atributos essenciais. E quanto a mudar o passado? Eviden‐
temente, Deus podia ter impedido que Barack Obama se tornasse presidente dos Esta‐
dos Unidos. Mas poderá Deus fazê‐lo agora? Um estado de coisas em que Obama nun‐
ca  tenha  sido  presidente  não  é  uma  impossibilidade  lógica;  tão‐pouco  parece  haver 
inconsistência  entre  causar  esse  estado  de  coisas  e  a  bondade  de  Deus  ou  qualquer 
outro dos seus atributos essenciais. Mas parece que não está agora ao alcance de qual‐
quer ser, mesmo um ser omnipotente, fazer que Obama nunca tenha sido presidente. 
Assim, embora tenhamos aperfeiçoado a nossa compreensão da noção de omnipotên‐
cia e visto que a omnipotência de Deus não é o poder de causar seja o que for em abso‐
luto, não podemos afirmar ter dado uma explicação completa da ideia de que Deus é 
omnipotente. Pois, como acabámos de ver, há acontecimentos do passado que não se 
pode  mudar  agora,  mesmo  que  se  seja  omnipotente.  E pode  haver  outros  estados  de 
coisas que um ser omnipotente e divino não possa causar. 
A  ideia  de  que  Deus  tem  de  ser  perfeitamente  bom  liga‐se  à  perspectiva  de  que 
Deus é um ser digno de gratidão, louvor e veneração incondicionais. Pois nenhum ser 
é  digno  de  louvor  e  veneração  incondicionais  a  menos  que  seja  perfeitamente  bom. 
Assim, Deus não só é um ser bom como a sua bondade é insuperável. Além disso, Deus 
não é perfeitamente bom por acaso; esse modo de ser é a sua natureza. Logicamente, 
Deus não poderia deixar de ser perfeitamente bom. Esta é a razão de termos observado 
há pouco que Deus não tem o poder de praticar o mal. Porquanto atribuir tal poder a 
Deus é atribuir‐lhe o poder de deixar de ser aquilo que necessariamente é. 
Afirmamos que Deus é perfeitamente bom por definição? Sim. Mas vemos também 
que a definição de Deus como perfeitamente bom está ligada à exigência religiosa de 
que  Deus  seja  um  objecto  de  louvor  e  veneração  incondicionais,  se  é  que  não  está 
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mesmo fundada nessa exigência. E esclarecemos também outra coisa. Porquanto afir‐
mámos também que o ser que é Deus não pode deixar de ser perfeitamente bom. Um 
solteiro  por  definição  não  é  casado.  Mas  uma  pessoa  solteira  pode  deixar  de  não  ser 
casada. Claro que quando isto acontece (o nosso solteiro casa‐se), a pessoa deixa de ser 
solteira. Ao contrário do nosso solteiro, porém, o ser que é Deus não pode abdicar de 
ser  Deus.  Pelo  que  não  afirmamos  simplesmente  que  Deus  é  por  definição  perfeita‐
mente bom. Afirmamos também que um ser que seja Deus nunca pode ser outra coisa 
senão Deus. O solteiro que vive na porta ao lado pode deixar de ser solteiro. Mas o ser 
que é Deus não pode deixar de ser Deus. Podemos formular isto do seguinte modo: ser 
solteiro  não  faz  parte  da  natureza  ou  essência  de  um  ser  que  é  solteiro.  Pelo  que, 
embora  por  definição  ninguém  possa  ser  solteiro  estando  casado,  essa  pessoa  pode 
deixar de não ser casada porque pode deixar de ser solteira. Mas ser Deus faz parte da 
natureza ou essência do ser que é Deus. Então, uma vez que o ser que é Deus não pode 
deixar de ser Deus, esse ser não pode deixar de ser perfeitamente bom. 
Mas o que é ser perfeitamente bom? Na medida em que Deus é insuperavelmente 
bom, tem todas as características que a bondade insuperável implica. Nestas se inclui a 
absoluta bondade moral. A bondade moral é uma parte vital, mas não o todo, da bon‐
dade, pois há também o bem amoral. Assim, distinguimos entre duas afirmações que 
se pode fazer a propósito da morte de alguém: «Empenhou‐se em levar uma vida boa» 
e «Teve uma vida boa». A primeira afirmação diz respeito ao bem moral, a última diz 
sobretudo respeito ao bem amoral, como a felicidade, a boa sorte, etc. A perfeita bon‐
dade de Deus tanto envolve o bem moral quanto o amoral. De interesse crucial aqui é 
o  bem  moral  de  Deus  (perfeita  justiça,  benevolência,  etc.),  visto  que  durante  muito 
tempo se pensou que a bondade moral de Deus é de algum modo a fonte ou o padrão 
da  moralidade  para  a  vida  humana.  Além  disso,  em  virtude  da  sua  perfeição  moral 
essencial, pode‐se fazer alguns juízos acerca do mundo que Deus criou. Podemos estar 
certos, por exemplo, de que Deus não criaria um mundo moralmente mau. Pode até 
ser verdade que em virtude da sua perfeição moral Deus seja levado a criar o melhor 
mundo, em termos morais, de que é capaz. Estes tópicos são importantes. Discutire‐
mos  mais  tarde  o  segundo  (que  género  de  mundo  Deus  criaria),  quando  considerar‐
mos o problema do mal. Será útil ponderar aqui brevemente a conexão entre a perfei‐
ção moral de Deus e a moralidade na vida humana. 
Tem‐se defendido que Deus é a fonte ou o cânone dos nossos deveres morais, tanto 
dos negativos (por exemplo, o dever de não tirar vidas humanas inocentes) como dos 
positivos (por exemplo, o dever de ajudar quem precisa). Geralmente, as pessoas reli‐
giosas acreditam que estes deveres se baseiam de algum modo em mandamentos divi‐
nos. Um crente no judaísmo pode ver os dez mandamentos como regras morais fun‐
damentais que determinam pelo menos grande parte daquilo que estamos moralmen‐
te  obrigados  a  fazer  (deveres  positivos)  ou  a  abstermo‐nos  de  fazer  (deveres  negati‐
vos). É claro que, dada a sua perfeição moral, aquilo que Deus nos ordena tem de ser o 
que é moralmente correcto fazer‐se. Mas serão estas coisas moralmente correctas por‐
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que Deus as ordena? Isto é, será que o bem moral destas coisas consiste apenas no fac‐
to de Deus as ter ordenado? Ou será que Deus ordena que se faça estas coisas porque 
são correctas? Se formos pela segunda opção, que Deus ordena estas coisas porque vê 
que são moralmente correctas, parece que estamos a sugerir que a moralidade existe 
independentemente  da  vontade  ou  dos  mandamentos  de  Deus.  Mas  se  formos  pela 
primeira opção, que é o facto de Deus as querer ou ordenar que torna essas coisas cor‐
rectas,  parece  que  estamos  a  sugerir  que  não  haveria  bem  nem  mal  se  não  houvesse 
qualquer ser divino para decretar tais mandamentos. Embora nenhuma das respostas 
seja  improblemática,  a  que  predomina  no  pensamento  religioso  acerca  de  Deus  e  da 
moralidade é que aquilo que Deus ordena é moralmente bom independentemente dos 
seus  mandamentos.  O  facto  de  Deus  nos  ordenar  certas  acções  não  as  torna  moral‐
mente rectas; estas são moralmente rectas independentemente das suas ordens e Deus 
ordena‐as  porque  vê  que  são  moralmente  rectas.  Assim,  em  que  sentido  depende  a 
nossa vida moral de Deus? Ainda que a moralidade em si não dependa necessariamen‐
te  de  Deus,  talvez  o  nosso  conhecimento  da  moralidade  dependa  dos  mandamentos 
divinos  (ou  pelo  menos  seja  auxiliado  por  eles).  Talvez  os  ensinamentos  da  religião 
levem  os  seres  humanos  a  ver  que  certas  acções  são  moralmente  rectas  e que  outras 
são moralmente erradas. Além disso, pode ser que a crença em Deus ajude a prática da 
moralidade. Pois embora cumprir o dever por respeito ao próprio dever seja uma parte 
importante da vida moral, talvez seja exagerado esperar que os seres humanos comuns 
sigam inflexivelmente a vida do dever, mesmo sem razões para associar a moralidade 
ao  bem‐estar  e  à  felicidade.  A  crença  em  Deus  pode  ajudar  a  vida  moral  dando  uma 
razão  para  pensar  que  a  relação  entre  esforçar‐se  por  levar  uma  vida  boa  e  ter  uma 
vida boa não é meramente acidental. Ainda assim, o que faremos com a dificuldade de 
que certas coisas são moralmente rectas independentemente do facto de Deus no‐las 
ordenar? Considere‐se o facto de Deus acreditar que 2 + 2 = 4. Será 2 + 2 = 4 verdade 
porque Deus acredita que é? Ou será que Deus acredita que 2 + 2 = 4 por ser verdade 
que 2 + 2 = 4? Se vamos pela última, como parece que devemos fazer, estamos a suge‐
rir  que  certas  afirmações  matemáticas  são  verdadeiras  independentemente  de  Deus 
acreditar nelas. Portanto, parece que estamos já comprometidos com a perspectiva de 
que o modo como algumas coisas são não tem em última instância a ver com a vonta‐
de ou com os mandamentos de Deus. Talvez as verdades fundamentais da moralidade 
tenham o mesmo tipo de estatuto que as verdades fundamentais da matemática. 

Auto‐existência 

A ideia de que Deus é um ser auto‐existente foi desenvolvida e explicada por Santo 
Anselmo  no  século  XI.  Usando  diversos  argumentos,  Anselmo  persuadira‐se  de  que 
entre os seres que existem há um que é perfeitamente grandioso e bom — nada que 
existe  ou  alguma  vez  existiu  se  lhe  compara.  De  tudo  o  que  existe,  porém,  Anselmo 
estava igualmente persuadido de que podemos perguntar o que justifica ou explica o 

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facto de existir. Se nos deparamos com uma mesa, por exemplo, podemos perguntar o 
que  justifica  o  facto  de  a  mesa  existir.  E  podemos  responder  à  nossa  pergunta,  pelo 
menos em parte, verificando que um carpinteiro pegou numa porção de madeira e fez 
a mesa. Poderemos, de igual modo, quanto a uma árvore, montanha ou lago, pergun‐
tar o que explica o facto de existirem. Tentando descobrir mais acerca do ser perfeita‐
mente  grandioso  e  bom,  Anselmo  faz  a  mesma  pergunta  a  respeito  deste  ser.  O  que 
justifica o facto de o ser perfeitamente grandioso e bom existir? 
Antes de tentar responder a esta questão, Anselmo observa que há apenas três casos 
a considerar: ou a existência de uma coisa se explica por outra coisa, ou se explica por 
nada, ou por si mesma. É claro que a existência da mesa se explica por outra coisa (o 
carpinteiro). O mesmo acontece com a existência de uma árvore, montanha ou lago. 
Cada  uma  destas  coisas  existe  por  causa  de  outras  coisas.  Com  efeito,  tudo  o  que  é 
familiar nas nossas vidas parece explicar‐se por outras coisas. Mas mesmo quando não 
sabemos o que explica o facto de certa coisa existir, se é que algo o explica, é óbvio que 
a resposta tem de ser uma das três que Anselmo propõe. O facto de certa coisa existir 
explica‐se  ou  por  referência  a  outra  coisa,  ou  por  nada,  ou  pela  própria  coisa.  Sim‐
plesmente não há mais hipóteses a considerar. O que dizer então da existência de um 
ser perfeitamente grandioso e bom? Será que a sua existência se deve a outra coisa, a 
nada,  ou  a  si  própria?  Ao  contrário  da  mesa,  da  árvore,  da  montanha,  ou  do  lago,  a 
existência  do  ser  perfeitamente  grandioso  e  bom  não  pode  dever‐se  a  outra  coisa, 
argumenta  Anselmo,  pois  nesse  caso  a  sua  existência  dependeria  dessoutra  coisa  e, 
consequentemente, não seria o ser supremo. A existência de qualquer coisa superior a 
todas  as  outras  coisas  não  pode  depender  (nem  ter  dependido)  de  qualquer  delas.  A 
existência do ser supremo, portanto, tem de se explicar ou por nada ou por si própria. 
Se a existência de algo se explica por nada então esse algo existe sem que haja qual‐
quer explicação para o facto de existir em vez de não existir. Poderia haver algo assim 
—  algo  cuja  existência  é  simplesmente  um  facto  bruto  ininteligível,  sem  qualquer 
explicação?  A  resposta  de  Anselmo,  esteja  ou  não  correcta,  é  perfeitamente  clara:  «É 
em  última  análise  inconcebível  que  aquilo  que  é  alguma  coisa  exista  por  meio  de 
nada».3 Infelizmente, Anselmo não explica por que razão não podemos conceber algo 
cuja existência seja um facto bruto ininteligível. Presumivelmente, achou que isso era 
tão  óbvio  que  não  precisava  de  explicação.  Em  todo  o  caso,  temos  de  observar  com 
cuidado o princípio que Anselmo exprime aqui, pois figurará mais tarde num dos prin‐
cipais argumentos a favor da existência de Deus. A convicção fundamental de Anselmo 
é que para tudo o que existe tem de haver uma explicação da sua existência — tem de 
haver algo que explique o facto de a coisa existir em vez de inexistir, e esse algo tem de 
ser ou outra coisa ou a própria coisa. Negar isto é ver a existência de algo como irra‐
cional, absurda, completamente ininteligível. E Anselmo pensa que o ser supremo não 
pode ser assim, tal como nem uma árvore ou uma montanha o podem. A existência do 
ser  supremo,  portanto,  não  pode  explicar‐se  por  nada.  Resta  então  a  terceira  via. 
Anselmo conclui que a existência do ser supremo se deve a si própria. 
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Claro que uma coisa é concluir que a explicação da existência do ser supremo tem 
de se encontrar na natureza desse mesmo ser, e outra coisa completamente diferente é 
compreender  o  que  há  na  natureza  do  ser  supremo  que  justifica  a  sua  existência. 
Anselmo não afirma compreender o que há na natureza divina que justifica a existên‐
cia de Deus. Nem compreende exactamente como a natureza de um ser poderá expli‐
car a existência desse ser. Tudo aquilo de que afirma estar certo é que a existência do 
ser  supremo  se  deve  ao  próprio  ser  supremo.  Não  quer  com  isto  dizer,  obviamente, 
que  o  ser  supremo  causou  a  sua  própria  existência.  Pois  nesse  caso  teria  de  existir 
antes  de  ter  existido  de  modo  a  causar  a  sua  própria  existência  e  isto  é  claramente 
impossível. Além disso, como vimos, a eternidade é uma das características de Deus, 
pelo que é evidente que Deus não começou a existir num determinado momento. 
Contudo, Anselmo apresenta uma analogia, procurando ajudar‐nos a compreender 
esta ideia bastante difícil. Usando o nosso próprio exemplo, pode‐se exprimir assim a 
ideia de Anselmo: suponha‐se que numa noite fria encontramos uma enorme fogueira. 
Reparamos  que  uma  pedra  perto  da  fogueira  está  quente.  Se  perguntarmos  qual  a 
explicação deste facto acerca da pedra (o facto de estar quente), seria absurdo sugerir 
que a explicação tem de estar na própria pedra, que há algo na natureza da pedra que 
a faz estar quente. A fogueira e a proximidade entre a pedra e o fogo explicam o calor 
da pedra. Suponha‐se que reparamos então que também a fogueira está quente. O que 
explica  o  facto  de  a  fogueira  estar  quente?  Aqui  não  parece  absurdo  sugerir  que  a 
explicação  reside  na  própria  fogueira.  Pertence  à  natureza  de  uma  fogueira  o  estar 
quente, tal como pertence à natureza de um triângulo o ter três ângulos. Para evitar a 
confusão, temos de estar claramente cientes de que procuramos explicar o facto de a 
fogueira estar quente e não o facto de a fogueira existir. O facto de a fogueira existir 
não se deve à fogueira mas ao campista que ateou a fogueira. O facto de a fogueira que 
existe estar quente, contudo, é um facto acerca da fogueira que se explica pela nature‐
za da fogueira, pelo que é ser uma fogueira. Temos então aqui o exemplo de um facto 
acerca de algo (o calor da fogueira) que se explica não  por outra coisa qualquer mas 
pela natureza da própria coisa (a fogueira). Anselmo espera que se virmos uma vez que 
um  determinado  facto  acerca  de  algo  se  pode  explicar  não  por  outra  coisa  qualquer 
mas  pela  natureza  dessa  coisa,  a  ideia  de  auto‐existência  deixará  de  nos  parecer  tão 
estranha. Quer seja ou não assim, devia ser claro tanto o que se quer dizer com auto‐
existência como por que razão os teólogos tradicionais sentiram que se tratava de uma 
característica  fundamental  do  ser  divino.  Ser  um  auto‐existente  é  ter  na  sua  própria 
natureza  a  explicação  da  sua  existência.  Como  nada  pode  existir  cuja  existência  seja 
ininteligível, sem qualquer explicação (o princípio fundamental de Anselmo), e como 
o ser supremo não seria supremo se a sua existência se devesse a outra coisa, a conclu‐
são  inevitável  é  que  a  explicação  da  existência  de  Deus  (o  ser  supremo)  está  na  sua 
própria natureza. 

19 
 
Distinção, independência e eternidade 

Temos  vindo  a  explorar  as  noções  de  omnipotência,  perfeita  bondade  e  auto‐
existência, procurando aprofundar a nossa apreensão da ideia dominante de Deus que 
emergiu  na  civilização  ocidental.  Explorar‐se‐á  alguns  dos  outros  elementos  desta 
ideia de Deus em capítulos posteriores. Para completar esta exploração inicial, contu‐
do, será instrutivo considerar a noção de que Deus é distinto e independente do mundo 
e a concepção de Deus como um ser eterno. 
Vimos  a  emergência  do  monoteísmo  a  partir  do  henoteísmo  e  do  politeísmo.  O 
monoteísmo é a tradição dominante no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Há 
outra  perspectiva  de  Deus  que  persistiu  desde  a  antiguidade  e  continua  a  florescer, 
particularmente  nas  grandes  religiões  do  Oriente,  o  budismo  e  o  hinduísmo:  uma 
perspectiva  chamada  panteísmo.  Segundo  o  panteísmo,  tudo  o  que  existe  tem  uma 
natureza  interna  que  é  a  mesma  em  todas  as  coisas  e  essa  natureza  interna  é  Deus. 
Mais tarde, quando examinarmos as experiências de alguns dos grandes místicos, con‐
sideraremos o panteísmo de um modo mais completo. A ideia fundamental no mono‐
teísmo,  de  que  Deus  é  distinto  do  mundo,  constitui  uma  rejeição  do  panteísmo. 
Segundo a concepção judaico‐cristã e islâmica, Deus e o mundo são inteiramente dis‐
tintos: podia‐se aniquilar por completo tudo o que há no segundo sem que ocorresse a 
mais ligeira mudança na realidade do ser divino. Claro que há coisas no mundo que se 
assemelham mais a Deus do que outras. Como os humanos são seres vivos e racionais, 
assemelham‐se  mais  a  Deus  do  que  as  pedras  e  as  árvores.  Mas  ser  como  Deus  e  ser 
Deus são coisas bastante diferentes. O mundo não é o divino e a noção de que Deus é 
distinto do mundo visa salientar a diferença fundamental entre a realidade de Deus e a 
realidade do mundo. 
O facto de Deus ser independente do mundo significa que não é regido por quais‐
quer leis físicas, que rejam o funcionamento do universo. Mas significa muito mais do 
que isto. Significa também que Deus não está sujeito às leis do espaço e do tempo. De 
acordo  com  a  lei  do  espaço,  nenhum  objecto  pode  existir  ao  mesmo  tempo  em  dois 
lugares  diferentes.  Claro  que  uma  parte  de  um  objecto  pode  existir  numa  região  do 
espaço e outra parte do mesmo objecto (se for um objecto grande) pode existir numa 
região diferente do espaço. A lei não nega isto. Nega que um objecto no seu todo possa 
existir ao mesmo tempo em duas regiões diferentes do espaço. Se esta lei se aplicasse a 
Deus, ou Deus ocuparia qualquer região do espaço num determinado momento e não 
outras regiões do espaço nesse mesmo momento ou ocuparia todo o espaço ao mesmo 
tempo,  mas  com  apenas  uma  parte  sua  em  cada  região  do  espaço.  Nenhuma  destas 
alternativas era aceitável para os grandes teólogos do passado. Na primeira alternativa, 
embora Deus pudesse estar presente em Évora num determinado momento, não podia 
nesse  momento  estar  presente  em  Lisboa.  E  na  segunda  alternativa,  embora  Deus 
pudesse estar presente em Évora e Lisboa ao mesmo tempo, em Évora estaria uma par‐
te  de  Deus  e  em  Lisboa  estaria  uma  parte  diferente  de  Deus.  Na  ideia  tradicional  de 

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Deus, não só Deus tem de estar presente em todo o lado ao mesmo tempo como o seu 
todo  tem  de  estar  ao  mesmo  tempo  em  todos  os  lugares.  Deus  no  seu  todo  está  em 
Évora e em Lisboa ao mesmo tempo — na verdade, todo o tempo. Mas esta perspecti‐
va entra em conflito com a lei do espaço. Então a ideia de Deus que emergiu na civili‐
zação ocidental é a de um ser supremo independente das leis da natureza e que trans‐
cende mesmo a lei fundamental do espaço. 
A ideia de que Deus não está sujeito à lei do tempo relaciona‐se intimamente, como 
veremos, com um dos significados de eternidade. De acordo com a lei do espaço, nada 
pode existir inteiramente em duas regiões diferentes do espaço ao mesmo tempo. De 
acordo  com  a  lei  do  tempo,  nada  pode  existir  inteira  e  simultaneamente  em  dois 
momentos  diferentes.  Para  compreender  a  lei  do  tempo,  basta  considerar  o  exemplo 
do  homem  que  existiu  ontem,  existe  hoje  e  existirá  amanhã.  O  homem  no  seu  todo 
existe  em  cada  um  destes  momentos  diferentes.  Isto  é,  não  se  trata  de  apenas  o  seu 
braço, por exemplo, ter existido ontem, a sua cabeça existir hoje e as suas pernas exis‐
tirem  amanhã.  Mas  ainda  que  o  homem  no  seu  todo  exista  em  cada  um  destes  três 
momentos,  o  todo  da  sua  vida  temporal  não  existe  em cada  um  destes  momentos.  A 
parte temporal da sua vida que existiu ontem não existe hoje; quando muito o homem 
pode participar nela recordando‐a. E a parte temporal da sua vida que existirá amanhã 
não existe hoje; quando muito pode participar nela antecipando‐a. Embora o homem 
no seu todo exista em cada um destes três momentos, a sua vida inteira não existe em 
qualquer um deles. A sua vida, portanto, divide‐se em muitas partes temporais e em 
cada momento particular só uma destas partes temporais lhe é presente. Assim, a vida 
de uma pessoa exemplifica a lei do tempo. Pois de acordo com essa lei as partes tem‐
porais individuais da vida de uma pessoa não podem estar presentes ao mesmo tempo. 
Por  razões  que  não  precisamos  de  desenvolver  aqui,  os  grandes  teólogos  medievais 
hesitavam  em  dividir  a  vida  de  Deus  em  partes  temporais  e,  portanto,  adoptaram  a 
perspectiva de que Deus transcende a lei do tempo tal como transcende a lei do espa‐
ço.  Ainda  que  seja  quase  ininteligível,  adoptaram  a  perspectiva,  como  Anselmo  a 
exprime, de que «a natureza suprema existe num lugar e num momento de tal manei‐
ra que não a impede de existir desse modo simultaneamente, como um todo, em luga‐
res e momentos diferentes».4 De acordo com esta ideia, toda a vida ingénita e intermi‐
nável  de  Deus  lhe  é  presente  em  cada  momento  do  tempo  e  Deus  no  seu  todo  está 
simultaneamente presente em cada região do espaço. 
Eterno  tem  dois  significados  distintos.  Num  sentido,  ser  eterno  é  ter  existência 
temporal  interminável,  sem  começo  nem  fim;  é  ter  duração  infinita  em  ambas  as 
direcções do tempo. Nada há neste significado de eterno que entre em conflito com a 
lei  do  tempo.  A  lei  do  tempo  implica  apenas  que  qualquer  coisa  que  seja  temporal‐
mente infinita terá uma infinidade de partes temporais compondo de tal modo a sua 
existência que em nenhum momento estará presente mais do que uma destas partes 
temporais;  as  outras  partes  temporais  estão  ou  no  seu  passado  ou  no  seu  futuro.  De 
acordo com o segundo significado de eterno, contudo, a vida de um ser eterno não se 
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divide em partes temporais, pois não está sujeito à lei do tempo. Assim, de acordo com 
este  significado  de  eterno,  um  ser  que  tivesse  duração  infinita  em  cada  direcção  do 
tempo e estivesse sujeito à lei do tempo não seria eterno. Como observou o estudioso 
romano Boécio (480–524 d.C.), 

  Tudo  o  que  está  sujeito  ao  tempo,  mesmo  aquilo  que  não  tem  começo  e  que  não 
terá fim numa vida coextensiva com a infinidade do tempo — e foi assim que Aristóteles 
concebeu o mundo —, é tal que não se pode correctamente considerar eterno. Porquan‐
to  não  abrange  nem  inclui  o  todo  da  vida  infinita  ao  mesmo  tempo,  dado  que  não 
abrange  o  futuro,  que  está  ainda  por  vir.  Logo,  só  o  que  abrange  e  possui  ao  mesmo 
tempo toda a plenitude da vida infinita, da qual nada de posterior nem de anterior está 
ausente, se pode com justeza chamar eterno.5 

Boécio, Anselmo, Tomás, e outros teólogos tradicionais interpretaram a eternidade 
de  Deus  no  segundo  dos  dois  sentidos  que  acabámos  de  distinguir.  Defenderam  que 
Deus está fora do tempo, que não está sujeito à sua lei fundamental. Outros teólogos, 
contudo,  adoptaram  a  perspectiva  de  que  Deus  é  eterno  no  primeiro  sentido  —  que 
tem  duração  infinita  em  ambas  as  direcções  temporais.  O  teólogo  inglês  do  século 
XVIII  Samuel  Clarke,  por  exemplo,  rejeitou  como  absurda  a  ideia  de  que  um  ser 
pudesse transcender o tempo e adoptou a perspectiva de que ser eterno é simplesmen‐
te ser perpétuo, existindo no tempo mas sem ter começo nem fim. Quando mais tarde 
estudarmos  o  problema  da  presciência  divina  e  da  liberdade  humana,  reconsiderare‐
mos estes dois sentidos de eternidade e observaremos as suas implicações para a dou‐
trina da presciência divina. De momento, contudo, basta reconhecer que a eternidade 
é  um  elemento  central  na  ideia  tradicional  de  Deus  e  que  foi  interpretada  de  duas 
maneiras distintas. 
Temos  vindo  a  explorar  algumas  características  fundamentais  que  constituem  a 
ideia  de  Deus,  que  até  agora  têm  sido  centrais  para  a  tradição  religiosa  ocidental. 
Segundo esta ideia, Deus é um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto 
e independente deste, omnipotente, omnisciente, eterno e auto‐existente. Ao explorar 
esta ideia de Deus, vimos também muitas outras concepções do divino associadas ao 
politeísmo, henoteísmo, monoteísmo e panteísmo. A ideia de Deus que será de impor‐
tância central para este livro, porém, foi elaborada pelos teólogos tradicionais ociden‐
tais.  É  a  ideia  central  de  Deus  das  três  grandes  religiões  da  civilização  ocidental: 
judaísmo, cristianismo e islamismo. Até aqui usámos a expressão de Robinson «o Deus 
lá  fora»  e  a  expressão  «o  Deus  dos  teólogos  tradicionais»  para  referir  esta  ideia  de 
Deus. Doravante, contudo, chamaremos a esta perspectiva acerca de Deus «ideia teísta 
de Deus». Ser teísta, portanto, é acreditar na existência de um ser perfeitamente bom, 
criador  do  mundo  mas  distinto  e  independente  deste,  omnipotente,  omnisciente, 
eterno (em qualquer dos nossos dois sentidos) e auto‐existente. Um ateísta é alguém 
que  acredita  que  o  Deus  teísta  não  existe,  ao  passo  que  um  agnóstico  é  alguém  que 

22 
 
ponderou  na  ideia  teísta  de  Deus  mas  que  não  acredita  na  existência  nem  na  inexis‐
tência do Deus teísta. 
Acabámos de usar os termos teísta, ateísta e agnóstico num sentido restrito ou cir‐
cunscrito.  No  sentido  mais  amplo,  um  teísta  é  alguém  que  acredita  na  existência  de 
um  ser  ou  seres  divinos,  mesmo  que  a  sua  ideia  do  divino  seja  bastante  diferente  da 
ideia de Deus que temos vindo a descrever. De igual modo, no sentido mais amplo do 
termo, um ateu é alguém que rejeita a crença em toda a forma de divindade, não ape‐
nas  no  Deus  dos  teólogos  tradicionais.  Para  evitar  a  confusão,  é  importante  ter  em 
mente tanto o sentido circunscrito destes termos como o mais amplo. No sentido mais 
circunscrito, o teólogo protestante Tillich é um ateísta, pois rejeitou a crença naquilo a 
que chamámos «Deus teísta». Mas no sentido mais amplo é um teísta, dado que acre‐
dita  numa  realidade  divina,  embora  diferente  do  Deus  teísta.  Na  maior  parte  deste 
livro  usarei  os  termos  teísmo,  ateísmo,  e  agnosticismo  no  sentido  mais  circunscrito. 
Assim, quando ponderarmos na questão dos fundamentos do teísmo, a nossa preocu‐
pação será saber se a existência do Deus teísta (o Deus dos teólogos tradicionais) tem 
uma base racional. E quando perguntarmos, por exemplo, se os factos acerca do mal 
no mundo sustentam a verdade do ateísmo, estaremos a perguntar se a existência do 
mal nos dá uma base racional para concluir que o Deus teísta não existe. 
Tendo clarificado a ideia do Deus teísta, podemos agora considerar algumas destas 
questões mais amplas. E começaremos com a questão de saber se se pode ou não justi‐
ficar racionalmente a crença na sua existência 

Revisão 
1. Defina brevemente os conceitos politeísmo, henoteísmo, e monoteísmo. 
2. Explique como pode Deus ser omnipotente e contudo não ter o poder de fazer o mal. 
3. O que se entende por um ser auto‐existente e que razões tem Anselmo para pensar que 
Deus é um ser auto‐existente? 
4. Formule a lei do espaço e a lei do tempo e indique a conexão entre a lei do tempo e o 
que se entende pela eternidade de Deus. 
5. Descreva a ideia teísta de Deus e o que se entende por teísmo, ateísmo, e agnosticismo. 

Estudo complementar 
1. Como definiria o termo «Deus»? Se a sua definição de Deus é diferente da ideia teísta 
de  Deus,  explique  as  diferenças  e  dê  razões  em  função  das  quais  a  sua  ideia  de  Deus 
possa ser melhor. 
2. Que razões  apresentaria para mostrar que Deus existe, tendo em conta o modo como 
definiu Deus? Que razões poderia alguém dar para rejeitar quer a sua definição de Deus 
quer a sua afirmação de que Deus (como o leitor o definiu) existe realmente? Como lhes 
responderia? 

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Notas 
1. John A. T. Robinson, Honest to God (Londres: SCM Press Lda., 1963). 
2. S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, Q 25, art. 3, in The Basic Writings of Saint 
Thomas Aquinas, ed. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945). 
3. Santo  Anselmo,  Monologium,  VI,  in  Saint  Anselm:  Basic  Writings,  trad.  Sidney  N. 
Deane (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1962). 
4. Santo Anselmo, Monologium, XXII, in Saint Anselm: Basic Writings. 
5. Boethius, The Consolation of Philosophy, prose VI, trad. Richard Green (Nova Iorque: 
The Bobbs‐Merrill Company, Inc., 1962). 

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Capítulo 2 
O argumento cosmológico 

O argumento cosmológico tradicional 
Desde  a  antiguidade  que  as  pessoas  dadas  à  reflexão  procuram  justificar  as  suas 
crenças religiosas. Talvez a crença mais fundamental que se procurou justificar seja a 
crença de que Deus existe. Em geral, a tentativa de justificar a crença na existência de 
Deus começou quer por factos acessíveis tanto a crentes quanto a descrentes, quer por 
factos  que  normalmente  só  são  acessíveis  aos  crentes,  como  a  experiência  directa  de 
Deus. Neste capítulo e nos dois seguintes, consideraremos algumas das principais ten‐
tativas  de  justificar  a  crença  em  Deus  apelando  a  factos  supostamente  acessíveis  a 
qualquer pessoa racional, religiosa ou não. Começando por tais factos, teólogos e filó‐
sofos  desenvolveram  argumentos  a  favor  da  existência  de  Deus,  argumentos  que, 
segundo eles, provam que Deus existe, sem margem para dúvida razoável. 
É comum dividir‐se os argumentos a favor da existência de Deus em argumentos a 
posteriori e argumentos a priori. Um argumento a posteriori depende de um princípio 
ou  premissa  que  só  se  pode  conhecer  através  da  nossa  experiência  do  mundo.  Um 
argumento a priori, por outro lado, assenta supostamente em princípios que se pode 
conhecer  independentemente  da  nossa  experiência  do  mundo,  reflectindo‐se  apenas 
neles  e  compreendendo‐os.  Dos  três  principais  argumentos  a  favor  da  existência  de 
Deus — o argumento cosmológico, o argumento do desígnio e o argumento ontológi‐
co — apenas o último é completamente a priori. No argumento cosmológico começa‐
se com factos simples acerca do mundo, como o facto de nele haver coisas cuja exis‐
tência é causada por outras coisas. No argumento do desígnio o ponto de partida é um 
facto um pouco mais complicado acerca do mundo, o facto de exibir ordem e teleolo‐
gia. No argumento ontológico, contudo, começa‐se simplesmente com um conceito de 
Deus.  Neste  capítulo  consideraremos  o  argumento  cosmológico;  nos  dois  capítulos 
seguintes examinaremos o argumento ontológico e o argumento do desígnio. 
Antes  de  formularmos  o  argumento  cosmológico  em  si,  vamos  ponderar  algumas 
questões bastante gerais acerca do mesmo. Historicamente, remonta aos escritos dos 
filósofos gregos, Platão e Aristóteles, mas o fundamental no progresso do argumento 
deu‐se nos séculos XIII e XVIII. No século XIII, S. Tomás de Aquino apresentou cinco 
argumentos  distintos  a  favor  da  existência  de  Deus,  dos  quais  os  primeiros  três  são 
versões do argumento cosmológico.1 No primeiro, Tomás começa pelo facto de haver 
coisas  no  mundo  que  sofrem  mudanças  e  conclui  argumentativamente  que  tem  de 
haver  uma  causa  última  da  mudança,  que  seja  ela  própria  imutável.  No  segundo, 

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começa pelo facto de haver coisas no mundo cuja existência é claramente causada por 
outras  coisas  e  conclui  argumentativamente  que  tem  de  haver  uma  causa  última  de 
existência, cuja existência seja incausada. No terceiro argumento, Tomás começa pelo 
facto de haver coisas no mundo que não têm sequer de existir, coisas que existem mas 
que facilmente imaginamos que poderiam não existir, concluindo argumentativamen‐
te que tem de haver um ser que tem de existir, que existe e que não poderia não exis‐
tir.  Poder‐se‐ia  agora  objectar  que  mesmo  que  os  argumentos  de  Tomás  provassem 
para  lá  de  qualquer  dúvida  a  existência  de  um  modificador  imutável,  de  uma  causa 
incausada e de um ser que não poderia não existir, esses argumentos não conseguem 
provar  a  existência  do  Deus  teísta.  Pois  o  Deus  teísta,  como  vimos,  é  perfeitamente 
bom,  omnipotente,  omnisciente  e  criador  do  mundo,  mas  distinto  e  independente 
deste.  Como  sabemos,  por  exemplo,  que  o  modificador  imutável  não  é  malévolo  ou 
ligeiramente  ignorante?  A  resposta  a  esta  objecção  é  que  o  argumento  cosmológico 
tem duas partes. Na primeira parte trata‐se de provar a existência de um género espe‐
cial  de  ser  —  por  exemplo,  um  ser  que  não  poderia  não  existir  ou  um  ser  que  causa 
mudanças  nas  outras  coisas  mas  é  em  si  imutável.  Na  segunda  parte  do  argumento 
trata‐se de provar que o ser especial, cuja existência se estabeleceu na primeira parte, 
tem,  e  não  pode  deixar  de  ter,  as  características  que  formam  conjuntamente  a  ideia 
teísta  de  Deus  —  perfeita  bondade,  omnipotência,  omnisciência  e  por  aí  em  diante. 
Isto  significa,  portanto,  que  os  três  argumentos  de  Tomás  são  versões  diferentes  da 
primeira parte apenas do argumento cosmológico. Com efeito, em secções posteriores 
da sua Summa Theologica, Tomás procura mostrar que o modificador imutável, a cau‐
sa incausada da existência e o ser que tem de existir são um e o mesmo e que este úni‐
co ser tem todos os atributos do Deus teísta. 
Vimos há pouco que o segundo desenvolvimento fundamental no  argumento cos‐
mológico ocorreu no século XVIII, um desenvolvimento que se reflecte nos textos do 
filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646–1716) e especialmente nos textos do teólogo e 
filósofo inglês Samuel Clarke (1675–1729). Em 1704, Clarke deu uma série de palestras, 
publicadas mais tarde com o título A Demonstration of the Being and Attributes of God 
[Demonstração da Existência e dos Atributos de Deus]. Estas palestras constituem tal‐
vez  a  apresentação  mais  completa,  persuasiva  e  cogente  que  temos  do  argumento 
cosmológico.  As  palestras  foram  lidas  pelo  principal  filósofo  céptico  setecentista, 
David Hume (1711–1776). No seu ataque brilhante à tentativa de justificar a religião no 
tribunal da razão, os seus Diálogos Sobre a Religião Natural, Hume apresentou várias 
críticas penetrantes aos argumentos de Clarke, críticas que persuadiram muitos filóso‐
fos no período moderno a rejeitar o argumento cosmológico. Ao estudar o argumento, 
centrar‐nos‐emos em grande medida na sua forma setecentista e procuraremos avaliar 
os seus pontos fortes e fracos à luz das críticas que Hume e outros lhe fizeram. 
A primeira parte do argumento cosmológico na sua formulação setecentista procura 
provar  que  há  um  ser  auto‐existente.  A  segunda  parte  do  argumento  procura  provar 
que  o  ser  auto‐existente  é  o  Deus  teísta  —  ou  seja,  que  tem  as  características  que 
26 
 
vimos constituir os elementos fundamentais da ideia teísta de Deus. Consideraremos 
sobretudo a primeira parte do argumento, pois é contra a primeira parte que os filóso‐
fos, de Hume a Bertrand Russell, têm apresentado objecções muito importantes. 
Ao formular a primeira parte do argumento cosmológico vamos usar dois conceitos 
importantes: o conceito de  ser dependente e  o conceito de ser auto‐existente.  Por ser 
dependente  entendemos  um  ser  cuja  existência  se  explica  pela  actividade  causal  de 
outras coisas. Recordando a divisão de Anselmo nos três exemplos — «explicado por 
outro»,  «explicado  por  nada»  e  «explicado  por  si  próprio»  —  é  claro  que  um  ser 
dependente  é  um  ser  cuja  existência  se  explica  por  outro  ser.  Por  ser  auto‐existente 
entendemos  um  ser  cuja  existência  se  explica  pela  sua  própria  natureza.  Esta  ideia, 
como vimos no capítulo anterior, é um elemento essencial do conceito teísta de Deus. 
Mais uma vez, nos termos dos três exemplos de Anselmo, um ser auto‐existente é um 
ser  cuja  existência  se  explica  por  si  própria.  Munidos  destes  dois  conceitos,  o  de  ser 
dependente  e  o  de  ser  auto‐existente,  podemos  agora  formular  a  primeira  parte  do 
argumento cosmológico. 

1. Todo  os  ser  (que  existe  ou  que  já  existiu)  ou  é  um  ser  dependente  ou  um  ser  auto‐
existente. 
2. Nem todo o ser pode ser dependente.  

Logo, 

3. Existe um ser auto‐existente. 

Validade dedutiva 

Antes  de  olhar  criticamente  para  cada  uma  das  suas  premissas,  note‐se  que  este 
argumento  é,  para  usar  uma  expressão  do  vocabulário  lógico,  dedutivamente  válido. 
Para saber se um argumento é ou não dedutivamente válido, basta que perguntemos: 
se  as  suas premissas  forem  verdadeiras,  a  conclusão  tem  de  ser  verdadeira? Se  a  res‐
posta  for  «sim»,  o  argumento  é  dedutivamente  válido.  Se  a  resposta  for  «não»,  o 
argumento  é  dedutivamente  inválido.  Repare‐se  que  a  questão  da  validade  de  um 
argumento  é  inteiramente  diferente  da  questão  de  as  suas  premissas  serem  ou  não 
realmente verdadeiras. O seguinte argumento é inteiramente construído com afirma‐
ções falsas, mas é dedutivamente válido: 

1. Cristiano Ronaldo é o presidente de Portugal. 
2. O presidente de Portugal é de Beja.  

Logo, 

3. Cristiano Ronaldo é de Beja. 

27 
 
O argumento é dedutivamente válido porque embora as suas premissas sejam fal‐
sas, se fossem verdadeiras a conclusão teria de ser verdadeira. Nem Deus, diria Tomás, 
poderia fazer que as premissas deste argumento fossem verdadeiras e a sua conclusão 
falsa, pois o poder de Deus só abrange o que é possível, e é uma impossibilidade abso‐
luta Cristiano Ronaldo ser o presidente, o presidente ser de Beja e no entanto Cristiano 
Ronaldo não ser de Beja. 
O argumento cosmológico (isto é, a sua primeira parte) é dedutivamente válido. Se 
as suas premissas forem verdadeiras, ou se o fossem, a sua conclusão terá de ser ver‐
dadeira. O nosso exemplo sobre Cristiano Ronaldo deixa claro, contudo, que o facto de 
um argumento ser dedutivamente válido é insuficiente para estabelecer a verdade da 
sua conclusão. O que mais se exige? Evidentemente, que saibamos ou tenhamos uma 
base racional para acreditar que as premissas são verdadeiras. Se sabemos que o argu‐
mento  cosmológico  é  dedutivamente  válido  e  podemos  estabelecer  que  as  suas  pre‐
missas são verdadeiras, teremos assim provado que a sua conclusão é verdadeira. Será 
então que as premissas do argumento cosmológico são verdadeiras? Temos de passar 
agora a esta questão mais difícil. 

O PRS e a primeira premissa 

À partida, a primeira premissa poderá parecer uma verdade óbvia ou mesmo trivial. 
Mas não é óbvia nem trivial. E se parece óbvia ou trivial, estamos forçosamente a con‐
fundir a ideia de um ser auto‐existente com a ideia de um ser que não é dependente. É 
obviamente verdade que qualquer ser ou é dependente (explica‐se por outras coisas) 
ou  não  é  dependente  (não  se  explica  por  outras  coisas).  Mas  o  que  a  nossa  premissa 
afirma  é  que  qualquer  ser  ou  é  dependente  (explica‐se  por  outras  coisas)  ou  é  auto‐
existente  (explica‐se  por  si  próprio).  Considere‐se  novamente  os  três  casos  de  Ansel‐
mo: 

A. Explica‐se por outro. 
B. Explica‐se por nada. 
C. Explica‐se por si próprio. 

A nossa primeira premissa afirma que cada ser que existe (ou já existiu) ou pertence 
ao género A ou ao género C. Nega que haja seres do género B. E  é esta negação que 
torna  a  primeira  premissa  simultaneamente  importante  e  controversa.  A  verdade 
óbvia a não confundir com esta negação é a verdade de que todo o ser ou pertence ao 
género A ou não pertence ao género A. Embora seja verdade, isto nem é muito impor‐
tante nem controverso. 
Vimos que Anselmo adoptou como princípio fundamental a ideia de que para tudo 
o  que  existe  há  uma  explicação  da  sua  existência.  Como  este  princípio  fundamental 
nega que exista ou que tenha existido algo do género B, é óbvio que Anselmo aceitaria 
a primeira premissa do nosso argumento cosmológico. Os defensores setecentistas do 
28 
 
argumento  estavam  também  convencidos  da  verdade  do  princípio  fundamental  atri‐
buído  a  Anselmo.  E  porque  estavam  convencidos  da  sua  verdade,  aceitaram  pronta‐
mente a primeira premissa do argumento cosmológico. Mas no século XVIII, o princí‐
pio fundamental de Anselmo foi mais amplamente elaborado e recebeu o nome prin‐
cípio da razão suficiente. Uma vez que este princípio (doravante, PRS) desempenha um 
papel  tão  importante  na  justificação  das  premissas  do  argumento  cosmológico,  será 
útil ponderarmos nele um pouco, antes de continuarmos a nossa investigação da ver‐
dade ou falsidade das premissas do argumento cosmológico. 
O  PRS,  como  expresso  por  Leibniz  e  Clarke,  é  um  princípio  muito  geral  e  com‐
preende‐se melhor se o decompusermos em duas partes. A primeira parte é simples‐
mente uma reposição do princípio de Anselmo, de que tem de haver uma explicação 
da existência de todo e qualquer ser. Assim, se encontrarmos um homem numa sala, o 
PRS implica que tem de haver uma explicação para o facto de esse homem particular 
existir.  Um  momento  de  reflexão,  contudo,  mostra  que  há  muitos  factos  acerca  do 
homem além do simples facto de existir. Há o facto de o homem em causa se encon‐
trar presentemente naquela sala e não noutro lugar qualquer, o facto de estar de boa 
saúde e o facto de estar naquele momento a pensar em Paris e não, digamos, em Lon‐
dres. O objectivo da segunda parte do PRS é exigir também uma explicação para estes 
factos. Podemos formular o PRS, portanto, como o princípio de que tem de haver uma 
explicação a) da existência de todo e qualquer ser e b) de qualquer facto positivo, seja ele 
qual  for.  Estamos  agora  em  condições  de  estudar  o  papel  que  este  princípio  muito 
importante desempenha no argumento cosmológico. 
Como o defensor do argumento cosmológico aceita as duas partes do PRS, é óbvio 
que  apelará  à  primeira  parte,  PRSa,  como  justificação  da  primeira  premissa  do  argu‐
mento cosmológico. Claro que podemos e devemos investigar a questão mais profunda 
de saber se o defensor do argumento tem uma justificação racional para aceitar o pró‐
prio PRS. Mas deixaremos esta questão de lado por enquanto. Temos de ver primeiro 
se  o  defensor  do  argumento  tem  razão  ao  pensar  que  se  o  PRS  for  verdadeiro,  então 
ambas as premissas do argumento cosmológico serão verdadeiras. E acabámos de ver 
que se pelo menos a primeira parte do PRS — ou seja, PRSa — for verdadeira, a pri‐
meira premissa do argumento cosmológico será verdadeira. E quanto à segunda pre‐
missa? Por que razões pensa o defensor que esta tem de ser verdadeira? 

A segunda premissa 

De acordo com a segunda premissa, nem todos os seres que existem podem depen‐
der de outros — isto é, nem todos podem dever a explicação da sua existência a outro 
ser ou seres. Supostamente, o defensor do argumento pensa que há algo de fundamen‐
talmente errado na ideia de que todo o ser que existe depende de outros, que cada ser 
existente foi causado por outro ser que por sua vez foi causado por outro ser, e por aí 
em diante. Mas o que pensa ele ao certo que esteja errado nesta ideia? Para nos ajudar 

29 
 
a compreender o seu pensamento, vamos simplificar as coisas supondo que agora ape‐
nas existe uma coisa, A1, talvez um ser vivo, cuja existência foi causada por outra coisa, 
A2, que pereceu pouco depois de ter causado a existência de A1. Suponha‐se além disso 
que a existência de A2 foi causada de modo semelhante há algum tempo por A3 e a de 
A3  por  A4,  e  por  aí  fora  em  direcção  ao  passado.  Cada  um  destes  seres  depende  de 
outro; deve a sua existência ao objecto anterior da série. Se nada tivesse existido além 
destes seres, então o que a segunda premissa afirma não seria verdade. Pois se todo o 
ser que existe ou já existiu é um A e foi produzido por um A anterior, então todo o ser 
que existe ou já existiu dependeria de outro e, consequentemente, a premissa dois do 
argumento  cosmológico  seria  falsa.  Assim,  se  o  defensor  do  argumento  cosmológico 
tiver razão, tem de haver algo errado na ideia de que todo o ser que existe ou existiu é 
um A e que todos formam uma série causal: A1 causado por A2, A2 causado por A3, A3 
causado por A4… An causado por An+1. Como se propõe o defensor do argumento cos‐
mológico mostrar que há algo de errado nesta perspectiva? 
Uma ideia popular mas incorrecta de como o defensor tenta mostrar que algo está 
errado nesta perspectiva, a perspectiva de que todo o ser pode depender de outro, é a 
de que a rejeita com o seguinte argumento: 

1. Tem de haver um primeiro ser para iniciar qualquer série causal. 
2. Se todo o ser fosse dependente não haveria um primeiro ser para iniciar a série causal.  

Logo, 

3. Nem todo o ser pode ser dependente. 

Embora  este  argumento  seja  dedutivamente  válido  e  a  sua  segunda  premissa  seja 
verdadeira, a sua primeira premissa ignora a possibilidade distinta de uma série causal 
infinita, sem qualquer primeiro membro. Assim, se regressarmos à nossa série de seres 
A, onde cada A depende de outro A, tendo sido produzido pelo A precedente na série 
causal, é óbvio que se a série existisse não teria um primeiro membro; para cada A na 
série haveria um A precedente que o produziu, ad infinitum. A primeira premissa do 
argumento  apresentado  pressupõe  que  uma  série  causal  tem  de  parar  num  primeiro 
membro, algures no passado distante. Mas parece não haver uma boa razão para pres‐
supor isto. 
Os  defensores  setecentistas  do  argumento  cosmológico  reconheceram  que  a  série 
causal de seres dependentes pode ser infinita, sem um primeiro membro para iniciar a 
série. Rejeitaram contudo a ideia de que todo o ser que existe ou que existiu depende 
de outro; não por nesse caso não haver um primeiro membro da série de seres depen‐
dentes, mas porque então o facto de haver e sempre ter havido seres dependentes não 
teria explicação. Para compreender o seu raciocínio, regressemos à nossa simplificação 
do  pressuposto  de  que  as  únicas  coisas  que  existem  ou  já  existiram  são  seres  depen‐
dentes.  Na  nossa  simplificação  desse  pressuposto,  apenas  um  dos  seres  dependentes 

30 
 
existe de cada vez, cada um perecendo à medida que produz o seguinte na série. Tal‐
vez a primeira coisa a observar acerca deste pressuposto seja não haver qualquer indi‐
víduo A na série causal de seres dependentes cuja existência não se explica — A1 expli‐
ca‐se por A2, A2 por A3, e An por An+1. De modo que primeira parte do PRS, PRSa, pare‐
ce cumprir‐se. Não há qualquer ser particular cuja existência careça de explicação. O 
que falta explicar, então, se todos os particulares A na série causal de seres dependen‐
tes têm uma explicação? Falta explicar a própria série. Ou, como optei por exprimir, o 
facto de haver e sempre ter havido seres dependentes. Suponha‐se portanto que pergun‐
tamos por que razão existem e sempre existiram seres A. Não basta afirmar que sem‐
pre houve seres A a produzir outros A — não podemos explicar por que razão sempre 
houve seres A afirmando que sempre houve seres A. Tão‐pouco, supondo que nunca 
existiram senão seres A, podemos explicar o facto de sempre ter havido A apelando a 
qualquer outra coisa que não seja um A — pois tal coisa nunca teria existido. Assim a 
suposição  de  que  as  únicas  coisas  que  existem  ou  já  existiram  dependem  de  outras 
deixa‐nos com um facto para o qual não pode haver explicação — nomeadamente, o 
facto de haver seres dependentes em vez de não haver. 

Questionando a justificação da segunda premissa 

Os críticos do argumento cosmológico levantaram diversas objecções importantes à 
afirmação de que se todo o ser fosse dependente, a série ou colecção desses seres não 
teria explicação. A nossa compreensão do argumento cosmológico, bem como dos seus 
pontos fortes e fracos, será aprofundada por uma consideração cuidadosa destas críti‐
cas. 
A primeira crítica é que o defensor do argumento cosmológico comete o erro de tra‐
tar a colecção ou série de seres dependentes como se ela própria fosse um ser depen‐
dente e, portanto, exigisse uma explicação da sua existência. Mas, segundo a objecção, 
a  colecção  de  seres  dependentes  não  é  ela  própria  um  ser  dependente,  do  mesmo 
modo que uma colecção de selos não é ela própria um selo. 
A segunda crítica é que o defensor comete o erro de inferir que, porque cada mem‐
bro  da  colecção  de  seres  dependentes  tem  uma  causa,  a  própria  colecção  tem  de  ter 
uma causa. Mas, como Russell fez notar, tal raciocínio é tão falacioso como inferir que 
a espécie humana (isto é, a colecção de seres humanos) tem de ter uma mãe porque 
cada membro da colecção (cada ser humano) tem uma mãe. 
A terceira crítica é que o defensor do argumento não percebe que haver uma expli‐
cação para uma colecção de coisas não é mais do que haver uma explicação para cada 
uma  das  coisas  que  formam  a  colecção.  Dado  que  na  colecção  (ou  série)  infinita  de 
seres dependentes, cada ser que a compõe tem de facto uma explicação — em virtude 
de ter sido causado por um membro precedente da colecção — a explicação da colec‐
ção, segundo a crítica, já foi dada. Como Hume comentou:  

31 
 
Consideraria  bastante  irrazoável,  depois  de  lhe  mostrar  as  causas  particulares  de 
cada  indivíduo  numa  colecção  de  vinte  partículas  de  matéria,  que  me  perguntasse 
depois  qual  fora  a  causa  da  totalidade  dos  vinte.  Isto  foi  satisfatoriamente  explicado 
quando se explicou a causa das partes.2 

Por fim, mesmo que o defensor do argumento cosmológico possa responder satisfa‐
toriamente a estas objecções, tem ainda de enfrentar uma última objecção à sua enge‐
nhosa  tentativa  de  justificar  a  segunda  premissa  do  argumento  cosmológico.  Pois 
podemos concordar que se nada existe além de uma colecção infinita de seres depen‐
dentes, a existência da colecção infinita não tem explicação; mas ainda assim recusar‐
mo‐nos a concluir daqui que há algo de errado na ideia de que todo o ser depende de 
outro. Poder‐se‐ia perguntar: por que razão devemos pensar que tudo tem de ter uma 
explicação?  Que  mal  tem  admitir  que  o  facto  de  haver  e  sempre  ter  havido  seres 
dependentes  é  um  facto  bruto,  um  facto  sem  qualquer  explicação?  Por  que  tem  de 
haver uma explicação para tudo, afinal? Temos de ver agora o que se pode responder a 
estas diversas objecções. 

Respostas às críticas 

É seguramente um erro pensar que uma colecção de selos é ela própria um selo e é 
muito provavelmente um erro pensar que a colecção de seres dependentes é ela pró‐
pria um ser dependente. Mas o mero facto de pensar que tem de haver uma explicação 
não só para cada membro da colecção de seres dependentes mas para a própria colec‐
ção não dá ao defensor do argumento uma razão suficiente para concluir que tem de 
ver  a  própria  colecção  como  um  ser  dependente.  A  colecção  de  seres  humanos,  por 
exemplo, não é seguramente ela própria um ser humano. Tendo admitido isto, contu‐
do, podemos ainda assim procurar explicar por que há uma colecção de seres huma‐
nos, por que razão há coisas como seres humanos de todo em todo. Pelo que o mero 
facto de se exigir uma explicação para a colecção de seres dependentes não prova que 
quem  pede  a  explicação  tem  de  supor  que  a  própria  colecção  é  apenas  mais  um  ser 
dependente. 
A segunda crítica atribui o seguinte pedaço de raciocínio ao defensor do argumento 
cosmológico: 

1. Todos os membros da colecção de seres dependentes têm uma causa ou explicação. 

Logo, 

2. A colecção de seres dependentes tem uma causa ou explicação. 

Como  vimos  ao  apresentar  esta  crítica,  os  argumentos  deste  género  não  são  nor‐
malmente  de  confiança.  Seria  um  erro  concluir  que  uma  colecção  de  objectos  é  leve 

32 
 
apenas porque cada objecto da colecção é leve, porquanto se a colecção contém mui‐
tos  objectos,  pode  ser  muito  pesada.  Por  outro  lado,  se  sabemos  que  cada  berlinde 
pesa mais de 28 gramas, podemos inferir validamente que a colecção de berlindes pesa 
mais de 28 gramas. Felizmente, contudo, não temos de decidir se a inferência de 1 para 
2 é válida ou inválida. Não precisamos de resolver esta questão porque o defensor do 
argumento  cosmológico  não  precisa  de  usar  esta  inferência  para  estabelecer  que  a 
colecção  de  seres  dependentes  tem  de  ter  uma  explicação.  Não  precisa  de  usar  esta 
inferência  porque  tem  no  PRS  um  princípio  do  qual  se  segue  imediatamente  que  a 
colecção  de  seres  dependentes  tem  uma  causa  ou  explicação.  Pois,  segundo  o  PRS, 
todos  os  factos  positivos  têm  de  ter  uma  explicação.  Se  é  um  facto  que  existe  uma 
colecção  de seres dependentes, então, segundo o PRS, também esse facto tem  de ter 
uma explicação. De maneira que é ao PRS que o defensor do argumento cosmológico 
apela  ao  concluir  que  a  colecção  de  seres  dependentes  tem  de  ter  uma  explicação  e 
não a uma inferência duvidosa a partir da premissa de que cada membro da colecção 
tem  uma  explicação.  Parece  então  que  nenhuma  das  primeiras  críticas  é  suficiente‐
mente forte para levantar qualquer obstáculo sério ao raciocínio usado para sustentar 
a segunda premissa do argumento cosmológico. 
A terceira objecção afirma que explicar a existência de uma colecção de coisas é o 
mesmo  que  explicar  a  existência  de  cada  um  dos  seus  membros.  Se  considerarmos 
uma colecção de seres dependentes na qual cada ser que consta na colecção se explica 
pelo membro precedente que o causou, é evidente que nenhum membro da colecção 
carecerá de uma explicação para a sua existência. Mas, segundo a crítica, se explicámos 
a existência de todos os membros de uma colecção, explicámos a existência da colec‐
ção  —  nada  falta  explicar.  Esta  crítica  persuasiva,  originalmente  apresentada  por 
David  Hume,  teve  uma  aceitação  considerável  no  período  moderno.  Mas  a  crítica 
assenta num pressuposto que o defensor do argumento cosmológico não aceitaria. O 
pressuposto é que para explicar a existência de uma colecção de coisas basta explicar a 
existência  de  cada  membro  da  colecção.  Ver  o  que  está  errado  neste  pressuposto  é 
compreender o que está em causa no raciocínio desenvolvido pelo defensor do argu‐
mento cosmológico para estabelecer que nem todo o ser pode ser dependente. 
Para  a  existência  da  colecção  de  seres  dependentes  ter  explicação,  os  defensores 
setecentistas teriam evidentemente de exigir que se satisfizesse as seguintes duas con‐
dições: 

C1. A existência de cada membro da colecção de seres dependentes tem uma explicação. 
C2. Há uma explicação da razão por que há quaisquer seres dependentes. 

Segundo  os  defensores  do  argumento  cosmológico,  se  todo  o  ser  que  existe  ou  já 
existiu é um ser dependente — isto é, se o todo da realidade consiste em nada mais do 
que uma colecção de seres dependentes — ter‐se‐á satisfeito C1, mas não C2. E como 
não se satisfaz C2, não há explicação para a colecção de seres dependentes. A terceira 

33 
 
crítica afirma, na verdade, que satisfazendo‐se C1 satisfaz‐se C2 e, como numa colec‐
ção de seres dependentes cada membro se explica por seja o que for que o tenha pro‐
duzido, ter‐se‐á satisfeito C1. Logo, ter‐se‐á satisfeito C2 e a colecção de seres depen‐
dentes terá uma explicação. 
Embora seja uma questão complicada, considero possível ver‐se que a terceira críti‐
ca assenta num erro: o erro de pensar que satisfazendo‐se C1 se satisfaz forçosamente 
C2.  Trata‐se  de  um  erro  natural,  pois  é  fácil  imaginar  circunstâncias  em  que  satisfa‐
zendo‐se C1 se satisfaz também C2. Suponha‐se, por exemplo, que no todo da realida‐
de  se  inclui  não  só  uma  colecção  de  seres  dependentes  mas  também  um  ser  auto‐
existente. Suponha‐se além disso que em vez de cada ser dependente ter sido produzi‐
do por outro ser dependente qualquer, todo o ser dependente foi produzido pelo ser 
auto‐existente. Por fim, considere‐se simultaneamente a possibilidade de a colecção de 
seres dependentes ser temporalmente finita e ter um primeiro membro, e a possibili‐
dade de a colecção de seres dependentes se prolongar infinitamente no passado, sem 
qualquer primeiro membro. Usando G para representar o ser auto‐existente, pode‐se 
esquematizar a primeira possibilidade do seguinte modo: 
 
[INSERIR GRÁFICO DA PÁGINA 28] 
 
Diremos que G sempre existiu e sempre existirá. Podemos pensar em d1 como um 
ser  dependente  que  existe  presentemente,  e  em  d2,  d3,  etc.,  como  seres  dependentes 
que  existiram  num  dado  momento  do  passado,  e  em  dn  como  o  primeiro  ser  depen‐
dente a existir. Pode‐se representar a segunda possibilidade do seguinte modo: 
 
[INSERIR GRÁFICO DA PÁGINA 29] 
 
Neste diagrama não há qualquer primeiro membro da colecção de seres dependen‐
tes.  Cada  membro  da  colecção  infinita,  porém,  se  explica  por  referência  ao  ser  auto‐
existente G, que o produziu. O que é interessante em ambos os casos é que a explica‐
ção dada para os membros da colecção de seres dependentes traz em si, pelo menos 
parcialmente,  uma  resposta  à  questão  de  saber  por  que  há  de  todo  em  todo  seres 
dependentes.  Em  ambos  os  casos  podemos  explicar  por  que  há  seres  dependentes 
indicando que há um ser auto‐existente que se tem empenhado em produzi‐los. Então, 
sabendo  nós  que  a  existência  de  cada  membro  da  colecção  de  seres  dependentes  se 
explica pelo facto de G o ter produzido, ficámos a saber por que razão há seres depen‐
dentes. 
Poder‐se‐ia  objectar  que  não  saberemos  realmente  por  que  há  seres  dependentes 
enquanto não soubermos por que razão G os tem produzido. Mas é óbvio que podía‐
mos também afirmar que não explicámos realmente a existência de um ser dependen‐
te particular, por exemplo, d3, enquanto não soubermos também não só que G o pro‐
duziu, mas por que razão G o produziu. O que precisamos captar, contudo, é que ten‐
34 
 
do  nós  admitido  que  a  existência  de  todos  os  seres  dependentes  se  explica  por  G, 
temos de admitir que o facto de haver seres dependentes foi também explicado. Pelo 
que  é  natural  pensar‐se  que  explicar  a  existência  dos  membros  da  colecção  de  seres 
dependentes nada mais é do que explicar a existência dos seus membros. Pois, como 
vimos,  explicar  a  existência  da  colecção  é  explicar  a  existência  de  cada  membro  e  a 
razão por que há de todo em todo seres dependentes. E nos exemplos que considerá‐
mos,  ao  fazer  a  primeira  (explicar  por  que  cada  ser  dependente  existe)  fizemos  já  a 
segunda  (explicar  por  que  há  de  todo  em  todo  seres  dependentes).  Temos  agora  de 
ver, contudo, que supondo que o todo da realidade consiste apenas numa colecção de 
seres dependentes, explicar a existência de cada membro não é o mesmo que explicar 
por que razão há seres dependentes. 
Nos  exemplos  que  considerámos,  saímos  da  colecção  de  seres  dependentes  para 
explicar a existência dos membros. Mas se os únicos seres que existem ou já existiram 
são dependentes, então cada ser dependente será explicado por outro ser dependente 
qualquer, ad infinitum. Isto não significa que haverá um ser dependente particular cuja 
existência é inexplicada. Cada ser dependente tem uma explicação da sua existência — 
nomeadamente, no ser dependente que o precedeu e produziu. Pelo que se satisfaz C1: 
há  uma  explicação  da  existência  de  cada  membro  da  colecção  de  seres  dependentes. 
Voltando  a  C2,  contudo,  podemos  ver  que  não  será  satisfeita.  Não  podemos  explicar 
por que há (ou alguma vez houve) seres dependentes apelando a todos os membros de 
uma colecção infinita de seres dependentes. Pois se a questão a que se tem de respon‐
der é a de saber por que há de todo em todo seres dependentes (ou alguma vez hou‐
ve), não podemos responder‐lhe indicando que sempre houve seres dependentes, cada 
um dos quais explica a existência de outro ser dependente qualquer. Assim, supondo 
que  todo  o  ser  é  dependente,  parece  que  não  haverá  explicação  da  razão  por  que  há 
seres dependentes. C2 não será satisfeita. Logo, supondo que todo o ser é dependente, 
não haverá qualquer explicação para a existência da colecção de seres dependentes. 

A verdade do PRS 

Chegamos agora à última crítica ao raciocínio que sustenta a segunda premissa do 
argumento cosmológico. Segundo esta crítica, admite‐se que a suposição de que todo 
o ser é dependente implica que haverá um facto bruto no universo — isto é, um facto 
para o qual não pode haver qualquer explicação. Pois não haverá qualquer explicação 
para o facto de existir e sempre ter existido seres dependentes. É este facto bruto que 
os  defensores  do  argumento  descreviam  ao chamar  a  atenção  para  que  se  todo  o  ser 
depende de outro, a existência da própria série ou colecção de seres dependentes care‐
ce de explicação. A última crítica pergunta que mal há em admitir que o universo con‐
tém tal facto bruto e ininteligível. Ao fazer esta pergunta o crítico desafia o princípio 
fundamental,  PRS,  em  que  assenta  o  argumento  cosmológico.  Pois,  como  vimos,  a 
primeira  premissa  do  argumento  nega  que  exista  um  ser  cuja  existência  não  tenha 

35 
 
explicação. Para sustentar esta premissa o defensor apela à primeira parte do PRS. A 
segunda premissa do argumento afirma que nem todo o ser pode depender de outro. 
Para  sustentar  esta  premissa  o  defensor  apela  à  segunda  parte  do  PRS,  a  parte  que 
afirma ter de haver uma explicação para todo e qualquer facto positivo. 
O defensor raciocina que se todo o ser dependesse de outros, então mesmo que se 
satisfizesse a primeira parte do PRS — todo o ser teria uma explicação — violar‐se‐ia a 
segunda  parte:  não  haveria  explicação  para  o  facto  positivo  de  haver  e  sempre  ter 
havido seres dependentes. Em primeiro lugar, como todo o ser é supostamente depen‐
dente, nada haveria fora da colecção de seres dependentes para explicar a existência da 
colecção. Em segundo lugar, o facto de cada membro da colecção se explicar por outro 
ser dependente qualquer é insuficiente para explicar por que há e sempre houve seres 
dependentes. Por fim, nada há na colecção de seres dependentes que sugira que a pró‐
pria colecção é auto‐existente. Consequentemente, se todo o ser fosse dependente, o 
facto  de  haver  e  sempre  ter  havido  seres  dependentes  não  teria  explicação.  Mas  isto 
viola a segunda parte do PRS. Pelo que a segunda premissa do argumento cosmológico 
tem de ser verdadeira: nem todo o ser pode ser dependente. Esta conclusão, contudo, 
não é melhor do que o princípio, PRS, em que assenta. E questionar a verdade do PRS 
é o que está em causa na última crítica. Por que, afinal, devemos aceitar a ideia de que 
todo  o  ser  e  todo  o  facto  positivo  têm  de  ter  uma  explicação?  Por  que,  resumindo, 
devemos acreditar no PRS? Estas são questões importantes e qualquer juízo último do 
argumento cosmológico depende de como se lhes responde. 
Na sua maioria, os teólogos e filósofos que aceitam o PRS tentaram defendê‐lo de 
uma de duas maneiras. Alguns defenderam que se conhece (ou pode conhecer) a ver‐
dade  do  PRS  intuitivamente.  Querem  com  isto  dizer  que  se  compreendermos  inte‐
gralmente e reflectirmos no que o PRS afirma podemos ver que tem de ser verdadeiro. 
Sem  dúvida  que  há  afirmações  cuja  verdade  se  conhece  intuitivamente.  «Todos  os 
triângulos  têm  exactamente  três  ângulos»  ou  «Nenhum  objecto  físico  pode  ocupar 
duas regiões diferentes do espaço ao mesmo tempo» são exemplos de afirmações cuja 
verdade podemos apreender compreendendo‐as apenas e reflectindo nelas. A dificul‐
dade  de  afirmar  que  se  conhece  a  verdade  do  PRS  intuitivamente,  contudo,  é  que 
diversos  filósofos  bastante  capazes  não  conseguem,  após  uma  reflexão  cuidada, 
apreender  a  sua  verdade,  e  alguns  desenvolveram  argumentos  sérios  sustentando  a 
conclusão de que o princípio é de facto falso.3 É evidente, portanto, que nem todos os 
que reflectiram no PRS ficaram persuadidos da sua verdade e há quem esteja conven‐
cido de que há boas razões para pensar que é falso. Mas embora o facto de alguns pen‐
sadores capazes não conseguirem apreender a verdade do PRS, e de poderem mesmo 
argumentar que é falso, seja uma razão decisiva para pensar que o PRS não é uma ver‐
dade tão óbvia como, por exemplo, «Nenhum objecto físico pode ocupar duas regiões 
diferentes do  espaço  ao  mesmo  tempo»,  não  basta  para  estabelecer  que  o  PRS  não  é 
uma verdade de razão. Talvez nesta fase tudo o que se pode fazer seja reflectir cuida‐
dosamente no que o PRS afirma e formar um juízo autónomo sobre se é uma verdade 
36 
 
fundamental acerca do modo como a realidade tem de ser. E se após reflectir cuidado‐
samente no PRS se tiver esta impressão, pode‐se ter justificação racional para o consi‐
derar verdadeiro e, tendo visto que sustenta as premissas do argumento cosmológico, 
aceitar como verdadeira a conclusão deste argumento. 
A segunda maneira pela qual os filósofos e os teólogos que aceitam o PRS procura‐
ram defendê‐lo é afirmando que embora se possa desconhecer a sua verdade, é ainda 
assim uma pressuposição da razão, um pressuposto fundamental que as pessoas racio‐
nais  fazem,  reflictam  ou  não  o  suficiente  para  estarem  cientes  desse  pressuposto.  É 
provavelmente  verdade  que  há  alguns  pressupostos  que  todos  fazemos  acerca  do 
mundo,  pressupostos  tão  fundamentais  que  não  estamos,  maioritariamente,  cientes 
deles.  E  suponho  que  seja  talvez  verdade  que  o  PRS  é  um  pressuposto  deste  género. 
Que relevância teria esta perspectiva do PRS para o argumento cosmológico? Talvez o 
principal a reter seja que mesmo que o PRS seja um pressuposto que todos partilha‐
mos,  as  premissas  do  argumento  cosmológico  podem  ainda  assim  ser  falsas.  Pois  o 
próprio PRS pode ainda assim ser falso. O facto, se é que se trata de um facto, de todos 
pressupormos que todo o ser existente e todo o facto positivo têm uma explicação não 
implica que nenhum ser existe e nenhum facto positivo se verifica sem que qualquer 
deles tenha, respectivamente, uma explicação. A natureza não é obrigada a satisfazer 
os  nossos  pressupostos.  Como  em  tempos  comentou  o  filósofo  americano  William 
James a propósito de outro assunto: «Na grande hospedaria da natureza, raramente os 
bolos, a manteiga e o xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos». 
O nosso estudo da primeira parte do argumento cosmológico levou‐nos ao princí‐
pio fundamental em que assentam as suas premissas, o princípio da razão suficiente. 
Vimos que excepto se o PRS nos parecer algo, depois de uma reflexão ponderada, de 
cuja verdade temos a certeza, não podemos razoavelmente afirmar saber que as pre‐
missas do argumento cosmológico são verdadeiras. Claro que podem ser verdadeiras. 
Mas a menos que saibamos que são verdadeiras, não podem servir‐nos para estabelecer 
a conclusão de que há um ser cuja existência se explica pela sua própria natureza. Se 
contudo se mostrasse que embora não saibamos que o PRS é verdadeiro, todos pressu‐
pomos, não obstante, que o PRS é verdadeiro, então, quer o PRS seja ou não verdadei‐
ro, para ser consistentes devemos aceitar o argumento cosmológico. Pois, como vimos, 
as suas premissas implicam a conclusão e parecem de facto seguir‐se do PRS. Mas nin‐
guém  conseguiu  ainda  mostrar  que  o  PRS  é  um  pressuposto  partilhado  maioritaria‐
mente ou por todos. Pelo que a nossa conclusão final tem de ser que, à excepção dos 
que após uma reflexão ponderada concluem razoavelmente que o PRS é uma verdade 
fundamental  de  razão,  o  argumento  cosmológico  não  nos  dá  uma  boa  base  racional 
para acreditar que entre os seres que existem há um cuja existência se explica pela sua 
própria natureza. E uma vez que a concepção clássica de Deus é a de um ser cuja exis‐
tência se explica pela sua própria natureza, além da excepção apontada, o argumento 
cosmológico é incapaz de nos dar uma boa base racional para acreditar que Deus exis‐
te. 
37 
 
O argumento cosmológico kalam 
Uma versão do argumento cosmológico que tem a sua origem na filosofia árabe tem 
sido também alvo de atenção na filosofia contemporânea da religião. Ao contrário da 
versão  de  Samuel  Clarke,  que  admite  a  possibilidade  de  uma  série  interminável  de 
acontecimentos  que  se  prolongue  infinitamente  no  passado,  segundo  o  argumento 
kalam é impossível que exista um infinito efectivo. Se este aspecto do argumento kalam 
está  correcto,  então,  como  uma  série  efectiva  de  acontecimentos  que  se  prolonga 
interminavelmente  no  passado  seria  um  infinito  efectivo,  é  impossível  que  exista  tal 
série.  Isto  não  significa  que  não  pode  haver  uma  série  potencialmente  infinita,  uma 
série que em qualquer momento em que a consideramos é finita mas à qual se pode 
adicionar  sucessivamente  elementos  ad  infinitum.  Pois  tal  série  nunca  seria  efectiva‐
mente infinita. Mas por que razão se afirma que é impossível uma série infinita efectiva 
de acontecimentos que levam do passado ao presente? Considere‐se tal série intermi‐
nável de acontecimentos do passado. Suponha‐se que cada um destes acontecimentos 
demora uma certa quantidade de tempo, por muito pequena que seja, a ocorrer. Por 
muito  pouco  tempo  que  cada  acontecimento  leve  a  ocorrer,  afirma‐se  que  dado  não 
haver qualquer primeiro acontecimento na série de acontecimentos do passado, nunca 
se poderia chegar ao ponto onde estamos, o presente. 
Se concedemos a impossibilidade de um infinito efectivo, podemos ter a certeza de 
que o nosso universo teve um começo. Pois se o nosso universo nunca teve um come‐
ço, então a série de acontecimentos em que consiste a sua existência temporal do pas‐
sado constituiria um infinito efectivo. Contudo, a confiança que temos no facto de o 
nosso universo ter tido um começo não tem de se apoiar neste argumento filosófico; 
pois segundo as melhores estimativas da ciência actual o nosso universo teve de facto 
um começo. Começou a existir há cerca 14,5 mil milhões de anos, o planeta Terra há 
cerca de 4,5 mil milhões de anos e os seres vivos na Terra há cerca de 3,5 mil milhões 
de anos. 
Podemos  agora  enunciar  o  primeiro  passo  do  argumento  cosmológico  kalam  do 
seguinte modo: 

1. Se  o  nosso  universo  nunca  teve  um  começo,  ocorreu  uma  série  infinita  efectiva  de 
acontecimentos. 
2. Uma série infinita efectiva de acontecimentos no tempo é impossível.  

Logo, 

3. O nosso universo teve um começo. 

O segundo passo do argumento kalam levanta a questão de o começo do nosso uni‐
verso ter ou não uma causa. É importante ver que, segundo a ciência actual, o começo 
do nosso universo assinala também o começo do tempo.4 Assim, não há simplesmente 

38 
 
qualquer momento no tempo antes do começo do nosso universo, qualquer momento 
prévio em que algo ou alguém pudesse agir de modo a causar o início do nosso univer‐
so. Isto significa que se o nosso universo tivesse uma causa, essa causa (qualquer que 
fosse) não podia ter causado o nosso universo, existindo num momento qualquer do 
tempo antes de o nosso universo existir, agindo então de maneira a causar a existência 
do nosso universo. Como poderia então a existência do nosso universo ter sido causa‐
da?  Um  eminente  defensor  do  argumento  cosmológico  kalam,  William  Lane  Craig, 
reparou que vários filósofos admitiram a causalidade simultânea. Craig cita um exem‐
plo  dado  por  Immanuel  Kant:  o  assentar  de  uma  bola  pesada  numa  almofada  ser  a 
causa de uma concavidade nessa almofada. Craig conclui: 

Parece não haver qualquer dificuldade conceptual em afirmar que a causa da origem 
do  universo  agiu  simultaneamente  (ou  coincidentemente)  ao  originar  do  universo. 
Devíamos portanto afirmar que a causa da origem do universo é causalmente anterior ao 
Big Bang, embora não lhe seja temporalmente anterior.5 

A  ideia,  portanto,  é  que  o  tempo  começa  com  o  começo  do  universo.  A  causa  do 
universo, qualquer que seja, não é em si temporal, uma vez que se requer a sua exis‐
tência para que o universo (e o tempo) comecem a existir. Que propriedades tem uma 
entidade intemporal de ter para causar intemporalmente a existência de um universo 
temporal, partindo do princípio de que a razão nos exige que suponhamos que o Big 
Bang  tem  de  ter  uma  causa?  Craig  pensa  que  tal  entidade  teria  as  propriedades  que 
constituem  o  Deus  do  teísmo  tradicional:  perfeita  bondade,  omnisciência  e  omnipo‐
tência. Permanece a questão de um ser ter realmente de ter ou não estas três proprie‐
dades  para  ser  a  causa  intemporal  do  universo  temporal.  Presumivelmente,  um  ser 
com estas propriedades seria capaz de causar a existência do universo temporal. Mas 
ao inferir, a partir do que nos parece ter sido causado (o nosso universo), a natureza 
do ser que o causou, não podemos simplesmente pressupor que o ser tem proprieda‐
des que não são de modo algum necessárias para poder ser a causa do nosso universo. 
Um ser com poder e conhecimento suficientes para causar um universo temporal não 
tem de ter conhecimento absoluto de tudo o que é cognoscível (não tem de ser omnis‐
ciente). Tão‐pouco tem de ser perfeitamente bom. Além disso, se olharmos para a qua‐
lidade de uma parte do que foi produzido, o único planeta no universo com que esta‐
mos  familiarizados,  dificilmente  poderíamos  pensar  que  a  causa  do  nosso  universo 
teria de ser moralmente perfeita. É muito difícil argumentar que um ser com poder e 
conhecimento  suficientes,  embora  carecendo  da  perfeita  bondade,  seria  incapaz  de 
causar  a  existência  do  nosso  universo.  Esta  objecção,  contudo,  não  mostra  que  o 
argumento cosmológico kalam não pode desempenhar um papel importante na defesa 
do teísmo tradicional. Pois o argumento cosmológico, quer na forma tradicional apre‐
sentada por Clarke, quer na versão kalam, é apenas um de vários argumentos impor‐
tantes a favor da existência do Deus teísta. Se o argumento kalam sustenta a existência 

39 
 
de um criador do universo, outro argumento qualquer pode sustentar a conclusão de 
que um criador seria moralmente perfeito. E tal como um ramo pode ser insuficiente 
para suster um objecto pesado embora um feixe de vários ramos seja suficiente, tam‐
bém os vários argumentos tomados em conjunto podem ser suficientes para sustentar 
a  existência  de  um  ser  omnisciente,  omnipotente,  perfeitamente  bom  e  criador  do 
mundo. 

Revisão 
1. Formule a primeira parte do argumento cosmológico e descreva o que se entende por 
um ser dependente e por um ser auto‐existente. 
2. Explique o que se entende por princípio da razão suficiente. 
3. Descreva resumidamente as diversas objecções que se tem levantado contra o raciocí‐
nio  usado  para  justificar  a  afirmação  de  que  nem  todo  o  ser  pode  ser  dependente. 
Alguma dessas objecções é boa? 
4. Como têm os filósofos procurado defender o princípio da razão suficiente? 
5. Se não se conhece a verdade do princípio da razão suficiente, que conclusão devemos 
retirar quanto ao argumento cosmológico? 

Estudo complementar 
1. Discuta a seguinte resposta ao argumento cosmológico:  

Talvez  possamos  explicar  a  existência  do  mundo  supondo  que  Deus  existe  e  o  criou. 
Mas resta‐nos então a existência de Deus. Como vamos explicá‐la? Se afirmamos que a 
existência  de  Deus  não  tem  explicação,  podemos  afirmar  a  mesma  coisa  acerca  do 
mundo.  Se  afirmamos  que  a  existência  de  Deus  se  explica  por  si  própria,  podemos 
afirmar a mesma coisa acerca do mundo. Portanto, a hipótese mais simples é ou que o 
mundo não tem explicação ou que se explica a si próprio. 

2. Na  vida  humana  explicamos  constantemente  uma  coisa  através  de  outra,  ainda  que 
sejamos incapazes de explicar a segunda. Se, em todos os nossos assuntos práticos, as 
explicações têm de chegar a um fim, será que isso não mostra que o princípio da razão 
suficiente é falso, ou pelo menos que é uma ideia imprática? Discuta. 

Notas 
1. S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, 1a, 2, 3, em The Basic Writings of Saint Tho‐
mas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945). 
2. David  Hume,  Dialogues  Concerning  Natural  Religion,  pt.  IX,  org.  H.  D.  Aiken  (Nova 
Iorque: Hafner Publishing Company, 1948), pp. 59–60. [Diálogos Sobre a Religião Natu‐
ral, Edições 70, Lisboa, 2005.] 

40 
 
3. Para uma breve explicação de dois destes argumentos ver o prefácio do meu The Cos‐
mological Argument (Nova Iorque: Fordham University Press, 1998). 
4. Ver  a  famosa  palestra  de  Stephen  Hawking:  «The  Beginning  of  Time»  em 
http://www.hawking.org.uk/lectures/bot.html. 
5. «Creation and Big‐Bang Cosmology», 
http://www.leaderu.com/offices/billcraig/docs/creation.html. 

41 
 
Capítulo 3 
O argumento ontológico 

Talvez seja melhor pensar no argumento ontológico não como um único argumento 
mas como uma família de argumentos, em que cada membro começa com um concei‐
to de Deus e, apelando apenas a princípios a priori, procura estabelecer que Deus exis‐
te efectivamente. Nesta família de argumentos, o mais importante historicamente é o 
apresentado por Anselmo no segundo capítulo do seu Proslogium (um discurso).1 Na 
verdade,  é  justo  afirmar  que  o  argumento  ontológico  começa  com  o  Capítulo  2  do 
Proslogium  de  S.  Anselmo.  Numa  obra  anterior,  Monologium  (um  solilóquio), Ansel‐
mo  procurara  estabelecer  a  existência  e  natureza  de  Deus  entretecendo  diversas  ver‐
sões  do  argumento  cosmológico.  No  prefácio  ao  Proslogium  Anselmo  comenta  que 
após a publicação do Monologium começou a procurar um único argumento que por si 
só  estabelecesse  a  existência  e  natureza  de  Deus.  Depois  de  muito  esforço  árduo  e 
infrutífero,  Anselmo  diz‐nos  que  procurou  afastar  o  projecto  da  sua  mente,  para  se 
dedicar a tarefas mais compensadoras. A ideia, contudo, continuou a assombrá‐lo até 
que  um  dia  se  lhe  tornou  clara  a  prova  que  procurara  tão  arduamente.  É  esta  prova 
que Anselmo apresenta no segundo capítulo do Proslogium. 

Conceitos fundamentais 
Antes  de  apresentar  passo  a  passo  o  argumento  de  Anselmo,  será  útil  introduzir 
alguns  conceitos  que  nos  ajudarão  a  compreender  algumas  das  ideias  centrais  que 
figuram no argumento. Suponha‐se que desenhamos, na nossa imaginação, uma linha 
vertical e imaginamos que no lado esquerdo da nossa linha estão todas as coisas que 
existem  e  no  lado  direito  da  linha  estão  todas  as  coisas  que  não  existem.  Podíamos 
então  começar  a  fazer  uma  lista  de  algumas  coisas  que  estão  em  ambos  os  lados  da 
nossa linha imaginária. A lista poderia começar da seguinte maneira: 
 
COISAS QUE EXISTEM  COISAS QUE NÃO EXISTEM 
   
O Empire State Building  A Fonte da Juventude 
Cães  Unicórnios 
O planeta Marte  O Abominável Homem das Neves 
 
Cada uma das coisas (ou géneros de coisas) apresentadas até agora tem a seguinte 
característica: logicamente, podia estar no outro lado da linha. A Fonte da Juventude, 

42 
 
por  exemplo,  está  no  lado  direito  da  linha  mas  logicamente  nada  há  de  absurdo  na 
ideia  de  que  a  Fonte  da  Juventude  podia  estar  no  lado  esquerdo.  De  igual  modo, 
embora  os  cães  existam,  podemos  seguramente  imaginar,  sem  cair  em  qualquer 
absurdo lógico, que os cães podiam não ter existido: podiam estar no lado direito da 
linha. Registemos então esta característica das coisas até agora apresentadas, introdu‐
zindo a ideia de coisa contingente: algo que podia logicamente estar no lado da linha 
oposto ao lado onde efectivamente está. O planeta Marte e o Abominável Homem das 
Neves são coisas contingentes apesar de o primeiro existir e o último não. 
Suponha‐se  que  acrescentamos  algo  à  nossa  lista,  escrevendo  no  lado  direito  a 
expressão «o objecto que é ao mesmo tempo completamente redondo e completamen‐
te quadrado». O quadrado redondo, contudo, ao contrário das outras coisas apresen‐
tadas no lado direito da linha, é algo que logicamente não podia estar no lado esquer‐
do. Vendo isto, introduzamos a ideia de coisa impossível como algo que está no lado 
direito da linha e logicamente não podia estar no lado esquerdo. 
Olhando mais uma vez para a nossa lista, surge a questão de haver ou não alguma 
coisa no lado esquerdo da nossa linha imaginária que, ao contrário das coisas apresen‐
tadas  até  agora  no  lado  esquerdo,  logicamente  não  poderia  estar  no  lado  direito.  Por 
enquanto,  não  temos  de  responder  a  esta  questão.  Mas  é  útil  ter  um  conceito  para 
aplicar a quaisquer coisas desse género, se as houver. Consequentemente, introduza‐
mos a noção de coisa necessária: algo que está no lado esquerdo da nossa linha imagi‐
nária e logicamente não podia estar no direito. 
Por fim, podemos introduzir a ideia de coisa possível: qualquer coisa que ou está no 
lado esquerdo da nossa linha imaginária ou podia logicamente estar no lado esquerdo. 
As  coisas  possíveis,  portanto,  serão  todas  aquelas  que  não  são  impossíveis  —  isto  é, 
todas  aquelas  que  são  ou  contingentes  ou  necessárias.  Se  não  há  coisas  necessárias, 
então todas as coisas possíveis serão contingentes e todas as coisas contingentes serão 
possíveis. Se há algo necessário, contudo, então haverá algo possível que não é contin‐
gente. 
Munidos com os conceitos que se acabou de explicar podemos passar à clarificação 
de certas distinções e ideias importantes no pensamento de Anselmo. A primeira é a 
distinção entre a existência no entendimento e a existência na realidade. A noção que 
Anselmo tem de existência na realidade é a mesma que a nossa noção de existência — 
isto é, estar no lado esquerdo da nossa linha imaginária. Como a Fonte da Juventude 
está no lado direito da linha, não existe na realidade. As coisas que existem são, para 
usar a expressão de Anselmo, as que existem na realidade. A noção que Anselmo tem 
de  existência  no  entendimento,  contudo,  é  diferente  de  qualquer  ideia  que  normal‐
mente usemos. Mas o que Anselmo quer dizer com «existência no entendimento» não 
é particularmente misterioso. Quando pensamos numa determinada coisa, por exem‐
plo, na Fonte da Juventude, essa coisa, na perspectiva de Anselmo, existe no entendi‐
mento. Pelo que algumas coisas que estão em ambos os lados da nossa linha imaginá‐
ria existem no entendimento, mas apenas as que estão no lado esquerdo da linha exis‐
43 
 
tem na realidade. Haverá alguma coisa que não exista no entendimento? Sem dúvida. 
Porquanto  há  coisas,  quer  existentes  quer  inexistentes,  nas  quais  nunca  pensámos. 
Suponha‐se agora que afirmo que a Fonte da Juventude não existe. Como para negar 
inteligivelmente  a  existência  de  algo  tenho  de  ter  esse  algo  em  mente,  segue‐se,  na 
perspectiva de Anselmo, que sempre que alguém afirma que algo não existe, esse algo 
existe  no  entendimento.2  Pelo  que  ao  afirmar  que  a  Fonte  da  Juventude  não  existe 
estou a pressupor que a Fonte da Juventude existe no entendimento. E ao afirmar que 
não existe afirmei (na perspectiva de Anselmo) que não existe na realidade. Isto signi‐
fica que a minha afirmação simples de que a Fonte da Juventude não existe equivale à 
afirmação  algo  mais  complexa  de  que  a  Fonte  da  Juventude  existe  no  entendimento 
mas  não  na  realidade  —  em  resumo,  que  a  Fonte  da  Juventude  existe  apenas  no 
entendimento. 
Tendo em conta o que foi dito, podemos compreender por que Anselmo insiste que 
qualquer pessoa que ouve Deus, pensa em Deus, ou até mesmo que nega a existência 
de  Deus  está  ainda  assim  comprometida  com  a  perspectiva  de  que  Deus  existe  no 
entendimento. Além disso, podemos compreender por que Anselmo trata aquilo a que 
chama  a  afirmação  do  tolo,  de  que  Deus  não  existe,  como  a  afirmação  de  que  Deus 
existe apenas no entendimento — isto é, que Deus existe no entendimento mas não na 
realidade. 
No  Monologium,  Anselmo  procurou  provar  que  entre  os  seres  que  efectivamente 
existem há um que é o maior, o mais elevado e o melhor. Mas no Proslogium, Anselmo 
empenha‐se em provar que entre as coisas que existem, há uma que não só é a maior 
entre os seres existentes, mas é tal que nenhum ser concebível é maior. Temos de dis‐
tinguir entre estas duas ideias: 1) um ser maior do que o qual nenhum ser existe, e 2) 
um ser maior do que o qual nenhum ser é concebível. Se as únicas coisas a existir fos‐
sem uma pedra, uma rã e um ser humano, a última destas, o ser humano, satisfaria a 
nossa primeira ideia mas não a segunda — pois podemos conceber um ser (um anjo ou 
Deus) maior do que um humano. A ideia que Anselmo tem de Deus, como a exprime 
no Proslogium, Capítulo 2, é a mesma que em 2 acima; é a ideia de «um ser maior do 
que  o  qual  nada  se  pode  conceber».  Penso  que  nos  será  mais  fácil  compreender  o 
argumento de Anselmo se fizermos duas ligeiras alterações ao modo como ele expri‐
miu a sua ideia de Deus. No lugar da sua expressão colocarei o seguinte: «o ser maior 
do que o qual nenhum é possível».3 Esta ideia diz que se um determinado ser é Deus, 
então  nenhum  ser  possível  pode  ser  maior  do  que  aquele;  ou,  conversamente,  se  um 
dado ser é tal que é possível haver um maior do que ele, então esse ser não é Deus. O 
que Anselmo se propõe então demonstrar é que o ser maior do que o qual nenhum é 
possível existe na realidade. Demonstrando isto, terá demonstrado que Deus, como o 
concebe, existe na realidade. 
Mas  o  que  entende  Anselmo  por  maior?  Será  um  edifício,  por  exemplo,  maior  do 
que  um  homem?  Anselmo  observa:  «Mas  não  me  refiro  à  grandeza  física,  o  modo 
como um objecto material é grande, mas àquilo que é tanto maior quanto melhor ou 
44 
 
mais digno é — a sabedoria, por exemplo».4 Contraste‐se a sabedoria com o tamanho. 
Anselmo afirma que a sabedoria é algo que contribui para a grandeza de uma coisa. Se 
algo passa a ter mais sabedoria do que antes (permanecendo as outras características 
na mesma), então esse algo tornou‐se maior, melhor, mais digno do que antes. Ansel‐
mo afirma que a sabedoria é uma qualidade produtora de grandeza. Mas o mero facto 
de algo aumentar em tamanho (grandeza física) não torna esse algo melhor do que era 
antes. Pelo que o tamanho, ao contrário da sabedoria, não é uma qualidade produtora 
de  grandeza.  Por  maior  do  que  Anselmo  entende  melhor  do  que,  superior  a,  ou  mais 
digno do que, e considera que algumas características, como a sabedoria e a bondade 
moral, são produtoras de grandeza, na medida em que qualquer coisa que as tenha se 
torna  uma  coisa  melhor  do  que  seria  se  não  as  tivesse  (mantendo‐se  iguais  as  suas 
outras características). 
Chegamos agora ao que podemos chamar a ideia crucial no argumento ontológico 
de Anselmo. Anselmo pensa que a existência na realidade é uma qualidade produtora 
de  grandeza.  Como  devemos  entender  esta  ideia?  Será  que  Anselmo  quer  dizer  que 
uma coisa que existe é maior do que uma que não existe? Embora Anselmo não colo‐
que esta questão nem lhe responda, é talvez razoável pensar que não queria dizer isto. 
Isto porque quando discute a sabedoria como uma qualidade produtora de grandeza, 
Anselmo  tem  o  cuidado  de  não  afirmar  que  qualquer  coisa  sábia  é  melhor  do  que 
qualquer coisa néscia; Anselmo reconhece que uma pessoa justa mas néscia pode ser 
melhor  do  que  uma  pessoa  sábia  mas  injusta.5  Sugiro  que  Anselmo  queria  que  qual‐
quer  coisa  que  não  existe  mas  podia  ter  existido  (que  está  no  lado  direito  da  nossa 
linha mas podia estar no esquerdo) seria maior do que é se tivesse existido (se estives‐
se no lado esquerdo da nossa linha). Anselmo não está a comparar duas coisas diferen‐
tes (uma existente e outra inexistente), afirmando que a primeira é portanto maior do 
que a segunda. Ao invés, está a falar acerca de uma única coisa e a chamar a atenção 
para o facto de que se não existe mas podia ter existido, então essa coisa seria maior se 
tivesse  existido.  Usando  a  distinção  que  Anselmo  faz  entre  a  existência  no  entendi‐
mento e a existência na realidade, podemos exprimir do seguinte modo a ideia crucial 
do  seu  raciocínio:  Se  algo  existe  apenas  no  entendimento,  mas  podia  ter  existido  na 
realidade, então podia ser maior do que é. Como a Fonte da Juventude, por exemplo, 
existe apenas no entendimento mas, ao contrário do quadrado redondo, podia existir 
na  realidade,  segue‐se  do  princípio  de  Anselmo  que  a  fonte  da  juventude  podia  ser 
maior do que é. 

Desenvolvendo o argumento ontológico de Anselmo 
Depois  de  termos  visto  algumas  das  ideias  importantes  em  causa  no  argumento 
ontológico de Anselmo, podemos considerar o seu desenvolvimento gradual. Ao apre‐
sentar  o  argumento  de  Anselmo  vou  usar  o  termo  Deus  em  lugar  da  expressão  mais 

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longa «o ser maior do que o qual nenhum é possível»; sempre que o termo Deus apa‐
rece devemos pensar nele apenas como uma abreviatura da expressão mais longa. 

1. Deus existe no entendimento. 

Como vimos, quem quer que tenha ouvido falar no ser maior do que o qual nenhum é 
possível está, na perspectiva de Anselmo, comprometido com a premissa 1. 

2. Deus poderia existir na realidade (Deus é um ser possível). 

Creio que Anselmo supõe a verdade da premissa 2 sem que o faça de modo explícito 
na sua argumentação. Ao afirmar 2, não pretendo sugerir que Deus não existe na reali‐
dade. Tudo o que se quer dizer é que, ao contrário do quadrado redondo, Deus é um 
ser possível. 

3. Se  algo  existe  apenas  no  entendimento  e  podia  existir  na  realidade,  então  podia  ser 
maior do que é. 

Como vimos, esta é a ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo. Pretende‐se 
que seja um princípio geral que se aplica a qualquer coisa. 
  Os passos 1 a 3 constituem as premissas fundamentais do argumento ontológico de 
Anselmo. Destes três itens segue‐se, segundo Anselmo, que Deus existe na realidade. 
Mas como se propõe Anselmo convencer‐nos de que se aceitamos as premissas de 1 a 3 
estamos comprometidos pelas regras da lógica a aceitar a sua conclusão de que Deus 
existe  na  realidade?  Anselmo  defende  a  sua  conclusão  apresentando  o  que  se  chama 
uma «demonstração por reductio ad absurdum». Em vez de mostrar directamente que 
a  existência  de  Deus  se  segue  das  premissas  1  a  3,  Anselmo  convida‐nos  a  supor  que 
Deus  não  existe  (isto  é,  que  a  conclusão  que  ele  deseja  estabelecer  é  falsa)  e  então 
mostra como esta suposição, quando a combinamos com as premissas de 1 a 3, leva a 
um  resultado  absurdo,  um  resultado  que  não  podia  de  modo  algum  ser  verdadeiro 
porque é contraditório. Em resumo, com a ajuda das premissas 1 a 3 Anselmo mostra 
que a suposição de que Deus não existe se reduz a um absurdo. Uma vez que a suposi‐
ção  de  que  Deus  não  existe  leva  a  um  absurdo,  tem  de  se  rejeitar  essa  suposição,  a 
favor da conclusão de que Deus existe. 
  Conseguirá Anselmo reduzir ao absurdo a crença do tolo, de que Deus não existe? A 
melhor maneira de responder a esta questão é seguir os passos do seu argumento. 

4. Suponha‐se que Deus existe apenas no entendimento. 

Esta suposição, como vimos, é a maneira de Anselmo exprimir a crença do tolo de que 
Deus não existe. 

5. Deus podia ser maior do que é. (2, 4 e 3)6 

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O passo 5 segue‐se dos passos 2, 4 e 3. Como 3, se for verdadeiro, se aplica a qualquer 
coisa, aplicar‐se‐á a Deus. O passo 3, portanto, implica que se Deus existe apenas no 
entendimento e podia existir na realidade, então Deus podia ser maior do que é. Se é 
assim, então dados os passos 2 e 4, o passo 5 tem de ser verdadeiro. Porquanto o que o 
passo 3 afirma, quando aplicado a Deus, é que dados os passos 2 e 4, segue‐se 5. 

6. Deus é um ser maior do que o qual é possível haver outro. 

Seguramente que se Deus é tal que podia logicamente ter sido maior, então Deus é um 
ser tal que é possível haver outro maior. 
  Estamos  agora  em  condições  de  avaliar  o  argumento  por  redução  ao  absurdo  de 
Anselmo. Mostrou‐nos que se aceitamos os passos de 1 a 4 temos de aceitar o passo 6. 
Mas  6  é  inaceitável;  é  o  absurdo  que  Anselmo  procurava.  Isto  porque  ao  substituir 
Deus  no  passo  6  pela  expressão  mais  longa  à  qual  serve  de  abreviação,  vemos  que  6 
equivale à seguinte afirmação absurda: 

7. O ser maior do que o qual nenhum é possível é um ser tal que um ser maior é possível. 

Como os passos de 1 a 4 nos levam a uma conclusão obviamente falsa, se aceitarmos as 
premissas  1  a  3,  as  premissas  fundamentais  de  Anselmo,  como  verdadeiras,  então 
temos de rejeitar como falsa a premissa 4: a suposição de que Deus existe apenas no 
entendimento. Assim mostrámos que: 

8. É falso que Deus exista apenas no entendimento. 

Mas uma vez que a premissa 1 nos diz que Deus existe no entendimento, e a premissa 
8 nos diz que Deus não existe apenas aí, podemos inferir que: 

9. Deus existe na realidade bem como no entendimento. (1, 8) 

  O que dizer deste argumento? Na sua maioria, os filósofos que o ponderaram rejei‐
taram‐no  devido  à  convicção  fundamental  de  que  a  partir  da  análise  lógica  de  uma 
certa  ideia  ou  conceito  nunca  podemos  determinar  se  existe  na  realidade  qualquer 
coisa que satisfaça essa ideia ou conceito. 
  Podemos examinar, por exemplo, a ideia de um elefante ou a ideia de um unicórnio, 
mas é apenas através da experiência que temos do mundo que podemos determinar se 
existem coisas que satisfaçam a nossa primeira ideia e não a segunda. Anselmo, contu‐
do, pensa que o conceito de Deus é absolutamente único; pensa que a partir de uma 
análise deste conceito se pode determinar que existe na realidade um ser que o satis‐
faz. Além disso, Anselmo apresenta‐nos um argumento para mostrar que isso se pode 
fazer no caso da ideia de Deus. Podemos, como é óbvio, rejeitar simplesmente o seu 
argumento  por  violar  a  convicção  fundamental  acima  indicada.  Muitos  críticos,  con‐
tudo,  procuraram  provar  de  um  modo  mais  directo  que  o  argumento  de  Anselmo  é 

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mau e chamar a atenção para o passo particular que está incorrecto. No que se segue, 
examinaremos  as  três  principais  objecções  que  foram  apresentadas  pelos  críticos  do 
argumento. 

A crítica de Gaunilo 

  A primeira crítica importante foi apresentada por um contemporâneo de Anselmo, 
um  monge  de  nome  Gaunilo,  que  escreveu  uma  objecção  intitulada  «Em  Defesa  do 
Tolo».7 Gaunilo procurou provar que o raciocínio de Anselmo é incorrecto, aplicando‐
o  a  coisas  que  não  são  Deus,  coisas  que  sabemos  que  não  existem.  Gaunilo  tomou 
como exemplo a ilha maior do que a qual nenhuma é possível. Não existe realmente 
qualquer  ilha  assim.  Mas,  argumenta  Gaunilo,  se  o  raciocínio  de  Anselmo  estivesse 
correcto podíamos mostrar que tal ilha existe realmente. Como existir é maior do que 
não existir, se a ilha maior do que a qual nenhuma é possível não existe, então essa é 
uma ilha maior do que a qual é possível haver outra. Mas é impossível que a ilha maior 
do que a qual nenhuma é possível seja uma ilha maior do que a qual é possível haver 
outra.  Portanto,  a  ilha  maior  do  que  qual  nenhuma  é  possível  tem  de  existir.  Acerca 
deste argumento, comenta Gaunilo: 

  Se  um  homem  tentasse  mostrar‐me  através  de  tal  raciocínio  que  esta  ilha  existe 
realmente e que não se devia duvidar mais da sua existência, das duas, uma: ou pensava 
que ele estava a brincar, ou já não sabia qual de nós era o maior tolo: eu mesmo, supon‐
do que aceitava esta prova; ou ele, se supusesse que tinha estabelecido com alguma cer‐
teza a existência desta ilha.8 

  A  estratégia  de  Gaunilo  é  clara.  Usando  o  mesmo  raciocínio  que  Anselmo  usa  no 
seu argumento, podemos provar a existência de coisas que sabemos que não existem. 
Portanto,  o  raciocínio  de  Anselmo  na  sua  prova  da  existência  de  Deus  tem  de  estar 
incorrecto.  Na  sua  resposta  a  Gaunilo,  Anselmo  insistiu  em  que  o  seu  raciocínio  se 
aplica apenas a Deus e não pode ser usado para estabelecer a existência de outras coi‐
sas  além  de  Deus.  Infelizmente,  Anselmo  não  explicou  ao  certo  por  que  razão  o  seu 
raciocínio não se pode aplicar a coisas como a ilha de Gaunilo. 
  Em defesa de Anselmo contra a objecção de Gaunilo, deve‐se observar que a objec‐
ção supõe que a ilha de Gaunilo é uma coisa possível. Mas isto exige que acreditemos 
que uma coisa finita e limitada (uma ilha) possa ter perfeições ilimitadas. E não é de 
todo em todo claro que isto seja possível. Tente‐se pensar, por exemplo, num jogador 
de hóquei maior do que o qual nenhum é possível. Quão depressa teria esse jogador de 
patinar?  Quantos  golos  teria  tal  jogador  de  marcar  num  jogo?  Quão  rápido  teria  de 
arremessar o disco? Será que este jogador poderia alguma vez cair, ser bloqueado, ou 
sofrer uma penalidade? Embora a expressão «O jogador de hóquei maior do que o qual 
nenhum é possível» pareça ter significado, assim que tentamos obter uma ideia clara 

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de como seria tal ser, descobrimos que não podemos sequer formar uma ideia coeren‐
te dele. Isto porque nos pede para pensar numa coisa finita e limitada — um jogador 
de hóquei ou uma ilha — para depois pensarmos que essa coisa exibe perfeições infini‐
tas e ilimitadas. Talvez então, visto que o raciocínio de Anselmo se aplica apenas a coi‐
sas possíveis, Anselmo possa rejeitar que seja aplicável à ilha de Gaunilo, com base em 
que a ilha maior do que a qual nenhuma é possível é, como o quadrado redondo, uma 
coisa impossível. 

A crítica de Kant 

  A  objecção  de  longe  mais  famosa  ao  argumento  ontológico  foi  formulada  por 
Immanuel Kant no século XVIII. Segundo esta objecção, o erro contido no argumento 
é a afirmação, implícita na premissa 3, de que a existência é uma qualidade ou predi‐
cado que torna qualquer coisa maior. Esta afirmação tem duas partes: 1) a existência é 
uma  qualidade  ou  predicado  e  2)  a  existência,  como  a  sabedoria  e  ao  contrário  da 
grandeza física, é uma qualidade ou predicado produtor de grandeza. Pode‐se aceitar 1 
mas objectar a 2. A objecção que Kant tornou famosa, contudo, dirige‐se a 1. Segundo 
esta  objecção,  a  existência  não  é  de  modo  algum  um  predicado.  Portanto,  como  o 
argumento de Anselmo implica, na terceira premissa, que a existência é um predicado, 
tem de se rejeitar o argumento. 
  O que se quererá dizer com a doutrina filosófica de que a existência não é um pre‐
dicado? A ideia central nesta doutrina diz respeito ao que fazemos quando atribuímos 
uma certa qualidade ou predicado a uma coisa, como, por exemplo, quando dizemos 
que  uma  mulher  que  mora  ao  nosso  lado  é  inteligente,  tem  um  metro  e  oitenta  de 
altura,  ou  é  magra.  Em  cada  caso  parece  que  afirmamos  ou  pressupomos  que  existe 
uma  mulher  que  mora  ao  lado  atribuindo‐lhe  depois  um  certo  predicado  —  «inteli‐
gente», «com um metro e oitenta de altura» ou «magra». E o que muitos defensores da 
doutrina de que a existência não é um predicado defendem é que isto é uma caracte‐
rística geral da predicação. Defendem que quando atribuímos uma qualidade ou pre‐
dicado a uma coisa, afirmamos ou pressupomos que a coisa existe e então atribuímos‐
lhe  o  predicado.  Se  isto  for  verdade,  então  é  claro  que  a  existência  não  pode  ser  um 
predicado  que  possamos  atribuir  ou  negar  a  algo.  Visto  que  se  fosse  um  predicado, 
então quando afirmamos que algo existe estaríamos a afirmar ou a pressupor que exis‐
te  passando  então  a  predicar  a  sua  existência.  Por  exemplo,  se  a  existência  fosse  um 
predicado, então ao afirmar «Os tigres existem» estaríamos a afirmar ou a pressupor 
que os tigres existem para depois predicar a sua existência. Além disso, se a existência 
fosse  um  predicado,  quando  afirmássemos  «os  dragões  não  existem»,  estaríamos  a 
afirmar ou a pressupor que os dragões existem, para depois negar que a existência se 
lhes aplique. Resumindo, se a existência fosse um predicado, a declaração existencial 
afirmativa  «Os  tigres  existem»  seria  redundante,  e  a  declaração  existencial  negativa 
«Os tigres não existem» seria contraditória. Mas é óbvio que «Os tigres existem» não é 

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redundante e que «Os dragões não existem» é verdadeira e, portanto, não é contradi‐
tória. Segundo os defensores da objecção de Kant, isto mostra que a existência não é 
um predicado genuíno. 
  Segundo os defensores da objecção anterior, quando afirmamos que os tigres exis‐
tem e que os dragões não existem não afirmamos que certas coisas (os tigres) têm um 
predicado  especial  ao  passo  que  outras  (os  dragões)  não  têm:  a  existência.  Ao  invés, 
afirmamos algo acerca do conceito de tigre e do conceito de dragão. No primeiro caso 
afirmamos  que  há  algo  no  mundo  ao  qual  o  conceito  de  tigre  se  aplica;  no  segundo, 
afirmamos que nada há no mundo ao qual o conceito de dragão se aplique. 
  Embora esta objecção ao argumento ontológico tenha tido ampla aceitação, é duvi‐
doso  que  seja  uma  refutação  conclusiva  do  argumento.  Pode  ser  verdade  que  a  exis‐
tência  não  é  um  predicado;  que  ao  afirmar  a  existência  de  uma  coisa  não  estamos  a 
atribuir um determinado predicado ou atributo a essa coisa. Mas os argumentos apre‐
sentados  a  favor  desta  perspectiva  parecem  assentar  em  afirmações  incorrectas  ou 
incompletas acerca da natureza da predicação. Por exemplo, o argumento que enun‐
ciámos assenta na afirmação de que quando atribuímos um predicado a qualquer coisa 
afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe. Mas esta afirmação parece incorrec‐
ta. Ao afirmar que o Dr. Doolittle é um zoófilo parece que estou a atribuir o predicado 
zoófilo ao Dr. Doolittle, mas ao fazê‐lo não estou seguramente a afirmar ou a pressu‐
por que o Dr. Doolittle existe efectivamente. Embora não exista, é verdade que o Dr. 
Doolittle é um zoófilo. O que é facto é que podemos falar acerca de muitas coisas que 
não existem e nunca existiram, e atribuir predicados a essas coisas. Merlin, por exem‐
plo, como Houdini, era um mágico, embora Houdini tenha existido e Merlin não. Se, 
como os exemplos sugerem, a afirmação de que sempre que atribuímos um predicado 
a alguma coisa afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe é uma afirmação falsa, 
então precisaremos de um argumento melhor para defender a doutrina de que a exis‐
tência  não  é  um  predicado.  Há  dúvidas,  contudo,  sobre  se  alguém  terá  conseguido 
apresentar um argumento realmente conclusivo a favor da perspectiva de que a exis‐
tência não é um predicado.9 

Uma terceira crítica 

  Uma  terceira  objecção  ao  argumento  ontológico  põe  em  causa  a  premissa  de  que 
Deus  poderia  existir  na  realidade  (que  Deus  seja  um  ser  possível).  Como  vimos,  esta 
premissa afirma que «o ser maior do que o qual nenhum é possível» não é um objecto 
impossível. Mas será isto verdade? Considere‐se a série dos números naturais — 1, 2, 3, 
4, etc. Sabemos que qualquer número inteiro nesta série, por maior que seja, é tal que 
é  possível  outro  número  maior.  Portanto,  «o  número  natural  maior  do  que  o  qual 
nenhum é possível» é um objecto impossível. Talvez isto também se aplique a «o ser 
maior  do  que  o  qual  nenhum  é  possível».  Isto  é,  talvez  seja  possível,  independente‐
mente  da  grandeza  de  um  ser,  haver  outro  maior.  Se  assim  for,  portanto,  o  Deus  de 

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Anselmo não seria um objecto possível, assim como não o é «o número natural maior 
do que o qual nenhum é possível». O simples facto de haver graus de grandeza, contu‐
do, não nos permite concluir que o Deus de Anselmo é como «o número natural maior 
do que o qual nenhum é possível». Os ângulos, por exemplo, têm graus de tamanho — 
um ângulo pode ser maior do que outro — mas não é verdade que independentemente 
do  tamanho  de  um  ângulo,  seja  possível  haver  um  maior.  É  logicamente  impossível 
que  um  ângulo  exceda  a  dimensão  de  quatro  ângulos  rectos.  A  noção  de  ângulo,  ao 
contrário da noção de número natural, implica um grau de tamanho que é impossível 
ultrapassar. Será o Deus de Anselmo como o maior número natural, e portanto impos‐
sível,  ou  como  o  maior  ângulo,  e  portanto  possível?  Alguns  filósofos  argumentaram 
que o Deus de Anselmo é impossível.10 Mas os argumentos a favor desta conclusão não 
são persuasivos. Talvez por isso se interprete melhor esta objecção não como prova de 
que o Deus de Anselmo é impossível, mas como o levantar da questão de algum de nós 
estar ou não em condições de saber que «o ser maior do que o qual nenhum é possí‐
vel» é um objecto possível. Pois o argumento de Anselmo não pode ser uma prova efi‐
caz  da  existência  de  Deus  a  menos  que  as  suas  premissas  sejam  não  só  verdadeiras, 
mas também que se  saiba que são verdadeiras. Logo, se não sabemos que o  Deus de 
Anselmo é um objecto possível, então o seu argumento não pode provar‐nos a existên‐
cia de Deus — não nos permite saber que Deus existe. 

Uma última crítica 

  Demos uma vista de olhos ao argumento de Anselmo e às três principais objecções 
que  outros  filósofos  lhe  levantaram.  Nesta  última  secção  apresento  uma  crítica  algo 
diferente ao argumento, uma crítica sugerida pela convicção fundamental que se indi‐
cou antes — nomeadamente, que da mera análise lógica de uma certa ideia ou concei‐
to, nunca podemos determinar que existe alguma coisa na realidade que satisfaça essa 
ideia ou conceito. 
  Suponha‐se que alguém se nos dirige e diz: 

  Proponho‐me definir o termo Deus como um ser absolutamente perfeito, que existe. 
Uma vez que não pode ser verdade que um ser absolutamente perfeito, que existe, não 
exista, não pode ser verdade que Deus, como o defini, não exista. Portanto, Deus tem de 
existir. 

  Isto parece um argumento ontológico muito simples. Começa com uma ideia parti‐
cular  ou  conceito  de  Deus  e  termina  concluindo  que  Deus,  concebido  desse  modo, 
tem de existir. O que podemos responder a isto? Podemos começar por objectar a esta 
definição de Deus, afirmando 1) que só se pode definir um termo com predicados e 2) 
que a existência não é um predicado. Mas suponha‐se que o nosso amigo não se deixa 
impressionar  por  esta  resposta  —  quer  porque  pensa  que  ninguém  explicou  exausti‐

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vamente o que é um predicado, nem provou que a existência não é um predicado, quer 
porque pensa que qualquer pessoa pode definir uma palavra do modo como bem lhe 
apetece. Podemos aceitar que o nosso amigo defina a palavra Deus como bem lhe ape‐
teça e esperar ainda assim mostrar que dessa definição não se segue que existe efecti‐
vamente  algo  a  que  este  conceito  de  Deus  se  aplica?  Penso  que  sim.  Convidemo‐lo 
primeiro,  contudo,  a  considerar  alguns  conceitos  além  do  seu  peculiar  conceito  de 
Deus. 
  Vimos  que o  termo  mágico  se  pode  aplicar  tanto  a  Houdini  como  a  Merlin,  ainda 
que o primeiro tenha existido ao passo que o segundo nunca existiu. Observando que 
o nosso amigo usou que existe como parte da sua definição de Deus, suponha‐se que 
concordamos  com  ele  em  poder  definir  uma  palavra  do  modo  como  nos  apetecer 
introduzindo, consequentemente, as seguintes palavras com as seguintes definições: 

Define‐se magião como um mágico que existe. 
Defini‐se mágio como um mágico inexistente. 

  Aqui introduzimos duas palavras e usámos que existe e inexistente nas suas defini‐
ções. Segue‐se agora algo interessante do facto de que existe fazer parte da nossa defi‐
nição  de  um  magião.  Pois  embora  sendo  verdade  que  Merlin  era  um  mágico,  não  é 
verdade que Merlin fosse um magião. E segue‐se algo interessante de termos incluído 
inexistente  na  definição  de  mágio.  Pois  embora  sendo  verdade  que  Houdini  foi  um 
mágico, não é verdade que foi um mágio. Houdini foi um mágico e um magião, mas 
não um mágio, ao passo que Merlin era um mágico e um mágio, mas não um magião. 
  Acabámos de ver que introduzir que existe ou inexistente na definição de um con‐
ceito tem uma consequência muito importante. Se introduzimos que existe na defini‐
ção  de  um  conceito,  segue‐se  que  nenhuma  coisa  inexistente  pode  exemplificar  esse 
conceito.  E  se  introduzimos  inexistente  na  definição  de  um  conceito,  segue‐se  que 
nenhuma coisa existente pode exemplificar esse conceito. Nenhuma coisa inexistente 
pode ser um magião e nenhuma coisa existente pode ser um mágio. 
  Mas terá alguma coisa existente de exemplificar o conceito de magião? Não! Do fac‐
to de se incluir que existe na definição de magião não se segue que algo existente é um 
magião — tudo o que se segue é que nenhuma coisa inexistente é um magião. Se não 
existissem  quaisquer  mágicos,  nada  haveria  a  que  se  pudesse  aplicar  o  conceito  de 
magião.  Sendo  assim,  é  óbvio  que  não  se  segue  meramente  da  nossa  definição  de 
magião  que  algo  existente  é  um  magião.  Só  se  existirem  mágicos  é  que  será  verdade 
que uma coisa existente é um magião. 
  Estamos agora em condições de ajudar o nosso amigo a ver que, do mero facto de se 
definir Deus como ser absolutamente perfeito que existe, não se segue que há um ser 
existente que seja Deus. Segue‐se algo interessante desta definição — nomeadamente, 
que nenhum ser inexistente pode ser Deus. Mas o facto de haver ou não algo existente 
que  seja  Deus  depende  inteiramente  de  haver  ou  não  algo  existente  que  seja  um  ser 

52 
 
absolutamente perfeito. Se não existe qualquer ser absolutamente perfeito, nada have‐
rá a que se possa aplicar este conceito de Deus. Sendo assim, é óbvio que não se segue 
meramente desta definição de Deus que há algo existente que seja Deus. Só se existir 
um  ser  absolutamente  perfeito  é  que  será  verdade  que  Deus,  como  o  nosso  amigo  o 
concebe, existe. 

Implicações para o argumento de Anselmo 

  Pode‐se  agora  seguir  as  implicações  destas  considerações  para  o  engenhoso  argu‐
mento de Anselmo. Anselmo imagina Deus como um ser maior do que o qual nenhum 
é  possível.  Afirma  então  que  a  existência  é  uma  qualidade  produtora  de  grandeza; 
qualquer  coisa  que  a  tenha  é  maior  do  que  seria  se  lhe  faltasse  a  existência.  É  então 
óbvio  que  nenhuma  coisa  inexistente  pode  exemplificar  o  conceito  anselmiano  de 
Deus. Porquanto se supomos que algo inexistente exemplifica o conceito anselmiano 
de Deus e se também supomos que esse algo inexistente podia existir na realidade (ou 
seja, se supomos que é algo possível), então supomos que esse algo inexistente 1) podia 
ser  maior  e  2)  é,  ainda  assim,  uma  coisa  maior  do  que  a  qual  não  é  possível  haver 
outra. Até aqui o raciocínio de Anselmo é, segundo penso, irrepreensível. Mas o que se 
segue  daí?  Tudo  o  que  daí  se  segue  é  que  nenhuma  coisa  inexistente  pode  ser  Deus 
(como Anselmo o imagina). Tudo o que se segue é que dado o conceito anselmiano de 
Deus, a proposição «Alguma coisa inexistente é Deus» não pode ser verdadeira. Mas, 
como vimos, isto também acontece com a proposição «Alguma coisa inexistente é um 
magião». Falta mostrar que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano 
de Deus. O que realmente se segue deste raciocínio é que só algo que exista efectiva‐
mente pode logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. E esta conclusão não é 
desinteressante. Mas do simples facto de que nada senão algo existente poderia exem‐
plificar  o  conceito  anselmiano  de  Deus  não  se  segue  que  algo  existente  exemplifica 
efectivamente o seu conceito de Deus — do mesmo modo que não se segue do simples 
facto de nenhuma coisa inexistente poder ser um magião que alguma coisa existente é 
um magião.11 
  Há, contudo, uma dificuldade importante nesta crítica ao argumento de Anselmo. 
Esta  dificuldade  surge  quando  atentamos  na  sua  afirmação  implícita  de  que  Deus  é 
uma coisa possível. Para ver ao certo o que é esta dificuldade, regressemos à ideia de 
coisa possível. Uma coisa possível, segundo determinámos, é qualquer coisa que está 
ou no lado esquerdo da nossa linha imaginária ou que logicamente podia estar no lado 
esquerdo da linha. As coisas possíveis, então, serão todas as coisas que, ao contrário do 
quadrado redondo, não são impossíveis. Suponha‐se que concedemos a Anselmo que 
Deus, como ele o concebe, é uma coisa possível. É claro que o mero conhecimento de 
que  algo  é  uma  coisa  possível  não  nos  permite  concluir  que  essa  coisa  é  uma  coisa 
existente. Visto que muitas coisas possíveis, como a Fonte da Juventude, não existem. 
Mas se algo é uma coisa possível, então ou é uma coisa existente ou uma coisa inexis‐

53 
 
tente. Pode‐se dividir exaustivamente o conjunto das coisas possíveis em coisas possí‐
veis que existem efectivamente e coisas possíveis que não existem. Portanto, se o Deus 
de Anselmo é uma coisa possível, ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. 
Concluímos,  contudo,  que  nenhuma  coisa  inexistente  pode  ser  o  Deus  de  Anselmo; 
portanto, parece que temos de concluir com Anselmo que alguma coisa efectivamente 
existente exemplifica de facto o seu conceito de Deus. 
  Para  ver  a  solução  desta  importante  dificuldade  precisamos  de  regressar  a  um 
exemplo anterior. Consideremos mais uma vez a ideia de um magião, um mágico exis‐
tente. Por acaso têm existido mágicos — Houdini, o Grande Blackstone, e outros. Mas, 
obviamente,  podia  não  ter  sido  assim.  Suponha‐se,  momentaneamente,  que  nunca 
tinham existido quaisquer mágicos. O conceito de «mágico» teria ainda aplicação, pois 
continuaria  a  ser  verdade  que  Merlin  era  um  mágico.  E  quanto  ao  conceito  de 
«magião»?  Será  que  esse  conceito  discriminaria  qualquer  objecto  possível?  Não!  Pois 
nenhuma  coisa  inexistente  poderia  exemplificar  o  conceito  de  «magião».  E  supondo 
que  nunca  existiram  mágicos,  nenhuma  coisa  existente  exemplificaria  o  conceito  de 
«magião».12 Teríamos então o conceito coerente de «magião», que não seria exemplifi‐
cado por qualquer objecto possível. Pois se todos os objectos possíveis que são mági‐
cos fossem coisas inexistentes, nenhum deles seria um magião; e como nenhum objec‐
to  possível  que  existe  seria  um  mágico,  nenhum  seria  um  magião.  Teríamos  então  o 
conceito coerente e consistente de «magião», que na verdade não é exemplificado por 
qualquer objecto possível. Formulada assim, a nossa conclusão parece paradoxal. Visto 
que nos inclinamos a pensar que só conceitos contraditórios, como «quadrado redon‐
do», não são exemplificados por quaisquer coisas possíveis. A verdade, contudo, é que 
quando que existe está incluído num certo conceito ou é por ele implicado, pode acon‐
tecer que nenhum objecto possível exemplifique de facto esse conceito. Pois nenhum 
objecto possível que não exista exemplificará um conceito como «magião», que inclui 
que  existe;  e  se  não  há  coisas  existentes  que  exemplifiquem  as  outras  características 
incluídas no conceito — por exemplo, «ser um mágico» no caso do conceito «magião» 
— então nenhum objecto possível que exista exemplificará o conceito. Dito da forma 
mais simples: ao perguntar se qualquer coisa possível é ou não um magião, a resposta 
dependerá inteiramente de haver ou não quaisquer coisas existentes que sejam mági‐
cos.  Se  nenhuma  coisa  existente  é  um  mágico,  então  nenhuma  coisa  possível  é  um 
magião. Um objecto possível é um magião só se alguma coisa efectivamente existente 
for um mágico.13 
  Aplicando estas considerações ao argumento de Anselmo podemos ver a solução da 
nossa importante dificuldade. Dado o conceito anselmiano de Deus e o seu princípio 
de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza, segue‐se de facto que só 
algo efectivamente existente poderia logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. 
Mas argumentámos que não se segue, a partir destas considerações apenas, que Deus 
existe efectivamente — que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano 
de Deus. A dificuldade com que nos deparámos, contudo, é que ao adicionar a premis‐
54 
 
sa de que Deus é uma coisa possível, ou seja, a premissa de que algum objecto possível 
exemplifica o conceito anselmiano de Deus, segue‐se realmente que Deus existe efec‐
tivamente: que algo efectivamente existente exemplifica o seu conceito de Deus. Pois 
se um objecto possível exemplifica o seu conceito de Deus, esse objecto ou é uma coisa 
existente ou uma coisa inexistente. Mas uma vez que nenhuma coisa inexistente pode 
exemplificar  o  conceito  anselmiano  de  Deus,  segue‐se  que  o  objecto  possível  que 
exemplifica o seu conceito de Deus tem de ser um objecto possível que exista efecti‐
vamente. Portanto, dado 1) o conceito anselmiano de Deus, 2) o seu princípio de que a 
existência é uma qualidade produtora de grandeza e 3) a premissa de que Deus, como 
Anselmo  o  concebe,  é  uma  coisa  possível,  segue‐se  de  facto  que  o  Deus  de  Anselmo 
existe efectivamente. 

Uma concessão demasiado generosa 

  Penso que podemos ver que ao conceder a Anselmo a premissa de que Deus é uma 
coisa possível concedemos muito mais do que pretendíamos. Pensámos conceder ape‐
nas que o conceito anselmiano de Deus, ao contrário do conceito de quadrado redon‐
do,  não  é  contraditório  nem  incoerente.  Mas  sem  nos  apercebermos,  estávamos  de 
facto a conceder muito mais do que isto, como se tornou visível quando considerámos 
a ideia de «magião». Nada há de contraditório na ideia de um magião, um mágico que 
existe. Mas ao afirmar que um magião é uma coisa possível, estamos, como vimos, a 
sugerir directamente que alguma coisa existente é um mágico. Pois se nenhuma coisa 
existente é um mágico, o conceito de magião não se aplicará de modo algum a qual‐
quer  objecto  possível.  A  mesma  ideia  se  aplica  ao  Deus  de  Anselmo.  Uma  vez  que  o 
conceito anselmiano de Deus não se pode logicamente aplicar a uma coisa inexistente, 
os únicos objectos possíveis aos quais se poderá aplicar são objectos possíveis que exis‐
tam efectivamente. Portanto, ao conceder que o Deus de Anselmo é uma coisa possí‐
vel, não estamos a conceder apenas que a sua ideia de Deus não é incoerente nem con‐
traditória.  Suponha‐se,  por  exemplo,  que  todo  o  ser  existente  tem  uma  imperfeição 
que  podia  não  ter  tido.  Sem  nos  apercebermos,  estávamos  a  negar  isto  ao  conceder 
que o Deus de Anselmo é um ser possível. Pois se todo o ser existente tem um defeito 
que podia não ter tido, então todo o ser existente podia ser maior. Mas se todo o ser 
existente  podia  ser  maior,  então  o  conceito  anselmiano  de  Deus  não  se  aplicará  a 
qualquer objecto possível. Portanto, se concedemos a Anselmo o seu conceito de Deus 
e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza, então ao 
conceder que Deus, como Anselmo o concebe, é um ser possível, estaremos a conceder 
muito  mais  do  que  a  coerência  do  seu  conceito  de  Deus.  Estaremos  a  conceder,  por 
exemplo,  que  uma  coisa  existente  é  tão  perfeita  quanto  o  pode  ser.  Pois  a  verdade  é 
que  só  se  alguma  coisa  existente  for  tão  perfeita  quanto  o  pode  ser  é  que  o  Deus  de 
Anselmo será uma coisa possível. 

55 
 
  A nossa última crítica ao argumento de Anselmo é apenas esta. Ao conceder que o 
Deus  de  Anselmo  é  uma  coisa  possível,  estamos  de  facto  a  conceder  que  o  Deus  de 
Anselmo existe efectivamente. Mas como o objectivo do argumento era provar que o 
Deus  de  Anselmo  existe,  não  se  pode  pedir  que  concedamos  em  lugar  de  premissa 
uma  afirmação  que  quase  equivale  à  conclusão  que  se  tem  de  provar.  O  conceito 
anselmiano de Deus pode ser coerente e o seu princípio de que a existência é uma qua‐
lidade  produtora  de  grandeza  pode  ser  verdadeiro.  Mas  tudo  o  que  daqui  se  segue  é 
que nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo. Se a tudo isto acrescen‐
tarmos a premissa de que Deus é uma coisa possível, seguir‐se‐á que Deus existe efec‐
tivamente. Mas a premissa adicional não afirma apenas que o conceito anselmiano de 
Deus não é incoerente nem contraditório. Equivale à afirmação de que um ser existen‐
te é supremamente grandioso. E como em parte é isto que o argumento procura pro‐
var, cai em petição de princípio: pressupõe a ideia cuja verdade devia provar. 
  Se a crítica acima está correcta, o argumento de Anselmo não pode ser uma prova 
da existência de Deus. Contudo, isto não equivale a afirmar que o argumento não é um 
trabalho de génio. Talvez nenhum outro argumento na história do pensamento tenha 
levantado  tantas  questões  filosóficas  fundamentais  e  estimulado  tanta  reflexão.  Mes‐
mo não conseguindo ser uma prova da existência de Deus, continuará a ser uma das 
maiores façanhas do intelecto humano. 

Revisão 
1. O que se entende por ser impossível, ser possível, ser contingente, e ser necessário? Dê 
um exemplo de cada um dos três. 
2. Que distinção faz Anselmo entre a existência no entendimento e a existência na reali‐
dade? 
3. Qual é a ideia crucial no argumento ontológico? 
4. Quais são, resumidamente, as três objecções tradicionais ao argumento ontológico? 
5. Explique a última objecção, que afirma que o argumento ontológico cai em petição de 
princípio. 

Estudo complementar 
1. No Capítulo 3 do seu Proslogium, Anselmo introduz o princípio de que se um ser existe 
de tal modo que não podia deixar de existir, é maior do que um ser que existe mas que 
podia não existir. Compare e contraste este princípio com a ideia crucial do argumento 
ontológico.  Tente  formular  uma  segunda  versão  do  argumento  ontológico  usando  o 
princípio do Proslogium, no Capítulo 3. 
2. Qual das diversas objecções ao argumento ontológico lhe parece mais plausível? Qual 
lhe parece menos plausível? Porquê? 

56 
 
Notas 
1. Alguns  filósofos  pensam  que  Anselmo  apresenta  um  argumento  diferente  e  mais 
cogente no Capítulo 3 do seu Proslogium. Para este ponto de vista, ver Charles Harts‐
horne,  Anselm’s  Discovery  (La  Salle,  IL:  Open  Court  Publishing  Co.,  1965)  e  Norman 
Malcom,  «Anselm’s  Ontological  Arguments»,  The  Philosophical  Review  LXIX,  n.º  1 
(1960),  pp.  41‐62.  Para  uma  explicação  esclarecedora  das  intenções  de  Anselmo  no 
Proslogium, II e III, e em recentes interpretações de Anselmo, ver o ensaio de Arthur C. 
McGill,  «Recent  Discussions  of  Anselm’s  Argument»  em  The  Many‐Faced  Argument, 
org. John Hick e Arthur C. McGill (Nova Iorque: The MacMillan Co., 1967), pp. 33‐110. 
[Santo Anselmo, Proslogion, trad. Costa Macedo, Porto: Porto Editora, 1996.] 
2. Anselmo admite que se possa pronunciar a frase «Deus não existe» sem que se tenha 
no  entendimento  o  objecto  ou  ideia  que  a  palavra  Deus  refere.  Ver  Santo  Anselmo, 
Proslogium,  IV, em Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N. Deane  (La Salle, IL: 
Open Court Publishing Co., 1962). Mas quando se compreende de facto o objecto que a 
palavra refere, então quando se usa a palavra numa frase que nega a existência desse 
objecto, tem de se ter esse objecto no entendimento. É duvidoso, contudo, que Ansel‐
mo pensasse que as expressões incoerentes ou contraditórias como quadrado redondo 
refiram objectos que podem existir no entendimento. 
3. Anselmo fala de um ser em vez de o ser maior do que o qual nenhum ser se pode con‐
ceber. O seu argumento é mais fácil de apresentar se exprimirmos a sua ideia de Deus 
em  termos  de  o  ser.  Em  segundo  lugar,  para  evitar  as  conotações  psicológicas  de  se 
pode conceber substituí essa expressão por possível. 
4. S. Anselmo, Monologium, II, em Saint Anselm: Basic Writings. 
5. S. Anselmo, Monologium, XV, em Saint Anselm: Basic Writings. 
6. Os números entre parêntesis referem‐se a passos anteriores no argumento, do qual se 
deriva o presente passo. 
7. O  breve  ensaio  de  Gaunilo,  a  resposta  de  Anselmo,  e  várias  das  principais  obras  de 
Anselmo, traduzidas por Sidney N. Deane, estão coligidas em Saint Anselm: Basic Wri‐
tings. 
8. Deane, Saint Anselm: Basic Writings, p. 151. 
9. Talvez a apresentação mais sofisticada da objecção segundo a qual a existência não é 
um predicado seja a de William P. Alston, «The Ontological Argument Revisited», The 
Philosophical Review, LXIX (1960), pp. 452–474. 
10. Ver, por exemplo, a discussão que C. D. Broad faz do argumento ontológico, em Reli‐
gion, Philosophy, and Physical Research (Nova Iorque: Harcourt, Brace & Co., 1953). 
11. Pode‐se  encontrar  um  argumento  segundo  estas  linhas  no  esclarecedor  ensaio  de  J. 
Shaffer, «Existence, Predication and the Ontological Argument», Mind LXXI (1962), pp. 
307–325. 
12. Estou em dívida para com o Professor William Wainwright, por me chamar a atenção 
para esta ideia. 
13. Na linguagem dos mundos possíveis, podemos afirmar que um objecto x é um magião 
num mundo possível w, desde que i) x seja um mágico em w e ii) x seja um mágico em 

57 
 
qualquer mundo que seja o mundo efectivo. Para mais informação sobre este assunto, 
bem  como  uma  discussão  crítica  de  algumas  versões  do  argumento  ontológico,  ver  o 
meu ensaio «Modal Versions of the Ontological Argument» em Louis Pojman, org. Phi‐
losophy of Religion: An Anthology, 3.ª ed. (Belmont, CA: Wadsworth, 1998). 

58 
 
Capítulo 4 
O argumento do desígnio (o antigo e o 
novo) 

  O  ponto  de  partida  do  antigo  argumento  do  desígnio  é  o  nosso  sentimento  de 
assombro  não  por  existirem  coisas  mas  por  muitas  das  coisas  que  existem  no  nosso 
universo  manifestarem  ordem  e  desígnio.  Partindo  deste  sentido  de  assombro,  o 
argumento procura convencer‐nos de que seja o que for que produziu o universo, tem 
de ser um ser inteligente. Talvez a formulação mais famosa do argumento esteja nos 
Diálogos Sobre a Religião Natural, de David Hume: 

  Olhai  o  mundo  em  volta:  contemplai  o  todo  e  cada  parte:  descobrireis  que  não  é 
senão  uma  enorme  máquina,  subdividida  num  número  infinito  de  máquinas  menores, 
que por sua vez se subdividem para lá do que os sentidos e faculdades humanos conse‐
guem  seguir  e  explicar.  Todas  estas  diversas  máquinas,  e  mesmo  as  suas  partes  mais 
diminutas,  ajustam‐se  entre  si  com  uma  precisão  que  deixa  estupefactos  todos  os 
homens que já as contemplaram. A curiosa adaptação de meios a fins em toda a nature‐
za  assemelha‐se  exactamente,  embora  em  muito  os  exceda,  aos  produtos  do  engenho 
humano; do desígnio, pensamento, sabedoria e inteligência humanos. Visto que, portan‐
to, os efeitos se assemelham entre si, somos levados a inferir, segundo todas as regras da 
analogia, que as causas também se assemelham; e que o Autor da Natureza é de algum 
modo  similar  à  mente  do  homem,  embora  detentor  de  faculdades  muito  mais  vastas, 
proporcionais  à  grandeza  da  obra  que  executou.  Com  este  argumento  a  posteriori,  e 
apenas com este argumento, provamos de uma só vez a existência de uma Divindade, e a 
sua similaridade com a mente e inteligência humanas.1 

Argumento por analogia 
  Há uma analogia, diz‐nos esta passagem, entre muitas coisas na natureza e coisas 
produzidas  por  seres  humanos  —  como  por  exemplo,  máquinas.  Visto  que  sabemos 
que as máquinas (relógios, câmaras, máquinas de escrever, automóveis, etc.) são pro‐
duzidas  por  seres  inteligentes,  e  visto  que  muitas  coisas  na  natureza  se  assemelham 
tão intimamente a máquinas, estamos autorizados «segundo todas as regras da analo‐
gia» a concluir que seja o que for que tenha produzido esses objectos naturais é um ser 
inteligente.  O  argumento  do  desígnio,  então,  tal  como  esta  passagem  o  apresenta,  é 

59 
 
um  argumento  por  analogia,  e  para  o  que  nos  interessa  pode‐se  apresentá‐lo  do 
seguinte modo: 

1. As máquinas são produzidas por desígnio inteligente. 
2. O universo assemelha‐se a uma máquina. 

Logo, 

3. Provavelmente o universo foi produzido por desígnio inteligente. 

  As  questões  críticas  que  temos  de  considerar  ao  avaliar  o  antigo  argumento  do 
desígnio resultam sobretudo do facto de o argumento usar o raciocínio analógico. Para 
melhor  compreender  tal  raciocínio,  consideremos  o  seguinte  exemplo  do  seu  uso. 
Suponha o leitor que trabalha num laboratório químico e que de algum modo conse‐
guiu produzir um novo composto. Ocorre‐lhe que um trago deste composto químico 
poderá  ter  resultados  bastante  benéficos.  Por  outro  lado,  visto  que  não  se  conhece 
bem as suas propriedades, também lhe ocorre que o composto pode ser consideravel‐
mente  prejudicial.  Sendo  ao  mesmo  tempo  cauteloso  e  curioso,  o  leitor  procura  um 
modo de descobrir se o químico o irá beneficiar ou prejudicar, sem chegar realmente a 
bebê‐lo.  Ocorre‐lhe  que  podia  colocar  sub‐repticiamente  um  pouco  do  químico  na 
comida dos seus convidados para o jantar nessa noite e simplesmente esperar para ver 
o que acontece. Se todos morrerem no espaço de uma hora após a ingestão do quími‐
co,  então  terá  indícios  excepcionalmente  fortes  de  que  este  lhe  fará  mal.  Por  razões 
óbvias, contudo, sente que é incorrecto experimentar noutros seres humanos um quí‐
mico desconhecido, particularmente nos seus convidados para jantar. Ao invés, coloca 
alguns macacos ou ratos em contacto com o químico e conclui, a partir do efeito que 
tem sobre eles, o efeito provável que terá em si. 
  Reflectir neste exemplo ajudar‐nos‐á a compreender o que o raciocínio analógico é 
e por que às vezes temos de o usar ao tentar descobrir algo acerca de nós próprios e do 
mundo. Se tivesse dado o químico a um grupo de seres humanos — os seus convida‐
dos para jantar, digamos — então a partir do efeito do químico neles poderia inferir o 
efeito que teria em si. Tal raciocínio não seria analógico visto que os seus convidados 
são  exactamente  como  o  leitor;  pertencem  à  mesma  categoria  natural  a  que  o  leitor 
pertence:  a  categoria  dos  seres  humanos.  Acontece  que  não  podia  envolver‐se  num 
raciocínio  tão  directo  porque  a  categoria  natural  imediata  —  a  categoria  dos  seres 
humanos — a que o leitor pertence não podia ser objecto de estudo no que diz respei‐
to a esse composto. O leitor faz então o melhor que pode: escolhe uma categoria natu‐
ral,  a  categoria  dos  macacos,  à  qual  o  leitor  não  pertence,  mas  a  cujos  membros  se 
assemelha em alguns aspectos. O leitor é semelhante aos macacos pelo facto de ter um 
sistema nervoso, sangue quente, e noutros aspectos. Além disso, os modos pelos quais 
se assemelha aos macacos são relevantes para descobrir o efeito provável do químico 
no leitor. As criaturas que têm um sistema nervoso central, sangue quente, e são simi‐

60 
 
lares  noutros  aspectos,  tendem  a  ter  respostas  similares  a  substâncias  químicas.  De 
modo  que  embora  o  raciocínio  analógico  que  o  leitor  acaba  por  usar  seja  algo  mais 
fraco do que o raciocínio directo que teria usado se pudesse experimentar o químico 
em  seres  humanos,  é,  não  obstante,  um  bom  raciocínio,  e  dá‐lhe  indícios  relevantes 
sobre o efeito provável que o químico terá em si. 
  O  argumento  do  desígnio  procura  responder  à  questão  de  o  universo  resultar  ou 
não  de  desígnio  inteligente.  Se  tivéssemos  observado  a  origem  de  muitos  universos 
além  do  nosso  e  observado  também  que  resultaram,  na  totalidade  ou  na  maioria,  de 
desígnio inteligente, podíamos então argumentar directamente que o nosso  universo 
talvez tenha surgido por desígnio inteligente. Isto não seria raciocínio analógico visto 
que  teríamos  raciocinado  a  partir  de  coisas  (outros  universos)  que  são  exactamente 
semelhantes ao nosso objecto de estudo, o nosso universo. Mas como não temos qual‐
quer conhecimento ou experiência de outros universos além do nosso, temos de usar o 
raciocínio analógico; temos de começar com coisas que se assemelham mas não são o 
mesmo  que  o  nosso  universo  e  inferir  que  uma  vez  que  essas  coisas  surgiram  por 
desígnio inteligente, é provável que o nosso universo tenha surgido por desígnio inte‐
ligente. Sendo este um argumento analógico baseado na semelhança entre coisas dife‐
rentes, tem de ser mais fraco do que um argumento directo a partir de coisas exacta‐
mente  semelhantes  (isto  é,  outros  universos),  mas  isto  é  claramente  o  melhor  que 
podemos fazer se procuramos conhecimento acerca de seja o que for que produziu o 
nosso universo. Obviamente que a força do argumento dependerá das características 
em função das quais estoutras coisas se assemelham ao nosso universo e da relevância 
destas características para a questão de o nosso universo ter ou não surgido por desíg‐
nio inteligente. Temos agora de dar continuidade a estas questões mais amplas. Temos 
de colocar duas questões:  

1) Em  função  de  que  características  se  diz  que  o  nosso  universo  se  assemelha  a  uma 
máquina? 
2) São estas características relevantes para a questão de o universo ter ou não surgido por 
desígnio inteligente? 

O universo como máquina 

  De que maneira ou maneiras se assemelhará o universo a uma máquina? O teólogo 
setecentista inglês, William Paley, um dos maiores defensores do argumento do desíg‐
nio, comparou o universo a um relógio e afirmou que toda a manifestação de desígnio 
que  há  num  relógio  há  também  no  funcionamento  da  natureza.  E,  na  passagem  dos 
Diálogos Sobre a Religião Natural atrás citada, chama‐se a atenção para «uma curiosa 
adaptação de meios a fins» em toda a natureza. Ao que parece, então, o modo como o 
universo supostamente se assemelha a uma máquina assenta na ideia de que há partes 
da natureza que se relacionam entre si do mesmo modo que as partes de uma máquina 

61 
 
se  relacionam  entre  si.  Se  podemos  obter  uma  imagem  mais  clara  do  modo  exacto 
como as partes das máquinas se relacionam entre si, podemos ver se os defensores do 
argumento  do  desígnio  têm  razão  ao  pensar  que  há  muitas  coisas  na  natureza  cujas 
partes se relacionam entre si exactamente do mesmo modo. 
  Se examinarmos um relógio de bolso que funciona em condições, depressa observa‐
remos  que  as  suas  partes  estão  conectadas  de  tal  modo  que  quando  uma  parte  se 
move,  isto  causa  também  o  movimento  de  outras  partes  —  as  rodas  dentadas,  por 
exemplo, estão dispostas de tal modo que o movimento de uma causa o movimento de 
outra. Esta é uma característica comum das máquinas com partes móveis, e é também 
uma característica que se encontra no universo. O nosso sistema solar, por exemplo, 
compõe‐se de partes — o Sol, os planetas, as suas luas — que se movem, e ao mover‐se 
causam, através da força gravitacional, o movimento de outras partes. Embora isto seja 
verdade,  não  diz  todavia  tudo  acerca  de  como  as  partes  das  máquinas  se  relacionam 
entre si. Visto que se olharmos novamente para o nosso relógio, descobrimos não só 
que  as  suas  partes  estão  dispostas  de  modo  a  funcionarem  conjuntamente,  mas  que 
sob  as  condições  adequadas  funcionam  conjuntamente  para  servir  uma  determinada 
finalidade. As partes de um relógio estão dispostas de modo a funcionarem conjunta‐
mente sob as condições adequadas para nos permitir saber as horas. O mesmo sucede 
com as partes de outras máquinas — automóveis, câmaras ou máquinas de escrever. 
As  partes  destas  máquinas  relacionam‐se  todas  entre  si  de  tal  modo  que  funcionam 
conjuntamente sob as condições adequadas para servir uma finalidade. 
  Captemos esta interessante característica das máquinas introduzindo a ideia de sis‐
tema teleológico. Digamos que um sistema teleológico é qualquer sistema composto de 
partes em que estas se encontram dispostas de tal modo que funcionam conjuntamen‐
te sob as condições adequadas para servir uma determinada finalidade. Na sua maior 
parte, as máquinas são claramente sistemas teleológicos. Além disso, uma máquina de 
alguma complexidade pode muito bem ter partes que são elas próprias sistemas teleo‐
lógicos.  Um  automóvel,  por  exemplo,  é  um  sistema  teleológico;  as  suas  partes  estão 
dispostas  de  tal  modo  que  sob  condições  adequadas  funcionam  conjuntamente  para 
permitir que alguém viaje rapidamente de um lugar para outro. Mas muitas das partes 
de um automóvel são também sistemas teleológicos. O carburador, por exemplo, é um 
sistema de partes dispostas de tal modo a fornecer a mistura adequada de combustível 
e ar para a combustão. 
  Os  defensores  do  argumento  do  desígnio  afirmam  que  a  base  da  analogia  entre  o 
universo e as máquinas é que se encontra, no mundo natural, muitas coisas, e partes 
de  coisas,  que  são  sistemas  teleológicos.  O olho  humano,  por  exemplo,  é  claramente 
um sistema teleológico. As suas partes exibem uma ordem intricada e estão dispostas 
de  tal  modo  que  sob  condições  adequadas  funcionam  conjuntamente  para  permitir 
que uma pessoa veja. Outros órgãos nos seres humanos e animais são também indubi‐
tavelmente  sistemas  teleológicos,  cada  um  servindo  uma  finalidade  qualquer  razoa‐
velmente clara. Na verdade, parece razoável pensar que as plantas e animais que com‐
62 
 
põem uma grande parte do mundo natural são sistemas teleológicos. Como o filósofo 
novecentista C. D. Broad comentou: 

  O  conhecimento  mais  superficial  acerca  dos  organismos  dá  realmente  a  aparência 


de que se trata de sistemas muito complexos, concebidos para se preservarem a si mes‐
mos  perante  condições  externas  variáveis  e  ameaçadoras  e  para  reproduzirem  a  sua 
espécie. E, no todo, quanto mais completamente investigamos um organismo nos seus 
detalhes, mais aquilo que descobrimos se encaixa completamente nesta hipótese. Podia‐
se mencionar, por exemplo, as diversas pequenas e aparentemente inimportantes glân‐
dulas no corpo humano, cujas secreções se verifica terem uma profunda influência sobre 
o seu crescimento e bem‐estar. Ou, mais uma vez, podemos mencionar a produção  de 
anticorpos  no  sangue  quando  o  corpo  é  atacado  por  organismos  que  provavelmente  o 
irão danificar.2 

  Podemos agora ver, penso, a força com que este argumento afecta a imaginação dos 
seus defensores. Uma vez compreendido o que é um relógio, como funciona e qual é a 
sua finalidade, seria completamente absurdo supor que a sua origem se deve a algum 
acidente  em  vez  de  ao  desígnio  inteligente.  Mas  se  olharmos  cuidadosamente  para 
muitas  coisas  na  natureza  —  plantas  e  animais,  por  exemplo  —  descobrimos  que  as 
suas partes exibem uma disposição ordenada, adequada a uma finalidade (sobrevivên‐
cia do organismo e reprodução da sua espécie) que, quando muito, excede a organiza‐
ção  segundo  fins  das  partes  do  relógio.  Que  absurdo,  portanto,  supor  que  o  mundo 
natural surgiu por acidente em vez de desígnio inteligente. Parte da força deste argu‐
mento na imaginação humana exprime‐se na seguinte observação do filósofo seiscen‐
tista, Henry More: 

  Por  que  outra  razão  teriam  as  nossas  pernas  e  braços  três  juntas,  bem  como  os 
dedos, senão por ser melhor do que ter duas ou quatro? E por que serão os nossos den‐
tes incisivos aguçados como cinzéis de corte mas os nossos dentes interiores largos para 
triturar,  e  não  o  contrário?  Mas  talvez  tivéssemos  conseguido  sobreviver  a  custo  nessa 
circunstância mais difícil. Mais uma vez, por que será a disposição dos dentes tão feliz, 
ou, ao invés, por que não há dentes noutros ossos além dos maxilares? Porquanto pode‐
riam ter sido tão eficazes como estes. Mas a razão é nada ser feito tolamente ou em vão; 
isto é, há uma providência divina que ordena todas as coisas.3 

  Temos  procurado  responder  à  primeira  das  duas  questões  críticas  dirigidas  ao 
argumento do desígnio: em função de que características se diz que o nosso universo é 
semelhante a uma máquina? Vimos que no mundo natural há muitas coisas (plantas e 
animais, por exemplo) que parecem partilhar com as máquinas a interessante e impor‐
tante  característica  de  serem  sistemas  teleológicos.  Antes  de  nos  voltarmos  para  a 
segunda  questão  crítica,  contudo,  temos  de  identificar  exactamente  o  que  aceitamos 

63 
 
acerca  do  nosso  universo  se  aceitarmos  a  afirmação  de  que  as  plantas  e  os  animais, 
como as máquinas, são sistemas teleológicos. 
  Uma coisa é acreditar que o universo contém muitas partes que são sistemas teleo‐
lógicos; outra completamente diferente é acreditar que o universo em si é um sistema 
teleológico. Nada que tenhamos considerado até agora mostra que o universo em si é 
um  sistema  teleológico.  Para  o  mostrar,  teríamos  de  afirmar  que  o  próprio  universo 
tem  uma  finalidade  e  que  as  suas  partes  estão  dispostas  de  tal  modo  que  funcionam 
conjuntamente  para  a  realização  dessa  finalidade.  Mas  será  que  podemos,  olhando 
apenas  para  o  pequeno  fragmento  do  nosso  universo  que  nos  é  acessível,  ter  a  espe‐
rança de distinguir a finalidade do universo em si? Parece claro que não podemos. Se 
sabemos que Deus criou o universo e também por que o criou, podemos razoavelmen‐
te  inferir  que  o  universo  em  si  é  um  sistema  teleológico.  Mas  como  o  argumento  do 
desígnio é um argumento a favor da existência de Deus, não pode pressupor a sua exis‐
tência  e  finalidades  sem  pressupor  aquilo  que  está  a  tentar  provar.  Quando  muito, 
então, o que podemos dizer é que o universo contém muitas partes (além de objectos 
feitos por seres humanos, como máquinas) que são sistemas teleológicos. E isto signi‐
fica que não temos justificação para afirmar que o universo em si é como uma máqui‐
na. O que talvez tenhamos justificação para afirmar é que o universo contém muitas 
partes naturais (isto é, partes que não são feitas pelos seres humanos) que se asseme‐
lham  a  máquinas;  estas  assemelham‐se  a  máquinas  porque,  como  elas,  são  sistemas 
teleológicos.  Aceitando  esta  limitação,  podemos  rever  a  nossa  formulação  do  argu‐
mento do desígnio, do seguinte modo: 

1. As máquinas são produzidas por desígnio inteligente. 
2. Muitas partes naturais do universo assemelham‐se a máquinas. 

Logo, 

3. Provavelmente, o universo (ou pelo menos muitas das suas partes naturais) foi produ‐
zido por desígnio inteligente. 

Indícios de desígnio inteligente 

  A segunda questão crítica que temos de levantar a respeito do argumento do desíg‐
nio é se a característica em função da qual muitas partes naturais do universo se asse‐
melham  a  máquinas  é  relevante  ou  não  para  a  questão  de  o  universo  (ou  muitas  das 
suas partes naturais) ter surgido através de desígnio inteligente. É evidente que a res‐
posta  a  esta  questão  é  sim.  Sabemos  que  o  desígnio  inteligente  explica  o  facto  de  as 
máquinas serem sistemas teleológicos. Descobrimos então que o mundo natural con‐
tém  muitos  sistemas  teleológicos.  Que  explicação  mais  plausível  se  pode  dar  da  sua 
origem  do  que  supor  que  também  estes  surgiram  através  de  desígnio  inteligente?  E 
visto ser claro que nenhum ser humano podia ter sido o criador inteligente do univer‐

64 
 
so  (ou  das  suas  partes  naturais  que  são  sistemas  teleológicos),  parece  razoável  supor 
que  algum  ser  sobre‐humano  concebeu  inteligentemente  o  universo  no  seu  todo,  ou 
pelo menos muitas das suas partes. 
  Ainda que o desígnio inteligente seja uma hipótese plausível para explicar os muitos 
sistemas  teleológicos  no  mundo  natural,  será  a  única  hipótese  disponível?  Antes  de 
Charles Darwin (1809–1882) e da teoria da evolução, é duvidoso que alguém tenha tido 
uma  explicação  naturalista  dos  sistemas  teleológicos  na  natureza  que  pudesse  seria‐
mente competir com a hipótese do desígnio inteligente. Mas, desde o desenvolvimen‐
to  da  teoria  da  evolução,  o  argumento  do  desígnio  tem  perdido  alguma  da  sua  força 
persuasiva,  pois  temos  agora  uma  hipótese  naturalista  razoavelmente  bem  elaborada 
para explicar os sistemas teleológicos na natureza. Resumidamente, a teoria darwinista 
da selecção natural parece explicar por que a natureza contém tantos organismos cujas 
diversas partes se encontram tão bem ajustadas à sua sobrevivência. Segundo esta teo‐
ria, os animais e as plantas sofrem variações ou mudanças que são herdadas pelos seus 
descendentes. Algumas variações dão aos organismos uma vantagem sobre o resto da 
população na luta constante pela sobrevivência. Como as plantas e os animais geram 
mais crias do que o ambiente pode sustentar, aqueles em que ocorrem variações favo‐
ráveis tendem a sobreviver em maior número do que aqueles em que ocorrem varia‐
ções desfavoráveis. Assim, acontece que ao longo de grandes períodos de tempo emer‐
gem  lentamente  grandes  populações  de  organismos  altamente  desenvolvidos  cujas 
partes se encontram tão peculiarmente ajustadas à sua sobrevivência. 
  Durante o final do século XX e o início do século XXI teve lugar um debate sobre se 
a teoria darwinista da selecção natural consegue explicar adequadamente os organis‐
mos vivos complexos que habitam o nosso planeta. Embora a ciência biológica pareça 
estar firmemente enraizada na teoria darwinista da evolução, a própria teoria continua 
a ser criticada por alguns biólogos que argumentam que a selecção natural sem desíg‐
nio inteligente é inadequada para explicar a complexidade dos seres vivos que habitam 
o nosso planeta. Por exemplo, o biólogo Michael J. Behe argumenta que o princípio de 
selecção  natural  de  Darwin  não  pode  explicar  o  facto  de  muitos  sistemas  biológicos 
serem  «irredutivelmente  complexos»  ao  nível  molecular.4  Behe  fala  numa  ratoeira 
como  exemplo  de  algo  que  é  irredutivelmente  complexo.  As  ratoeiras  têm  diversas 
partes interligadas (mola, base, martelo, charneira e barra de preensão), e todas estas 
são necessárias para realizar a finalidade da ratoeira — apanhar ratos. Um sistema bio‐
lógico irredutivelmente complexo é um sistema que, como uma ratoeira, simplesmen‐
te não pode funcionar a menos que todas as suas partes estejam presentes e adequa‐
damente  conectadas.  Como  a  evolução  darwinista  procede  por  ligeiras  modificações 
sucessivas em sistemas operacionais, que por acaso se adaptam a mudanças  ambien‐
tais, afirma‐se que é extremamente difícil ver, se não mesmo impossível, como através 
da  teoria  darwinista  se  pode  chegar  a  sistemas  irredutivelmente  complexos  ao  nível 
molecular. Se a posição defendida por Behe fosse correcta, seria uma objecção impor‐
tante  à  capacidade  de  a  selecção  natural  darwinista  explicar  sistemas  complexos  ao 
65 
 
nível molecular. É óbvio que há uma grande distância entre os dados de Behe e a con‐
clusão de que uma explicação adequada de sistemas biológicos irredutivelmente com‐
plexos ao nível molecular exige a existência de um ser omnipotente, omnisciente, per‐
feitamente  bom,  que  criou  directamente  estes  sistemas  irredutivelmente  complexos. 
Na verdade, nem Behe nem William Dempski,5 outro importante defensor do desígnio 
inteligente,  afirmam  explicitamente  que  o  argumento  do  desígnio  inteligente  é  um 
indício a favor da existência do Deus teísta. Dempski mantém oficialmente o silêncio 
acerca da identidade do criador, e Michael Behe admite que este possa fazer parte do 
mundo natural.6 Presentemente, há algum debate académico sobre se a selecção natu‐
ral  darwinista  pode  explicar  adequadamente  os  sistemas  biológicos  irredutivelmente 
complexos ao nível molecular. Diga‐se, em boa verdade, contudo, que na sua maioria 
os  biólogos  adoptam  a  perspectiva  de  que  não  há  razões  suficientes  para  pensar  que 
não pode explicá‐los. 
  Kenneth R. Miller, professor de biologia na Universidade de Brown e teísta, concor‐
da com Behe que se o darwinismo não pode explicar a aparente complexidade irredu‐
tível ao nível da célula viva então está condenado. Miller observa, contudo, que embo‐
ra a biologia celular não existisse no tempo de Darwin, Darwin teve o cuidado de pro‐
curar explicar como a sua teoria podia dar conta de um sistema irredutivelmente com‐
plexo,  dando  uma  explicação  evolucionista  do  exemplo  do  olho  humano,  usado  por 
Paley.7 Na perspectiva de Miller, o argumento de Behe a partir da complexidade irre‐
dutível é apenas mais uma tentativa falhada de encontrar no nosso planeta a ocorrên‐
cia de algo que a ciência é supostamente incapaz de explicar. 
  Enquanto teísta, Miller encara o universo como criação de Deus. Na verdade, argu‐
menta que dada a teoria do Big Bang acerca da origem do universo faz todo o sentido 
supor  que  a  existência  do  nosso  universo  foi  causada  por  um  ser  sobrenatural.  Mas 
Miller  afirma  que  a  teoria  darwinista  pode  explicar  a  lenta  emergência  ao  longo  do 
tempo de sistemas teleológicos intricados, incluindo plantas, os animais inferiores e os 
seres  humanos.  Para  Miller,  só  da  origem  do  nosso  universo  se  pode  razoavelmente 
afirmar que foi um acto de criação e desígnio inteligente. Na verdade, ao contrário de 
Behe, Miller é muito cuidadoso quanto a afirmar que há acontecimentos no nosso pla‐
neta  que  são  inexplicáveis  sem  alguma  actividade  imediata,  directa,  de  Deus.  Pois  é 
demasiado  frequente  mostrar‐se,  a  longo  prazo,  que  os  acontecimentos  terrenos 
supostamente resultantes da exclusiva intervenção directa de Deus são consequência 
causal de forças puramente naturais. É a própria origem do universo, cujas constantes 
são tais que permitem a emergência da vida humana neste planeta tão insignificante, 
que  Miller  acredita  ter  sido  directamente  causada  por  Deus.  Visto  que  uma  coisa  é 
argumentar que Deus é indispensável para explicar os sistemas teleológicos intricados 
que observamos na Terra, e outra completamente diferente é argumentar que Deus é 
indispensável para explicar por que há um universo cujas constantes são tais que per‐
mitem  a  ocorrência  de  um  planeta  com  condições  que  tornam  a  vida  possível,  é 
melhor tratar o último como um argumento separado — o novo argumento do desíg‐
66 
 
nio. Examinaremos esse argumento mais à frente neste capítulo, depois de considerar 
as críticas de Hume ao antigo argumento do desígnio. 
  Seja  a  teoria  darwinista  da  selecção  natural  verdadeira ou  falsa,  tem  de  se  admitir 
que é uma adversária de peso da hipótese do criador inteligente como possível expli‐
cação para o facto de o mundo natural conter tantos sistemas teleológicos altamente 
desenvolvidos. O que isto acarreta para o argumento do desígnio é que este já não tem 
a força persuasiva de que em tempos gozou. Embora nos dê indubitavelmente alguma 
base para pensar que muitas partes do mundo natural surgiram por desígnio inteligen‐
te,  temos  agora  razões  para  questionar  a  força  da  inferência  que  parte  dos  sistemas 
teleológicos na natureza para chegar a um criador inteligente, visto que temos na teo‐
ria da selecção natural uma hipótese alternativa com explica esses sistemas teleológi‐
cos. 

As críticas de Hume ao argumento do desígnio 
  Embora os Diálogos Sobre a Religião Natural, de Hume, tenham sido escritos antes 
do  advento  da  teoria  darwinista,  há  muito  que  foram  reconhecidos  como  a  ofensiva 
clássica ao argumento do desígnio. Para o que nos interessa, pode‐se dividir as críticas 
de  Hume  em  dois  grupos:  as  críticas  à  afirmação  de  que  o  universo  é  como  uma 
máquina, e as críticas à afirmação de que o argumento do desígnio nos dá uma base 
adequada para acreditar no Deus teísta. A melhor forma de concluir o nosso estudo do 
antigo argumento do desígnio é ver algumas das principais objecções de Hume. 
  Em primeiro lugar, Hume sublinha que a vastidão do universo enfraquece a afirma‐
ção  de  que  este  se  assemelha  a  uma  máquina  ou  a  qualquer  outra  criação  humana, 
como  uma  casa  ou  um  navio.  Em  segundo  lugar,  Hume  faz  notar  que  embora  haja 
ordem e desígnio na parte do universo em que habitamos, tanto quanto sabemos pode 
haver  vastas  extensões  do  universo  onde  reine  o  caos  absoluto.  E,  por  fim,  embora 
admitindo a observação de que o desígnio inteligente é a causa da produção de coisas 
no  pequeno  fragmento  de  universo  que  podemos  observar,  Hume  argumenta  que  a 
conclusão de que o desígnio inteligente é a força produtiva em todo o universo é um 
salto irrazoável. «Uma pequena parte deste grande sistema, durante um espaço muito 
breve  de  tempo,  mostra‐se‐nos  imperfeitamente;  e  vamos,  partindo  daí,  pronunciar‐
nos decisivamente a respeito da origem do todo?»8 
  Estas objecções dirigem‐se à segunda premissa da formulação original do argumen‐
to do desígnio, a premissa de que o universo no seu todo se assemelha a uma máquina. 
As  objecções,  contudo,  não  afectam  tão  directamente  a  versão  revista  do  argumento 
em que a segunda premissa diz: «Muitas partes naturais do universo assemelham‐se a 
máquinas». Na versão revista não se faz qualquer afirmação acerca do universo no seu 
todo  ou  acerca  das  partes  do  universo  que  somos  incapazes  de  observar.  Por  conse‐
guinte, como nos ocupamos agora da versão revista, podemos pôr tranquilamente de 
parte o primeiro grupo das críticas de Hume. 
67 
 
  O segundo grupo de críticas dirige‐se não ao argumento como o formulámos, mas a 
qualquer tentativa de interpretar o argumento como base adequada para a crença teís‐
ta — a crença de que existe um ser sumamente perfeito que criou o universo. E a este 
respeito, não há dúvida de que Hume tem razão. Ao inspeccionar o universo, podemos 
talvez  concluir  que  surgiu  por  desígnio  inteligente,  mas  o  argumento  do  desígnio  é 
incapaz de ir além disso; não nos dá qualquer base racional para pensar que seja o que 
for  que  produziu  o  universo  é  perfeito,  um  ou  espiritual.  Não  podemos  inferir  que  o 
que  produziu  o  universo  é  supremamente  sábio  ou  bom  porque,  tanto  quanto  sabe‐
mos, o universo é um produto muito imperfeito, mais semelhante a um Edsel ou um 
Corvair do que a um Rolls Royce. E mesmo que se soubesse que o mundo na sua vasti‐
dão é uma obra excelente, ainda assim, tanto quanto sabemos, este mundo podia ser o 
último  de  uma  série  de  mundos,  muitos  dos  quais  criações  desajeitadas  e  ineptas, 
antes de a divindade ter finalmente conseguido aprender a arte de fazer mundos. 
  Faz parte da crença teísta a ideia de que há um único ser que produziu o mundo, 
mas uma vez que sabemos que muitas máquinas, edifícios, automóveis, e outros enge‐
nhos resultam dos esforços combinados de muitos criadores, o universo, tanto quanto 
sabemos,  podia  ser  o  produto  do  trabalho  de  muitas  divindades  menores,  cada  uma 
detentora de uma inteligência e perícia limitadas. 
  Faz parte da crença teísta a ideia de que a divindade é incorpórea (não tem corpo), 
um ser puramente espiritual. Mas, uma vez mais, se inferimos, a partir da semelhança 
entre  o  mundo  natural  e  uma  máquina,  a  semelhança  entre  aquilo  que  terá  causado 
ambos,  então,  visto  que  no  caso  das  máquinas  não  conhecemos  qualquer  causa  (um 
ser humano) que seja incorpórea, não temos base para inferir que seja o que for que 
produziu o mundo é um ser incorpóreo. 
  Hume resume este segundo grupo de objecções fazendo notar que quem quer que 
limite a base da sua crença religiosa ao argumento do desígnio «poderá talvez afirmar, 
ou conjecturar, que, a dada altura, o universo surgiu por algo semelhante ao desígnio: 
mas além dessa posição não pode estar seguro de uma única circunstância que seja; e 
terá então de corrigir cada detalhe da sua teologia recorrendo ao maior desregramento 
caprichoso e hipotético.»9 
  É  claro  o  que  o  segundo  conjunto  de  críticas  lançadas  por  Hume  acarreta.  Não  se 
pode  estabelecer  o  teísmo  apenas  através  do  argumento  do  desígnio.  Muitos  teístas 
aceitariam  esta  implicação.  Argumentariam,  contudo,  que  os  diversos  argumentos 
importantes  a  favor  da  existência  de  Deus,  tomados  em  conjunto,  dão  efectivamente 
uma base racional para acreditar no Deus teísta. Pelo que o segundo conjunto de críti‐
cas  apresentadas  por  Hume,  embora  mostre  claramente  as  limitações  do  argumento 
do  desígnio,  não  afecta  a  afirmação  mais  geral  de  que  os  argumentos  tradicionais  a 
favor da existência de Deus, tomados em conjunto, dão ao teísmo uma base racional. 

68 
 
O novo argumento do desígnio 

  O novo argumento do desígnio surgiu durante o século XX, alimentado por desco‐
bertas científicas e teorias respeitantes tanto à origem do nosso universo como às con‐
dições  que  nele  tiveram  de  prevalecer  desde  o  início  para  que  o  tipo  de  vida  que 
conhecemos tivesse alguma hipótese sequer de ocorrer no universo à medida que este 
se desenvolvia. Ao contrário dos defensores do argumento que Darwin e Hume critica‐
ram,  os  defensores  do  novo  argumento  não  começam  pela  existência  de  seres  vivos 
(plantas e animais) procurando uma explicação para o facto de serem sistemas teleo‐
lógicos tão intricados. Podem mesmo conceder que Darwin tem uma explicação para 
isso.  Ao  invés,  os  defensores  do  novo  argumento  do  desígnio  perguntam  que  condi‐
ções tem de haver no universo para que seja sequer possível a existência de seres vivos. 
E afirmam que dada a mais prometedora explicação para a origem do universo dispo‐
nível  na  ciência  moderna  —  a  teoria  do  Big  Bang  —  as  hipóteses  de  o  universo  se 
desenvolver  de  tal  modo  que  a  vida  é  possível  são  incrivelmente  pequenas,  muito 
menos do que uma hipótese num milhão. Veja‐se então a coisa assim: havia milhões 
de maneiras diferentes de o universo se poder ter desenvolvido a partir do Big Bang. E 
apenas de uma dessas maneiras o universo viria a ter as características necessárias para 
a  emergência  e  existência  contínua  do  tipo  de  vida  que  conhecemos.  Um  exemplo 
popular  de  uma  das  inúmeras  condições  que  tinham  de  ser  precisamente  do  modo 
como  são  para  que  a  surgimento  da  vida  fosse  sequer  possível  diz  respeito  à  taxa  de 
expansão do universo a partir do momento inicial do Big Bang. Se a taxa de expansão 
fosse ligeiramente mais rápida, não teria sido possível formarem‐se as galáxias, estrelas 
e planetas, com o resultado de que o tipo de vida que conhecemos não teria tido hipó‐
tese de existir. Alternativamente, como afirma Stephen Hawking, «Se a taxa de expan‐
são do universo um segundo depois do Big Bang tivesse sido menor ainda que por um 
em cem mil triliões, o universo teria voltado a ser uma bola de fogo quente».10 Quando 
percebemos que a taxa de expansão é apenas uma das muitas condições diferentes que 
tinham  de  estar  exactamente  ajustadas  para  que  a  vida  fosse  possível  no  universo,  a 
hipótese de um criador inteligente que ajustou o estado inicial do universo parece uma 
explicação muito mais plausível do que o apelo ao mero acaso para o facto de que o 
nosso universo é adequado à vida. 
  Creio  que  tem  de  se  reconhecer  que  este  argumento  a  favor  de  um  criador  inteli‐
gente das condições iniciais tem algum mérito. Contudo, seria um erro, como Hume 
nos  ensinou,  concluir  algo  mais,  além  de  que  o  argumento  sustenta  a  ideia  de  que  a 
existência de desígnio inteligente teve um papel no início do universo. Pode ter havido 
muitos criadores cooperando mutuamente; o criador, se houve apenas um, podia ter 
acertado finalmente na taxa de expansão, depois de muitas tentativas falhadas; o cria‐
dor inteligente podia desde então ter perdido todo o interesse que teve em tempos no 
bem‐estar  dos  seres  vivos  no  universo.  Resumindo,  mesmo  que  este  argumento  seja 
bom, deixa ainda em aberto a questão de o criador inteligente do nosso universo ser 

69 
 
ou  não  o  deus  teísta.  (Como  vimos,  ao  discutir  o  antigo  argumento  do  desígnio,  os 
teístas podem perfeitamente concordar com isto, argumentando ao invés que cada um 
dos argumentos a favor da existência de Deus pode sustentar diferentes características 
da ideia teísta de Deus.) 
  Há, contudo, uma objecção ao argumento que merece consideração. E se tivessem 
ocorrido milhões de outros Big Bangs? E se o nosso universo (o universo que começou 
com  o  Big  Bang  a  que  se  referem  as  nossas  teorias  científicas)  for  apenas  um  entre 
milhões de outros que, não tendo condições indispensáveis à vida, são desconhecidos? 
Se  assim  fosse,  seria  provável  que  um  destes  Big  Bangs  tivesse  as  condições  iniciais 
para se desenvolver de tal modo que aí pudesse haver vida. Pegando num baralho de 
cartas que não esteja viciado, é extremamente improvável que tirar cinco cartas aleato‐
riamente resulte numa sequência ordenada de cartas do mesmo naipe. Mas se houver 
milhares  e milhares  de  baralhos  de  cartas  que  não  estejam  viciados,  de  cada  um  dos 
quais  se  retira  cinco  cartas  aleatoriamente,  será  muito  provável,  na  verdade,  que  um 
desses lances seja uma sequência ordenada de cartas do mesmo naipe. Talvez se passe 
o mesmo com o nosso universo Big Bang, caso em que seria insurpreendente que um 
universo  Big  Bang  contenha  vida.  E  como  somos  seres  vivos  fazemos  forçosamente 
parte desse insurpreendente universo.11 
  Há  pouco  considerámos  as  objecções  do  biólogo  Kenneth  R.  Miller  às  críticas  de 
Michael  Behe  à  selecção  natural  darwinista  como  explicação  dos  sistemas  biológicos 
irredutivelmente complexos que se encontra no nosso planeta. Enquanto cristão, Mil‐
ler acredita que Deus é o criador do universo no qual por acaso há um pequeno plane‐
ta com as condições adequadas à emergência de seres vivos inteligentes. Contra a sua 
perspectiva considerámos uma objecção preferida dos inteístas. Porque, como vimos, 
se tivesse havido milhões e milhões de Big Bangs resultando em milhões e milhões de 
universos, seria provável um deles ter constantes que permitissem a existência de vida 
humana.  Miller,  obviamente,  está  ciente  desta  possibilidade  alternativa.  Tem  de  se 
admitir, contudo, que uma vez que apenas podemos observar o nosso próprio univer‐
so, não se pode obter indícios para determinar se a hipótese do universo múltiplo está 
correcta. Miller conclui razoavelmente que, sendo os indícios para a hipótese do uni‐
verso múltiplo inalcançáveis, há justificação intelectual para levar a sério a alternativa 
tradicional:  que  o  nosso  universo,  em  vez  de  ter  ocorrido  por  acaso,  foi  criado  por 
Deus.12 Note‐se, contudo, que qualquer ser sobrenatural com poder absoluto e conhe‐
cimento  suficiente  seria  também  capaz  de  criar  o  nosso  universo.  Não  se  exige,  por 
exemplo,  um  ser  que  seja  moralmente  perfeito.  Não  obstante,  como  não  temos  indí‐
cios a favor da hipótese do universo múltiplo, a alternativa de um criador sobrenatural 
permanece uma possibilidade genuína.1 
 
1
 A noção de possibilidade genuína é aqui crucial. O argumento teísta pressupõe que qualquer possi‐
bilidade lógica é uma possibilidade genuína, razão pela qual é necessário então explicar por que razão 
uma possibilidade genuína ocorreu em vez de qualquer outra. A ideia de que toda a possibilidade lógica 
 
70 
 
Argumentos aceitáveis 
  Neste e nos dois capítulos anteriores, debatemo‐nos com os três argumentos prin‐
cipais  a  favor  da  existência  de  Deus.  Tentámos  compreender  estes  argumentos  bem 
como as principais objecções que foram apresentadas contra eles. Em cada caso, sugeri 
que  os  argumentos  são  insuficientes  para  nos  dar  uma  base  racional  persuasiva  para 
pensar que o Deus teísta existe. O argumento cosmológico, ainda que seja sólido, não 
nos permite saber que há um ser auto‐existente, porque assenta num princípio, o prin‐
cípio de razão suficiente (PRS), que, quando muito, poucos de nós sabem se é verda‐
deiro.  O  argumento  ontológico,  embora  belo  e  genial,  não  prova  que  existe  um  ser 
insuperavelmente grandioso, porque cai em petição de princípio — teríamos de saber 
que a conclusão é verdadeira de modo a saber que as suas premissas são verdadeiras. 
E, por fim, os argumentos do desígnio, tanto o antigo quanto o novo, dão‐nos, quando 
muito, base para pensar que algumas partes naturais do universo ou o universo em si 
surgiram por desígnio inteligente. 
  E se juntarmos os argumentos, tentando justificar o teísmo não com os três separa‐
damente mas como se fossem um só? Isto seria útil se cada um dos argumentos conse‐
guisse realmente dar uma base racional sólida para algum aspecto do Deus teísta. Mas, 
como vimos, nem o argumento cosmológico nem o argumento ontológico conseguem 
fazer  isto.  A  nossa  avaliação  final  dos  argumentos,  portanto,  é  que,  tomados  separa‐
damente  ou  em  conjunto,  não  conseguem  provar  a  crença  teísta.  Como  o  filósofo  e 
psicólogo americano William James comentou: «Os argumentos a favor da existência 
de Deus aguentaram‐se durante centenas de anos sob as vagas da crítica incrédula que 
se abatiam sobre os mesmos, nunca os desacreditando aos olhos dos crentes, mas em 
geral desgastando lentamente a argamassa de entre as juntas.»13 
  Não se deve entender a nossa conclusão de que os três argumentos tradicionais não 
conseguem provar a existência de Deus no sentido de serem intelectual ou religiosa‐
mente inúteis. Porquanto foram avaliados à luz de um cânone excepcionalmente ele‐
vado.  Perguntámos  se  os  argumentos  funcionam  como  demonstrações  ou  provas  da 
existência de Deus; e vimos que ficam aquém de satisfazer este cânone elevado. Alguns 
filósofos  e  teólogos  contemporâneos,  portanto,  contentam‐se  em  pensar,  não  que  os 
argumentos provam a existência de Deus, mas que mostram que a existência de Deus é 
uma  hipótese  plausível  para  explicar  o  mundo  e  a  nossa  experiência.  Os  argumentos, 
nesta perspectiva, dão‐nos razões para defender que a crença em Deus é racional. São 
 
é  uma  possibilidade  genuína  permaneceu  incontestada  na  filosofia  até  Saul  Kripke  ter  introduzido  a 
ideia  de  que  nem  todas  as  possibilidades  lógicas  são  possibilidades  genuínas.  Se  aceitarmos  que  nem 
tudo o que é logicamente possível é genuinamente possível, o teísta terá de explicar por que razão cer‐
tas outras possibilidades lógicas são possibilidades genuínas. Cf. Naming and Necessity, de Saul Kripke 
(Londres:  Blackwell,  1980)  e  Essencialismo  Naturalizado,  de  Desidério  Murcho  (Coimbra:  Angelus 
Novus, 2002). (N. do R. C.) 

71 
 
argumentos aceitáveis no sentido em que apresentam considerações a favor da hipóte‐
se de que Deus existe. 
  Embora  não  possamos  elaborar  muito  detalhadamente  esta  última  ideia,  é  impor‐
tante reconhecer que um argumento a favor de uma conclusão pode ser aceitável ain‐
da que não a consiga provar. O argumento cosmológico, por exemplo, não é uma pro‐
va da sua conclusão porque assenta num princípio (PRS) que não sabemos nem pode‐
mos provar se é verdadeiro. Mas o PRS, não obstante, pode ser um princípio plausível, 
um princípio que se poderá razoavelmente considerar digno de crença. Nessa medida, 
o  argumento  cosmológico  pode  dar  peso  à  crença  teísta,  embora  não  consiga  ainda 
prová‐la. Até certo ponto, pode‐se fazer comentários semelhantes acerca do argumen‐
to ontológico e do argumento do desígnio. Por isso, embora se tenha visto que a afir‐
mação tradicional de que estes argumentos provam a existência de Deus está incorrec‐
ta, isto não exclui a possibilidade de que um ou mais dos argumentos possam desem‐
penhar um papel importante na defesa intelectual do teísmo.14 

Revisão 
1. Explique  por  que  o  antigo  argumento  do  desígnio  tem  de  usar  o  raciocínio  analógico. 
Que duas questões críticas temos de levantar acerca desse argumento? 
2. Explique o que se entende por sistema teleológico. Será razoável pensar que muitas coi‐
sas na natureza são sistemas teleológicos? 
3. Que críticas levanta Hume à afirmação de que o universo se assemelha a uma máquina? 
4. Explique como o novo argumento do desígnio não é afectado pela evolução darwinista. 
Que objecção se pode levantar ao novo argumento do desígnio? 
5. Que conclusões gerais se pode retirar a respeito dos três principais argumentos a favor 
da existência de Deus? 

Estudo complementar 
1. Descreva o tipo de mundo que tornaria prováveis as seguintes perspectivas (cada uma 
por sua vez): 
a. Há muitas divindades finitas. 
b. Há um Deus, omnipotente e perfeitamente bom. 
c. Há um Deus, omnipotente mas que não é perfeitamente bom. 
d. Há um Deus, perfeitamente bom mas que não é omnipotente. 
2. Supondo que o mundo nos dá alguns indícios de desígnio inteligente, desenvolva um 
argumento  a  favor  da  ideia  de  que  o  teísmo  é  mais  provável  do  que  o  politeísmo 
enquanto explicação dos indícios de desígnio inteligente que há no mundo. 

72 
 
Notas 
1. David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, II, org. H. D. Aiken (Nova Iorque: 
Hafner Publishing Company, 1948), p. 17. [Diálogos sobre a Religião Natural, trad. Álva‐
ro Nunes, Lisboa: Edições 70, 2005.] 
2. C. D. Broad, The Mind and Its Place in Nature (Londres: Routledge & Kegan Paul, Ltd., 
1925), p. 83. 
3. Citado por J. J. C. Smart em «The Existence of God», em New Essays in Philosophical 
Theology, org. Antony Flew e Alasdair MacIntyre (Londres: SCM Press Ltd, 1955), p. 43. 
4. Michael  J.  Behe,  Darwin’s  Black  Box:  The  Biochemical  Challenge  to  Evolution  (Nova 
Iorque: The Free Press, 1996), p. 54. 
5. William  A.  Dempski,  No  Free  Lunch:  Why  Specified  Complexity  Cannot  Be  Purchased 
Without Intelligence (Lanham, MD: Roman and Littlefield, 2002). 
6. Michael  J.  Behe,  «The  Modern  Design  Hypothesis:  Breaking  Rules»,  em  God  and  De‐
sign:  The  Teleological  Argument  and  Modern  Science,  org.  Neil  A.  Manson  (Nova 
Iorque: Routledge, 2003), pp. 277‐291. 
7. Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God (Nova Iorque: HarperCollins Publishers Inc., 
1999), p. 135. 
8. Hume, Dialogues, II, pp. 22‐23. 
9. Hume, Dialogues, V, p. 40. 
10. Stephen Hawking, A Brief History of Time (Nova Iorque: Bantam Books, 1988), p. 123. 
[Breve História do Tempo, trad. Ribeiro da Fonseca, Lisboa, Gradiva, 1988.] 
11. Para uma perspectiva mais completa desta objecção, ver Peter van Inwagen, Metaphy‐
sics (São Francisco: Westview Press, 1993) pp. 132‐148. 
12. Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God, pp. 230‐232. 
13. William  James,  The  Varieties  of  Religious  Experience  (Nova  Iorque:  The  Modern  Li‐
brary, 1936), p. 427. 
14. Para uma explicação dos argumentos segundo esta linha, ver George F. Thomas, Philo‐
sophy and Religious Belief (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1970), Capítulo 6. 

73 
 
Capítulo 5 
Experiência mística e religiosa 

  Antes de Robinson Crusoe ter efectivamente visto o homem Sexta‐feira, a sua justi‐
ficação para acreditar que havia alguém que não ele próprio na ilha consistia em vestí‐
gios deixados por Sexta‐feira, tais como pegadas. O crente que baseia a sua crença em 
Deus apenas em argumentos a favor da existência de Deus, como os argumentos cos‐
mológico e do desígnio encontra‐se numa situação algo semelhante à de Crusoe antes 
de ter realmente visto Sexta‐feira. A crença em Deus assenta numa convicção de que o 
mundo e o modo como as coisas nele se inter‐relacionam são vestígios da actividade 
de  Deus,  testemunhando  a  existência  de  um  género  de  ser  supremo.  Depois  de  ter 
realmente visto Sexta‐feira, porém, as razões que Crusoe tinha para acreditar que não 
estava sozinho na ilha não se limitavam aos vestígios deixados por Sexta‐feira; nestas 
se incluía o contacto directo, em pessoa, com o próprio Sexta‐feira. Analogamente, as 
pessoas que têm experiências místicas e religiosas encaram amiúde a experiência mís‐
tica e religiosa como uma consciência pessoal directa do próprio Deus e, consequen‐
temente, como uma justificação excepcionalmente forte para a crença em Deus. Neste 
capítulo  consideraremos  a  experiência  mística  e  religiosa  com  o  objectivo  de  avaliar 
até que ponto podem justificar racionalmente a crença. 

Para uma definição de experiência religiosa 
  A nossa primeira tarefa é tentar compreender o que é a experiência religiosa. Como 
caracterizaremos  a  experiência  religiosa?  Esta  questão  é  excepcionalmente  difícil  e 
qualquer  caracterização  a  que  cheguemos  será  provavelmente  inadequada,  talvez 
mesmo  um  pouco  arbitrária.  Mas  precisamos  de  ter  alguma  ideia,  por  muito  vaga  e 
inadequada que seja, daquilo que esperamos examinar. Comecemos por considerar um 
exemplo  claro  de  experiência  religiosa  —  a  experiência  de  Saulo  na  estrada  para 
Damasco. Depois, podemos ver o modo como alguns dos mais capazes estudiosos da 
experiência religiosa tentaram caracterizá‐la. 

  Em viagem aproximava‐se de Damasco e subitamente um clarão vindo do céu fulgu‐
rou perto dele. E caiu ao chão e ouviu uma voz que lhe dizia: «Saulo, Saulo, por que me 
persegues?»  E  retorquiu:  «Quem  és,  Senhor?»  e  a  voz  respondeu:  «Sou  Jesus,  a  quem 
persegues; mas levanta‐te e entra na cidade, e dir‐te‐ão o que tens de fazer.» Os homens 
que  viajavam  com  ele  ficaram  sem  palavras,  ouvindo  a  voz  mas  não  vendo  quem  quer 
que fosse. Saulo levantou‐se do chão e quando os seus olhos se abriram, não conseguia 

74 
 
ver; então levaram‐no pela mão e trouxeram‐no para Damasco. E durante três dias con‐
tinuou sem ver e não comeu nem bebeu.1 

  Nesta experiência, que mostrou ser o ponto de viragem na vida de Saulo, transfor‐
mando‐o de Saulo, o perseguidor, em Paulo, o apóstolo, há da parte de Saulo a cons‐
ciência  de  uma  figura  divina  —  «Quem  és,  Senhor?»  —  acompanhada  de  uma  boa 
dose de temor e tremor, e uma consciência da sua própria insignificância. Não é muito 
claro  o  que  Saulo  efectivamente  viu  com  os  próprios  olhos,  talvez  apenas  uma  luz 
ofuscante  que  o  cegou  temporariamente.  Ouviu  de  facto  uma  voz  e  compreendeu  o 
que esta lhe dizia. 
  Embora a experiência de Saulo seja claramente religiosa, não nos diz o que é uma 
experiência religiosa, nem nos dá uma caracterização pela qual possamos distinguir a 
experiência  religiosa  da  irreligiosa.  Não  é  preciso  ver  uma  luz  ofuscante  nem  ouvir 
uma voz para ter uma experiência religiosa. Além disso, ver uma luz ofuscante e ouvir 
uma  voz  apenas  não  basta  para  fazer  uma  experiência  religiosa.  Como  caracterizare‐
mos então a experiência religiosa? 

Dependência, alteridade e união 

  No  seu  importante  livro  A  Ideia  do  Sagrado,  o  teólogo  alemão  Rudolf  Otto  (1896–
1937) procurou chegar ao elemento essencial da experiência religiosa examinando cri‐
ticamente  a  caracterização  da  experiência  religiosa  dada  pelo  teólogo  oitocentista, 
Friedrich Schleiermacher. Segundo Schleiermacher, o que distingue a experiência reli‐
giosa é que nela é‐se dominado pelo sentimento de dependência absoluta. É óbvio que 
muitas vezes temos consciência de nós próprios como seres dependentes — dos nos‐
sos amigos, ou do capricho dos professores que avaliam ensaios. Tais sentimentos de 
dependência  não  são  distintamente  religiosos  e  Schleiermacher  não  pensou  que  fos‐
sem. São apenas exemplos do sentimento de dependência relativa. Na experiência reli‐
giosa,  contudo,  o  elemento  central  é  o  sentimento  de  dependência  absoluta,  a  cons‐
ciência do eu como absolutamente dependente. 
  Otto sugere o nome de «sentimento de criatura» para esse elemento da experiência 
religiosa  que  Schleiermacher  procurou  descrever  como  a  consciência  do  eu  como 
absolutamente dependente. A sua objecção fundamental não é que Schleiermacher foi 
incapaz  de  discriminar  um  elemento  importante  da  experiência  religiosa,  visto  que 
Otto admite prontamente que o sentido do eu como criatura é um elemento da expe‐
riência religiosa. A sua objecção é que o sentimento de criatura não é o elemento mais 
fundamental  da  experiência  religiosa  e  ao  fazer  dele  o  elemento  fundamental  Sch‐
leiermacher incorreu em dois erros. O primeiro destes erros é o subjectivismo, fazendo 
da consciência, não de outro mas do eu como absolutamente dependente, a essência 
da experiência religiosa. O segundo erro é que Schleiermacher pensa que só se chega a 
Deus através da inferência. Pois ao converter em essência da experiência religiosa uma 

75 
 
certa consciência que se tem do eu, Schleiermacher foi levado a considerar Deus não 
como  objecto  de  consciência  imediata  mas  como  algo  a  que  se  tem  de  chegar  em 
resultado de uma inferência, enquanto causa da nossa dependência absoluta, da qual 
temos experiência imediata. 
  Em  lugar  da  explicação  de  Schleiermacher  da  essência  da  experiência  religiosa 
enquanto  consciência  do  eu  como  absolutamente  dependente,  Otto  afirmou  que  o 
elemento  essencial  é  a  consciência  de  outro  (algo  exterior  ao  próprio)  como  sagrado 
ou divino. Assim, para Otto, a consciência imediata de Deus é o elemento verdadeira‐
mente essencial, e a sensação do eu como absolutamente dependente (sentimento de 
criatura) é um resultado imediato do elemento essencial, a consciência de outro como 
sagrado. Otto lançou‐se então numa análise penetrante dos elementos (como a reve‐
rência, o mistério, o terror) que estão contidos na consciência de algo como sagrado. 
  Na esteira de Otto, poderíamos caracterizar provisoriamente a experiência religiosa 
como uma experiência em que se tem directamente consciência de outro (algo exterior 
ao eu) como sagrado (divino). E talvez esta caracterização da experiência religiosa seja 
a mais adequada que se pode dar. Há, contudo, uma dificuldade. Na caracterização de 
Otto tem‐se consciência de outra coisa, algo distinto e exterior ao eu. Sem dúvida que 
muitas experiências religiosas são assim. Mas a forma mais elevada de experiência mís‐
tica parece uma experiência em que não há qualquer consciência de outra coisa como 
distinta  do  eu.  O  que  os  místicos  religiosos  se  parecem  esforçar  por  alcançar  é  uma 
experiência em que a consciência que se tem do eu como algo distinto do objecto da 
experiência é suprimida, destruída. A forma mais elevada de experiência mística é uma 
forma de união absoluta com o divino — uma experiência em que o eu acede e se tor‐
na uno com o divino de modo que não há sequer, na experiência, qualquer consciência 
de outro (algo distinto do eu). 
  Considere‐se, por exemplo, as duas seguintes passagens do teólogo místico alemão 
Mestre Eckhart (1260–1328): 

  «Não  somos  inteiramente  abençoados,  ainda  que  contemplemos  a  verdade  divina; 


pois  enquanto  ainda  a  contemplamos,  não  estamos  nela.  Enquanto  o  homem  reflecte 
num objecto não é uno com ele.»2 
  «Neste deserto divino, a actividade cessou e portanto a alma atingirá a máxima per‐
feição  quando  é  lançada  ao  deserto  divino,  onde  já  não  há  formas  nem  actividade,  de 
modo que se afunda e perde neste deserto onde a sua identidade é destruída.»3 

  Nestas  duas  passagens,  Eckhart  indica  claramente  que  a  alma  se  encontra  no  seu 
estado mais abençoado ou perfeito quando tem experiência do divino tão intensamen‐
te  que  perde  a  própria  identidade  e  se  torna  una  com  o  divino.  Neste  estado  não  há 
qualquer consciência do divino como objecto e da alma como sujeito, distinta do divi‐
no. Como observou o filósofo místico Plotino (205–270 d.C.): «Não devíamos falar em 
ver,  mas,  ao  invés,  em  visto  e  vidente,  devíamos  falar  ousadamente  numa  Unidade 

76 
 
simples, dado que neste ver nem distinguimos nem há dois.»4 A dificuldade na carac‐
terização que Otto dá da experiência religiosa é excluir as experiências do tipo descrito 
por  Eckhart  e  Plotino,  experiências  que  têm  sido  prezadas  pelos  místicos  religiosos 
como a mais elevada forma que se pode alcançar de contacto directo com o divino. 

A presença do divino 

  No interesse, então, de não excluir tais experiências da categoria de experiência reli‐
giosa, sugiro que corrijamos do seguinte modo a caracterização de Otto: diremos que 
uma  experiência  religiosa  é  uma  experiência  em  que  se  sente  a  presença  imediata  do 
divino. Há que esclarecer várias coisas acerca desta caracterização da experiência reli‐
giosa. 
  Em primeiro lugar, pretendo que esta caracterização inclua aquelas experiências do 
divino  em  que  não  há  qualquer  sentido  de  alteridade  (as  experiências  dos  místicos 
religiosos, por exemplo), mas antes um sentido de união ou identidade com o divino, 
bem como as experiências em que há um sentido evidente de alteridade, de encontro 
com  a  figura  divina,  como,  por  exemplo,  na  experiência  de  Saulo  na  estrada  para 
Damasco. Em segundo lugar, temos de ter cuidado para não confundir a crença de que 
o divino está presente com a sensação de presença do divino. Um católico que partici‐
pe na comunhão pode perfeitamente acreditar na presença do divino, tendo‐lhe sido 
ensinado que a substância do pão se torna divina quando consagrada pelo padre. Mas 
pode não ter experiência directa do divino e talvez não sinta a presença imediata do 
divino quando participa na comunhão. Sentir a presença imediata do divino é ter uma 
experiência particular que se aceita como experiência directa do divino. Pode‐se acre‐
ditar na presença do divino sem ter experiência directa do divino. Em terceiro lugar, 
ao  caracterizar  uma  experiência  religiosa  como  uma  experiência  em  que  se  sente  a 
presença  imediata  do  divino,  delimitamos  de  duas  maneiras  importantes  a  ideia  de 
experiência  religiosa.  Não  tomamos  em  consideração  as  experiências  religiosas  que 
não têm por objecto o divino — por exemplo, sentir‐se arrependido por ter pecado — 
e excluímos experiências do divino, se as há, em que não se tem consciência do objec‐
to  da  experiência  como  divino.  Talvez  uma  pessoa  por  vezes  tenha  experiência  de 
Deus mas sem sentir a presença de Deus, porque não consegue reconhecer que é Deus 
quem  lhe  aparece.  Casos  como  este  dão‐se  na  percepção  sensorial  comum.  Alguém 
pode  percepcionar  directamente  uma  nogueira  mas  não  sente  estar  na  presença  de 
uma  nogueira  porque  essa  pessoa  pensa  (erradamente)  que  aquilo  de  que  está  a  ter 
experiência é um ácer. A pessoa pode até mais tarde afirmar (erradamente) que nunca 
viu  uma  nogueira.  Assim,  também,  não  podemos  excluir  que  alguém  percepcione 
realmente  Deus  sem  sentir  a  presença  de  Deus,  porque  a  pessoa  se  engana  acerca 
daquilo de que tem experiência. Se há tais experiências, não pertencem à nossa carac‐
terização  do  que  é  uma  experiência  religiosa.  Em  quarto  lugar,  por  «o  divino»  não 
entendo  apenas  o  deus  teísta.  Porquanto  há  muitas  concepções  do  divino  além  do 

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deus teísta. Por «o divino» entendo seja o que for que um grupo religioso, incluindo 
grupos religiosos inteístas, reconheça como divindade. Reconhecidamente, isto torna a 
nossa  caracterização  da  experiência  religiosa  um  pouco  vaga  e  imprecisa.  Mas  isto  é 
inevitável, dado o facto de haver diversas religiões com diversas concepções do divino, 
algumas  em  si  mesmas  muito  vagas  e  imprecisas.  Finalmente,  temos  de  reconhecer 
que ao afirmar que alguém teve uma experiência religiosa, não estamos a ser tenden‐
ciosos quanto à questão da existência ou inexistência do divino de que a pessoa teve 
experiência.  Pode‐se  sentir  a  presença  de  um  determinado  objecto  mesmo  quando 
esse objecto não está efectivamente presente para poder ser percepcionado. Por exem‐
plo, podemos estar tranquilamente sentados a uma secretária, a escrever, e, de súbito, 
sentir fortemente a presença de outra pessoa na sala, voltando‐nos então para desco‐
brir que ninguém lá está. Assim, o mero facto de se sentir a presença imediata de algo 
(divino ou não) não implica em si a existência desse algo que está em causa. Macbeth 
teve  realmente  uma  experiência  na  qual  sentiu  a  presença  imediata  de  um  punhal, 
ainda  que  o  punhal  não  existisse  lá.  Ao  afirmar,  portanto,  que  Saulo  teve  uma  expe‐
riência  religiosa  na  estrada  para  Damasco  deixamos  em  aberto  a  questão  de  a  expe‐
riência ter sido delusória, como a experiência que Macbeth teve do punhal, ou verídica, 
como  quando,  por  exemplo,  temos  experiência  directa  de  algo  que  existe  realmente, 
independentemente  de  nós.  A  questão  que  temos  em  última  instância  de  levantar, 
portanto, não é a de as pessoas terem realmente ou não experiências religiosas — têm‐
nas seguramente — mas a de ser ou não razoável pensar que as suas experiências são 
verídicas e não delusórias. 
  Até  agora  caracterizámos  a  experiência  religiosa  de  modo  a  incluir  quer  experiên‐
cias em que se sente a presença do divino como distinto do eu, quer experiências em 
que se sente a união entre o eu e uma presença divina. Podemos considerar as do pri‐
meiro género como experiências religiosas amísticas; as do segundo género deixam‐se 
caracterizar  melhor  como  experiências  religiosas  místicas.  O  nosso  objectivo  aqui  é 
olhar  para  as  experiências  religiosas,  tanto  amísticas  como  místicas,  tendo  em  vista 
determinar  em  que  medida  a  sua  existência  dá  uma  base  racional  para  a  crença  em 
Deus (ou alguma realidade divina). 

Experiências religiosas amísticas 
  As  experiências  em  que  se  sente  a  presença  imediata  de  um  ser  divino  podem  ter 
conteúdo visual e auditivo. A experiência religiosa de Saulo, por exemplo, tinha con‐
teúdo sensorial — uma luz ofuscante, uma voz, e por aí em diante. Mas outras expe‐
riências do divino não têm conteúdo sensorial. Eis o relato de uma experiência seme‐
lhante: 

  De uma só vez senti […] a presença de Deus — falo na coisa como dela tive cons‐
ciência  —  como  se  a  sua  bondade  e  o  seu  poder  me  penetrassem  por  completo  […] 

78 
 
Então, lentamente, o êxtase abandonou o meu coração; isto é, senti que Deus retirara a 
comunhão que concedera […] Julgo por bem acrescentar que neste meu êxtase Deus não 
tinha forma, cor, odor, nem sabor; além disso, que o sentimento da sua presença não era 
acompanhado de qualquer localização determinada […] No fundo, a expressão mais ade‐
quada para transmitir o que senti é esta: Deus estava presente, embora invisível; não se 
deixava apreender por qualquer dos meus sentidos, no entanto a minha consciência per‐
cepcionava‐o.5 

  Depara‐se‐nos a questão de a existência de experiências como esta nos dar ou não 
(pelo menos aos que as têm) uma boa razão para acreditar que Deus existe (ou algum 
género de ser divino). Inicialmente, pode haver a tentação de pensar que não o fazem, 
com o pretexto de os relatos de experiências religiosas não serem talvez senão relatos 
de  certos  sentimentos  (alegria,  êxtase,  etc.)  que  de  vez  em  quando  se  apoderam  de 
pessoas  que  já  acreditam  em  Deus  e  estão  talvez  demasiado  ansiosas  para  se  sentir 
escolhidas para uma aparição especial do divino. Contra essa objecção, contudo, note‐
se  que  alguns  dos  que  relatam  ter  tido  experiências  religiosas  da  variedade  amística 
estão  profundamente  cientes  da  diferença  entre  ter  experiência  dos  próprios  senti‐
mentos  (alegria,  tristeza,  serenidade,  etc.)  e  experiências  que  envolvem  sentir  a  pre‐
sença de outro ser. Estão também cientes de que desejar uma certa experiência pode 
levar a confusões entre essa experiência e outra qualquer. A menos que tenhamos uma 
razão muito forte para não o fazer, devemos aceitar que os seus relatos são sinceros, 
esforços  cuidadosos  para  exprimir  o  conteúdo  das  suas  experiências.  E  esses  relatos 
não  são  principalmente  relatos  de  estados  psicológicos  subjectivos;  são  relatos  de 
encontros com o que se entende ser um ser divino com existência independente. 
  Contudo,  mesmo  reconhecendo  que  não  é  justo  descrever  as  experiências  apenas 
como relatos de sentimentos pessoais, por que razão se deveria pensar serem percep‐
ções  verídicas  daquilo  de  que  aparentam  ser  uma  experiência?  Não  se  faz  justiça  à 
experiência que Macbeth tem de um punhal descrevendo‐a como a experiência de um 
certo  sentimento  por  Macbeth;  parece  uma  experiência  de  um  objecto  distinto  do 
próprio Macbeth. Mas a experiência era uma alucinação. Por que não pensar que são 
alucinações todas as experiências em que se sente a presença imediata de Deus (ou de 
alguma figura divina)? A resposta dada por quem pensa que as experiências religiosas 
constituem  uma  boa  razão  para  acreditar  que  Deus  existe  é  a  de  que  só  as  devemos 
rejeitar  como  delusórias  se  tivermos  uma  razão  especial  para  pensar  que  o  são.  E  na 
ausência dessas razões especiais, é racional vê‐las como provavelmente verídicas. Será 
útil examinar com algum detalhe esta linha de raciocínio. 
  Se  uma  pessoa  tem  uma  experiência  que  considera  ser  de  um  objecto  particular, 
será o facto de ter essa experiência uma boa razão para acreditar na existência desse 
objecto particular? Intuitivamente, a nossa resposta é «não». Inclinamo‐nos a respon‐
der  «não»  porque todos  podemos  pensar  em  experiências  que  são  aparentemente  de 
um  objecto  particular,  quando  na  verdade  tal  objecto  não  existe.  Considere‐se  dois 

79 
 
exemplos: O leitor entra numa sala e tem uma experiência visual que considera ser a 
percepção de uma parede vermelha. Sem o leitor saber, há lâmpadas vermelhas apon‐
tadas para a parede branca para a qual o leitor olha, fazendo‐a parecer vermelha. Aqui 
está o leitor a ter experiência de uma parede que existe realmente e é branca, mas não 
há qualquer parede vermelha para o leitor percepcionar. Como pode então o facto de o 
leitor  ter  uma  experiência,  que  aparenta  claramente  ser  a  percepção  de  uma  parede 
vermelha, ser uma boa razão para pensar que existe realmente uma parede vermelha? 
Mais uma vez, sem o leitor saber, alguém deita um poderoso alucinogénio no seu café, 
fazendo‐o  ter  uma  experiência  que  o  leitor  entende  ser  a  percepção  de  uma  enorme 
serpente enrolada, frente à cadeira onde está sentado. Ao contrário do primeiro exem‐
plo  (há  uma  parede,  só  que  não  é  vermelha),  não  há  qualquer  serpente  que  o  leitor 
esteja  a  ver.  Outras  pessoas  na  sala,  que  não  têm  qualquer  motivo  para  o  enganar, 
garantem‐lhe que não há qualquer serpente na sala. A experiência que o leitor tem da 
serpente  é  inteiramente  delusória.  Portanto,  como  pode  o  facto  de  o  leitor  ter  uma 
experiência,  que  aparenta  claramente  ser  a  percepção  de  uma  serpente  enrolada,  ser 
uma boa razão para pensar que a serpente enrolada existe? 
  Uma experiência é uma boa razão para acreditar que uma afirmação é verdadeira se 
essa  experiência  justificar  racionalmente  a  crença  na  afirmação,  não  havendo  razões 
para  pensar  de  outro  modo.  Razões  para  pensar  de  outro  modo  são:  A)  razões  para 
pensar  que  a  afirmação  é  falsa  ou  B)  razões  para  pensar  que  dadas  as  circunstâncias 
em que ocorre, a experiência não é suficientemente indicativa da verdade da afirma‐
ção.  Considere‐se  novamente  o  segundo  exemplo.  Como  sabemos  que  as  outras  pes‐
soas que estão na sala irão ver as coisas físicas realmente existentes (incluindo as ser‐
pentes), se estas lá estiverem realmente, o leitor passa a ter uma razão de tipo A para 
pensar de outro modo. Isto é, quando outros, que estão em condições de ver, afirmam 
que não há qualquer serpente, o leitor passa a ter uma razão para pensar que a serpen‐
te não existe realmente. No nosso primeiro exemplo, se supusermos que tudo o que o 
leitor sabe é que há lâmpadas vermelhas apontadas para a parede e que tais lâmpadas 
fariam a parede parecer vermelha, mesmo sendo branca, a nossa razão para pensar de 
outro modo não é em si uma razão para pensar que não há qualquer parede vermelha. 
É uma razão de tipo B. Diz‐nos que, seja a parede vermelha ou não, dadas as circuns‐
tâncias (há lâmpadas vermelhas apontadas para a parede) a experiência do leitor não é 
suficientemente indicativa da verdade de que a parede é vermelha. Porquanto o leitor 
sabe agora que podia ter aquela experiência mesmo sendo a parede branca. 
  Vimos que temos de distinguir entre o facto de uma experiência ser uma boa razão 
a favor de uma afirmação e o facto de essa experiência justificar a afirmação indepen‐
dentemente de tudo o mais que sabemos. Quem pensa que ter uma experiência, supos‐
tamente de um objecto particular, é uma boa razão para pensar que esse objecto parti‐
cular  existe,  reconhece  que  podemos  conhecer  ou  descobrir  razões  do  tipo  A  ou  do 
tipo B para pensar de outro modo. Insiste apenas que na ausência de tais razões refu‐
tantes, quem tem tal experiência tem justificação racional para acreditar que o objecto 
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particular  existe.  Richard  Swinburne  argumentou  estar  aqui  em  causa  um  princípio 
fundamental de racionalidade, a que chama «princípio da credulidade».6 Segundo este 
princípio, se uma pessoa tem uma experiência que parece ser de x, então, a menos que 
haja uma razão para pensar de outro modo, é racional acreditar que x existe. Conce‐
dendo este princípio, parece arbitrário recusar a sua aplicação a experiências religiosas 
— experiências em que se sente a presença imediata do divino. Portanto, a menos que 
haja  uma  razão  para  pôr  em  causa  estas  experiências,  parece  racional  acreditar  que 
Deus ou algum ser divino existe. 
  Antes  de  nos  voltarmos  para  a  consideração  das  experiências  religiosas  místicas, 
temos de assinalar duas dificuldades na perspectiva de que o princípio de credulidade 
torna  racional  aceitarmos  as  experiências  religiosas  amísticas  como  verídicas.  A  pri‐
meira dificuldade é que o princípio de credulidade pressupõe que temos uma ideia das 
razões que poderemos ter para questionar as nossas experiências e que temos maneira 
de  saber  se  estas  razões  estão  ou  não  presentes.  Considere‐se  mais  uma  vez  o  nosso 
exemplo  da  experiência  em  que  o  leitor  supõe  percepcionar  uma  enorme  serpente 
enrolada.  Como  outros  objectos  físicos  que  compõem  o  mundo  que  percepcionamos 
através dos nossos cinco sentidos, as serpentes são objectos públicos, observáveis por 
outros  que  satisfazem  certas  condições.  Isto  é,  podemos  prever  que  as  pessoas  com 
visão  saudável  observarão  uma  serpente  (se  ali  estiver  alguma)  desde  que  haja  boa 
iluminação  e  as  pessoas  olhem  na  direcção  certa.  É  porque  os  objectos  físicos  estão 
sujeitos a tais previsões que podemos compreender as eventuais razões para questio‐
nar  uma  experiência  que  parece  a  percepção  de  uma  serpente;  e  podemos  amiúde 
saber  se  tais  razões  estão  presentes.  No  caso  de  seres  divinos,  contudo,  as  coisas  são 
bastante diferentes. Supõe‐se que depende inteiramente do arbítrio de Deus revelar ou 
não a sua presença a um ser humano. Se Deus o faz, pode ou não dar‐se a conhecer a 
outros que estão numa situação semelhante. Isto significa que é bastante difícil desco‐
brir razões para pensar que a experiência religiosa amística de alguém é delusória. Mas 
uma  vez  que  o  princípio  de  credulidade  supõe  que  compreendemos  as  eventuais 
razões  para  pôr  uma  experiência  em  causa,  há  dúvidas  sobre  a  justiça  de  aplicar  o 
princípio a experiências cujos sujeitos as tomam por percepções da presença de um ser 
divino. É óbvio que sendo Deus um ser perfeitamente bom, não podemos, a partir des‐
se facto apenas, encontrar uma razão para pensar que uma experiência que aparente‐
mente  se  tem  de  Deus  é  delusória.  Suponha‐se  que  alguém  relata  uma  experiência, 
que interpreta como percepção de uma ordem de Deus, para que mate quem quer que 
procure  sinceramente  viver  uma  vida  moral  e  piedosa.  Podemos  estar  certos  de  que 
Deus não revelou essa mensagem e ter assim uma razão para pensar que a experiência 
é  delusória.  Restam  dúvidas,  contudo,  sobre  haver  ou  não  um  leque  adequado  de 
razões para pôr em causa a aplicação do princípio de credulidade às experiências reli‐
giosas.  Assim,  sabendo  nós  que  um  pressuposto  do  princípio  de  credulidade  não  foi 
adequadamente  satisfeito  pelas  experiências  religiosas,  é  no  mínimo  duvidoso  que  o 

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princípio  nos  dê  justificação  para  considerar  as  experiências  religiosas  como  percep‐
ções genuínas da realidade. 
  Suponhamos que alguém que não teve experiências religiosas examina vários rela‐
tos de pessoas que as desfrutaram. Um aspecto saliente destas experiências é estarem 
na sua maioria inseridas numa ou noutra de uma pluralidade de  tradições religiosas, 
que não podem ser todas verdadeiras. Por exemplo, a experiência de Saulo na estrada 
para  Damasco  está  inserida  no  cristianismo  enquanto  experiência  de  Jesus  como  ser 
divino. Nenhuma experiência semelhante faz parte do judaísmo ou do islão. Na verda‐
de, nestas tradições religiosas, Jesus não é sequer um ser divino. As experiências que se 
tem de Alá no islamismo ou de Deus no judaísmo não são experiências de um ser divi‐
no que seja uma trindade de pessoas, como é o Deus cristão. No hinduísmo pode‐se 
ter experiência de Crixna como ser divino, mas não de Jesus. Além disso, no hinduís‐
mo  há  também  uma  vertente  em  que  se  tem  experiência  da  presença  divina,  Brama, 
como algo que não é uma pessoa. Parece improvável que todas estas experiências reli‐
giosas  possam  ser  percepções  verídicas  de  uma  presença  divina.  Estas  experiências 
impregnam  e  sustentam  tradições  religiosas  rivais,  mutuamente  contraditórias. 
Tomando  consciência  disto,  que  perspectiva  deve  adoptar  quem  não  teve  quaisquer 
experiências  religiosas?  Se  o  princípio  da  credulidade  funciona  para  uma  qualquer, 
funcionará igualmente para todas. Mas dificilmente poderão todas elas ser percepções 
verídicas de uma presença divina. Confrontada com esta situação, parece racional que 
esta  pessoa  não  aceite  qualquer destas  experiências  religiosas  como  verídicas.  Assim, 
mesmo que concordemos em continuar a aplicar o princípio de credulidade às expe‐
riências religiosas, pode perfeitamente acontecer que a pessoa que não teve qualquer 
experiência  religiosa  tenha  justificação  racional  para  não  aceitar  tais  experiências 
como percepções verídicas da realidade. Pois o facto de estas experiências sustentarem 
tradições religiosas conflituantes nas quais estão inseridas pode dar a essa pessoa uma 
razão para não aceitar como verídica qualquer experiência religiosa particular. 

Experiências religiosas místicas 
  Os  estudantes  do  misticismo  normalmente  distinguem  dois  tipos  gerais  de  expe‐
riência religiosa mística: a extrovertida e a introvertida. A extrovertida olha para fora, 
através dos sentidos, para o mundo à nossa volta, e descobre aí a realidade divina. A 
maneira introvertida volta‐se para dentro e encontra a realidade divina na parte mais 
profunda  do  eu.  A  última  é  a  mais  importante  dos  dois  tipos  de  experiência mística, 
mas será útil examinar ambos com algum detalhe. 

Experiência extrovertida 

  Na maneira extrovertida, os místicos usam os sentidos para percepcionar o mesmo 
mundo de árvores, outeiros, riachos e ribeiros que todos percepcionamos. Mas numa 

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experiência  mística,  vêem  estes  objectos  triviais  transfigurados  e  transformados  — 
vêem uma essência interna em todas estas coisas e podem sentir a unidade entre o seu 
eu mais profundo e esta essência interna, que parece a mesma nos diferentes objectos 
percepcionados.  W.  T.  Stace  relata  uma  experiência  deste  tipo,  a  experiência  de  um 
americano  a  quem  Stace  chama  «N.  M.».  A  experiência  de  N.  M.  ocorreu  enquanto 
olhava para o pátio de um antigo prédio de apartamentos. 

  Os  edifícios  eram  decrépitos  e  feios,  o  chão  estava  coberto  de  tábuas,  trapos  e 
escombros. Subitamente, todos os objectos no meu campo de visão adquiriram um tipo 
curioso e intenso de existência própria; isto é, tudo parecia ter um «interior» — existir 
como  eu  existia,  tendo  interioridade,  um  tipo  de  vida  individual,  e  todos  os  objectos 
observados deste ponto de vista pareciam extremamente belos. Estava lá um gato, com a 
cabeça  levantada,  observando  indolentemente  uma  vespa  que  se  movia  sem  se  mover 
mesmo acima da sua cabeça. Tudo estava premente da vida que era a mesma no gato, na 
vespa,  nas  garrafas  partidas,  e  apenas  se  manifestava  diferentemente  nestes  indivíduos 
(que  não  deixavam  por  isso  de  ser  indivíduos,  ainda  assim).  Todas  as  coisas  pareciam 
brilhar com uma luz que vinha do seu interior.7 

  Stace  relata  que  em  conversa  com  N.  M.  este  lhe  disse  que  não  só  todos  aqueles 
objectos externos pareciam partilhar uma e a mesma vida, mas que a vida partilhada 
por esses objectos era também a mesma vida que tinha e tem em si próprio. A explica‐
ção de N. M. continua: 

  Senti uma completa certeza de que naquele momento via as coisas como realmente 
eram e fiquei cheio de dor ao me aperceber da situação real dos seres humanos, vivendo 
continuamente  no  meio  de  tudo  isto  sem  ter  consciência.  Esta  ideia  apoderou‐se  da 
minha mente e chorei. Mas chorei também pelas coisas em si, que nunca vimos e que na 
nossa  ignorância  tornamos  feias,  e  vi  que  toda  a  fealdade  era  uma  chaga  da  vida  […] 
Ganhei consciência do tempo outra vez e a impressão de entrar no tempo foi tão nítida 
como se tivesse entrado na água, passando de um elemento mais rarefeito para um mais 
denso.8 

  Diversos místicos de várias tradições religiosas têm relatado experiências semelhan‐
tes à de N. M. Por exemplo, Stace sugere que a experiência de N. M. é semelhante à de 
Eckhart: 

  Aqui (isto é, na experiência) todas as folhas de erva, a madeira e a pedra, todas as 
coisas são Uma […] Quando está um homem no mero entendimento? Quando vê cada 
coisa separada das outras. E quando está acima do entendimento? Quando tudo vê em 
tudo, então ergue‐se o homem acima do mero entendimento.9 

83 
 
  Reflectindo  na  experiência  mística  do  tipo  extrovertido,  podemos  numerar  os 
seguintes aspectos como características da experiência: 

1. Olha para fora através dos sentidos. 
2. Vê  a  essência  interna  nas  coisas,  uma  essência  que  parece  viva,  bela  e  a  mesma  em 
todas as coisas. 
3. Sensação de união entre o eu mais profundo e esta essência interior. 
4. Sentimento de ter experiência do divino. 
5. Sensação de realidade, de ver as coisas como realmente são. 
6. Sensação de paz e felicidade. 
7. Intemporalidade, nenhuma consciência da passagem do tempo durante a experiência. 

Experiência introvertida 

  Na  experiência  mística  introvertida  olha‐se  para  dentro  e  descobre‐se  o  divino  no 
âmago da alma. Não se trata simplesmente de pensar em si próprio. Segundo os místi‐
cos tem de se aceder à parte mais profunda e sombria de si próprio, o que é extraordi‐
nariamente difícil de fazer. Primeiro há que se desligar do estado normal de consciên‐
cia. O que é o estado de normal de consciência? Nesse estado, pode‐se estar ciente de 
uma  série  de  conteúdos  de  consciência:  sensações,  desejos,  sentimentos,  imagens, 
quereres, memórias, pensamentos. Desde que se esteja ocupado com qualquer destes 
—  mesmo  pensamentos  nobres  acerca  de  Deus  —  não  se  pode  aceder  à  parte  mais 
profunda do eu, onde nada há senão silêncio. Todos os grandes místicos concordam a 
este respeito. Tem de se pôr de lado o estado normal de consciência; tem de se esva‐
ziar  a  consciência  de  todos  estes  conteúdos.  Eckhart,  usando  a  expressão:  «o  nasci‐
mento  de  Cristo  na  alma»  para  a  experiência  mística  do  tipo  introvertido  sublinha  a 
importância e a dificuldade de se desligar do estado normal de consciência. 

  O nascimento é impossível sem um completo afastamento da sensação […] E exige‐
se uma grande força para reprimir todos os agentes da alma e fazê‐los deixar de funcio‐
nar. Congregá‐los exige muita força, e sem essa força não pode ser feito.10 

  Talvez reconhecendo a extrema dificuldade de alcançar o desligamento, os místicos 
desenvolveram vários «exercícios» para ajudar a levar a cabo esta tarefa. Há as técnicas 
ioga da Índia, por exemplo, em que se procura obter o domínio sobre a vida consciente 
através  de  exercícios  de  respiração.  E  os  místicos  cristãos  nos  mosteiros  católicos 
desenvolveram  a  técnica  da  «oração»,  não  no  sentido  usual  de  pedir  coisas  a  Deus, 
mas  no  sentido  da  meditação,  praticada  com  a  intenção  de  remover  obstáculos  à 
obtenção da união com Deus. 
  Suponha‐se que de algum modo se atingia o desligamento, afastando da consciên‐
cia  a  actividade  dos  sentidos  e  do  intelecto.  O  que  aconteceria?  Em  vez  de  perder  a 
consciência ou adormecer, pode‐se ter experiência do âmago da alma, que se esvaziou 

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de todo o conteúdo. Os místicos descrevem esta experiência como uma experiência de 
vazio,  uma  sensação  de  nada.  Usa‐se  metáforas  como  «escuridão»,  «um  ermo»,  «o 
deserto» para caracterizar esta experiência do vazio. Os místicos insistem na ideia de 
que só à medida que o eu perde consciência de si próprio e de outras coisas pode ficar 
vazio e preparar‐se para a entrada de Deus. Como Eckhart observa: 

  A palavra genuína da eternidade pronuncia‐se apenas nessa eternidade do homem 
que é ele próprio um deserto, alienado de si e de toda a multiplicidade.11 

De igual modo, o místico espanhol São João da Cruz (1542–1591) afirma: 

  Agora a alma tem de se esvaziar de todas estas formas, figuras e imagens imagina‐
das, e tem de permanecer na escuridão a respeito destes sentidos para alcançar a Divina 
União.12 

  Aparentemente, se Deus entra realmente na alma, quando esta alcança o seu estado 
total de vazio e escuridão, tem‐se a sensação de se encontrar a realidade última, tem‐
se uma experiência de unidade com esta realidade, e uma sensação total de paz e feli‐
cidade.  Na  tradição  mística  católica,  chama‐se  «visão  beatífica»  a  esta  experiência,  e 
por muita dificuldade que os que a alcançaram tenham em descrevê‐la, é sobremanei‐
ra evidente que para os místicos esta experiência é uma pérola de grande valor. Para 
eles, transcende tudo o mais que a vida na Terra tem para oferecer. 
  Reflectindo  na  experiência  mística  do  tipo  introvertido,  podemos  numerar  os 
seguintes aspectos característicos dessa experiência: 

1. Um estado de consciência desprovido dos seus conteúdos comuns: sensações, imagens, 
pensamentos, desejos, e por aí em diante. 
2. Uma experiência de unidade absoluta, sem distinções ou divisões. 
3. Sensação de realidade, de se ter experiência da realidade última. 
4. Sentimento de que se tem experiência do divino. 
5. Sensação total de paz e felicidade. 
6. Intemporalidade, nenhuma consciência da passagem do tempo durante a experiência. 

  Tendo  caracterizado  a  experiência  religiosa  mística,  chegamos  agora  à  questão  de 


tais experiências darem ou não uma base racional para acreditar na realidade do divi‐
no. Ao discutir esta questão será útil limitarmo‐nos ao género principal de experiên‐
cias religiosas místicas, a experiência mística introvertida. 

A tese da unanimidade 
  Uma dificuldade que encontrámos nas experiências religiosas comuns é serem apa‐
rentemente  de  seres  divinos  muito  diferentes  —  Jesus,  Crixna,  Alá,  Brama,  e  outros. 
Consideramo‐la uma dificuldade porque as experiências estão inseridas e apoiam tra‐

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dições religiosas rivais que não podem ser todas verdadeiras. Até certo ponto, portan‐
to, aceitar a veracidade de uma destas experiências é levantar dúvidas acerca das expe‐
riências comuns de uma tradição religiosa rival. Por contraste, muitos filósofos e pen‐
sadores religiosos argumentaram que as experiências místico‐religiosas do tipo intro‐
vertido são fundamentalmente as mesmas, afirmação a que por vezes se chama «tese 
da unanimidade». William James exprimiu‐a do seguinte modo: 

  A  ultrapassagem  de  todas  as  barreiras  usuais  entre  o  individual  e  o  absoluto  é  a 


grande façanha mística. Nos estados místicos unimo‐nos ao absoluto e ganhamos cons‐
ciência dessa unidade. Esta é a perene e triunfante tradição mística, dificilmente alterada 
pelas  diferenças  de  clima  ou  credo.  No  hinduísmo,  no  neoplatonismo,  no  sufismo,  no 
misticismo  cristão,  no  whitmanismo,  encontramos  a  mesma  nota  recorrente,  de  modo 
que  há  uma  unanimidade  eterna  a  propósito  das  elocuções  místicas,  que  devia  fazer  o 
crítico parar e pensar, e faz os místicos clássicos não terem, como se costuma dizer, data 
de nascimento nem terra natal.13 

  Muitos  comentadores  da  experiência  mística  —  Stace,  Aldous  Huxley,  Bertrand 


Russell  e  C.  D.  Broad,  para  nomear  apenas  alguns  —  concordam  com  James  em  que 
há,  entre  os  místicos  de  diversas  culturas  e  tradições  religiosas,  uma  unanimidade, 
parcial ou total, acerca do que se encontra na experiência mística. E também concor‐
dam que a unanimidade entre os místicos é um aspecto a favor da perspectiva de que a 
experiência mística é uma percepção verídica da realidade, e que, portanto, pode dar 
uma base racional para a crença na realidade do divino. 
  Por que haveria o facto — supondo para já que se trata de um facto — de a tese da 
unanimidade  ser  verdadeira  pesar  a  favor  do  místico,  sendo  uma  razão,  talvez,  para 
ajuizar a sua experiência como verídica e não delusória? Suponha‐se que ao leccionar 
um curso de filosofia da religião, tenho subitamente uma experiência na qual uma voz 
se me dirige vinda algures de cima e diz: «Rowe, a CIA tem‐te debaixo de olho». Con‐
sigo de algum modo terminar a aula, mas imediatamente a seguir relato a minha expe‐
riência  bastante  extraordinária  a  alguns  colegas  na  universidade.  Suponha‐se  que  se 
empenham em determinar, o melhor que podem, se a minha experiência foi verídica 
— isto é, se houve realmente uma voz independente de mim, transmitindo a mensa‐
gem que ouvi — ou se a minha experiência foi delusória, sendo a voz uma projecção 
de  alguma  perturbação  interna  em  mim,  como  o  punhal  de  que  Macbeth  teve  expe‐
riência. Seria bastante natural perguntarem aos estudantes que estavam na minha aula 
no  momento  em  que tive  a experiência,  no  intuito  de descobrir  se  algum  deles  tam‐
bém ouviu a voz. É claro que se um número suficiente deles ouviu uma voz dizer mais 
ou menos aquilo que relatei, isto pesaria para considerar verídica a minha experiência; 
ao passo que se nenhum deles ouviu a voz, os meus colegas teriam alguma razão para 
entender  que  a  minha  experiência  foi  delusória,  talvez  devido  a  alguma  forma  de 
paranóia da minha parte. Pelo que o facto de algumas pessoas terem a mesma expe‐

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riência pesa normalmente a favor da veracidade da experiência. Claro que o facto de 
alguém em Chicago não ter ouvido a voz que descrevi não é relevante porque essa pes‐
soa não tinha maneira (não estava na sala de aula) de ouvir a voz. Tão‐pouco é rele‐
vante o facto de a voz não ter sido ouvida por alguns estudantes que estavam na sala 
de aula mas tinham adormecido. Pois embora pudessem ouvir a voz, não satisfaziam 
outra  condição  necessária  (estar  acordado)  para  se  ouvir  a  voz,  se  é  que  estava  real‐
mente ali uma voz para se fazer ouvir. 
  Voltando  à  experiência  mística,  podemos  agora  ver  a  importância  da  tese  da  una‐
nimidade para a questão de a experiência do místico ser verídica ou delusória. O facto 
de  vários  indivíduos  terem  essencialmente  a  mesma  experiência  é  relevante  para  a 
questão  de  a  experiência  ser  ou  não  verídica  desde  que  seja  razoável  pensar  que  há 
condições  tais  que,  quando  satisfeitas,  uma  pessoa  teria  a  experiência  se  esta  fosse 
verídica e não a teria se fosse delusória. Os místicos parecem de facto empenhar‐se em 
satisfazer certas condições (o desligamento, por exemplo) e têm amiúde a experiência 
quando  se  satisfaz  estas  condições.  Mas  não  há  maneira  clara  ou  segura  de  saber  se 
alguém satisfez realmente as condições exigidas pela experiência mística. Além disso, 
pode acontecer que o objecto de experiência, se é um ser divino, possa ou não optar 
por se revelar mesmo quando se satisfaz as condições necessárias. Por estas razões, é 
difícil saber em que circunstâncias se deve pôr em causa a veracidade da experiência 
mística pelo facto de alguém se empenhar em satisfazer as condições para ter a expe‐
riência sem o conseguir. Não obstante, parece razoável ver o facto de os místicos em 
toda a parte terem a mesma experiência como um ponto a favor da veracidade dessa 
experiência. 
  Mas será a tese da unanimidade verdadeira? Será que os místicos em toda a parte 
têm  basicamente  a  mesma  experiência?  Se  pensamos  em  indivíduos  que  gozam  de 
experiências do tipo introvertido, talvez pareça que a resposta tem de ser «sim». Pois 
sendo  experiências  místicas  introvertidas,  terão  as  características  de  1  a  6,  em  cujos 
termos se caracterizou a experiência mística introvertida. Temos de nos lembrar, con‐
tudo, que o item 4 menciona o sentido de que se encontra «o divino», e que permiti‐
mos  intencionalmente  que  a  expressão  «o  divino»  substitua  seja  o  que  for  que  qual‐
quer grupo religioso reconheça como tal. Assim, quando Eckhart descreve a sua expe‐
riência como aquela em que o eu se perde na divindade, a natureza divina comum às 
três  pessoas  da  trindade  —  o  Deus  Pai,  o  Deus  Filho  e  o  Deus  Espírito  Santo  —  e 
quando um místico hindu descreve as suas experiências como união com Brama, o eu 
universal, temos duas  concepções bastante diferentes do divino, mas ambas as expe‐
riências são exemplos de experiência mística introvertida. 
  Como os místicos de diferentes tradições religiosas — cristã, judaica, islâmica, hin‐
du e outras — usam concepções bastante diferentes do divino para caracterizar a rea‐
lidade  que  encontram  nas  suas  respectivas  experiências  místicas,  por  que  deveremos 
acreditar  que  todos  gozam  da  mesma  experiência?  Nalgumas  formas  de  hinduísmo 
concebe‐se  o  divino  como  realidade  impessoal,  ao  passo  que  quando  Santa  Teresa 
87 
 
caracteriza a sua experiência como «união com Deus», usa a concepção cristã do divi‐
no como um ser supremo, amoroso, pessoal. Confrontado com estes factos, como pode 
o  defensor  da  tese  da  unanimidade  continuar  a  afirmar  que  os  místicos  cristãos, 
judeus,  islâmicos,  hindus  e  budistas  têm  todos  precisamente  a  mesma  experiência? 
Pode‐se fazê‐lo distinguindo entre a experiência e a sua interpretação e sugerindo que 
as  diferenças  que  aparecem  nas  descrições  que  os  místicos  dão  da  realidade  que 
encontram se devem em larga medida a diferentes interpretações da mesma experiên‐
cia e não a descrições directas de experiências diferentes. No seu proveitoso livro, The 
Teachings of the Mystics [Os Ensinamentos dos Místicos], Stace introduz a distinção do 
seguinte modo: 

  Numa noite escura ao relento avista‐se algo que emite um brilho branco. Uma pes‐
soa poderá pensar que é um fantasma. Uma segunda pessoa poderá pensar que se trata 
de um lençol estendido na corda da roupa. Uma terceira pessoa poderá supor que se tra‐
ta de uma pedra pintada de branco. Aqui temos uma única experiência com três inter‐
pretações  diferentes.  A  experiência  é  genuína,  mas  as  interpretações  podem  ser  verda‐
deiras ou falsas. Para compreender seja o que for do misticismo, é essencial que façamos 
uma distinção similar entre uma experiência mística e as interpretações que dela se pode 
fazer  quer  pelos  próprios  místicos  quer  pelos  que  o  não  são.  Por  exemplo,  a  mesma 
experiência mística pode ser interpretada por um cristão em termos de crenças cristãs e 
por um budista em termos de crenças budistas.14 

  Munidos  desta  distinção,  Stace  e  outros  entenderam  a  experiência  do  místico 


essencialmente como um encontro com uma realidade una e desprovida de distinções, 
acompanhada  de  sentimentos  de  paz  sublime,  graça  e  alegria.  A  identificação  que  o 
místico faz entre a realidade que encontra e uma forma do divino — Deus, o Brama, o 
eu  universal,  o  vazio  ou  o  nirvana  —  não  é  vista  como  parte  da  própria  experiência 
mas  como  interpretação  da  experiência  segundo  as  doutrinas  da  tradição  religiosa  a 
que o místico pertence. E é ao insistir nesta perspectiva que Stace e outros estudantes 
do misticismo têm conseguido defender a tese da unanimidade contra a objecção que 
ponderámos. 
  Suponha‐se que concedemos que os místicos de diversas tradições religiosas gozam 
a bem dizer da mesma experiência. Stace, Broad, Huxley, Russell, e outros que de facto 
o  concederam  observaram  também  que  a  unanimidade  não  é  uma  prova  de  que  a 
experiência  mística  é  verídica.  Stace,  por  exemplo,  nota  que  todas  as  pessoas  que 
tomam o medicamento santonina são unânimes na afirmação de que as coisas brancas 
parecem  amarelas,  e  Broad  observa:  «As  pessoas  de  todas  as  raças  que  bebem  habi‐
tualmente quantidades excessivas de álcool acabam por ter experiências sensoriais em 
que parecem ver serpentes ou ratos rastejar sob os seus quartos ou camas».15 Mas nem 
o exemplo de Stace nem o de Broad são casos de percepção verídica. Não obstante, a 

88 
 
unanimidade dos místicos a respeito da sua experiência continua a ser um aspecto a 
favor da sua veracidade. Como decidiremos então o assunto? 

Experiência mística: verídica ou delusória? 

  Ao  ajuizar  se  uma  experiência  é  verídica  ou  delusória  também  temos  em  conta  o 
estado das pessoas que têm a experiência. O uso de santonina e o consumo excessivo 
de álcool provocam estados anormais nas pessoas que os consomem, estados que cau‐
sam experiências distorcidas e delusórias do mundo. E é precisamente por esta razão 
que Russell defende que se deve considerar delusória a experiência do místico. Pois, ao 
contrário do cientista, que apenas exige de nós a capacidade normal de visão e outras 
percepções, o místico, argumenta Russell, «exige mudanças no observador, através do 
jejum, exercícios de respiração, e uma cuidadosa abstenção da observação externa».16 
O místico, como o bêbado, produz em si próprio estados corporais e mentais anóma‐
los. Russell argumenta que tais estados levam a percepções inexactas e anómalas que 
muito  provavelmente  são  delusórias.  Com  perspicácia  e  estilo  característicos,  Russell 
conclui: «De um ponto de vista científico, não podemos fazer qualquer distinção entre 
o homem que come pouco e vê o Céu e o homem que bebe muito e vê serpentes. Cada 
um se encontra numa condição física anormal e portanto tem percepções anormais».17 
Embora o estado sentimental de paz e felicidade do místico seja algo que Russell valo‐
riza  muito,  a  experiência  do  místico,  na  medida  em  que  pretende  ser  um  encontro 
com a realidade objectiva, é rejeitada por Russell como muito provavelmente delusó‐
ria. 
  Penso que há um pressuposto tácito na rejeição da experiência mística por Russell, 
um pressuposto que tem de ser posto em causa. Sabemos acerca dos estados corpóreos 
e mentais anómalos que causam percepções distorcidas e delusórias do mundo físico, 
o mundo da nossa experiência comum. É necessário recordar, contudo, que o místico 
afirma percepcionar um domínio que transcende o mundo da experiência comum, um 
reino  espiritual  inteiramente  diferente  do  mundo  físico.  O  pressuposto  tácito  no 
argumento de Russell é que os estados corpóreos e mentais que interferem com per‐
cepções fidedignas do mundo físico interferem também com percepções fidedignas de 
um mundo espiritual além do físico, se é que há um mundo espiritual para ser percep‐
cionado.  Talvez  este  pressuposto  seja  razoável,  mas  é  certo  que  a  sua  verdade  não  é 
óbvia. De facto, pode haver razões para pensar que o exacto contrário deste pressupos‐
to é muito provavelmente verdadeiro. Como escreve Broad: 

  Suponha‐se  por  momentos  que  há  um  aspecto  do  mundo  que  permanece  inteira‐
mente fora do alcance das pessoas comuns na vida quotidiana. Parece então muito pro‐
vável que um certo grau de anormalidade física e mental seja uma condição necessária 
para  nos  libertarmos  suficientemente  dos  objectos  da  percepção  sensorial  comum,  de 
modo a contactar cognitivamente com este aspecto da realidade. Portanto, o facto de as 

89 
 
pessoas que afirmam este tipo peculiar de cognição exibirem geralmente certas anorma‐
lidades físicas e mentais é precisamente o que seria de esperar se as suas afirmações fos‐
sem verdadeiras. Talvez seja preciso ser um pouco «avariado» para se ter acesso a fendas 
por onde espreitar o mundo supra‐sensorial.18 

  Embora seja um céptico religioso, Broad argumenta vigorosamente a favor da pers‐
pectiva  de  que  as  experiências  místicas  são  muito  provavelmente  verídicas.  Broad 
resume assim a sua posição: 

  Por fim chego, ao argumento a favor da existência de Deus que se baseia na ocor‐
rência  de  experiências  especificamente  místicas  e  religiosas.  Estou  disposto  a  admitir 
que tais experiências ocorrem entre pessoas de diferentes raças e tradições sociais, e que 
ocorreram  em  todos  os  períodos  da  história.  Estou  disposto  a  admitir  que,  embora  as 
interpretações que delas se tem feito difiram ainda mais, há provavelmente certas carac‐
terísticas  comuns  a  todas  e  que  bastam  para  as  distinguir  de  todos  os  outros  tipos  de 
experiência. Consequentemente, penso ser provável que na experiência religiosa e místi‐
ca os homens entrem em contacto com uma realidade, ou aspecto da realidade, com o 
qual não contactam de outra maneira.19 

  Face ao facto, já considerado, de a unanimidade não mostrar por si a veracidade de 
uma  experiência,  e  face  ao  facto  de,  na  passagem  citada,  Broad  não  mencionar  qual‐
quer  argumento,  além  da  unanimidade,  favorável  à  sua  perspectiva  positiva  da  expe‐
riência mística, temos de perguntar o que leva Broad a avaliá‐la desta maneira. As suas 
razões, expressas como argumento, são as seguintes: 

1. Há  um  acordo  considerável  entre  os  místicos  no  que  diz  respeito  à  realidade  de  que 
têm experiência. 
2. Quando há  um acordo  considerável  entre observadores acerca daquilo de que enten‐
dem  ter  experiência,  é  razoável  concluir  que  as  suas  experiências  são  verídicas,  a 
menos que haja uma razão positiva para as considerar delusórias. 
3. Não há razões sólidas para pensar que as experiências místicas são delusórias. 

Logo, 

4. É razoável acreditar que as experiências místicas são verídicas. 

  A premissa crucial neste argumento é a número 2, que Broad argumenta ser o pos‐
tulado prático que usamos ao lidar com experiências amísticas.20 No caso da unanimi‐
dade entre bêbados que vêem ratos e serpentes, Broad argumenta que temos de facto 
uma razão positiva para pensar que as suas experiências são delusórias: 

  Sendo  este  o  género  de  coisas  (ratos  e  serpentes)  que  podíamos  ver  se  estivessem 
ali, o facto de não as podermos ver torna a sua ausência muito provável […] Parece assim 

90 
 
razoável concluir que o acordo entre bêbados não é um sinal de revelação mas de delu‐
são.21 

  As afirmações que os místicos fazem, contudo, não entram em conflito com o que 
percepcionamos no nosso estado normal de consciência. Pelo que Broad conclui que 
dada a aplicação à experiência mística do postulado prático que aplicamos em tudo o 
mais é razoável encarar a experiência mística como verídica. 
  Embora Russell não discuta o postulado prático de Broad, nada nos seus comentá‐
rios acerca da experiência mística sugere que Russell rejeitaria o postulado ou se recu‐
saria a aplicá‐lo à experiência mística. O seu desacordo com Broad diz respeito à pre‐
missa  3.  Porquanto,  como  vimos,  Russell  pensa  que  o  facto  de  os  místicos  estarem 
amiúde em estados físicos ou mentais anómalos quando têm as suas experiências mís‐
ticas é uma razão positiva para pensar que são delusórias. Vimos, contudo, que Russell 
aceita um pressuposto discutível ao rejeitar a premissa 3, e considerámos as razões de 
Broad para se recusar a aceitar tal pressuposto. 
  No que diz respeito ao desacordo entre Russell e Broad a propósito da premissa 3, 
inclino‐me  para  o  lado  de  Broad.  É  razoável  acreditar  1)  que  a  natureza  da  realidade 
que  os  místicos  encontram  talvez  exigisse  de  nós  algumas  mudanças  significativas, 
para que a percepcionássemos, mudanças que podiam bem interferir com observações 
exactas do mundo físico comum, e 2) que se a experiência mística fosse verídica causa‐
ria mudanças bastante extraordinárias nos que desfrutaram da experiência. Pelo que o 
mero  facto  de  os  místicos  sofrerem  determinadas  alterações  corporais  e  mentais  não 
constitui uma razão positiva para pensar que a experiência mística é delusória. 

Um caminho intermédio 

  Deveremos concluir, com Broad, que a experiência mística é provavelmente verídi‐
ca?  A  minha  reserva  quanto  a  isto  diz  respeito  à  aplicação  do  postulado  prático  de 
Broad  à  experiência  mística.  Quando  nos  confrontamos  com  um  grau  razoável  de 
unanimidade entre os que desfrutam de uma dada experiência há, penso, uma diferen‐
ça importante entre 1) saber como proceder para descobrir razões positivas, se as hou‐
ver, para rejeitar a sua experiência como delusória e 2) não saber como proceder para 
descobrir tais razões positivas, se as houver. Quando nos encontramos na situação 1, 
como é óbvio que nos encontramos no caso das pessoas que têm experiência de ratos e 
serpentes e que consomem habitualmente álcool em excesso, a aplicação do postulado 
de Broad é sem dúvida justificada. Mas quando nos encontramos na situação 2, como 
os amísticos parecem estar relativamente à experiência mística, talvez não se justifique 
a aplicação do postulado de Broad — caso em que a questão de a experiência mística 
ser verídica ou delusória parece acabar em algo como um impasse. 
  Há mais de cem anos, James concluiu o seu brilhante estudo do misticismo retiran‐
do três conclusões: 

91 
 
1. Os  estados  místicos,  quando  bem  desenvolvidos,  normalmente  são,  com  todo  o 
direito, fonte de autoridade absoluta para os indivíduos a quem sobrevêm. 
2. Deles não emana qualquer autoridade que impusesse a quem está de fora o dever de 
aceitar acriticamente aquelas revelações. 
3. Desfazem a autoridade da consciência amística ou racionalista, apenas com base na 
compreensão e nos sentidos. Mostram que aquela é apenas um tipo de consciência.22 

  É  improvável  que  os  estudos  do  misticismo  ao  longo  dos  anos  que  desde  então 
decorreram  tenham  invalidado  estas  conclusões.  A  terceira  conclusão  simplesmente 
observa  que  as  experiências  místicas  estabelecem  que  há  um  modo  de  consciência 
além  do  estado  normal  de  consciência.  Ao  contrário  de  Russell  (temos  boas  razões 
para pensar que as experiências místicas são delusórias) e de Broad (temos boas razões 
para  pensar  que  as  experiências  místicas  são  verídicas),  James  adopta  um  caminho 
intermédio na sua segunda conclusão, sugerindo que nós, amísticos, não temos quais‐
quer  boas  razões  para  ver  as  experiências  místicas  como  verídicas  nem  boas  razões 
para  as  considerar  delusórias.  A  isto  acrescenta,  na  sua  primeira  conclusão,  que  os 
próprios místicos não só vêem em geral as suas experiências como verídicas como têm 
justificação  para  o  fazer.  Embora  não  tenhamos  discutido  a  primeira  conclusão  de 
James, as considerações que apresentámos neste capítulo apontam de facto nas direc‐
ções adoptadas na sua segunda e terceira conclusões. 
  Discutimos duas dificuldades na perspectiva de que o princípio da credulidade tor‐
na  racional  aceitar  como  verídicas  experiências  religiosas  comuns.  Podemos  agora 
resumir as nossas conclusões acerca da questão de as experiências religiosas místicas 
darem  ou  não  uma  base  racional  para  acreditar  na  realidade  do  divino.  Como  con‐
cluímos, com James, que os amísticos não têm de facto boas razões para aceitar a vera‐
cidade  das  experiências  místicas,  o  facto  de  haver  experiências  místicas  não  dá  aos 
amísticos uma base racional para acreditar na realidade do divino. Além disso, mesmo 
que os amísticos alinhassem com Broad, considerando provável a veracidade das expe‐
riências místicas, o facto de diferentes místicos usarem diferentes concepções do divi‐
no para interpretar as suas respectivas experiências tornaria difícil determinar se a rea‐
lidade apreendida pelos místicos é ou não divina, e em que sentido o seria. O próprio 
Broad  é  cuidadoso,  comentando  que  não  pensa  haver  quaisquer  boas  razões  para 
supor que a realidade encontrada pelos místicos é pessoal. Portanto, no que diz respei‐
to ao Deus teísta, parece razoavelmente claro que as experiências místicas muito pou‐
co adiantam a uma base racional para acreditar na existência de tal ser. E esta conclu‐
são  tanto  pode  aplicar‐se  aos  místicos  quanto  aos  amísticos.  Pois  embora  possamos 
admitir com James que os místicos têm justificação para considerar verídicas as suas 
experiências, na medida em que a própria experiência é um encontro com a absoluta 
unidade,  desprovida  de  distinções,  a  experiência  não  justificaria  por  si  a  crença  no 
Deus  teísta.  O  místico  teísta,  que  já  acredita  no  Deus  teísta,  pode  interpretar  a  sua 
experiência  como  um  encontro  com  algum  aspecto  daquele  ser.  Mas  isto  é  bastante 

92 
 
diferente de defender que a própria experiência justifica a crença do místico na reali‐
dade do Deus teísta. 

Revisão 
1. Explique  o  que  se  entende  por  experiência  religiosa.  Em  que  diferem  as  experiências 
religiosas amísticas das experiências religiosas místicas? 
2. O que é o princípio de credulidade? Como ajuda a mostrar a veracidade das experiên‐
cias religiosas amísticas? 
3. Que  argumento  fundamental  apresenta  Broad  em  defesa  da  sua  perspectiva  de  que  é 
razoável pensar que a experiência mística é verídica? 
4. Explique a diferença entre as perspectivas de Russell e de Broad sobre se é razoável ou 
não encarar a experiência mística como verídica. 
5. A experiência mística dá boas razões para acreditar no deus teísta? Discuta. 

Estudo complementar 
1.* Discuta criticamente o seguinte argumento: 
As  experiências  religiosas  amísticas  não  provam  a  existência  de  Deus.  Mas  tem  de  se 
explicar o facto de haver tais experiências. E a explicação mais simples é que existe um 
Deus que faz as pessoas ter experiência dele. Portanto, é muito provável que Deus exis‐
ta. 
2.* James afirma que os estados místicos têm o direito de ser fonte de autoridade absoluta 
para  aqueles  a  quem  sobrevêm.  Terá  James  razão,  ou  será  que  quem  tem  estas  expe‐
riências devia vê‐las como delusórias? Discuta. 

Notas 
1. Actos dos Apóstolos 9:3‐9 (Edição Canónica Revista). 
2. R. B. Blakney, Meister Eckhart: A Modern Translation (Nova Iorque: Harper & Row Pub‐
lishers, 1941), p. 200. 
3. Ibid. pp. 200‐201. 
4. Citado por Walter T. Stace em Mysticism and Philosophy (Nova Iorque: J. B. Lippincott 
Co., 1960), p. 233. 
5. William James, The Varieties of Religious Experience (1902) (Nova Iorque: The Modern 
Library, 1936), pp. 67‐68. 
6. Richard Swinburne, The Existence of God (Oxford: The Clarendon Press, 1979), p. 254. 
7. Stace, Mysticism and Philosophy, pp. 71‐72. 
8. Ibid. 
9. Ibid, p. 63. 
10. Blakney, Meister Eckhart, p. 109. 
11. Ibid, p. 120. 

93 
 
12. St. John of the Cross, The Dark Night of the Soul, trad. e org. K. F. Reinhardt (Nova Ior‐
que: Ungar Publishing Co., 1957), p. 51. 
13. James, The Varieties of Religious Experience, p. 410. 
14. W. T. Stace, The Teachings of the Mystics (Nova Iorque: New American Library, 1960), 
p. 10. 
15. C. D. Broad, «Arguments for the Existence of God, II» The Journal of Theological Studies 
XL (1939), p. 161. 
16. Bertrand Russell, Religion and Science (Londres: Oxford University Press, 1935), p. 187. 
17. Ibid, p. 188. 
18. Broad, «Arguments for the Existence of God, II», p. 164. 
19. C.  D.  Broad,  Religion,  Philosophy  and  Physical  Research  (Nova  Iorque:  Humanities 
Press, 1969), pp. 172–173. 
20. Broad, «Arguments for the Existence of God, II», p. 163. O princípio de Broad é similar 
ao princípio de credulidade discutido antes. A diferença principal é que o princípio de 
Broad  aceita  uma  experiência  como  verídica  (a  menos  que  haja  razões  positivas  para 
pensar que é delusória) quando há uma série de experiências que concordam com ela. 
O princípio de credulidade não requer experiências concordantes. 
21. Ibid., p. 162. 
22. James, The Varieties of Religious Experience, p. 414. 

94 
 
Capítulo 6 
Fé e razão 

  A questão central que tem ocupado a nossa atenção desde o primeiro capítulo é a 
de  haver  ou  não  fundamentos  racionais  que  sustentem  as  afirmações  fundamentais 
das  religiões  teístas.  Até  agora  a  nossa  preocupação  foi  o  estudo  das  razões  que  fre‐
quentemente se dá a favor da afirmação de que o deus teísta existe. Na sua formulação 
mais geral, a questão central que temos vindo a tratar é a seguinte: será que a razão 
estabelece  a  verdade  do  teísmo  (ou  a  sua  probabilidade)?  Para  tal,  observámos  com 
algum cuidado os indícios a favor do teísmo veiculados pela experiência religiosa e os 
argumentos  tradicionais  a  favor  da  existência  de  Deus.  Assim,  para  caracterizar  a 
abordagem que adoptámos, podemos afirmar ter avançado com base em dois pressu‐
postos: em primeiro lugar, pressupusemos que se deve ajuizar as crenças religiosas, do 
mesmo modo que as crenças científicas e históricas, no tribunal da razão; em segundo 
lugar, pressupusemos que as crenças religiosas só serão aprovadas no tribunal da razão 
quando forem adequadamente sustentadas por indícios favoráveis. Chegou o momen‐
to de deitar um olhar crítico aos dois pressupostos. 
  Contra  o  nosso  primeiro  pressuposto,  afirma‐se  frequentemente  que  só  se  pode 
aceitar crenças religiosas com base na fé e não na razão. No mínimo, portanto, temos 
de considerar o que é a fé e se é racional ou irracional aceitar crenças religiosas com 
base nela. Contra o segundo pressuposto, observa‐se que nem toda a crença aprovada 
no  tribunal  da  razão  o  pode  ser  em  virtude  de  se  apoiar  noutra  crença,  que  seja  um 
indício a seu favor. Afirma‐se que algumas das nossas crenças são racionais (são apro‐
vadas  no  tribunal  da  razão)  ainda  que  não  as  adoptemos  com  base  em  quaisquer 
outras crenças que possam ser indícios a seu favor. Se isto for verdade (e penso que é), 
temos de considerar a questão de as crenças religiosas poderem ou não integrar esta 
categoria  e  serem  portanto  aprovadas  no  tribunal  da  razão,  mesmo  na  ausência  de 
indícios favoráveis, dados por outras crenças que adoptamos. 

Crenças religiosas e fé 
  Alguns pensadores religiosos argumentaram que a própria natureza da religião exi‐
ge que as suas crenças assentem na fé, e não na razão. Pois, segundo o argumento, a 
crença religiosa exige a aceitação incondicional por parte do crente, aceitação que além 
disso resulta de uma decisão livre de tornar‐se crente. Mas se a crença religiosa tivesse 
base racional, a razão estabeleceria indiscutivelmente a sua verdade ou apenas a torna‐
ria provável. No primeiro caso, em que a razão prova a crença, o intelecto informado 

95 
 
impõe‐na,  sem  deixar  espaço  para  uma  decisão  livre.  E  no  segundo  caso,  em  que  a 
razão apenas mostra que a crença é provável, se a crença religiosa assentasse inteira‐
mente  na  razão,  a  aceitação  incondicional  da  crença  religiosa  seria  injustificada  e 
absurda. Talvez então a crença religiosa assente de facto na fé e não na razão. 
  Mas o que é a fé? E como se relaciona com a razão? Será que entra em conflito com 
a razão ou a complementa? Ao tentar responder a estas questões, centraremos a nossa 
atenção em duas perspectivas acerca da fé e da razão: a primeira é tradicional, desen‐
volvida  por  S.  Tomás  de  Aquino;  a  segunda,  mais  radical,  foi  formulada  por  William 
James. 
  Tanto  Tomás  como  James  encaram  os  objectos  da  fé  como  afirmações,  sobretudo 
acerca do divino. A fé é portanto a aceitação de determinadas afirmações a respeito de 
Deus e das suas actividades. Por vezes, contudo, não pensamos na fé como uma acei‐
tação da verdade de certas afirmações, mas como confiança em certas pessoas e insti‐
tuições. Assim, dizemos coisas como «tem fé nos teus amigos» ou «vamos restabelecer 
a  fé  no  governo».  Mas  como  confiar  numa  pessoa  ou  instituição  envolve  em  geral 
acreditar em determinadas afirmações acerca delas,  ou aceitá‐las, a fé em alguém ou 
em algo pressupõe a crença de que algumas afirmações acerca dos mesmos são verda‐
deiras. Quando tais crenças não assentam na razão, a fé em alguém ou algo pode pres‐
supor a fé de que determinadas afirmações são verdadeiras. 

Tomás: uma perspectiva tradicional 
  Tomás diz‐nos que a fé está entre o conhecimento e a opinião — que por um lado é 
como  o  conhecimento  e  difere  da  opinião,  e  por  outro  é  como  a  opinião  e  difere  do 
conhecimento. Quando tomamos conhecimento de que algo é de certo modo, a razão 
tem indícios conclusivos de que é desse modo; algo nos compele a dar a nossa adesão 
intelectual  à  proposição  conhecida,  que  portanto  não  é  um  acto  livre  da  nossa  parte. 
Além  disso,  a  nossa  adesão  à  proposição  que  conhecemos  é  firme  e  segura.  Segundo 
Tomás, esta adesão intelectual é um aspecto comum à fé e ao conhecimento. Mas para 
que o acto de fé seja livre, o intelecto não pode ser compelido por indícios conclusivos 
que  resultam  em  conhecimento.  Ao  contrário  do  conhecimento,  portanto,  a  fé  não 
dispõe de indícios conclusivos a favor da proposição que é objecto de crença. No acto 
de fé, a adesão produz‐se no intelecto por livre vontade. 
  A opinião difere do conhecimento por não dispor de indícios conclusivos a favor da 
proposição  que  se  aceita  e  pela  sua  incerteza,  temendo‐se  que  a  opinião  alternativa 
seja verdadeira. A fé, como a opinião, não dispõe de indícios conclusivos, mas, como o 
conhecimento,  a  sua  adesão  intelectual  à  proposição  em  causa  é  firme  e  sem  hesita‐
ções. 
  Tomás  divide  as  verdades  acerca  do  divino  em  verdades  que  se  pode  demonstrar 
pela razão humana e verdades que não se pode conhecer pelo poder da razão humana. 
Nas verdades do primeiro género incluem‐se afirmações como «deus existe» e «deus 
96 
 
criou o mundo». Mas há muitas verdades acerca do divino que, afirma Tomás, «exce‐
dem a capacidade da razão humana».1  Muitas destas verdades são importantes para a 
nossa salvação. Pelo que embora a razão não as possa demonstrar, é importante que se 
acredite nelas. A crença nelas assenta na fé e não na razão. Como a razão não impõe ao 
intelecto a aceitação destas verdades acerca do divino, podemos aceitá‐las livremente 
pela fé. Além disso, como a aceitação destas crenças é um acto livre, o acto de fé do 
crente pode ser um gesto meritório, valendo‐lhe a aprovação e recompensa da parte de 
Deus. Para Tomás, portanto, a fé não entra em conflito com a razão mas «aperfeiçoa o 
intelecto» e pode ser um acto mental livre e meritório. 
  E quanto às verdades acerca do divino que se pode demonstrar pela razão humana? 
Serão,  ainda  assim,  objectos  adequados  da  fé?  Tomás  responde  que  é  também  apro‐
priado sugerir a sua aceitação pela fé. Pois conhecer estas proposições pela demonstra‐
ção  da  sua  verdade  é  uma  tarefa  difícil,  para  o  sucesso  da  qual  poucos  dispõem  de 
tempo, formação e recursos. Não obstante, quem conhece estas proposições através da 
demonstração não as aceita também pela fé. Pois é impossível a mesma proposição ser 
(ao mesmo tempo) objecto de conhecimento e de fé. Na vida além‐túmulo, quando os 
fiéis puderem ver Deus claramente, deixarão de viver pela fé. 
  Há  evidentemente  muitas  afirmações  acerca  do  divino  que  excedem  a  capacidade 
da razão humana para as apreender. Que Deus é trino, por exemplo, não se pode pro‐
var nem refutar pela razão. Como determina Tomás quais são as afirmações acerca do 
divino que se deve aceitar com base na fé? Por exemplo, devemos acreditar que Deus é 
trino  ou  devemos  acreditar  que  não  é?  A  resposta  a  esta  questão  está  em  ver  que 
embora a fé se distinga da razão, não pode existir por si. Pois a razão guia a fé, mos‐
trando que as afirmações aceites com base na fé foram reveladas por Deus. Como nos 
diz Tomás: «A fé […] não aceita seja o que for, excepto por ser revelado por Deus».2 
  Temos de distinguir, portanto, entre uma afirmação S e a afirmação «Deus revelou 
S». Se S é uma afirmação que pertence apropriadamente à fé, a razão será incapaz de a 
demonstrar ou apresentar indícios directos a favor de S. Mas a razão assiste a fé apre‐
sentando indícios a favor da afirmação de que Deus revelou S. Segundo Tomás, a razão 
dá‐nos argumentos prováveis para sustentar a perspectiva de que Deus revelou muitas 
verdades  nas  escrituras.  Estes  argumentos  apelam  a  considerações  como  o  cumpri‐
mento de profecias anunciadas na Bíblia, o sucesso alcançado pela igreja sem prometer 
prazeres nem recorrer à violência, e a ocorrência de milagres.3  Dessa maneira, Tomás 
pensa  poder  mostrar  a  razoabilidade  de  considerar  que  as  escrituras  foram  reveladas 
por Deus. Como as escrituras, segundo Tomás, ensinam que Deus é trino, a fé aceita 
essa  crença,  ainda  que  seja  insusceptível  de  demonstração  ou  refutação  directas  pela 
razão. 
  O tratamento clássico da fé e da razão adoptado por Tomás enfrenta essencialmen‐
te  duas  dificuldades.  Em  primeiro  lugar,  concede  à  razão  o  poder  de  provar  certas 
afirmações fundamentais acerca de Deus — que existe, que é perfeitamente bom, cria‐
dor do mundo — afirmações que hoje em dia muitos supõem «exceder a capacidade 
97 
 
da  razão  humana»,  para  usar  a  sua  expressão.  Em  segundo  lugar,  torna  a  fé  de  certa 
maneira dependente da razão no que diz respeito a determinar que afirmações Deus 
terá  de  facto  revelado.  Como  observa  o  filósofo  inglês  John  Locke,  «O  que  quer  que 
Deus tenha revelado é seguramente verdadeiro; quanto a isso não há dúvida. Trata‐se 
do objecto adequado da fé; mas cabe à razão ajuizar se é ou não uma revelação divi‐
na».4 

James: uma perspectiva radical 
  No período moderno, James elaborou, no seu agora clássico ensaio «A Vontade de 
Acreditar»,5  uma  perspectiva  radical  acerca  do  âmbito  da  fé,  que  não  está  sujeita  às 
duas dificuldades que afectam o tratamento dado por Tomás à fé e à razão. 

O Armador de Clifford: «A Ética da Crença» 

  Para  compreender  a  perspectiva  de  James  temos  antes  de  considerar  a  posição 
adoptada  pelo  matemático  e  filósofo  inglês,  William  Clifford  (1845–1879),  posição  a 
que o ensaio de James procura responder. Num artigo intitulado «A Ética da Crença», 
Clifford conta‐nos a história de um armador: 

  Um armador preparava‐se para enviar para o mar um navio com emigrantes. Sabia 
que o navio estava velho e tinha defeitos de construção; que conhecera já muitos mares 
e climas e teve de ser reparado muito mais de uma vez. Alguém sugeriu ao armador que 
o  navio  talvez  não  estivesse  em  condições  de  navegar.  Estas  dúvidas  pesavam‐lhe  na 
consciência  e  deixavam‐no  infeliz;  pensou  que  talvez  devesse  mandar  inspeccionar  e 
renovar profundamente o navio, embora isto provavelmente ficasse bastante caro. Antes 
de  o  navio  zarpar,  contudo,  o  armador  conseguiu  deixar  para  trás  estes  pensamentos 
melancólicos. Disse para consigo que o navio enfrentara com êxito tantas viagens e resis‐
tira a tantas tempestades que não havia razão para supor que não regressaria ileso tam‐
bém  desta  viagem.  O  armador  confiaria  na  providência,  que  seguramente  não  deixaria 
de proteger todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a pátria em busca de uma 
vida melhor alhures. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da honestidade de 
construtores e empreiteiros. Assim alcançou uma certeza sincera e confortável de que o 
seu navio era completamente seguro e estava em condições de navegar; viu‐o partir com 
despreocupação e desejos caridosos de que os exilados fossem bem‐sucedidos no novo e 
estranho lar que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou 
em pleno mar sem deixar rasto.6 

  Clifford afirma que este homem é culpado pela morte dos náufragos. O facto de o 
armador  acreditar  sinceramente  na  robustez  do  seu  navio  não  lhe  diminui  a  culpa, 
porquanto,  sublinha  Clifford:  «não  tinha  o  direito  de  acreditar,  tendo  em  conta  os 

98 
 
indícios disponíveis». Em vez de subordinar a crença à inspecção rigorosa das condi‐
ções  do  navio,  o  armador  optou  por  acreditar  sem  quaisquer  indícios  adequados. 
Segundo Clifford, não há qualquer justificação para adoptar uma crença sem indícios 
suficientes. O armador, não tendo obtido quaisquer indícios relevantes a respeito do 
estado do seu navio, errou, portanto, ao acreditar que este estava em condições. Supo‐
nhamos que o navio estava realmente em condições e que fizera a viagem em seguran‐
ça. Teria isto alterado o juízo que Clifford faz do armador? Nada disso: 

  O homem não seria inocente; apenas não teria sido descoberto. A questão do cor‐
recto  e  do  incorrecto  tem  a  ver  com  a  origem da  crença  do  armador, e  não  com  o  seu 
conteúdo;  não  é  a  crença  que  conta,  mas  o  modo  como  a  adoptou;  não  se  trata  de  a 
crença ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o direito de acreditar 
com base nos indícios de que dispunha.7 

  Contra  o  juízo  que  Clifford  faz  do  armador,  poderíamos  objectar  que  confundiu  o 
facto  de  o  armador  acreditar  que  o  seu  navio  está  em  condições  com  a  sua  acção  de 
enviar o navio para o mar sem inspecção adequada. É no último, diríamos, que está a 
imoralidade. Afinal de contas, embora o armador acreditasse (sem bons indícios) que 
o seu navio estava em condições, podia ainda assim ter ordenado uma inspecção ade‐
quada antes de enviar o navio para o mar. O que é moral ou imoral são as acções e não 
a mera adopção de crenças. 
  Clifford, contudo, reconhece a distinção que fizemos entre a crença do armador e a 
sua acção de enviar o navio para o mar. Concorda, além disso, que a acção foi imoral. 
Mas  insiste  que  é  preciso  condenar  também  a  crença  do  armador.  Pois  as  crenças 
levam naturalmente à acção. E uma pessoa que tenha o hábito de acreditar em coisas 
sem indícios suficientes, ou sem indícios sequer, irá frequentemente adoptar crenças 
que levam naturalmente a acções de facto nocivas para outros, como ilustra o exemplo 
do armador. 
  Ao reflectir no exemplo do armador e nos comentários de Clifford, talvez partilhe‐
mos  a  sua  opinião.  Quando  uma  crença  é  tal  que  leva  naturalmente  a  acções  que 
podem  ser  nocivas  para  outros,  é  imoral  adoptar  essa  crença  com  base  em  indícios 
insuficientes. Não se deve adoptar tais crenças quando não há quaisquer indícios a seu 
favor. Pois sabemos que quando as pessoas se entregam a tais crenças na ausência de 
indícios adequados, os resultados para a humanidade são muitas vezes nocivos, se não 
mesmo  desastrosos.  Mas  há  seguramente  crenças  cuja  adopção  não  leva  tendencial‐
mente  a  acções  nocivas  para  outros.  Pode  tratar‐se  de  crenças  insignificantes,  coisas 
triviais, como acreditar que fazia calor há um ano neste mesmo dia, ou crenças impor‐
tantes  que  tendencialmente  levam  apenas  a  acções  úteis  aos  outros,  como  acreditar 
que  os  seres  humanos  são  basicamente  bons  e  amigáveis.  Se  acreditar  que  os  outros 
são essencialmente bons e afáveis, posso ficar mais disposto a ser afável com eles do 
que  se  acreditasse  no  contrário.  Com  crenças  como  estas,  parece  irrazoável,  pelo 

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menos superficialmente, afirmar que é imoral adoptá‐las na ausência de indícios ade‐
quados de que são verdadeiras. Clifford, contudo, é intransigente na sua perspectiva: 

  Se me permito acreditar seja no que for com indícios insuficientes, da mera crença 
pode não resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca ter ocasião de 
a exibir em acções públicas. Mas não posso deixar de cometer este grande mal contra a 
humanidade: o de tornar‐me crédulo. O perigo para a sociedade não é meramente o de 
acreditar em coisas erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas o de se tornar 
crédula e perder o hábito de testar as coisas e de as investigar; pois então recairá forço‐
samente na selvajaria.8 

  Seja  uma  crença  trivial  ou  significativa  e  tenda  a  gerar  acções  nocivas  para  os 
outros, ou significativa e tenda a gerar acções benéficas para outros, o juízo de Clifford 
continua  igual:  só  temos  justificação  para  adoptar  essa  crença  se  tivermos  indícios 
suficientes  de  que  é  verdadeira.  Pois  de  contrário  prejudicar‐nos‐emos,  a  nós  e  à 
sociedade,  ao  enfraquecer  o  hábito  de  exigir  indícios  a  favor  das  nossas  crenças,  um 
hábito  que  lentamente  nos  fez  sair  da  era  da  superstição  e  da  selvajaria.  É  evidente, 
portanto, que Clifford não admite excepções à sua regra de não acreditar numa coisa a 
não  ser  na  presença  de  indícios  suficientes.  Resume  o  seu  ponto  de  vista  com  um 
comentário  citado  por  James  em  «A  Vontade  de  Acreditar»:  «É  sempre  errado,  seja 
onde for e por quem for, acreditar em qualquer coisa com base em indícios insuficien‐
tes».9  É  portanto  evidente  que  no  caso  de  Clifford  ter  razão  não  há  justificação  para 
acreditar  na  verdade  do  teísmo  sem  indícios  adequados  a  seu  favor.  De  igual  modo, 
não há justificação para acreditar na verdade do ateísmo sem indícios adequados a seu 
favor.  Se  nem  temos  indícios  adequados  a  favor  do  teísmo  nem  a  favor  do  ateísmo, 
então,  na  perspectiva  de  Clifford,  não  temos  alternativa  senão  suspender  o  juízo  — 
isto é, ser agnósticos. 

Até onde vai a concordância de James 

  Embora, como mencionámos, o artigo «A Vontade de Acreditar», de James, seja um 
ataque à perspectiva de Clifford, o grau de concordância entre ambos é digno de nota. 
Em primeiro lugar, James concorda com a afirmação fundamental de Clifford de que 
as pessoas têm de ser ajuizadas (louvadas ou censuradas) tanto em termos das acções 
que praticam como das crenças que adoptam. Em segundo lugar, James concorda com 
Clifford em que não é o conteúdo das crenças que deve determinar o modo como se 
ajuíza  uma  pessoa  mas  a  maneira  como  a  crença  é  adoptada.  Por  fim,  se  dividirmos 
como  se  segue  a  perspectiva  de  Clifford  em  duas  regras  para  reger  crenças,  é  razoa‐
velmente claro que James concorda inteiramente com a primeira: 

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1. Se um indivíduo sabe de indícios contra uma hipótese e também da ausência de quais‐
quer bons indícios a seu favor, e se ainda assim se permite acreditar nessa hipótese por 
lhe dar uma satisfação privada, pratica uma imoralidade. 
2. Se  um  indivíduo  não  tem  indícios  a  favor  de  uma  crença  e  nenhum  indício  contra  a 
mesma, é imoral aceitá‐la ou rejeitá‐la; deve suspender o juízo e esperar pelos indícios. 

  É  relativamente  à  segunda  destas  regras  que  James  se  afasta  de  Clifford.  Como 
veremos, o desacordo de James com a regra 2 não é tão grande quanto seria de esperar. 
Mas antes de entrarmos nos detalhes deste desacordo, será útil formular as regras 1 e 2 
em  termos  ligeiramente  diferentes,  termos  que  James  usa  no  seu  ensaio.  Segundo 
James, as nossas crenças têm duas, e só duas, determinantes: a razão e as paixões. A 
razão avalia uma crença em termos dos indícios que há a favor ou contra essa crença e 
leva‐nos a acreditar de acordo com os indícios. As paixões são todos os factores, além 
dos  factores  intelectuais,  que  nos  levam  a  aceitar  ou  rejeitar  uma  hipótese.  Desde  o 
tempo de Platão que os filósofos têm em geral adoptado a perspectiva de que temos o 
dever de suprimir as paixões no que diz respeito às crenças, permitindo que seja ape‐
nas  a  razão,  e  só  a  razão,  a  força  determinante  no  modo  como  se  formam  as  nossas 
crenças.  Clifford  filia‐se  claramente  nesta  tradição  e  também  James  tem  pelo  menos 
um pé firmemente assente nela. A regra 1 de Clifford compreende os casos em que a 
razão rejeita uma crença mas no qual permitimos que as nossas paixões desautorizem 
a razão. A regra 2 compreende os casos em que a razão é neutra mas nos quais em vez 
de  suspender  o  juízo  permitimos  que  a  crença  se  paute  pelas  paixões.  Em  ambos  os 
casos  se  sacrifica  a  razão  às  paixões  e  tal  sacrifício,  segundo  Clifford,  é  incorrecto. 
James  concorda  com  Clifford  no  primeiro  caso  mas  discorda  profundamente  no 
segundo. Não afirma que é incorrecto pautar as nossas crenças pelo que nos dizem as 
paixões, sempre que a razão é neutra. Ao invés, defende que há casos especiais em que 
a  razão  é  neutra  e  no  entanto  não  é  incorrecto  pautarmo‐nos  pelas  paixões.  Temos 
agora de procurar ver o que são estes casos especiais e por que razão James pensa que 
a crença religiosa é um desses casos. 

Crença religiosa: um caso especial 

Definições essenciais 

  Pode‐se exprimir do seguinte modo a ideia fundamental de James, relativamente à 
segunda regra de Clifford: 

  Quando, e só quando, uma hipótese é 1) intelectualmente indecidível e 2) nos apre‐
senta uma opção genuína, não é incorrecto acreditar o que nos apetecer a respeito dessa 
hipótese, não é incorrecto deixar a nossa natureza passional decidir. 

101 
 
  Ao  exigir  a  indecidibilidade  intelectual  da  hipótese,  James  deixa  claro  que  é  a 
segunda regra de Clifford que está em causa: o exemplo em que a razão é neutra no 
que  diz  respeito  à  hipótese.  E  ao  exigir  que  a  hipótese  exprima  uma  opção  genuína 
antes de podermos afirmar o direito de acreditar como nos apetecer, James deixa claro 
que não temos o direito de seguir as nossas paixões sempre que a razão é neutra, mas 
apenas quando nos confrontamos com algo mais além da neutralidade da razão: uma 
opção genuína. 
  James explica‐nos que por «opção genuína» entende uma decisão entre duas hipó‐
teses, que é viva, momentosa e forçosa. Uma opção (uma decisão entre duas hipóteses) 
pode  estar  viva  ou  morta  para  nós.  Uma  opção  está  viva  quando  ambas  as  hipóteses 
estão vivas para nós, quando ambas nos atraem e parecem possibilidades reais para as 
nossas  vidas.  James  ilustra:  «Se  lhe  digo:  “Torne‐se  um  teósofo  ou  um  maometano”, 
trata‐se  provavelmente  uma  opção  morta,  porque  é  improvável  que  para  si  qualquer 
destas  hipóteses  seja  uma  hipótese  viva.  Mas  se  digo:  “torne‐se  um  agnóstico  ou  um 
cristão”, sucede o contrário: tendo em conta a sua formação, cada uma destas hipóte‐
ses exercerá algum fascínio, por muito leve que seja, sobre as suas crenças».10 
  Uma  opção  pode  ser  momentosa  ou  trivial.  Uma  opção  é  momentosa  quando 
podemos  não  vir  a  ter  outra  oportunidade  de  decidir  entre  as  duas  hipóteses,  não 
podemos reverter facilmente a escolha que fizermos e há algo de importância conside‐
rável  que  depende  de  fazer  a  escolha  certa.  Durante  a  guerra  do  Vietname,  muitos 
jovens tiveram de escolher entre servir o seu país numa causa que sentiam ser injusta 
ou recusar‐se a prestar esse serviço. Tratava‐se obviamente de uma escolha momento‐
sa:  a  escolha  errada  podia  levar  a  perdas  pessoais  consideráveis;  uma  vez  tomada  a 
decisão, não se podia revertê‐la facilmente; tão‐pouco era possível adiá‐la. 
  Uma  opção  pode  ser  forçosa  ou  evitável.  Uma  opção  é  forçosa  quando  as  conse‐
quências  de  recusar  decidir  entre  uma  de  duas  hipótese  são  as  mesmas  que  decidir 
efectivamente entre uma delas.11 Se recebo uma proposta de emprego importante e me 
dão um prazo absolutamente inadiável para decidir, de tal maneira que ao fim desse 
prazo a oferta é retirada e proposta a outra pessoa disposta a aceitá‐la, a decisão que 
tenho perante mim é entre responder dentro do prazo e aceitar a oferta ou responder 
dentro do prazo e rejeitar a oferta, decisão que é forçosa. É forçosa porque as conse‐
quências  de  me  recusar  a  decidir  entre  aceitar  ou  rejeitar  são  as  mesmas  que  as  de 
simplesmente  rejeitar.  As  duas  acções,  de  responder  para  rejeitar  a  oferta  e  pura  e 
simplesmente  não  responder,  são  diferentes,  mas  as  consequências  são  as  mesmas. 
Recusar  decidir  é  praticamente  o  mesmo  que  decidir  rejeitar  a  oferta.  Uma  opção  é 
evitável quando há uma diferença real entre recusar decidir e decidir por uma das duas 
hipóteses. Se o leitor faz um teste em que tem de responder «verdadeiro» ou «falso» 
em que recebe cinco pontos por cada resposta correcta, perde cinco pontos por cada 
resposta errada, e não ganha nem perde quando não responde, então a decisão entre 
responder «verdadeiro» ou «falso» é evitável, e não forçosa. Pois as consequências de 

102 
 
não  dar  qualquer  resposta  são  diferentes  das  consequências  de  cada  uma  das  duas 
outras respostas possíveis. 
  É  importante  reconhecer  que,  para  uma  dada  hipótese,  há  sempre  três  maneiras 
diferentes de lhe responder. Podemos acreditar que é verdadeira, acreditar que é falsa 
ou suspender o juízo a seu respeito. É também importante reconhecer que a decisão 
entre acreditar que uma hipótese é verdadeira e acreditar que é falsa nunca é forçosa 
no que diz respeito à verdade e ao erro. Porquanto a pessoa que recusa acreditar, que 
suspende o juízo, nem acerta na verdade nem cai em erro. Pelo que se a decisão entre 
duas hipóteses que não podem ser ambas verdadeiras — por exemplo, «Deus existe» e 
«Deus não existe» — for forçosa, as consequências em causa têm de ser algo mais do 
que a verdade e o erro. 
  Suponhamos, por exemplo, que decidi dar‐lhe um milhão de euros se você acreditar 
que o Futebol Clube do Porto irá ganhar o campeonato no próximo ano, e nada caso 
acredite no contrário ou não acredite nem deixe de acreditar. O leitor tem a opção de 
acreditar em «O Futebol Clube do Porto irá ganhar o campeonato no próximo ano» e 
acreditar  em  «O  Futebol  Clube  do  Porto  não  vai  ganhar  o  campeonato  no  próximo 
ano».  Evidentemente,  uma  destas  hipóteses  é  verdadeira  e  a  outra  falsa.  Pelo  que  o 
crente em qualquer das duas hipóteses irá ou acertar na verdade (tem uma crença ver‐
dadeira)  ou  cair  em  erro  (tem  uma  crença  falsa).  Quem  suspender  o  juízo,  contudo, 
nem acerta na verdade nem cai em erro. Pelo que a opção não pode ser forçosa no que 
diz respeito à verdade e ao erro. Mas é forçosa quanto a receber a minha oferta de um 
milhão de euros. Pois o leitor tanto perde esta quantia se suspender o juízo como per‐
de se acreditar que o Futebol Clube do Porto não vai ganhar o campeonato no próximo 
ano.  Há  portanto  um  sentido  evidente  em  que  as  consequências  (pelo  menos  uma 
consequência importante) de suspender o juízo são as mesmas que acreditar numa das 
duas hipóteses. 

A hipótese religiosa de James 
  Agora  que  tratámos  destes  preliminares,  podemos  voltar‐nos  para  a  posição  de 
James de que a religião se subsume na sua tese fundamental: a hipótese religiosa fun‐
damental é intelectualmente indecidível ao mesmo tempo que nos confronta com uma 
opção  genuína.  James  caracteriza  a  hipótese  religiosa  em  duas  partes:  1)  o  que  é 
melhor  ou  supremo  é  eterno  e  2)  ficamos  melhor  se  acreditarmos  que  aquilo  que  é 
melhor é eterno. A ideia de que o que é melhor é eterno tem diferentes interpretações, 
consoante  a  tradição  religiosa  em  que  nos  situamos.  Na  tradição  religiosa  ocidental 
podemos compreender a primeira parte da hipótese religiosa como a afirmação de que 
o  deus  teísta  existe.  A  segunda  parte  é  a  afirmação  de  que  mesmo  agora  ficaremos 
melhor  caso  acreditemos  no  deus  teísta.  Por  que  ficaremos  melhor?  Se  o  deus  teísta 
existir  e  acreditarmos  nele,  beneficiaremos  imediatamente  da  vida  eterna,  da  graça 
divina e de outras bênçãos espirituais. Portanto, para o que nos interessa, entendere‐
103 
 
mos a primeira parte da hipótese religiosa como a afirmação de que o deus teísta exis‐
te,  e  a  segunda  parte  como  a  afirmação  de  que  mesmo  agora  ficaremos  melhor  caso 
acreditemos  no  deus  teísta.  (Nas  religiões  inteístas,  «o  que  é  melhor  é  eterno»  terá 
uma interpretação diferente da afirmação de que o deus teísta existe.) 

Intelectualmente indecidível 

  Será  que  a afirmação  implícita  de  James,  de  que  a  hipótese  religiosa  é  intelectual‐
mente  indecidível,  está  correcta?  Alguns,  incluindo  Tomás,  diriam  que  não.  Muitos 
teístas defendem que os argumentos a favor da existência de Deus e os factos da expe‐
riência religiosa dão uma justificação racional suficiente para acreditar que Deus exis‐
te.  Alguns  ateus,  contudo,  pensam  que  os  factos  acerca  do  mal  dão  uma  justificação 
racional adequada para a crença de que o deus teísta não existe. Na medida em que há 
indícios  racionais  adequados  quer  a  favor  do  teísmo  quer  a  favor  do  ateísmo,  James, 
juntamente com Clifford, compromete‐se com a perspectiva de que devemos acreditar 
de acordo com os indícios, independentemente daquilo que a nossa natureza passional 
nos diz. Todavia, a posição de James não é implausível. Pode dar‐se o caso de ser ver‐
dade que os nossos intelectos racionais são incapazes de decidir a questão de o deus 
teísta existir ou não, quer por não haver bons indícios para qualquer dos dois lados da 
questão quer por os indícios de um lado serem compensados por indícios igualmente 
bons do outro lado. Assim, talvez a afirmação de que o deus teísta existe seja tal que 
não se pode determinar a sua verdade ou falsidade através da investigação racional. Se 
isto for verdade, então, segundo Clifford, temos o dever de ser agnósticos. James, con‐
tudo, discorda, porque considera que a questão religiosa surge‐nos como uma questão 
viva, momentosa e forçosa. 

Uma opção genuína 

  Para quem foi criado na tradição religiosa ocidental básica, como eu, é bem prová‐
vel que a opção entre acreditar que Deus existe ou acreditar que não existe seja uma 
opção  viva.  E  a  decisão  entre  acreditar  que  Deus  existe  ou  acreditar  que  não  existe 
parece momentosa, pelo menos num dos sentidos de «momentosa». Pois se Deus exis‐
te e acreditamos nele, recebemos um certo bem vital por acreditar — a vida eterna, a 
graça  divina,  e  outras  bênçãos.  Se  Deus  existe  e  não  acreditamos  na  sua  existência, 
tudo  isto  se  perde.  Será  a  decisão  única  e  irreversível  caso  se  mostre  insensata?  É 
menos  claro  se  a  questão  religiosa  é  momentosa  em  qualquer  destes  sentidos.  Posso 
adoptar a crença no próximo ano em vez de neste ano, ou posso adoptar uma crença 
agora  e  mais  tarde  alterá‐la.  Ainda  assim,  podemos  concordar  com  James  em  que  a 
questão religiosa é momentosa no sentido mais relevante de nos dar um bem de infini‐
tas dimensões se escolhermos correctamente. 

104 
 
  Será a opção entre acreditar que o deus teísta existe e acreditar que tal ser não exis‐
te uma opção forçosa? Como vimos, esta opção não é forçosa quanto à verdade e ao 
erro. Pois se Deus existe, o ateu cai em erro mas o agnóstico não, já que para errar (ter 
uma  crença  falsa)  é  preciso  ter  uma  crença.  Mas,  como  James  salienta,  se  a  hipótese 
religiosa for verdadeira, então o agnóstico e o ateu estão no mesmo barco: ambos per‐
dem o bem vital que a religião tem para oferecer. Pelo que se o teísmo for verdadeiro, 
a opção entre acreditar que Deus existe e acreditar que não existe é uma opção forçosa 
no que diz respeito ao bem vital. Falando da hipótese religiosa, James afirma que 

ao permanecer cépticos e esperando que se faça mais luz […] perdemos o bem, no caso 
de ser verdade, tão certamente como se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se 
um  homem  hesitasse  indefinidamente  pedir  uma  mulher  em  casamento,  por  não  ter  a 
certeza absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. Não esta‐
rá a privar‐se dessa possibilidade angélica particular tão decisivamente como se casasse 
com outra pessoa?12 

  Será talvez digno de nota o facto de James não provar que a opção entre acreditar 
que Deus existe e acreditar que não existe é momentosa ou forçosa. Tudo o que conse‐
gue  provar  é  que  é  momentosa  e  forçosa  se  for  verdade  que  Deus  existe.  Pois  só  no 
caso de Deus existir é que estará em jogo na decisão um bem vital (a vida eterna). Se 
Deus  não  existir,  a  decisão  entre  as  duas  hipóteses  não  é  momentosa.  Nem  forçosa. 
Porquanto,  como  vimos,  a  opção  não  é  forçosa  a  respeito  da  verdade  e  do  erro;  é‐o 
apenas a respeito do bem vital que é a vida eterna, a graça divina, e as outras bênçãos 
que  decorrem  da  crença.  Mas  no  caso  de  o  ateísmo  ser  verdadeiro,  não  há  qualquer 
bem vital que possa tornar forçosa a opção. Em resposta a isto, o melhor que podemos 
dizer  é  que  James  mostrou  que  a opção  religiosa  pode  ser  momentosa  e  forçosa;  não 
temos  como  saber  que  não  é.  Isto  significa,  contudo,  que  para  a  questão  religiosa 
exemplificar a tese fundamental de James é preciso revê‐la mais ou menos da seguinte 
maneira: 

  Quando uma hipótese é intelectualmente indecidível e a opção entre acreditar nela 
e acreditar na sua negação é viva, então, se tanto 1) acreditar simplesmente na hipótese 
como 2) acreditar na hipótese e dar‐se o caso de ser verdadeira, resultam num bem vital 
para o crente, um bem inacessível a quem não acreditar na hipótese, então não é errado 
acreditar o que nos apetecer a respeito dessa hipótese, não é errado deixar a decisão à 
nossa natureza passional. 

  Se I se verificar, a opção será momentosa e forçosa. Se 2 se verificar, a opção poderá 
ser momentosa e forçosa, consoante a hipótese for verdadeira ou não. A opção entre 
acreditar  que  Deus  existe  e  acreditar  que  não  existe  subsume‐se  no  caso  2:  pode  ser 
momentosa e forçosa. 

105 
 
A defesa jamesiana da crença passional 
  Descrevemos  a  tese  fundamental  de  James,  tanto  na  sua  forma  original  como  na 
forma  revista,  e  vimos  como  a  hipótese  teísta  exemplifica  a  forma  revista  da  tese.13 
Chegou o momento de considerar a defesa jamesiana do direito a acreditar o que nos 
apetecer, no que diz respeito à hipótese teísta. 
  Na  esteira de  James,  podemos  pensar  no  teísta,  no  agnóstico  e  no  ateu  como  pes‐
soas que adoptam políticas diferentes. O teísta adopta a política de arriscar o erro em 
troca da oportunidade de acertar na verdade e conseguir um bem vital. O teísta arrisca o 
erro porque tem uma crença (que Deus existe) a favor da qual não dispõe de indícios 
adequados. Pelo que, tanto quanto sabe o teísta, a sua crença é falsa. Mas arrisca em 
troca da oportunidade de acertar na verdade (uma crença verdadeira, no caso de Deus 
existir)  e  a  oportunidade  de  beneficiar  de  um  bem  vital  (a  vida  eterna  e  outras  bên‐
çãos,  que  o  teísta  recebe  no  caso  de  Deus  existir).  O  agnóstico  adopta  a  política  de 
arriscar  não  acertar  na  verdade  e  não  conseguir  um  bem  vital,  em  troca  da  certeza  de 
evitar o erro. Ao não acreditar de uma ou outra maneira no que diz respeito à hipótese 
teísta,  o  agnóstico  pode  consolar‐se  na  certeza  de  ter evitado  o  erro,  uma  certeza  de 
que  nem  o  teísta  nem  o  ateu  podem  gozar.  Mas,  com  a  mesma  certeza,  o  agnóstico 
ignora  a  oportunidade  de  ter  uma  crença  verdadeira  e  conseguir  um  bem  vital,  um 
bem que o agnóstico, tanto quanto o ateu, seguramente perderá. O ateu adopta a polí‐
tica de arriscar o erro e não conseguir um bem vital, em troca da oportunidade de acer‐
tar na verdade. 
  Segundo Clifford, como carecemos de indícios adequados quer a favor quer contra a 
hipótese teísta, é incorrecto adoptar quer a política do teísta quer a política do ateu; ao 
invés,  temos  o  dever  de  adoptar  a  política  do  agnóstico.  Mas  a  posição  de  Clifford, 
segundo James, reduz‐se a uma mera decisão passional de evitar o erro a todo o custo. 
Antes arriscar não acertar na verdade e não conseguir um bem vital do que arriscar o 
erro. Eis a decisão tomada por Clifford. James nada encontra de atraente ou persuasivo 
nessa decisão. 

  É  como  um  general  que  diz  os  seus  soldados  que  mais  vale  evitar  eternamente  a 
batalha do que arriscar uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre inimigos 
ou sobre a natureza. Os nossos erros não são com certeza coisas tão horrivelmente sole‐
nes.  Num  mundo  onde  estamos  tão  certos  de  incorrer  neles,  por  muito  prudentes  que 
sejamos,  uma  certa  ligeireza  de  espírito  parece  mais  saudável  do  que  este  nervosismo 
exagerado por sua causa.14 

  A perspectiva do próprio James é que, das três políticas delineadas acima, nenhuma 
regra nos compromete a escolher qualquer uma em particular. Defende o nosso direito 
a  seguir  a  política  teísta,  mas  não  pensa  que  alguém  tenha  o  dever  de  seguir  aquela 
política. Cada pessoa tem o direito de adoptar a política que melhor se adequa à sua 

106 
 
própria  natureza  passional.  Clifford  tem  o  direito  de  adoptar  a  política  agnóstica.  Só 
erra ao tentar impor aquela política como um dever a todos os outros. James conclui 
com um apelo à tolerância: 

  Se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos 
perante  a  verdade,  parece  que  pregar  tão  solenemente  que  temos  o  dever  de  aguardar 
pelo toque do sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar, 
se quisermos — espero que não pense que o nego — mas se o fizermos, fazemo‐lo por 
nossa  conta  e  risco,  tal  como  se  acreditássemos.  Em  todo  o  caso  agimos,  tomando  as 
rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós devia impor vetos aos outros, nem trocar 
palavras  agressivas.  Devemos,  pelo  contrário,  respeitar  delicada  e  profundamente  a 
liberdade  mental  de  cada  um:  só  então  realizaremos  a  república  intelectual,  só  então 
teremos aquele espírito de tolerância íntima sem o qual toda a tolerância exterior se tor‐
na oca […] só então vivemos e deixamos viver, nas coisas especulativas como nas práti‐
cas.15 

  James apresentou uma defesa persuasiva do direito de acreditar o que nos apetecer 
a respeito da hipótese teísta. Todavia, penso que está enganado ao representar a esco‐
lha  entre  as  três  políticas  como  uma  escolha  que  não  se  pode  fazer  com  base  numa 
justificação  racional.  Na  verdade,  parece  que  a  sua  própria  perspectiva  é  a  de  que  a 
política do teísta — arriscar o erro em troca da oportunidade de acertar na verdade e 
conseguir um grande bem — é uma opção racional e que o teísta não é irrazoável ao 
adoptá‐la. E James é talvez injusto com Clifford quando sugere que este adopta a polí‐
tica do agnóstico — arriscar não acertar na verdade e não conseguir um bem vital em 
troca da certeza de evitar o erro — por mero medo patológico de adoptar uma crença 
falsa. Afinal, Clifford apresentou razões para seguir a política do agnóstico. Talvez as 
suas razões não sejam muito boas, mas James devia responder a essas razões em vez de 
depreciar os seus motivos. Não é que o próprio Clifford receie cometer um erro (acre‐
ditar  numa  falsidade),  pois  sabe  perfeitamente  que  quem  acredita  de  acordo  com  a 
força dos indícios aceitará às vezes uma crença falsa — raramente dispomos da totali‐
dade dos indícios relevantes para uma crença. Clifford pensa que quando nos permiti‐
mos acreditar em algo com indícios insuficientes enfraquecemos um hábito importan‐
te em nós e nos outros, «o hábito de testar as coisas e de as investigar», um hábito que 
lentamente nos fez sair da era da superstição e da selvajaria. Esta é a razão fundamen‐
tal de Clifford quando insiste que adoptemos a política agnóstica sempre que o nosso 
intelecto não consiga decidir entre duas hipóteses rivais. E em resposta James tem de 
argumentar ou que a adopção da política teísta não enfraquecerá este hábito ou que o 
bem  possível  a  obter  pela  adopção  da  política  teísta  ultrapassa  o  perigo  de  se  enfra‐
quecer este hábito em nós e nos outros. É esta a verdadeira questão entre James e Clif‐
ford e é uma pena que o próprio James não lhe tenha respondido. 

107 
 
  Vimos  duas  perspectivas  da  fé  apresentadas  por  Tomás  e  por  James.  Ambos  enca‐
ram  a  fé  religiosa  como  a  aceitação  de  determinadas  afirmações  acerca  do  divino  e 
ambos  se  preocupam  em  mostrar  que  a  fé  religiosa  não  é  irracional  nem  irrazoável. 
Tomás argumenta que a razão humana pode demonstrar algumas verdades acerca do 
divino  e  defende  que  a  fé  não  é  irrazoável  porque  a  razão  mostra  que  as  afirmações 
aceites pela fé nos são provavelmente reveladas por Deus. James adopta uma perspec‐
tiva mais radical. Defende que não se pode demonstrar pela razão a verdade ou a pro‐
babilidade de qualquer das afirmações acerca do divino que são fundamentais para a 
religião,  porque  foram  provavelmente  reveladas  por  Deus.  Não  obstante,  argumenta 
que adoptar a política da fé é uma opção intelectualmente defensável e não a violação 
de qualquer genuína obrigação intelectual. 

Crenças religiosas e indícios 
  Fizemos  já  notar  o  nosso  pressuposto  de  que  as  crenças  religiosas,  como  todas  as 
outras crenças, só serão aprovadas no tribunal da razão se forem adequadamente sus‐
tentadas  por  indícios.  Também  afirmámos  que  se  deve  sujeitar  este  pressuposto  ao 
escrutínio crítico. Pois vimos que nem todas as nossas crenças racionalmente defendi‐
das  podem  ser  racionais  apenas  em  virtude  de  se  sustentarem  noutras  crenças  que 
defendemos  e  que  são  indícios  a  favor  das  primeiras.  Além  disso,  avançámos  para  a 
consideração da perspectiva de James, que defende não ser errado aceitar determina‐
das crenças sem indícios desde que essas crenças nos apresentem uma opção genuína. 
Assim, atentemos agora directamente no nosso pressuposto. Ao examiná‐lo, conside‐
raremos  uma  perspectiva  importante,  desenvolvida  por  Alvin  Plantinga,  de  que  «é 
inteiramente correcto, racional, razoável e adequado acreditar em Deus sem quaisquer 
indícios ou argumentos».16 
  Recorde‐se o juízo de Clifford de que é uma transgressão do nosso dever intelectual 
acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes. Chama‐se indiciarismo a 
tal  perspectiva.  Podemos  caracterizar  o  indiciarismo como  a  perspectiva  de  que  uma 
crença  só  tem  justificação  racional  se  houver  indícios  suficientes  a  seu  favor.17  Uma 
crença é racional (tem justificação racional) quando há uma justificação racional para 
a adoptar. E temos justificação racional para a adoptar, segundo o indiciarismo, quan‐
do dispomos de indícios adequados a seu favor. Dada a possibilidade  de uma pessoa 
dispor de indícios inacessíveis a outras, pode ser racional para uma dada pessoa adop‐
tar  uma  crença,  não  sendo  racional  para  outra  pessoa  adoptar  a  mesma  crença.  Um 
físico, por exemplo, terá justificação racional para defender algumas crenças que não 
seriam racionais para quem pouco ou nada sabe de física. 
  O indiciarismo é o pressuposto que nos comprometemos examinar. Muitos teístas e 
inteístas (ateus e agnósticos) que discutem crenças religiosas são indiciaristas. Defen‐
dem, portanto, que a crença em Deus (acreditar que Deus existe) só é racional se hou‐
ver  indícios  adequados  a  favor  da  sua  existência.  Onde  discordam  é  na  questão  de 
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haver ou não indícios adequados a favor da sua existência. Por exemplo, Tomás e Ber‐
trand Russell tendem a concordar que as crenças religiosas só são racionais se são ou 
podem ser suficientemente sustentadas por indícios ou razões. Russell não pensa que 
há bons indícios a favor das crenças religiosas; ao passo que Tomás pensa que há. 
  Por que razão haveria alguém de pensar que acreditar em Deus sem quaisquer indí‐
cios é racional ou que pode ser racional? Como primeiro passo para responder a esta 
questão,  temos  de  nos  persuadir  daquilo  que  já  mencionámos:  nem  todas  as  nossas 
crenças  racionalmente  defendidas  podem  ser  racionais  apenas  em  virtude  de  se  sus‐
tentarem noutras crenças que defendemos e que constituem indícios a favor das pri‐
meiras. Pois suponhamos que isto não era assim. Então, se tivermos uma crença racio‐
nal, esta só será racional devido a outra crença nossa, a qual é um bom indício a favor 
da primeira. Mas essoutra crença não pode ser um bom indício a favor da primeira, no 
sentido de a tornar racional, a menos que também ela seja uma crença cuja adopção é 
para  nós  racional.  Também  ela,  portanto,  se  torna  racional  para  nós  devido  a  outra 
crença racional que adoptamos e que constitui um indício a seu favor. Já se vê que isto 
seria um processo interminável. Na verdade, para ter uma só crença racional teríamos 
de adoptar um número infinito de crenças cuja adopção fosse racional. Assim, o pro‐
cesso de tornar racional uma crença apenas através de outra crença racional que adop‐
tamos  tem  de  chegar  ao  fim.  Tem  de  haver  crenças  cuja  adopção  é  racional  sem  as 
basearmos  noutras  crenças  que  sejam  indícios  a  favor  das  primeiras.  Na  esteira  de 
Plantinga, chamemos‐lhes «crenças apropriadamente básicas». Uma crença apropria‐
damente básica é uma crença que é racional adoptar mesmo não tendo indícios a seu 
favor, no sentido de ter outras crenças racionais que a sustentem adequadamente. 
  Para compreender a perspectiva de Plantinga temos de distinguir as crenças apro‐
priadamente básicas das crenças que embora sendo básicas, não são apropriadamente 
básicas. Um jogador compulsivo pode subitamente acreditar que o próximo naipe de 
cartas que receber será o naipe vencedor. Pode não ter quaisquer outras crenças que 
considere  indícios  importantes  a  favor  desta  crença.  Talvez  esta  crença  seja  causada 
por uma necessidade psicológica profunda. O jogador tem uma crença básica, mas não 
apropriadamente  básica.  Porquanto  nada  há  nele  ou  na  circunstância  em  que  se 
encontra que torne a crença racional. Contraste‐se isto com a situação de alguém que 
olha pela janela e tem a experiência visual que depreende ser de um gato trepando a 
uma árvore, formando imediatamente a crença de que está ali um gato a trepar a uma 
árvore. A situação em que a pessoa se encontra — de olhar pela janela e aparentemen‐
te ver um gato a trepar a uma árvore, etc. — torna racional a sua crença de que está ali 
um gato a trepar a uma árvore. Não se dá o caso de a pessoa ter outras crenças racio‐
nais, inferindo daí a crença que agora tem — não diz para si própria: «Estou a olhar 
pela janela e aparentemente vejo um gato a trepar a uma árvore. Vejamos. O que posso 
inferir a partir desta crença? Oh, sim, posso inferir que vejo um gato a trepar a uma 
árvore».  A  pessoa  não  tem  quaisquer  indícios  a  favor  da  sua  crença,  no  sentido  de 
outras crenças com base nas quais adopta a crença de que está ali um gato a trepar a 
109 
 
uma árvore. A sua crença é portanto básica e racional (é uma crença apropriadamente 
básica). Podemos afirmar que a crença dessa pessoa se baseia numa situação que dá à 
pessoa justificação racional para a adoptar. A crença do jogador ou não tem bases, ou 
baseia‐se numa situação que não torna racional a sua adopção pelo jogador. 
  Se aceitarmos o que se acabou de dizer, podemos ainda assim considerar que a pes‐
soa que adopta a anterior crença apropriadamente básica de que está um gato a trepar 
a  uma  árvore  dispõe  de  indícios  adequados  ou  suficientes.  Pois  tem  os  indícios  dos 
seus  sentidos,  a  sua  experiência  de  aparentemente  ver  um  gato  trepar  à  árvore,  para 
sustentar a sua crença básica de que está um gato a trepar a uma árvore. Assim pode‐
mos concluir que este exemplo de crença apropriadamente básica não é uma excepção 
ao  nosso  pressuposto  indiciarista:  uma  crença  só  é  racional  quando  se  sustenta  em 
indícios  adequados.  Não  obstante,  embora  tenhamos  o  direito  de  encarar  as  crenças 
que Plantinga considera serem apropriadamente básicas como crenças sustentadas por 
indícios adequados, temos de compreender que segundo a sua concepção de indício, 
uma  crença  apropriadamente  básica  é  uma  crença  que  não  se  baseia  em  quaisquer 
indícios  de  todo  em  todo,  pois  para  Plantinga  os  indícios  são  apenas  proposições  em 
que se acredita. Desse ponto de vista, uma crença apropriadamente básica não é sequer 
adoptada  com  base  em  indícios,  porquanto  uma  crença  básica  não  se  baseia  noutras 
crenças que adoptamos. Assim, se aceitarmos a concepção que Plantinga tem de «bons 
indícios», segundo a qual estes consistem noutras crenças racionais que geram a cren‐
ça em causa, tornando‐a racional, concluímos que uma crença apropriadamente básica 
é uma crença racional que não adoptamos com base em quaisquer indícios. 
  Dada  a  sua  concepção  de  «indício»,  pode‐se  agora  ver  como  Plantinga  defende  a 
tese  aparentemente  espantosa  de  que  é  racional  acreditar  em  Deus  na  ausência  de 
quaisquer indícios. Isto não é senão a afirmação de que as pessoas por vezes se encon‐
tram em situações que geram e tornam racional a crença de que Deus existe, ainda que 
estas situações não incluam crenças racionais que sirvam de base à crença de que Deus 
existe, adoptada por essas pessoas. Que situações deste género há? O que nos ocorre 
primeiro são as experiências religiosas que considerámos no capítulo anterior. Pode‐se 
ter uma experiência que aparentemente é um encontro directo com Deus, formar ime‐
diatamente  a  crença  de  que  se  tem  experiência  de  Deus,  e  a  partir  daí  concluir  que 
Deus  existe.  Nesta  situação,  a  crença  de  que  se  tem  experiência  de  Deus  é  básica,  e 
será apropriadamente básica no caso de a experiência da pessoa e a situação em que 
ela se encontra tornarem a crença racional. Por outro lado, a partir desta crença básica 
pode‐se  inferir  imediatamente  a  crença  na  existência  de  Deus,  que  por  isso,  estrita‐
mente falando, não é ela mesma básica. (Plantinga observa que, tipicamente, a crença 
na existência de Deus se infere a partir de crenças básicas que a implicam directamen‐
te.) Plantinga, contudo, sugere um âmbito consideravelmente amplo de situações que 
do seu ponto de vista geram uma crença apropriadamente básica que implica directa‐
mente a existência de Deus. 

110 
 
  Ao  ler  a  Bíblia,  pode‐se  ficar  impressionado  com  uma  profunda  sensação  de  que 
Deus  se  nos  dirige.  Ao  fazer  o  que  considero  ser  desprezível,  errado  ou  imoral,  posso 
sentir‐me culpado aos olhos de Deus e formar a crença Deus desaprova a minha acção. 
Ao confessar‐me e arrepender‐me, posso sentir‐me perdoado, formando a crença Deus 
perdoa a minha acção.18 

  É evidente que sentir‐se culpado aos olhos de Deus não é em si suficiente para justi‐
ficar racionalmente a crença básica de que Deus desaprova o que se fez. Pois suponha‐
se que o leitor também tem razões muito fortes para acreditar que não pode deixar de 
se sentir religiosamente culpado quando faz algo perverso, dada a sua educação reli‐
giosa austera. Isto é, tem boas razões para acreditar, que independentemente de Deus 
existir  ou  não,  sentir‐se‐á  religiosamente  culpado  ao  fazer  algo  perverso,  dada  a  sua 
educação religiosa. Nesta situação, pode não ser racional adoptar a crença de que Deus 
desaprova o que fez. Pois sabe que mesmo que Deus não exista, continuaria a sentir‐se 
religiosamente culpado ao fazer algo perverso. 
  O  que  acabamos  de  ver  lembra‐nos  outra  consideração  geral:  quando  se  tem  apa‐
rentemente uma experiência de X, até que ponto isso justifica racionalmente a crença 
em X? Posso ter uma experiência que considero ser a percepção de uma parede verme‐
lha.  Mas  essa  experiência  não  tornará  racional  a  afirmação  de  que  estou  a  ver  uma 
parede vermelha se sei que a parede está iluminada por lâmpadas vermelhas. Pois nes‐
se caso sei que mesmo que a parede seja branca (e não vermelha) parecer‐me‐á verme‐
lha. Assim, para que uma situação torne racional a minha crença de que há uma pare‐
de vermelha ou a minha crença de que Deus desaprova o que fiz, tem de incluir não só 
uma  experiência  adequada  mas  também  uma  condição  grosso  modo  semelhante  à 
ausência  de  boas  razões  para  pensar  que  a  crença  é  falsa  ou  que  a  experiência  não 
aponta suficientemente para a verdade da crença. 
  Tendo  visto  o  que  uma  situação  tem  de  incluir  para  uma  crença  formada  nessa 
situação  seja  apropriadamente  básica  (isto  é,  básica  e  que  a  situação  torna  racional), 
podemos ter alguma hesitação em concordar com Plantinga que abundam as situações 
nas quais a crença em Deus (ou alguma crença que directamente a implique) é de fac‐
to  apropriadamente  básica.  Mas  se  aceitarmos  as  restrições  que  Plantinga  impõe  aos 
indícios a favor de outras crenças que temos na base das quais se infere a crença em 
causa, penso que temos de concordar em que há de facto situações nas quais a crença 
em  Deus  é  apropriadamente  básica.  Plantinga  dá  o  exemplo  de  um  teísta  de  catorze 
anos, educado para acreditar no teísmo, numa comunidade onde todos acreditam no 
mesmo. 

  Podemos supor que este teísta de catorze anos não acredita em Deus com base em 
indícios.  Nunca  ouviu  falar  no  argumento  cosmológico,  teleológico  ou  ontológico;  na 
verdade,  ninguém  alguma  vez  lhe  apresentou  quaisquer  indícios  de  todo  em  todo.  E 
embora  lhe  tenham  falado  muitas  vezes  em  Deus,  ele  não  vê  esses  testemunhos  como 

111 
 
indícios; não raciocina da seguinte maneira: «todos aqui afirmam que Deus nos ama e se 
preocupa  connosco; quase tudo o que dizem é verdade; portanto isso é provavelmente 
verdade». Ao invés, limita‐se a acreditar no que lhe ensinam.19 

  Evidentemente, na situação descrita, o nosso rapaz de catorze aos tem uma crença 
básica em Deus e tem justificação racional para adoptar essa crença. Porquanto parte 
do  que  foi  estipulado  para  esta  situação  é  que  ele  não  tem  boas  razões  (e  não  seria 
plausível esperar que tivesse) para pensar que Deus não existe ou que a sua comunida‐
de  pode  não  ter  justificação  racional  para  adoptar  as  suas  crenças  religiosas.  Infor‐
mam‐nos de que o rapaz não infere a sua crença a partir de quaisquer outras crenças 
que tenha, o que garante o carácter básico da sua crença em Deus. Este é portanto um 
exemplo inequívoco em que a crença em Deus é apropriadamente básica. É evidente, 
além  disso,  que  não  é  assim  tão  difícil  formar  crenças  apropriadamente  básicas,  em 
particular  quando  pensamos  num  crente  de  tenra  idade,  inserido  numa  comunidade 
de crentes. Tivesse o nosso rapaz de catorze anos sido educado de acordo com estipu‐
lações semelhantes numa comunidade de ateus e a sua crença de que Deus não existe 
seria apropriadamente básica. E se as crianças muito jovens podem ter crenças racio‐
nalmente justificadas, muitos de nós — pelo menos durante algum tempo — tiveram 
uma  crença  apropriadamente  básica  na  existência  do  Pai  Natal.  Pois  os  nossos  pais 
disseram‐nos  que  tal  ser  existia  e  acreditámos  imediatamente  na  existência  do  Pai 
Natal sem que tenhamos inferido esta crença a partir de outras que já tínhamos. Evi‐
dentemente, ao contrário da crença em Deus, após um período de tempo relativamen‐
te  curto,  os  nossos  semelhantes  arranjam  maneira  de  nos  libertar  desta  crença,  pelo 
que deixou de ser apropriadamente básica. 
  A questão interessante levantada pelo nosso exame da perspectiva de Plantinga é a 
de a crença em Deus (ou as crenças que implicam directamente a existência de Deus) 
poder ou não ser apropriadamente básica para adultos contemporâneos, relativamente 
sofisticados, que contactaram com 1) as razões a favor da descrença predominantes na 
nossa cultura e com 2) a disparidade entre as religiões do mundo no que diz respeito a 
que crenças religiosas se sustentam racionalmente em experiências religiosas. O nosso 
teísta de catorze anos não só não ouviu falar no argumento ontológico como também 
podemos supor que nunca reflectiu na abundância de dor e sofrimento intensos que 
ocorrem diariamente no nosso mundo, e que nunca pensou seriamente na questão de 
todo este sofrimento, aparentemente sem qualquer sentido, ser ou não permitido por 
um ser omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom. Tão‐pouco o nosso rapaz de 
catorze anos leu e avaliou as teorias psicológicas e sociológicas que procuram explicar, 
num enquadramento naturalista (em vez de sobrenaturalista), a emergência de cren‐
ças  e  experiências  religiosas.  A  questão  que  se  põe  é  se  um  adulto  inteligente,  que 
tenha  investigado  estas  matérias,  tem  ou  não  justificação  racional  para  acreditar  em 
Deus  na  ausência  total  de  argumentos  sérios  a  favor  do  teísmo.20  Além  disso,  o  que 
acontece se o nosso teísta cristão de catorze anos entrar em contacto com outras tra‐

112 
 
dições religiosas — o judaísmo, o islamismo, o hinduísmo, o jainismo, o budismo — e 
concluir acertadamente que os rapazes de catorze anos nessas tradições também têm 
crenças  religiosas  apropriadamente  básicas,  com  justificações  muito  semelhantes  à 
sua?  Suponha‐se  que  ele  compreende  que  se  tivesse  nascido  hindu  acreditaria  em 
Brama,  e  não  em  Deus,  de  uma  maneira  apropriadamente  básica.  Se  concluir  então 
que o divino não pode ser ao mesmo tempo Deus e Brama, não sentirá a necessidade 
de ter algo como argumentos e razões a favor do teísmo cristão, contra as afirmações 
religiosas do budismo?21 Assim, embora Plantinga tenha estabelecido que a crença em 
Deus pode ser apropriadamente básica em situações como a do rapaz de catorze anos, 
permanece  em  aberto  a  questão  de  a  crença  em  Deus  poder  ou  não  ser  apropriada‐
mente básica para adultos contemporâneos, intelectualmente sofisticados, informados 
acerca da existência de tradições religiosas muito diferentes e das principais razões a 
favor da descrença que predominam na nossa cultura. 
  A defesa de Plantinga do carácter apropriadamente básico da crença teísta em Deus 
tem também de explicar por que tantos seres humanos, racionais em todos os outros 
aspectos, nunca conseguem alcançar uma crença apropriadamente básica na existên‐
cia de Deus. À primeira vista pensaríamos que se Deus existe e nos criou com a ten‐
dência para formar crenças teístas em circunstâncias diversas, a quantidade de pessoas 
a fazê‐lo seria maior, o que resultaria numa quantidade muito menor de ateus e agnós‐
ticos, além de crentes cuja perspectiva do divino difere radicalmente do Deus do teís‐
mo  clássico  —  como  muitos  hindus  ou  budistas,  por  exemplo.  Respondendo  a  esta 
objecção,  Plantinga  sugere  que  o  pecado  humano  pode  distorcer  o  funcionamento 
adequado  da  faculdade  cognitiva,  o  nosso  sentido  do  divino,  que  nas  condições  ade‐
quadas dá lugar à crença no Deus do teísmo. Pelo que a sua defesa do carácter apro‐
priadamente básico da crença teísta depende em parte da verdade das afirmações do 
teísmo  ortodoxo  acerca  de  Deus  e  do  pecado  humano.  Embora  seja  improvável  que 
esta perspectiva ganhe simpatizantes e influencie ateus e agnósticos, esse facto não é 
muito importante para saber se a perspectiva é verdadeira ou falsa. É evidente que esta 
sofisticada  teoria  apresenta  uma  nova  abordagem  da  questão  da  justificação  racional 
da  crença  teísta.  E  num  período  em  que  a  confiança  nos  argumentos  tradicionais  a 
favor da existência de Deus está em declínio, merece a atenção cuidada dos estudantes 
de filosofia da religião.22 

Revisão 
1. O que entende Tomás por fé e como pensa que se relaciona com a razão? 
2. Quais são as duas regras que regem as crenças, segundo Clifford? James aceita ambas, 
apenas uma, ou nenhuma? Explique. 
3. Explique  o  que  James  entende  por  opção  genuína.  Terá  James  razão  ao  pensar  que  a 
hipótese  religiosa  nos  surge  como  uma  opção  genuína  intelectualmente  indecidível? 
Explique. 

113 
 
4. Quais  são  as  semelhanças  e  diferenças  entre  as  perspectivas  de  James  e  de  Tomás 
quanto à fé? Como procura cada um deles mostrar que a fé não é irrazoável? 
5. O  que  é  uma  crença  apropriadamente  básica?  Em  que  situações  pode  a  crença  em 
Deus ser apropriadamente básica? Explique. 

Estudo complementar 
1. Clifford defende que nunca é correcto fazer seja o que for que enfraqueça «o hábito de 
testar as coisas e investigá‐las». Concorda com Clifford? Se não, porquê? Se concorda 
com Clifford, a defesa que James faz da política do crente parece‐lhe plausível? Expli‐
que. 
2. Avalie  criticamente  o  argumento,  mencionado  no  início  deste  capítulo,  a  favor  da 
perspectiva de que a natureza da religião exige que as suas crenças assentem na fé, não 
na razão. 

Notas 
1. Vernon J. Bourke, trad., Summa Contra Gentiles, L.1, Cap. 3 (Nova Iorque: Doubleday & 
Company, Inc., 1956). 
2. S.  Tomás  de  Aquino,  Summa  Theologica,  II,  pt.  II,  Q1,  art.  1,  in  The  Basic  Writings  of 
Saint Thomas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945). 
3. Bourke, Summa Contra Gentiles, L.1, Cap. 7. 
4. John  Locke,  An  Essay  Concerning  Human  Understanding,  L.IV,  Cap.  28,  sec.  10,  org. 
Peter  H.  Nidditch  (Londres:  Oxford  University  Press,  1975).  [Ensaio  Sobre  o  Entendi‐
mento Humano, trad. Eduardo Abranches de Soveral, Lisboa: Gulbenkian, 1999.] 
5. William James, Essays in Pragmatism, org. A. Castell (Nova Iorque: Hafner Publishing 
Co., 1948), pp. 88–109. [«A Vontade de Acreditar», in Fé, Epistemologia e Virtude, org. 
Desidério Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2009.] 
6. William Clifford, Lectures and Essays, vol. II, org. F. Pollock (Londres: Macmillan and 
Co., 1879), pp. 177‐178. [«A Ética da Crença», in Fé, Epistemologia e Virtude, org. Desi‐
dério Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2009.] 
7. Ibid., p. 178. 
8. Ibid., pp. 185‐186. 
9. James, Essays in Pragmatism, p. 93. 
10. Ibid., p. 89. 
11. Nesta explicação do que seja uma opção forçosa, orientei‐me pelo excelente estudo de 
George Nakhnikian sobre «A Vontade de Acreditar», de James, An Introduction to Phi‐
losophy (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1967), pp. 273–286. 
12. James, Essays in Pragmatism, p. 106. 
13. Se por «bem vital» se entender determinados estados psicológicos (como a paz de espí‐
rito), que o crente pode fruir, quer  Deus exista realmente quer não, então a hipótese 
teísta pode exemplificar a afirmação original da tese de James. (Para essa explicação do 
bem vital, ver Nakhnikian, An Introduction to Philosophy, pp. 276‐279.) Mas se inter‐

114 
 
pretarmos  o  bem  vital  como  o  fiz,  como  algo  que  o  crente  recebe  apenas  de  Deus, 
então a hipótese teísta exemplifica apenas a forma revista da tese jamesiana. Porquan‐
to a hipótese teísta só será importante e compulsiva relativamente a esse bem vital no 
caso de o teísmo ser verdadeiro. 
14. James, Essays in Pragmatism, p. 100. 
15. Ibid., pp. 108–109. 
16. Alvin Plantinga, «Reason and Belief in God», em Faith and Rationality, org. Alvin Plan‐
tinga e Nicholas Wolterstorff (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1983), 
p. 17. 
17. Alguns  filósofos  têm  uma  perspectiva  mais  restrita  do  indiciarismo.  Identificam‐no 
com  a  perspectiva  de  que  as  crenças  religiosas  só  são  racionais  se  forem  sustentadas 
por indícios suficientes. 
18. «Is Belief in God Properly Basic?», NOUS 15 (1981), p. 46. [«É a Crença em Deus Apro‐
priadamente  Básica?»,  in  Fé,  Epistemologia  e  Virtude,  org.  Desidério  Murcho,  Lisboa: 
Bizâncio, 2009.] 
19. Plantinga, «Reason and Belief in God», p. 33. 
20. Esta  crítica  é  desenvolvida  por  Philip  L.  Quinn  in  «In  Search  of  the  Foundations  of 
Theism», Faith and Philosophy 2 (1985), pp. 469–486. Para uma perspectiva relaciona‐
da, ver Stephen J, Wykstra, «Toward a Sensible Evidentialism: On the Notion of “Need‐
ing Evidence”», in Philosophy of Religion: Selected Writings, 3.ª ed., org. W. L. Rowe e 
W. J. Wainwright (Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), pp. 481–491. 
21. Regressaremos a esta questão no Capítulo 11: Muitas Religiões. 
22. O trabalho principal de Plantinga, onde expõe a sua perspectiva, é Warranted Christian 
Belief (Oxford: Oxford University Press, 1999). 

115 
 
Capitulo 7 
O problema do mal 

  Temos  procurado  familiarizar‐nos  até  agora  com  a  principal  ideia  de  Deus  que 
emergiu na civilização ocidental — a ideia teísta de um ser perfeitamente bom, criador 
do mundo mas separado e independente do mesmo, omnipotente, omnisciente, eter‐
no e auto‐existente (Capítulo 1) — e examinámos algumas das principais tentativas de 
justificar  a  crença  na  existência  do  Deus  teísta  (capítulos  2  a  5).  Nos  capítulos  2  a  4 
ponderámos os três principais argumentos a favor da existência de Deus (cosmológico, 
ontológico e do desígnio), argumentos que apelam a factos supostamente acessíveis a 
qualquer pessoa racional, religiosa ou não. E no Capítulo 5 examinámos a experiência 
religiosa  e  mística  como  uma  fonte  da  crença  em  Deus  e  como  justificação  para  a 
mesma.  No  Capítulo  6  considerámos  o  papel  da  fé  na  formação  e  sustentação  das 
crenças  religiosas,  reflectindo  no  papel  legítimo  que  as razões  pragmáticas  desempe‐
nham,  por  contraste  com  as  razões  conducentes  à  verdade,  na  justificação  da  crença 
religiosa. Também considerámos a importante questão de a crença em Deus poder ter 
ou não justificação racional como crença apropriadamente básica, sem que tenha justi‐
ficação em termos de indícios derivados de outras crenças. Chegou agora a altura de 
nos voltarmos para algumas das dificuldades que a crença teísta enfrenta — algumas 
das fontes que se pensa justificarem o ateísmo, a crença de que o Deus teísta não exis‐
te. A mais formidável destas dificuldades é o problema do mal. 
  Há séculos que se sente que a existência de mal no mundo é um problema para o 
teísmo. Parece difícil acreditar que um mundo que contenha uma abundância de mal 
tão vasta como o nosso possa ser a criação e o objecto de controlo soberano por parte 
de um ser perfeitamente bom, omnipotente e omnisciente. Há séculos que o intelecto 
humano  se  confronta  com  este  problema  e  todos  os  principais  teólogos  procuraram 
solucioná‐lo. 
  Temos de ter o cuidado de distinguir entre duas formas importantes do problema 
do  mal.  Chamarei  a  estas  duas  formas  «forma  lógica  do  problema  do  mal»  e  «forma 
indiciária do problema do mal». Embora a diferença importante entre estas duas for‐
mas do problema do mal só se torne completamente clara à medida que ambas forem 
discutidas em detalhe, será útil ter diante de nós uma breve formulação de ambas as 
formas do problema, no início da nossa investigação. A forma lógica do problema do 
mal é a perspectiva de que a existência de mal no nosso mundo é logicamente inconsis‐
tente com a existência do Deus teísta. A forma indiciária do problema do mal é a pers‐
pectiva de que a diversidade e a abundância de mal no nosso mundo, embora talvez 
não  sejam  logicamente  inconsistentes  com  a  existência  do  Deus  teísta,  dão,  ainda 

116 
 
assim, uma sustentação racional ao ateísmo, a crença de que o Deus teísta não existe. 
Temos agora de examinar cada uma destas formas do problema com algum detalhe. 

O problema lógico 
  A forma lógica do problema implica a inconsistência interna do teísmo, porquanto 
o  teísta  aceita  duas  afirmações  que  são  logicamente  inconsistentes  entre  si.  As  duas 
afirmações em causa são: 

1. Deus existe e é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom. 
2. O mal existe. 

Estas duas afirmações, insiste o defensor da forma lógica do problema, são logicamen‐
te inconsistentes entre si, do mesmo modo que 

3. Este objecto é vermelho. 

é inconsistente com 

4. Este objecto não é colorido. 

  Suponhamos,  por  enquanto,  que  o  defensor  da  forma  lógica  do  problema  do  mal 
conseguia provar‐nos que as afirmações 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si. 
Seríamos então forçados a rejeitar ou 1 ou 2, visto que se duas afirmações são logica‐
mente inconsistentes entre si, é impossível que ambas sejam verdadeiras. Se uma delas 
é verdadeira, então a outra tem de ser falsa. Além disso, como dificilmente poderíamos 
negar a realidade do mal no nosso mundo, parece que teríamos de rejeitar a crença no 
deus teísta; seríamos levados à conclusão de que o ateísmo é verdadeiro. Na verdade, 
mesmo sendo tentados a rejeitar 2, restando‐nos a opção de acreditar em 1, esta não é 
uma tentação a que os teístas na sua maioria possam ceder facilmente. Pois que na sua 
maioria os teístas aderem a tradições religiosas que dão ênfase à realidade do mal no 
nosso mundo. Na tradição judaico‐cristã, por exemplo, o homicídio é considerado uma 
acção má e pecaminosa, e dificilmente se poderá negar a ocorrência de homicídios no 
nosso  mundo.  Então,  como  os  teístas  em  geral  aceitam  a  realidade  do  mal  no  nosso 
mundo e a destacam, seria algo desastroso para o teísmo se estabelecêssemos aquela 
que  é  a  afirmação  central  da  forma  lógica  do  problema  do  mal:  que  1  é  logicamente 
inconsistente com 2. 

Estabelecendo a inconsistência 

  Como  podemos  estabelecer  que  duas  afirmações  são  inconsistentes  entre  si?  Por 
vezes não é preciso estabelecer seja o que for, porque as duas afirmações contradizem‐
se explicitamente, como, por exemplo, as afirmações: «Elisabete tem mais de um metro 

117 
 
e meio» e «Elisabete não tem mais do que um metro e meio». É frequente, contudo, 
duas afirmações inconsistentes entre si não serem explicitamente contraditórias. Nes‐
ses casos podemos estabelecer que são inconsistentes derivando delas duas afirmações 
que são explicitamente contraditórias. Considere‐se as afirmações 3 e 4, por exemplo. 
É  evidente  que  estas  duas  afirmações  são  logicamente  inconsistentes  entre  si;  não 
podem ser ambas verdadeiras. Mas não são explicitamente contraditórias. Se nos pedi‐
rem  para  provar  que  3  e  4  são  inconsistentes  entre  si,  podemos  fazê‐lo  derivando  a 
partir  delas  afirmações  que  são  explicitamente  contraditórias.  Para  o  fazer  temos  de 
acrescentar outra afirmação a 3 e 4: 

5. Tudo o que é vermelho é colorido. 

De  3,  4  e  5  podemos  então  derivar  facilmente  um  par  de  afirmações  explicitamente 
contraditórias:  «Este  objecto  é  colorido»  (de  3  e  5)  e  «Este  objecto  não  é  colorido» 
(repetição  de  4).  Este  é,  então,  o  procedimento  que  podemos  seguir  se  nos  pedirem 
para estabelecer que duas afirmações são logicamente inconsistentes entre si. 
  Antes de considerar se o defensor da forma lógica do problema do mal pode ou não 
estabelecer  que  as  afirmações  1  e 2  são  logicamente  inconsistentes  entre  si,  temos  de 
compreender  claramente  um  detalhe  muito  importante  acerca  do  modo  de  o  fazer. 
Quando temos duas afirmações que não são explicitamente contraditórias e queremos 
estabelecer  que  são  logicamente  inconsistentes,  fazemo‐lo  acrescentando‐lhes  uma 
afirmação  ou  afirmações  adicionais  e  derivando  de  todo  o  grupo  (o  par  original  e  a 
afirmação  ou  afirmações  adicionais)  um  par  de  afirmações  que  sejam  explicitamente 
contraditórias  entre  si.  O  detalhe  que  agora  requer  muita  atenção  é  o  seguinte:  para 
que este procedimento funcione, a afirmação ou afirmações adicionais têm não só de 
ser  verdadeiras  mas  necessariamente  verdadeiras.  Repare‐se,  por  exemplo,  que  a  afir‐
mação que adicionámos a 3 e 4 para estabelecer que são inconsistentes entre si é uma 
verdade necessária — é logicamente impossível que algo seja vermelho sem ser colori‐
do. Se, contudo, a afirmação ou afirmações adicionais usadas para deduzir as afirma‐
ções  explicitamente  contraditórias  são  verdadeiras,  mas  não  necessariamente  verda‐
deiras, então embora possamos ter êxito ao deduzir afirmações explicitamente contra‐
ditórias, não teremos conseguido mostrar que as duas afirmações originais são logica‐
mente inconsistentes entre si. 
  Para ver que isto é assim consideremos o seguinte par de afirmações: 

6. O objecto na minha mão direita é uma moeda. 
7. O objecto na minha mão direita não é uma moeda de dez cêntimos. 

  Como é evidente, 6 e 7 não são logicamente inconsistentes entre si, visto que ambas 
podem  ser  verdadeiras,  ou  poderiam  ter  sido.  Não  são  logicamente  inconsistentes 
entre  si  porque  nada  há  logicamente  impossível  na  ideia  de  que  a  moeda  na  minha 
mão direita esteja uma moeda de vinte e cinco ou de cinquenta cêntimos. (Contraste‐

118 
 
se 6 e 7 com 3 e 4. É óbvio que há algo de logicamente impossível na ideia de que um 
dado objecto é vermelho e no entanto não é colorido.) Mas note‐se que podemos adi‐
cionar a 6 e 7 uma afirmação tal que a partir das três se pode derivar afirmações expli‐
citamente contraditórias. 

8. Todas as moedas na minha mão direita são moedas de dez cêntimos. 

  A partir de 6, 7 e 8 podemos derivar o par de afirmações explicitamente contraditó‐
rias: «O objecto na minha mão direita é uma moeda de dez cêntimos» (de 6 e 8) e «O 
objecto  na  minha  mão  direita  não  é  uma  moeda  de  dez  cêntimos»  (repetição  de  7). 
Agora suponha‐se que 8 é verdadeira, que na verdade todas as moedas na minha mão 
direita  são  de  dez  cêntimos.  Teremos  conseguido,  então,  deduzir  afirmações  explici‐
tamente contraditórias a partir do nosso par original, 6 e 7, com a ajuda da afirmação 
verdadeira 8. Mas é claro que com este procedimento não teremos estabelecido que 6 e 
7 são logicamente inconsistentes entre si. Por que não? Porque 8 — a afirmação adi‐
cional — embora verdadeira, não é necessariamente verdadeira. A afirmação 8 não é 
necessariamente verdadeira porque eu podia (logicamente) ter uma moeda de vinte e 
cinco  cêntimos  ou  de  cinquenta  cêntimos  na  minha  mão  direita.  A  afirmação  8  é  de 
facto  verdadeira,  mas  como  podia  logicamente  ter  sido  falsa,  não  é  uma  verdade 
necessária. Temos então de ver muito claramente que, para estabelecer a inconsistên‐
cia  lógica  entre  duas  afirmações  adicionando  uma  afirmação  e  derivando  afirmações 
explicitamente contraditórias, a afirmação adicional tem de ser não só verdadeira mas 
necessariamente verdadeira. 

Aplicação ao problema lógico do mal 

  Como 1) «Deus existe e é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom» e 2) «O 
mal existe» não são explicitamente contraditórias, quem defende que 1 e 2 são logica‐
mente  inconsistentes entre  si  tem  de  legitimar  esta  afirmação  adicionando  uma  afir‐
mação necessariamente verdadeira a 1 e 2 e deduzindo afirmações explicitamente con‐
traditórias.  Mas  que  afirmação  poderíamos  acrescentar?  Suponha‐se  que  começamos 
com 

9. Um ser omnipotente, omnisciente, perfeitamente bom, impedirá a ocorrência seja de 
que mal for. 

  De 1, 2 e 9 podemos derivar as afirmações explicitamente contraditórias «Nenhum 
mal existe» (de 1 e 9) e «O mal existe» (repetição de 2). Assim, se pudermos mostrar 
que  a  afirmação  9  é  necessariamente  verdadeira,  teremos  conseguido  estabelecer  a 
tese  da  forma  lógica  do  problema  do  mal:  que  1  e  2  são  logicamente  inconsistentes 
entre  si.  Mas  será  9  necessariamente  verdadeira?  Relembrando  a  nossa  discussão  da 
omnipotência, parece que Deus teria o poder de impedir qualquer mal que fosse, pois 

119 
 
«impedir a ocorrência de um mal» não parece uma tarefa logicamente contraditória, 
como  «fazer  um  quadrado  redondo».  Mas  não  é  fácil  estabelecer  que  9  é  necessaria‐
mente verdadeira. Visto que na nossa própria experiência sabemos que o mal está por 
vezes ligado ao bem de tal modo que não podemos alcançar o bem sem permitir o mal. 
Além  disso,  em  tais  exemplos,  o  bem  por  vezes  supera  o  mal,  de  modo  que  um  ser 
bom pode permitir intencionalmente a ocorrência do mal para realizar um bem que se 
lhe sobrepõe. 
  Gottfried Leibniz dá o exemplo de um general que sabe que para alcançar o bem de 
salvar  a  cidade  de  ser  destruída  às  mãos  de  um  exército  inimigo  tem  de  ordenar  aos 
seus homens que a defendam, o que resultará na morte e sofrimento de alguns deles. 
O bem de salvar as mulheres e crianças da cidade supera o mal do sofrimento e morte 
de  alguns  dos  seus  defensores.  Embora  o  general  possa  impedir  que  estes  sofram  e 
morram,  ordenando  às  suas  forças  que  retirem  rapidamente,  não  o  pode  fazer  sem 
abdicar do bem de salvar a cidade e os seus habitantes. Seguramente que não pesamos 
contra a bondade do general o facto de este permitir a ocorrência do mal para alcançar 
o bem maior. Talvez, portanto, alguns males no nosso mundo estejam ligados a bens 
que  os  superam,  de  tal  maneira  que  nem  Deus  pode  alcançar  os  bens  em  causa  sem 
permitir que ocorram os males ligados a esses bens. A ser assim, a afirmação 9 não é 
necessariamente verdadeira. 
  É claro que, ao contrário do general, o poder de Deus é ilimitado, e poder‐se‐á pen‐
sar que por muito que o bem e o mal estejam intimamente ligados, Deus podia sempre 
alcançar o bem e impedir o mal. Mas isto é ignorar a possibilidade de a ocorrência de 
alguns males no nosso mundo ser logicamente necessária para a obtenção de bens que 
os superam, de maneira que a tarefa de dar lugar a esses bens sem permitir os males 
associados é tão impossível como fazer um quadrado redondo. Assim, mais uma vez, 
embora Deus, sendo omnipotente, possa impedir que os males em causa ocorram, não 
pode, apesar da sua omnipotência, alcançar os bens maiores e ao mesmo tempo impe‐
dir a ocorrência de tais males.1 Portanto, uma vez que 1) a omnipotência não é o poder 
de fazer o que é logicamente impossível e 2) pode ser logicamente impossível impedir 
a  ocorrência  de  determinados  males  no  nosso  mundo  e  ainda  assim  alcançar  alguns 
bens muito importantes, que superam esses males, não podemos estar certos de que a 
afirmação  9  é  necessariamente  verdadeira;  não  podemos  estar  certos  de  que  um  ser 
omnipotente e perfeitamente bom impedirá a ocorrência seja de que mal for. 
  Acabámos de ver que a tentativa de estabelecer que 1 e 2 são inconsistentes entre si 
deduzindo afirmações explicitamente contraditórias a partir de 1, 2 e 9 é um fracasso. 
Pois embora 1, 2 e 9 permitam de facto gerar afirmações explicitamente contraditórias, 
não temos como saber se 9 é necessariamente verdadeira. 
  Da discussão anterior vem‐nos a sugestão de permutar 9 por 

10. Um  ser  bom,  omnipotente  e  omnisciente  impede  a  ocorrência  de  qualquer  mal  que 
não seja logicamente necessário à ocorrência de um bem que o supere. 

120 
 
  A afirmação 10, ao contrário da 9, considera a possibilidade de determinados males 
estarem de tal modo ligados a bens que os superam, que nem Deus possa realizar esses 
bens sem permitir que os males ocorram. A afirmação 10, então, não só parece verda‐
deira como necessariamente verdadeira. O problema agora, contudo, é que a partir de 
1,  2  e  10  não  se  pode  derivar  afirmações  explicitamente  contraditórias.  Tudo  o  que 
podemos concluir a partir de 1, 2 e 10 é que os males que existem no nosso mundo são 
logicamente necessários à ocorrência de bens que os superam, e essa afirmação não é 
uma contradição explícita. 
  É agora patente a dificuldade geral que afecta as tentativas de estabelecer que 1 e 2 
são logicamente inconsistentes entre si. Quando adicionamos uma afirmação como 9, 
que nos permite derivar afirmações explicitamente contraditórias, não podemos estar 
certos de que essa afirmação adicional é necessariamente verdadeira. Por outro lado, 
quando adicionamos uma afirmação como 10, que parece necessariamente verdadeira, 
verificamos que não é possível derivar afirmações explicitamente contraditórias. Nin‐
guém conseguiu apresentar uma afirmação que saibamos ser necessariamente verda‐
deira e que, adicionada a 1 e 2, nos permita derivar afirmações explicitamente contra‐
ditórias. Por consequência, é razoável concluir que a forma lógica do problema do mal 
não é um grande obstáculo para o teísmo. Ninguém conseguiu estabelecer a tese cen‐
tral deste problema, de que 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si, através de um 
argumento convincente. 

A «defesa do livre‐arbítrio» 

  Antes de nos voltarmos para a forma indiciária do problema do mal, é importante 
que compreendamos a influência de uma defesa tradicional do teísmo contra a forma 
lógica  do  problema  do  mal.  Segundo  esta  defesa  —  a  «defesa  do  livre‐arbítrio»  — 
Deus,  apesar  da  sua  omnipotência,  pode  não  ter  sido  capaz  de  criar  um  mundo  com 
criaturas humanas livres sem com isso permitir a ocorrência de uma quantidade con‐
siderável  de  mal.  Esta  defesa  depende  da  suposição  básica  de  que  é  logicamente 
impossível  realizar  livremente  uma  acção  e  estar,  ao  mesmo  tempo,  causalmente 
determinado  a  realizar  essa  mesma  acção.  Sem  esta  suposição,  a  defesa  com  base  no 
livre‐arbítrio desmorona‐se. Pois se se pode estar causalmente determinado a realizar 
uma acção e ainda assim realizar essa acção livremente, então parece claro que Deus 
poderia  ter  criado  um  mundo  com  criaturas  humanas  livres  que  não  agissem  senão 
correctamente, que nunca praticassem o mal — pois que, sendo omnipotente, poderia 
simplesmente criar as suas criaturas e determiná‐las causalmente a fazer apenas o que 
é correcto. 
  Suponhamos que o pressuposto fundamental da defesa do livre‐arbítrio é verdadei‐
ro, que é logicamente impossível estar causalmente determinado a realizar uma acção 
e no entanto realizá‐la livremente. Este pressuposto significa que embora Deus possa 
causar a existência de criaturas e determiná‐las causalmente a ser livres a respeito de 

121 
 
uma certa acção, não pode determiná‐las causalmente a praticarem ou absterem‐se de 
praticar essa acção livremente; quer a pessoa pratique a acção ou se abstenha de a pra‐
ticar, isso dependerá da pessoa e não de Deus, no caso de a prática ou abstenção serem 
livres. Suponha‐se agora que Deus cria um mundo com criaturas humanas livres, com 
a  liberdade  de  fazer  diversas  coisas,  incluindo  bem  e  mal.  Se  as  criaturas  humanas 
livres  criadas  por  Deus  exercem  a  sua  liberdade  para  fazer  bem  ou  para  fazer  mal,  é 
uma  opção  delas.  E  é  logicamente  possível  que  independentemente  de  que  criaturas 
livres  Deus  decida  trazer  à  existência,  todas  se  servirão  por  vezes  da  liberdade  para 
fazer  mal.  Sendo  assim,  é  possível  que  Deus  não  pudesse  ter  criado  um  mundo  com 
criaturas livres que não agissem senão correctamente; é possível que qualquer mundo 
que Deus pudesse criar tendo criaturas com a liberdade de agir bem ou mal, fosse um 
mundo em que estas criaturas por vezes agem mal. 
  A  anterior  linha  de  raciocínio  procura  estabelecer  que  a  verdade  da  seguinte  afir‐
mação é logicamente possível: 

11. Deus,  apesar  da  sua  omnipotência,  não  pode  criar  um  mundo  em  que  há  criaturas 
humanas livres e nenhum mal. 

  Mas se é possível 11 ser verdadeira e se também é possível que um mundo com cria‐
turas  humanas  livres  seja  melhor  do  que  um  mundo  sem  criaturas  humanas  livres, 
segue‐se que 1 e 2 não são de modo algum inconsistentes entre si. Pois considere‐se o 
seguinte grupo de afirmações: 

1. Deus existe, é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom. 
11. Deus, apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo com criaturas humanas 
livres e nenhum mal. 
12. Um  mundo  com  criaturas  humanas  livres  e  algum  mal  é  melhor  do  que  um  mundo 
sem criaturas humanas livres. 
13. Deus cria o melhor mundo que pode. 

  De 1, 11, 12 e 13 segue‐se que 2) «O mal existe». Mas se 1, 11, 12 e 13 implicam 2 e não 
há inconsistência entre 1, 11, 12 e 13, então não pode haver inconsistência entre 1 e 2. Se 
num grupo de afirmações não há inconsistência entre elas, então nenhuma afirmação 
que se siga desse grupo de afirmações pode ser inconsistente com uma ou mais afir‐
mações do mesmo grupo. 
  Podemos agora ver qual a relevância da defesa do livre‐arbítrio para a forma lógica 
do  problema  do  mal.  Objectámos  à  última  porque  ninguém  conseguiu  estabelecer  a 
tese central desta forma do problema: que 1) «Deus é omnipotente, omnisciente e per‐
feitamente bom» é inconsistente com 2) «O mal existe». Mas, evidentemente, do facto 
de ninguém ter provado que 1 e 2 são inconsistentes entre si não se segue que elas não 
são inconsistentes entre si. A defesa do livre‐arbítrio procura dar o último passo: pro‐
var que 1 e 2 são mesmo consistentes entre si. Fá‐lo tentando estabelecer que é possível 

122 
 
(logicamente) 11 e 12 serem verdadeiras e não haver inconsistência lógica entre as afir‐
mações do grupo formado por 1, 11, 12 e 13. A questão de a defesa do livre‐arbítrio con‐
seguir  ou  não  mostrar  que  1  e  2  são  logicamente  consistentes  entre  si  é  um  assunto 
demasiado complicado e controverso para o desenvolvermos neste livro.2 Mesmo que 
não o consiga, porém, o teísta não tem de se preocupar demasiado com a forma lógica 
do problema do mal, pois, como vimos, ninguém estabeleceu que 1 e 2 são inconsisten‐
tes entre si. 

O problema indiciário 
  Volto‐me agora para a forma indiciária do problema do mal — a forma do problema 
segundo  a  qual  a  diversidade  e  abundância  de  mal  no  nosso  mundo,  embora  talvez 
não seja logicamente inconsistente com a existência de Deus, nos dá ainda assim uma 
base racional para acreditar na inexistência do Deus teísta. Ao desenvolver esta forma 
do problema do mal, será útil centrarmo‐nos num mal particular que o nosso mundo 
contenha  em  considerável  abundância.  O  sofrimento  intenso  em  seres  humanos  ou 
animais,  por  exemplo,  ocorre  quotidiana  e  abundantemente  no  nosso  mundo.  Tal 
sofrimento intenso é um inequívoco exemplo de mal. Claro que se o sofrimento inten‐
so conduzir a algum bem superior, um bem que não poderíamos obter sem suportar o 
sofrimento em causa, poderíamos concluir que o sofrimento é justificado, mas apesar 
disso continua a ser um mal. Pois não podemos confundir o sofrimento intenso em si e 
por  si  com  as  coisas  boas  a  que  por  vezes  conduz  ou  das  quais  pode  ser  uma  parte 
necessária.  O  sofrimento  intenso  nos  seres  humanos  ou  animais  é  mau  em  si,  é  um 
mal, ainda que por vezes se possa justificar em virtude de fazer parte de algum bem, 
ou de conduzir a um bem inalcançável sem esse sofrimento. Por vezes, algo que em si 
é  mau  pode  ser  bom  como  meio,  por  nos  levar  a  algo  que  é  bom  em  si.  Nesse  caso, 
embora continuando a ser um mal em si, o sofrimento intenso nos seres humanos ou 
animais é, não obstante, um mal que se pode ter justificação moral para permitir. 
  Encarar o sofrimento intenso nos seres humanos ou animais como um mal intrínse‐
co, contudo, não significa que a capacidade para ter experiência do sofrimento intenso 
seja em si boa ou má. Como vimos, há alturas em que ter experiência do sofrimento 
intenso é muito útil, na medida em que pode fazer‐nos agir com rapidez no sentido de 
nos  afastarmos  de  situações  que  nos  são  prejudiciais.  Assim,  a  capacidade  para  ter 
experiência de sofrimento intenso é‐nos útil. Além disso, por vezes, uma coisa que em 
si mesma é má (a dor ou o sofrimento intenso) pode servir um bom propósito. A forma 
indiciária do problema do mal baseia‐se em exemplos de sofrimento intenso, em seres 
humanos  ou  animais,  que  aparentemente  não  servem  qualquer  propósito  benéfico. 
Desenvolvemos aqui o argumento centrando‐nos num exemplo de sofrimento animal: 
um corço que fica horrivelmente queimado durante um incêndio provocado pela des‐
carga de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias antes de morrer. Ao con‐
trário dos seres humanos, não se atribui livre‐arbítrio aos corços, pelo que não pode‐
123 
 
mos  imputar  o  terrível  sofrimento  do  corço  a  um  mau  uso  do  livre‐arbítrio.  Por  que 
permitiria  então  Deus  que  isto  acontecesse  quando,  se  existe,  podia  tê‐lo  impedido 
com tanta facilidade? Admite‐se em geral que somos simplesmente incapazes de ima‐
ginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de 
Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. Tão‐pouco parece razoável supor 
que há um mal imenso que Deus seria incapaz de impedir se não permitisse que o cor‐
ço  sofresse  durante  cinco  dias.  Suponha‐se  que  por  «mal  sem  sentido»  entendemos 
um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido sem com isso perder um bem superior 
ou sem ter de permitir um mal igualmente mau ou pior. Será que o sofrimento do corço 
é um mal sem sentido? Seguramente que o terrível sofrimento do animal durante esses 
cinco dias não parece do nosso ponto de vista fazer qualquer sentido. Quanto a isto, o 
consenso é, ao que parece, quase universal. Pois dada a omnisciência e o poder absolu‐
to de Deus, ser‐lhe‐ia extremamente fácil ter impedido o incêndio ou ter impedido que 
o corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como vimos, é extraordinariamente 
difícil  imaginar  um  bem  superior  cuja  realização  dependa,  sob  qualquer  perspectiva 
razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. E é igualmente difícil 
imaginar  um  mal  equivalente,  ou  até  pior,  que  Deus  se  visse  forçado  a  permitir  caso 
impedisse o sofrimento do corço. Parece, portanto, perfeitamente razoável pensar que 
o  sofrimento  do  corço  é  um  mal  sem  sentido,  um  mal  que  Deus  (se  existe)  podia 
impedir sem com isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente 
ou pior. 
  À luz de tais exemplos de males horríveis, pode‐se formular da seguinte maneira o 
argumento indiciário: 

1. Provavelmente, há males sem sentido (por exemplo, o sofrimento do corço). 
2. Se deus existe, não há males sem sentido. 

Logo, 

3. Provavelmente, Deus não existe. 

  Este argumento surge da perspectiva comum de que no nosso mundo ocorrem dia‐
riamente males terríveis, males que temos razões para pensar que um ser omnipoten‐
te, omnisciente e perfeitamente bom teria impedido. E parece dar‐nos uma boa razão 
para considerar provável a inexistência de Deus. 

Respostas ao problema indiciário 
  Das duas formas do problema do mal que considerámos, a primeira (a forma lógica) 
não parece um obstáculo sério à crença teísta. A segunda (a forma indiciária) parece 
um obstáculo importante, pois a sua tese básica — que a abundância de males terríveis 
no nosso mundo nos dá uma razão para pensar que Deus não existe — é aparentemen‐

124 
 
te plausível. Temos agora de considerar duas respostas importantes ao desafio coloca‐
do pelo problema indiciário do mal. 

Teísmo céptico 

  Na área de estudos da filosofia surgiu uma posição conhecida como teísmo céptico. 
Pode‐se descrever grosso modo o teísmo céptico como a posição que defende que os 
argumentos contra a verdade do teísmo pecam por pressupor a verdade de determina‐
das  afirmações,  as  quais  ou  são  falsas  ou  não  se  demonstrou  que  são  verdadeiras.  A 
resposta do teísta céptico ao argumento indiciário do mal é que a verdade da premissa 
crucial no argumento («provavelmente, há males sem sentido») permanece indemons‐
trada;  visto  que,  segundo  o  teísta  céptico,  não  temos  razões  adequadas  para  sequer 
considerar  plausível  a  inexistência  de  um  bem  que  justificasse  a  permissão  por  Deus 
quer do sofrimento terrível do corço quer de qualquer outro exemplo semelhante, de 
que tenhamos consciência. Por que nos dispomos a pensar que o sofrimento do corço, 
muito provavelmente, não tem qualquer sentido? É porque não podemos conceber ou 
mesmo  imaginar  um  bem  que  simultaneamente  superasse  o  sofrimento  do  corço  e 
fosse tal que um ser omnipotente e omnisciente não encontrasse maneira de produzir 
esse bem, ou um bem igual ou superior, sem ter de permitir o sofrimento terrível do 
corço.  Pense‐se  novamente  no  sofrimento  do  corço.  Não  só  está  terrivelmente  quei‐
mado, como agoniza durante cinco dias no chão da floresta, até finalmente sobrevir a 
morte.  Haverá  algum  bem  importante  que  um  ser  omnipotente  e  omnisciente  só 
pudesse originar permitindo que aquele corço sofresse durante cinco dias a fio, em vez 
de, digamos, quatro, três, dois, um, ou mesmo nenhum — por exemplo, fazendo por 
misericórdia que a morte do corço fosse simultânea às suas terríveis queimaduras? A 
mente humana fica perplexa com a ideia de que um ser omnipotente e omnisciente se 
encontrasse em tais apuros. Mas a resposta do teísta céptico é que, tanto quanto sabe‐
mos, a razão por que a mente humana fica perplexa com este estado de coisas é sim‐
plesmente  por  não  saber  o  suficiente.  Sugere  que  se  Deus  existe  e  se  soubéssemos  o 
que  ele  sabe,  então  talvez  soubéssemos  que  Deus  não  chegou  sequer  a  ter  escolha. 
Pois,  segundo  o  teísta  céptico,  Deus  podia  muito  bem  saber  que  se  impedisse  que 
aquele corço ficasse terrivelmente queimado, ou se retirasse apenas um aos dos cinco 
dias de terrível sofrimento do corço, teria de permitir outro mal equivalente, ou pior, 
ou  teria  de  perder  um  bem  importante,  com  o  resultado  de  que  o  mundo  em  geral 
seria  pior  do  que  é  por  Deus  ter  permitido  que  aquele  corço  sofresse  intensamente 
durante cinco dias. Além disso, o facto de não conseguirmos imaginar o que esse bem 
podia  ser  não  é  de  modo  algum  surpreendente,  dada  a  disparidade  entre  os  bens 
conhecíveis pelas nossas mentes e os bens conhecíveis por um ser perfeitamente bom, 
omnisciente e criador do mundo. Pelo que, segundo o teísta céptico, não estamos sim‐
plesmente  em  condições  de  ajuizar  razoavelmente  que  Deus  podia  ter  impedido  os 
cinco dias de terrível sofrimento do corço sem perder um bem superior ou sem ter de 

125 
 
permitir  um  mal  equivalente  ou  pior.  As  nossas  mentes  limitadas  são  simplesmente 
incapazes  de  conceber  os  bens  que  seriam  acessíveis  à  mente  de  Deus.  E  dado  que 
somos  simplesmente  incapazes  de  conhecer  muitos  dos  bens  que  Deus  conheceria, 
não  é  de  modo  algum  espantoso  o  facto  de  ser  impensável  que  qualquer  bem  que 
conheçamos  justifique  razoavelmente  que  um  ser  infinitamente  bom  e  omnipotente 
permita  o  terrível  sofrimento  do  corço.  Na  verdade,  dado  o  imenso  abismo  entre  o 
conhecimento de Deus e o nosso, o facto de nenhum bem que conheçamos parecer de 
modo algum justificar que Deus permita o terrível sofrimento do corço é talvez preci‐
samente aquilo que seria de esperar no caso de um ser como Deus existir realmente.3 
  Stephen  Wykstra,  defensor  do  teísmo  céptico,  argumentou  que  para  acreditar 
razoavelmente na probabilidade de que o sofrimento do corço não tem sentido algum, 
temos de ter uma razão positiva para pensar que, no caso de haver um bem que justifi‐
casse que Deus permitisse o sofrimento do corço, provavelmente conheceríamos esse 
bem.  Mas  Wykstra  afirma  que,  muito  provavelmente,  os  bens  conhecíveis  por  Deus 
não  são  conhecíveis  por  nós.  Para  ilustrar  esta  afirmação,  Wykstra  chama  a  atenção 
para que ao inspeccionar a sua garagem, não vendo lá cão algum, poderíamos concluir 
que não há cão algum na garagem. Mas pelo facto de inspeccionar a sua garagem e não 
ver  lá  pulgas,  não  poderíamos  concluir  que  não  há  pulgas  na  garagem.  Pois  temos 
razão para pensar que se houvesse pulgas na garagem, provavelmente não as consegui‐
ríamos ver. Assim, o facto de não sermos capazes de conceber um bem que possa justi‐
ficar que Deus permita o sofrimento do corço não nos autoriza a pensar que não há tal 
bem. Pois, na perspectiva de Wykstra, se houvesse tal bem visado por Deus para per‐
mitir o sofrimento do corço, é bastante provável que não o conhecêssemos. Assim, o 
facto  de  não  podermos  sequer  imaginar  o que  tal  bem  seria,  longe  de  ser uma  razão 
para pensar que a existência de Deus é improvável, é precisamente o que seria de espe‐
rar no caso de Deus existir. 
  Wykstra  reconhece  que  um  deus  perfeitamente  bom  só  permitiria  o  sofrimento, 
como  o  terrível  sofrimento  do  corço,  se  «ao fazê‐lo  se  alcançasse  um  bem  superior». 
Também  observa  «que  tais  bens,  muitas  vezes,  ultrapassam  completamente  a  nossa 
compreensão». Mas então afirma: 

  O fulcro da minha crítica tem sido o de que isto é precisamente o que seria de espe‐
rar no caso de o teísmo ser verdadeiro: pois se pensarmos claramente no género de ser 
em que o teísmo propõe que acreditemos, é inteiramente plausível — dado o que sabe‐
mos  acerca  dos  nossos  limites  cognitivos  —  que  estejam  normalmente  muito  além  do 
nosso alcance os bens em virtude dos quais tal  ser permite o sofrimento que  conhece‐
mos.  Como  esse  estado  de  coisas  é  precisamente  o  que  seria  de  esperar  no  caso  de  o 
teísmo ser verdadeiro, como pode a sua constatação ser um indício contra o teísmo? (p. 
91) 

126 
 
  No seu ensaio, Wykstra faz notar que tanto entre os crentes como entre os descren‐
tes há uma «intuição pertinaz de que o sofrimento inescrutável no nosso mundo retira 
de alguma maneira a força ao teísmo». Observa também que os crentes têm uma firme 
tendência natural para encarar o sofrimento inescrutável como uma dificuldade inte‐
lectual ou obstáculo à crença, especialmente quando afecta aqueles que essas pessoas 
mais  amam,  algo  que  na  ausência  de  uma  explicação  sensata  tende  a  pesar  contra  o 
teísmo.  Wykstra,  não  obstante,  pensa  que  esta  intuição  pertinaz, comum  a  crentes  e 
descrentes,  é  um  erro.  Pois  tendo  em  conta  as  nossas  limitações  e  a  omnisciência  e 
omnipotência de Deus, Wykstra considera plausível que muito do sofrimento no nosso 
mundo seja inescrutável para nós. Assim, conclui que os crentes e os descrentes sim‐
plesmente não conseguem ver o que a hipótese teísta de facto inclui. 
  Ao  defender  a  razoabilidade  da  suposição  de  que  os  bens  que  justificam  os  males 
horrendos no nosso mundo são inconhecíveis por nós Wykstra recorre à analogia dos 
bons  pais.  A  ideia  é  que  Deus,  sendo  perfeitamente  amoroso,  é  para  nós  humanos 
como  os  bons  pais  são  para  os  seus  filhos,  a  quem  amam.  E  tal  como  os  seus  filhos 
muitas vezes não conseguem compreender os bens por causa dos quais os seus dedi‐
cados pais permitem que lhes aconteça coisas, também nós, seres humanos, não con‐
seguimos  compreender  os  bens  por  causa  dos  quais  Deus  permite  que  nós,  as  suas 
criaturas,  sofram  os  males  que  nos  atingem.  Todavia,  não  há  um  consenso  genuíno 
relativamente à questão de a analogia proposta ser assim tão favorável ao teísmo como 
Wykstra  supõe.  É  verdade  que  os  pais  dedicados  podem  ter  de  permitir  que  os  seus 
filhos  doentes  sejam  separados  deles,  internados  num  hospital,  forçados  a  engolir 
medicamentos que sabem mal e entregues ao cuidado de estranhos, para que possam 
ficar curados. A criança muito jovem, evidentemente, pode não compreender por que 
razão os seus pais o tiraram de casa e o deixaram ao cuidado de estranhos. Da mesma 
maneira,  dirá  o  teísta,  um  pecado  que  cometemos  ou  algo  que  esteja  além  da  nossa 
compreensão  pode  ter‐nos  separado  de  Deus.  Mas  noutros  aspectos  a  analogia  dos 
bons pais não funciona. Quando as crianças estão doentes e internadas num hospital, 
os pais dedicados procuram por todos os meios possíveis consolar o filho, dando‐lhe 
garantias especiais do amor que lhe têm enquanto está separado deles e a sofrer por 
uma  razão  que  não  compreende.  Nenhum  pai  dedicado  aproveita a  ocasião  de  o  seu 
filho estar no hospital para tirar férias, dizendo para consigo que os médicos e enfer‐
meiras  vão  seguramente  tomar  conta  do  pequeno  Joãozinho  enquanto  os  pais  estão 
fora. Mas inúmeros seres humanos, incluindo muitos crentes, suportam um sofrimen‐
to  horrível  sem  quaisquer  garantias  do  amor  e  preocupação  divinos  enquanto  este 
período  de  sofrimento  dura.  Pode‐se  encontrar  indícios  a  favor  desta  afirmação  na 
bibliografia acerca das vítimas do holocausto. Na verdade, ao contrário do que pensa 
Wykstra, algumas das pessoas que ponderam a questão do silêncio e da ocultação de 
Deus concluem que dados os horrendos males no nosso mundo, a ausência de Deus é 
um indício decisivo da sua inexistência.4 Seguramente, afirmam, se existisse um Deus 
bondoso,  este  desejaria  que  tivéssemos  conhecimento  da  sua  presença,  dado  que  os 
127 
 
males horrendos no nosso mundo parecem dar‐nos razão para duvidar da sua existên‐
cia.  Como  Wykstra  reconhece,  muita  gente  considera  o  mal  e  sofrimento  no  nosso 
mundo  razões  para  concluir  que  Deus  não  existe.  E  a  aparente  ocultação  de  Deus 
parece  apenas  dar  razões  adicionais  para  concluir  que  nenhum  ser  assim  existe.  Os 
teístas  cépticos,  contudo,  chamam  a  atenção  para  um  aspecto  importante,  argumen‐
tando que, se Deus existe, como o seu conhecimento superaria por completo o nosso, 
é provável que haja bens que o nosso conhecimento não abrange, embora acessíveis a 
Deus, bens cuja realização, tanto quanto sabemos, pode justificar tanto o ocultamento 
de deus relativamente a nós como a permissão divina de todo o sofrimento humano e 
animal  que  não  decorre  do  mau  uso  do  livre‐arbítrio  humano.  É  claro  que  este  pro‐
blema  continuará  a  ser  uma  questão  importante  e  controversa  para  o  pensamento 
humano. 

Teodiceias 

  A segunda resposta consiste em apresentar uma teodiceia — uma tentativa de expli‐
car que objectivos Deus poderia ter para permitir a abundância de mal no nosso mun‐
do. Ao contrário da resposta do teísmo céptico, que consiste em questionar se se apre‐
sentou ou não razões suficientes para mostrar que a premissa 1 do argumento indiciá‐
rio é verdadeira, uma teodiceia procura dar algumas razões positivas para pensar que a 
premissa 1 é provavelmente falsa. Em vez de comentar muito brevemente diversas teo‐
diceias — o mal é o castigo pelo pecado, o mal deve‐se ao livre‐arbítrio, o mal é neces‐
sário para que valorizemos o bem, etc. — será mais útil olhar com algum detalhe para 
uma das teodiceias mais prometedoras, uma teodiceia da «edificação da alma», desen‐
volvida e defendida pelo proeminente filósofo e teólogo contemporâneo, John Hick.5 
  Antes de dar uma sinopse da teodiceia da edificação da alma, será útil reflectir na 
relevância geral das teodiceias para o problema indiciário do mal. O que se procura ao 
certo com uma teodiceia? Procura‐se explicar com algum detalhe qual é exactamente 
o  bem  que  justifica  a  permissão  divina  do  sofrimento  do  corço?  Não.  Tal  explicação 
suporia um conhecimento dos objectivos específicos de Deus, um conhecimento que 
seria irrazoável esperar que tivéssemos sem que Deus no‐lo revelasse detalhadamente. 
Uma  teodiceia  procura  ater‐se  a  um  bem  (real  ou  imaginário)  e  argumentar  que  a 
obtenção desse bem justificaria a permissão por um ser omnipotente de males como o 
sofrimento do corço. Independentemente de obter o bem em causa ser ou não a razão 
efectiva de Deus permitir males como o sofrimento do corço, isto não faz parte daqui‐
lo que uma teodiceia procura estabelecer. Apenas se pretende mostrar que se o objec‐
tivo  de  Deus  ao  permitir  males  como  o  sofrimento  do  corço  fosse  obter  o  bem  em 
questão, então (dado o que sabemos) seria razoável acreditar que um ser omnipotente 
teria justificação para permitir tais males. Assim, portanto, uma teodiceia procura pôr 
em dúvida a premissa 1 do nosso argumento do mal. 

128 
 
  O sofrimento do corço é um exemplo de mal natural — um mal que resulta de for‐
ças  naturais.  Quando  alguém  tortura  e  mata  uma  criança  inocente,  o  sofrimento  da 
criança é um exemplo de mal moral — um mal que resulta da decisão consciente de 
um agente pessoal. Segundo Hick, que bens se promove pela abundância de mal natu‐
ral e moral no nosso mundo? Na teodiceia de Hick figuram dois bens. O primeiro é o 
estado em que se encontram todos os seres humanos que se desenvolvem através das 
suas escolhas livres para se tornarem seres morais e espirituais. O segundo é o estado 
em  que  tais  seres  entram  numa  vida  eterna  de  felicidade  e  alegria  na  companhia  de 
Deus. Comecemos a nossa sinopse considerando o primeiro destes estados, aquele em 
que  todos  os  seres  humanos  se  desenvolvem  através  das  suas  escolhas  livres  para  se 
tornarem  seres  morais  e  espirituais.  Como  podia  a  obtenção  de  tal  bem  justificar  a 
permissão por um ser omnipotente e omnisciente de males como o sofrimento do cor‐
ço e o sofrimento da criança inocente, que é brutalmente torturada e morta? 
  Como o sofrimento do corço e o sofrimento da criança são, respectivamente, exem‐
plos  de  mal  natural  e  de  mal  moral,  podem  exigir  respostas  diferentes.  Comecemos 
pelos horrendos males morais como o sofrimento da criança enquanto é torturada. O 
primeiro  passo  de  Hick  é  argumentar  que  se  o  bem  em  causa  é  o  desenvolvimento 
moral e espiritual através de escolhas livres, então um ambiente em que não houvesse 
sofrimento significativo, nenhuma ocasião para escolhas morais importantes, não seria 
um mundo em que o crescimento moral e espiritual são possíveis. Em particular, um 
mundo  em  que  ninguém  possa  fazer  mal  aos  outros,  em  que  nenhuma  dor  ou  sofri‐
mento resulte de qualquer acção, não seria um mundo em que tal crescimento moral e 
espiritual pudesse ocorrer. 
  Penso  que  podemos  conceder  a  Hick  que  um  paraíso  indolor,  um  mundo  em  que 
ninguém se pudesse ferir e ninguém pudesse fazer mal, seria destituído de desenvol‐
vimento  moral  e  espiritual  importante.  Mas  como  compreender  o  facto  de  o  mundo 
em que vivemos ser tão frequentemente hostil a esse desenvolvimento moral e espiri‐
tual? Porquanto é evidente, como Hick tem o cuidado de indicar, que muita da dor e 
sofrimento no nosso mundo frustram tal desenvolvimento. 

  A  situação  geral  é  assim  a  de  que,  tanto  quanto  sabemos,  o  sofrimento  ocorre 
desorganizada,  inútil  e  portanto  injustificadamente.  A  sua  relação  com  a  edificação  da 
alma, no passado, no presente ou no futuro, parece meramente fortuita. Em vez de servir 
um propósito construtivo, a dor e a angústia parecem atingir o ser humano de uma for‐
ma desordenada e absurda, com o resultado de que o sofrimento é muitas vezes imere‐
cido  e  não  raro  ocorre  em  quantidades  que  excedem  seja  o  que  for  que  pudesse  ser 
objecto de um plano moral.6 

  Hick responde perguntando‐nos o que aconteceria se o nosso mundo fosse tal que o 
sofrimento  nele  ocorresse  «não  fortuita  e  portanto  injustamente,  mas  ao  contrário, 
justa  e  portanto  infortuitamente».7  Hick  argumenta  que  num  tal  mundo  as  pessoas 

129 
 
evitariam fazer o mal por medo e não por sentido de dever. Além disso, mal se visse 
que o sofrimento é sempre para bem do sofredor, a angústia humana deixaria de «evo‐
car a profunda empatia pessoal ou convocar a assistência colectiva, a ajuda e o serviço 
abnegados. Pois tais reacções compassivas pressupõem que o sofrimento é imerecido e 
mau para o sofredor».8 Hick conclui então: 

  Parece então que, num mundo que servirá de cenário ao amor compassivo e à abne‐
gação  pelos  outros,  o  sofrimento  tem  de  recair  sobre  a  humanidade  com  alguma  da 
desordem  e  desigualdade  de  que  temos  agora  experiência.  Tem  de  ser  aparentemente 
imerecido,  absurdo  e  insusceptível  de  racionalização  moral.  Pois  é  precisamente  esta 
característica da nossa humanidade comum que gera a empatia entre os homens e evoca 
a generosidade, a bondade e a boa vontade que se conta entre os valores mais elevados 
da vida pessoal.9 

  Suponhamos,  em  concordância  com  Hick,  que  um  ambiente  adequado  ao  desen‐
volvimento,  pelos  seres  humanos,  das  qualidades  mais  elevadas  da  moral  e  da  vida 
espiritual,  tem  de  ser  tal  que  inclua  genuinamente  sofrimento,  dificuldades,  desilu‐
sões,  fracasso  e  derrota.  Porquanto  o  crescimento  moral  e  espiritual  pressupõe  estas 
coisas. Suponhamos também que tal ambiente tem de funcionar, pelo menos na maior 
parte dos casos, segundo leis gerais e fiáveis; porquanto só com base em tais leis pode‐
rá alguém empenhar‐se na tomada orientada de decisões, essencial a uma vida racio‐
nal e moral. E dadas estas duas suposições é compreensível, penso, que um ser omnis‐
ciente  e  omnipotente  tenha  justificação  moral  para  permitir  a  ocorrência  de  males, 
tanto  morais  como  naturais.  Além  disso,  como  Hick  sublinha,  é  importante  que  não 
nos seja evidente que o bem do crescimento moral e espiritual exige todos os exemplos 
de sofrimento que ocorrem e deles resulta. Pois então deixaríamos de procurar elimi‐
nar estes males e assim diminuiríamos as próprias lutas humanas que tão amiúde pro‐
duzem o crescimento moral e espiritual. 
  A  nossa  excursão  à  teodiceia  de  Hick  mostrou‐nos,  talvez,  como  uma  teodiceia 
pode conseguir justificar a permissão do mal natural e do mal moral por Deus. Mas até 
agora não nos deram qualquer justificação para a permissão do sofrimento horrível do 
corço,  nem  temos  qualquer  justificação  para  o  atroz  sofrimento  da  criança  inocente 
que é brutalmente torturada e morta por um ser humano adulto. No caso do sofrimen‐
to  do  corço  podemos  afirmar  que  dada  a  existência  de  animais  no  nosso  mundo  e  o 
funcionamento  deste  segundo  leis  naturais,  é  inevitável  que  ocorram  exemplos  de 
sofrimento animal intenso e prolongado. No caso do sofrimento daquela criança ino‐
cente em particular, pode‐se dizer que ao aproximarem‐se do desenvolvimento moral 
e espiritual, talvez seja inevitável que os seres humanos por vezes prejudiquem grave‐
mente  os  outros,  através  de  um  mau  uso  da  liberdade.  Mas  nada  disto  justificará 
moralmente  que  um  ser  todo‐poderoso  e  omnisciente  permita  o  sofrimento  daquele 
corço  em  particular  ou  o  sofrimento  daquela  criança  inocente  em  particular.  É  sim‐

130 
 
plesmente irrazoável acreditar que se o adulto agiu livremente ao espancar brutalmen‐
te e matar a criança inocente, o seu desenvolvimento moral e espiritual teria sido per‐
manentemente frustrado caso fosse impedido de a espancar e matar. E é também irra‐
zoável acreditar que há justificação moral para permitir tal acto mesmo que impedi‐lo 
diminua de alguma maneira a odisseia moral e espiritual do perpetrador. E no caso do 
corço, é simplesmente irrazoável acreditar que impedir que ficasse gravemente quei‐
mado,  ou  pondo  misericordiosamente  fim  à  sua  vida  para  não  sofrer  intensamente 
durante vários dias, abalaria de tal modo a nossa confiança na ordem da natureza que 
esqueceríamos o nosso desenvolvimento moral e espiritual. Hick não parece insciente 
desta  limitação  da  sua  teodiceia,  pelo  menos  no  que  diz  respeito aos  males  naturais. 
No que diz respeito à dor humana devida a causas independentes do arbítrio humano, 
Hick comenta: 

  Respondendo a isto, a teodiceia, se sabiamente conduzida, segue um caminho nega‐
tivo. Não é possível mostrar positivamente que cada item de dor humana serve o objec‐
tivo  de  Deus;  por  outro  lado,  parece  possível  mostrar  que  o  objectivo  divino  […]  não 
podia fazer‐se cumprir  num mundo concebido  como um  paraíso hedonista permanen‐
te.10 

  Vimos que a teodiceia de Hick é incapaz de nos dar um bem que justificaria a per‐
missão, por um ser omnipotente e omnisciente, do sofrimento intenso do corço ou do 
sofrimento atroz da criança inocente. O melhor que Hick pode fazer é argumentar que 
um mundo completamente destituído de mal natural e moral impossibilitaria a realiza‐
ção dos bens que Hick postula como justificações para a permissão do mal por um ser 
omnipotente  e  omnisciente.  Todavia,  como  impedir  o  sofrimento  do  corço  ou  da 
criança  inocente  não  destituiria  completamente  o  nosso  mundo  de  mal  natural  ou 
moral, o argumento tudo‐ou‐nada de Hick não responde à nossa questão. Tão‐pouco 
adiantará afirmar que se um ser omnipotente e omnisciente impedisse o sofrimento do 
corço ou da criança inocente seria por isso obrigado a impedir todos os outros males. 
Pois  se  o  fizesse,  como  Hick  argumentou,  podia  dar‐se  o  caso  de  pararmos  de  nos 
empenhar consideravelmente na edificação da alma. A teodiceia de Hick deixa‐nos o 
problema de ser perfeitamente razoável acreditar que alguns dos  males que ocorrem 
podiam ser impedidos sem diminuir o nosso desenvolvimento moral e espiritual nem 
comprometer a nossa confiança no funcionamento do mundo segundo leis naturais. A 
teodiceia de Hick, portanto, não consegue dar‐nos uma razão para rejeitar a premissa 
1,  segundo  a  qual  existem  males  sem  sentido,  exemplos  de  sofrimento  que  um  ser 
omnipotente e omnisciente podia impedir sem com isso impedir a ocorrência de qual‐
quer bem superior. 

131 
 
O «desvio de G. E. Moore» 

  A melhor maneira que o teísta tem de rejeitar a premissa 1 é através de um proce‐
dimento  indirecto.  A  este  procedimento  chamo  «desvio  G.  E.  Moore»,  em  honra  do 
filósofo do século XX, G. E. Moore, que o usou eficazmente ao lidar com os argumen‐
tos  dos  cépticos.  Filósofos  cépticos  como  David  Hume  apresentaram  argumentos 
engenhosos  para  provar  que  ninguém  pode  ter  conhecimento  da  existência  de  qual‐
quer  objecto  material. As  premissas  dos  seus  argumentos  usam  princípios  plausíveis, 
princípios que muitos filósofos tentaram rejeitar directamente, mas apenas com resul‐
tados  questionáveis.  Moore  seguiu  um  procedimento  completamente  diferente.  Em 
vez  de  argumentar  directamente  contra  as  premissas  dos  argumentos  dos  cépticos, 
observou  apenas  que  estas  premissas  implicavam,  por  exemplo,  que  ele  (Moore)  não 
tinha  conhecimento  da  existência  de  um  lápis.  Moore  argumentou  então  indirecta‐
mente contra as premissas dos cépticos, da seguinte maneira: 

1. Sei que este lápis existe. 
2. Se os princípios dos cépticos são correctos, não posso saber da existência deste lápis. 

Logo, 

3. Os princípios dos cépticos (pelo menos um) têm de ser incorrectos. 

  Moore  observou  então  que  este  argumento  é  tão  válido  quanto  o  argumento  dos 
cépticos, que ambos contêm a premissa «Se os princípios dos cépticos são correctos, 
Moore  não  pode  saber  da  existência  deste  lápis»,  e  concluiu  que  a  única  maneira  de 
escolher entre os dois argumentos (o do próprio Moore e o dos cépticos) é decidindo 
em  qual  das  primeiras  premissas  é  mais  racional  acreditar  —  a  premissa  de  Moore, 
«Sei que este lápis existe», ou a premissa dos cépticos, que afirma que alguns princí‐
pios cépticos são correctos. Moore conclui que a sua primeira premissa é a mais racio‐
nal das duas.11 
  Antes de vermos como o teísta pode aplicar o desvio de G. E. Moore ao argumento 
básico a favor do ateísmo, devemos observar a estratégia geral do desvio. Dão‐nos um 
argumento:  p,  q,  logo,  r.  Em  vez  de  argumentar  directamente  contra  p,  construímos 
outro argumento — não‐r, q, logo, não‐p — que começa com a negação da conclusão 
do primeiro argumento, mantém a sua segunda premissa e conclui com a negação da 
primeira premissa. Comparemos estes dois: 
 
[INSERIR TABELA DA PÁGINA 129] 

I. p, q, r 
II. não‐r, q, não‐p 

132 
 
  É uma verdade da lógica que se I é válido II tem de ser igualmente válido. Uma vez 
que os argumentos são iguais no que diz respeito à segunda premissa, qualquer opção 
entre eles tem de dizer respeito às respectivas primeiras premissas. Argumentar contra 
a primeira premissa p construindo o contra‐argumento II é usar o desvio de G. E. Moo‐
re. 
  Aplicando uma forma convenientemente adaptada do desvio de G. E. Moore contra 
o  argumento  indiciário  a  favor  do  ateísmo,  o  teísta  pode  argumentar  do  seguinte 
modo: 

3.* Provavelmente, Deus existe. 
2. Se Deus existe, não há males sem sentido. 

Logo, 

1.* Provavelmente, não há males sem sentido. 

  Temos agora dois argumentos: o argumento básico a favor do ateísmo, partindo de 1 
e 2 para concluir 3, e a melhor resposta do teísta, o argumento partindo de 3* e 2 para 
concluir 1*. A respeito da premissa 1, o teísta afirma ter justificação racional para acre‐
ditar na existência do Deus teísta, 3*, aceita 2 como verdadeira, e vê que 1* se segue de 
3*  e  2.  O  teísta  conclui,  consequentemente,  ter  justificação  racional  para  rejeitar  1. 
Tendo  justificação  racional  para  rejeitar  1,  o  teísta  conclui  que  o  argumento  básico  a 
favor do ateísmo não é bom. 

Argumento e resposta: uma avaliação 
  É agora tempo de avaliar os méritos relativos do argumento básico a favor do ateís‐
mo, bem como da melhor resposta que o teísta lhe dá. Suponha‐se que alguém está em 
condições de não ter qualquer justificação racional para pensar que o Deus teísta exis‐
te. Ou esta pessoa não conhece os argumentos a favor da existência de Deus ou ponde‐
rou‐os  mas  considera‐os  inteiramente  inconvincentes.  É  possível  que  também  não 
tenha  tido  quaisquer  visões  de  Deus  e  esteja  racionalmente  convencido  de  que  as 
experiências  religiosas  de  outros  não  dão  à  crença  teísta  qualquer  boa  justificação. 
Contemplando  a  diversidade  e  o  âmbito  do  sofrimento  humano  e  animal  no  nosso 
mundo, todavia, este indivíduo conclui que é perfeitamente razoável aceitar a premis‐
sa  1  como  verdadeira.  Penso  que  temos  de  admitir  que  tal  pessoa  tem  justificação 
racional para aceitar o ateísmo. Suponha‐se, contudo, que outra pessoa tem experiên‐
cias religiosas que lhe dão justificação para acreditar que o Deus teísta existe. Talvez 
esta  pessoa  tenha  também  examinado  cuidadosamente  o  argumento  ontológico,  e 
achou‐o  racionalmente  coercivo.  Penso  que  temos  de  admitir  que  essa  pessoa  tem 
alguma justificação racional para aceitar o teísmo. Mas e se este indivíduo estiver cien‐
te do argumento básico a favor do ateísmo e das considerações apresentadas a favor da 

133 
 
sua primeira premissa? Nesse caso, terá alguma justificação racional para acreditar que 
o teísmo é verdadeiro e alguma justificação racional para acreditar que a premissa 1 é 
verdadeira,  e,  portanto,  que  o  teísmo  é  falso.  Esta  pessoa  terá  então  de  pesar  a  força 
relativa das razões a favor do teísmo contra as razões a favor da premissa 1 e do ateís‐
mo. Se a justificação do teísmo parece racionalmente mais forte do que a justificação 
da  premissa  1,  este  indivíduo  pode  razoavelmente  rejeitar  a  premissa  1,  porquanto  a 
sua negação é pressuposta pelo teísmo e por 2. Claro que avaliar o mérito relativo de 
justificações racionais rivais não é fácil, mas parece claro que se pode ter justificação 
racional  para  aceitar  o  teísmo  e  concluir  que  a  premissa  1  é  falsa  e  que  o  argumento 
básico a favor do ateísmo não é bom. 
  Em termos da nossa própria resposta ao argumento básico a favor do ateísmo e ao 
contra‐argumento  teísta  à  premissa  1,  cada  um  de  nós  tem  de  ajuizar  à  luz  da  expe‐
riência  e  conhecimento  pessoais  se  as  justificações  que  temos  para  acreditar  na  pre‐
missa 1 são mais fortes ou mais fracas do que as justificações para acreditar que o Deus 
teísta existe. Vimos que na medida em que a nossa experiência e conhecimento podem 
diferir, é possível — aliás, é provável — que tenhamos, alguns de nós, justificação para 
aceitar o teísmo e rejeitar a premissa 1. 
  Chegámos à conclusão de que a forma indiciária do problema do mal é uma dificul‐
dade grave mas não insuperável para o teísmo. Na medida em que tiver justificações 
mais fortes para acreditar que o Deus teísta existe do que para aceitar a premissa 1, o 
teísta, bem feitas as contas, pode ter mais razões para rejeitar a premissa 1 do que para 
a aceitar. Contudo, na ausência de boas razões para acreditar que o Deus teísta existe, 
o nosso estudo da forma indiciária do problema do mal leva‐nos à perspectiva de que 
temos justificação racional para concluir que provavelmente Deus não existe. 
  É  preciso  não  confundir  a  perspectiva  de  que  uma  pessoa  pode  ter  justificação 
racional  para  aceitar  o  teísmo  enquanto  outra  pessoa  tem  justificação  racional  para 
aceitar o ateísmo com a perspectiva incoerente de que o teísmo e o ateísmo podem ser 
ambos  verdadeiros.  Dado  que  o  teísmo  (no  sentido  estrito)  e  o  ateísmo  (no  sentido 
estrito) exprimem afirmações contraditórias, um tem de ser verdadeiro e o outro falso. 
Mas como os indícios de que se dispõe podem justificar a crença numa afirmação que, 
à luz da totalidade dos indícios, é falsa, é possível pessoas diferentes terem justificação 
racional  para  acreditar  em  afirmações  que  não  podem  ambas  ser  verdadeiras.  Supo‐
nha‐se,  por  exemplo,  que  uma  amiga  sua  embarca  num  avião  para  o  Havai.  Horas 
depois da descolagem você descobre que o avião caiu no mar. Depois de uma busca de 
vinte e quatro horas, não se encontra sobreviventes. Nestas circunstâncias é racional 
que o leitor pense que a sua amiga não sobreviveu. Mas dificilmente será racional que 
ela própria acredite nisso enquanto está a boiar ao sabor das ondas com um colete sal‐
va‐vidas,  perguntando‐se  por  que  razão  os  aviões  de  busca  não  a  conseguem  encon‐
trar. O teísmo e o ateísmo não podem ser ambos verdadeiros. Mas na medida em que a 
experiência e o conhecimento diferem de pessoa para pessoa, uma pode ter justifica‐

134 
 
ção  racional  para  aceitar  o  teísmo  ao  passo  que  outra  tem  justificação  racional  para 
aceitar o ateísmo. 
  Caracterizámos  o  teísta  como  alguém  que  pensa  que  o  Deus  teísta  existe  e  o  ateu 
como alguém que pensa que o Deus teísta não existe. À luz do nosso estudo do pro‐
blema do mal, talvez devamos introduzir distinções complementares. Um ateu amigá‐
vel pensa que uma pessoa pode ter justificação racional para acreditar que o Deus teís‐
ta  existe.  Um  ateu  hostil  pensa  que  ninguém  tem  justificação  racional  para  acreditar 
que o Deus teísta existe. Há que fazer distinções semelhantes a respeito do teísmo e do 
agnosticismo.  Um  agnóstico  hostil,  por  exemplo,  é  um  agnóstico  que  pensa  que  nin‐
guém tem justificação racional para acreditar que o Deus teísta existe e que ninguém 
tem  justificação  racional  para  acreditar  que  o  Deus  teísta  não  existe.  Mais  uma  vez, 
temos de observar que o ateu (ou teísta) amigável não acredita que o teísta (ou ateu) 
tem  uma  crença  verdadeira,  apenas  que  pode  perfeitamente  ter  justificação  racional 
para adoptar essa crença. Talvez a lição final a retirar do nosso estudo do problema do 
mal seja que as versões amigáveis do teísmo, do agnosticismo e do ateísmo são todas 
preferíveis às respectivas versões hostis. 

Revisão 
1. Explique a diferença entre a forma lógica do problema do mal e a forma indiciária. 
2. Qual é a principal dificuldade da tese central da forma lógica do problema do mal? 
3. Qual é a relevância da defesa do livre‐arbítrio para a forma lógica do problema do mal? 
4. Explique o argumento indiciário fundamental a favor do ateísmo. O que poderia o teísta 
responder a este argumento? 
5. Explique a diferença entre o ateísmo (ou teísmo) amigável e o ateísmo (ou teísmo) hos‐
til. Por que razão poderiam as versões amigáveis ser preferíveis às versões hostis? 

Estudo complementar 
1. Discuta a questão central que opõe o teísta ao ateísta no que diz respeito à forma indi‐
ciária  do  problema  do  mal.  Qual  deles  terá,  na  sua  opinião,  o  melhor  argumento? 
Explique. 
2. Discuta o seguinte argumento: 
O  facto  do  sofrimento  no  mundo  não  constitui  um  problema  genuíno  para  o  cristia‐
nismo  porque,  segundo  o  cristianismo,  não  se  pode  fazer  qualquer  comparação  real 
entre a angústia momentânea de que se tem experiência nesta vida e a alegria e felici‐
dade eternas prometidas pelo cristianismo na vida futura. 

Notas 
1. Suponha‐se, por exemplo, que há ocasiões em que o acto de perdoar a alguém uma má 
acção é um bem que supera o mal cometido que se está a perdoar. Como é óbvio, nem 

135 
 
um  ser  omnipotente  poderia  causar  este  bem  sem  permitir  a  má  acção  que  o  bem 
supera. Mais uma vez, suportar corajosamente a dor pode ser um bem que ocasional‐
mente supera o mal da dor que é corajosamente suportada. Mas é logicamente impos‐
sível que alguém suporte corajosamente uma dor atroz, sem que ocorra uma dor atroz. 
2. Pode‐se encontrar uma explicação mais elaborada da defesa do livre‐arbítrio em Alvin 
Plantinga, God, Freedom and Evil (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1974). 
3. Ver Stephen J. Wykstra, «The Humean Obstacle to Evidential Arguments from Suffer‐
ing: On Avoiding the Evils of Appearance», International Journal for the Philosophy of 
Religion 16 (1984): 73–93. Ver também William L. Rowe, «Evil and the Theistic Hypo‐
thesis: A Response to Wykstra», International Journal for the Philosophy of Religion 16 
(1984): 95–100. 
4. Ver J. L. Schellenberg, Divine Hiddenness  and Human Reason (Ithaca e Londres: Cor‐
nell University Press, 1993). 
5. Ver Hick: Evil and the God of Love (Nova Iorque: Harper and Row, 1966), em particular 
o  Capítulo  XVII  da  edição  revista,  publicada  em  1978,  God  and  the  Universe  of  Faiths 
(Nova Iorque: St. Martin's Press, 1973) e o Capítulo 4 de Philosophy of Religion, 4.ª ed. 
(Englewood Cliffs, NJ: Prentice‐Hall, 1990). 
6. Hick, God and the Universe of Faiths, p. 85. 
7. Ibid. 
8. Ibid., p. 60. 
9. Ibid. 
10. Hick, Philosophy of Religion, p. 46. 
11. Ver, por exemplo, os dois capítulos sobre Hume em G. E. Moore, Some Main Problems 
of Philosophy (Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1953). 

136 
 
Capítulo 8 
Milagres e a mundividência moderna 

  Em  geral,  as  religiões  teístas  sublinham  a  ocorrência  de  milagres.  O  cristianismo, 
por exemplo, funda‐se na afirmação de que Jesus foi milagrosamente ressuscitado dos 
mortos.  Os  milagres  no  cristianismo  estão  também  associados  aos  corpos  e  relíquias 
dos santos e aos santuários. Anualmente, milhões de pessoas rumam a Lourdes, uma 
pequena cidade em França, onde se atribuiu curas milagrosas às águas de um santuá‐
rio erguido no lugar onde se acredita que a virgem Maria apareceu repetidamente a S. 
Bernardette,  em  1858.  Neste  capítulo  procuramos  saber  se  é  ou  não  ainda  possível 
acreditar em milagres, e, caso seja possível, se é ou não razoável acreditar que ocorreu 
um milagre. 

Milagres: incompatíveis com uma mundividência científica? 
  O expoente máximo da perspectiva de que já não é possível acreditar em milagres é 
o historiador bíblico e teólogo alemão, Rudolf Bultmann (1884–1976). Bultmann argu‐
menta que os milagres pertencem a uma imagem pré‐científica do mundo, em que o 
mundo  natural  é  invadido  por  seres  sobrenaturais  que  causam  acontecimentos 
extraordinários:  pessoas  ressuscitadas  dos  mortos  ou  a  transformação  da  água  em 
vinho.  A  ciência  e  a  tecnologia,  contudo,  deram  origem  à  mundividência  moderna, 
uma perspectiva da natureza como domínio fechado, autónomo, em que se explica um 
acontecimento  natural  através  de  outro  acontecimento  natural.  Bultmann  pensa  que 
esta mundividência moldou de tal maneira as pessoas de hoje que já não podem acre‐
ditar  em  histórias  de  acontecimentos  milagrosos,  como  os  que  estão  registados  na 
Bíblia. S. Agostinho acreditava que a doença, pelo menos num cristão, era causada por 
demónios. Mas as pessoas modernas dificilmente podem manter tal crença. Atribui‐se 
agora as doenças e respectivas curas a causas naturais, como germes e medicamentos. 
Como Bultmann observa: «É impossível usar a luz eléctrica e a rádio, tirar partido das 
modernas descobertas médicas e cirúrgicas e ao mesmo tempo acreditar no mundo de 
espíritos e milagres do Novo Testamento».1 
  A  afirmação  de  Bultmann  é  sem  dúvida  demasiado  forte.  As  pessoas  hoje  ainda 
acreditam  em  milagres,  pelo  que  é  evidentemente  possível  fazê‐lo.  E  à  medida  que 
algumas  consequências  infelizes  da  tecnologia  produzida  pela  ciência  moderna  se 
fazem sentir, parece haver, quando muito, uma reacção contra a mundividência cientí‐
fica  e  uma  vontade  crescente  de  adoptar  maneiras  de  pensar  pré‐científicas.  Em  res‐

137 
 
posta, Bultmann argumenta que embora haja excepções a esta tese, são relativamente 
inimportantes. 

  Pode‐se  evidentemente  argumentar  que  há  pessoas  hoje  em  dia  cuja  confiança  na 
mundividência científica tradicional foi abalada, e outras primitivas ao ponto de se ade‐
quarem a um pensamento mítico. E há também uma grande diversidade de superstições. 
Mas  quando  a  crença  em  espíritos  e  milagres  degenera  em  superstição,  torna‐se  algo 
inteiramente  diferente  daquilo  que  era  enquanto  fé  genuína.  As  diversas  impressões  e 
especulações  que  influenciam  as  pessoas  crédulas  aqui  e  ali  são  pouco  importantes  e 
nem importa a que ponto as palavras de ordem baratas espalharam uma atmosfera hostil 
à ciência. O que importa é a mundividência que os homens absorvem no seu ambiente, e 
é a ciência que determina essa mundividência através da escola, da imprensa, da rádio, 
do cinema, e de todos os frutos do progresso técnico.2 

  Segundo  Bultmann,  O  que  importa  não  é  ainda  haver  pessoas  que  acreditam  em 
milagres  —  pessoas  que  ou  vivem  em  áreas  primitivas,  relativamente  intocadas  pela 
ciência  e  pela  tecnologia  ou  vivem  no  mundo  civilizado  mas  conseguem  de  alguma 
maneira  rejeitar  a  ciência  moderna  ou  mantêm  uma  existência  esquizofrénica,  acei‐
tando ao mesmo tempo a ciência moderna e uma crença supersticiosa no milagroso. O 
que  importa  é  que  a  mundividência  moderna  deixa  pouco  ou  nenhum  espaço  para 
espíritos e milagres. As pessoas de hoje, condicionadas pela ciência e pela tecnologia a 
adoptar  a  mundividência  científica,  sentem‐se  naturalmente  inclinadas  a  só  aceitar 
uma explicação para acontecimentos na natureza se esta for dada em termos de outros 
acontecimentos na natureza. Quando a televisão se avaria ou o automóvel empanca, as 
pessoas que vivem numa sociedade moderna não podem levar a sério a ideia de que a 
causa  foi  um  demónio.  Explica‐se  tais  coisas  em  termos  de  uma  falha  mecânica  ou 
eléctrica. Consequentemente, há menos espaço no mundo natural para Deus — menos 
espaço, portanto, para a ocorrência de milagres. 
  Penso que temos de conceder a Bultmann que é mais difícil acreditar em milagres 
hoje do que antigamente. Aceitar a ciência moderna é esperar que em geral os aconte‐
cimentos  naturais  tenham  causas  naturais.  Consequentemente,  atribuir‐se‐á  menos 
acontecimentos  à  intervenção  de  forças  sobrenaturais  no  mundo  natural.  Até  aqui 
parece  inegável.  Bultmann,  contudo,  afirma  muito  mais.  Argumenta  que  aceitar  a 
ciência  moderna  é  de  alguma  maneira  comprometer‐se  com  a  rejeição  de  qualquer 
explicação de acontecimentos no mundo natural em termos da actividade de seres ou 
poderes  sobrenaturais  (anjos,  deuses,  demónios  ou  outros).  Mas  esta  afirmação  mais 
forte  parece  ter  pouca  ou  nenhuma  justificação  e  os  factos  acerca  daquilo  em  que 
acreditam  as  pessoas  civilizadas  não  conseguem  provar  a  afirmação  mais  forte  de 
Bultmann. 

138 
 
Uma crença irrazoável 

A definição humiana dos milagres 

  O  segundo  ataque,  muito  mais  sério,  contra  os  milagres  afirma  que  embora  seja 
possível  acreditar  em  milagres,  nunca  é  razoável  fazê‐lo.  A  formulação  clássica  desta 
perspectiva ocorre num ensaio famoso de David Hume.3 Neste ensaio, Hume baseia o 
seu  principal  argumento  numa  certa  compreensão  do  que  é  um  milagre.  Contudo, 
antes  de  considerarmos  a  explicação  de  Hume  sobre  o  que  é  um  milagre,  será  útil 
observar que a palavra milagre tem pelo menos dois sentidos diferentes. No primeiro 
sentido, o seu significado popular, um milagre é um acontecimento benéfico inespera‐
do. Assim, um aluno que não se tenha preparado adequadamente para um exame, ao 
receber  uma  nota  suficiente  para  passar  de ano,  poderá  exclamar:  «É  um  milagre ter 
passado no exame!» (Por muito mal preparado que esteja, um aluno que reprova num 
exame não diz: «É um milagre ter reprovado no exame!» Porquanto, no sentido popu‐
lar,  um  acontecimento  tem  de  ser  visto  como  benéfico  para  que  o  consideremos  um 
milagre.) A palavra milagre tem também um significado estrito, e é neste sentido que 
Hume usa o termo. Em sentido estrito, um milagre é um acontecimento que satisfaz 
duas condições distintas. Em primeiro lugar, é um acontecimento que não teria ocor‐
rido se apenas se devesse a causas naturais; a ordem natural não teria produzido esse 
acontecimento. Temos a certeza, por exemplo, de que quem estiver morto durante um 
período  de  tempo  considerável,  e  cujo  corpo  se  encontre  em  decomposição,  não 
regressará subitamente à vida. Pois sabemos o suficiente acerca do funcionamento das 
causas naturais para saber que se o que acontecer for apenas o resultado causal de for‐
ças  naturais,  um  cadáver  permanecerá  morto  e  continuará  a  decompor‐se.  Pelo  que 
um milagre, em sentido estrito, é, em parte, um acontecimento que não teria ocorrido 
apenas pela acção de causas naturais. 
  A segunda condição exigida para que um acontecimento seja um milagre em senti‐
do estrito é resultar da intervenção directa de Deus ou de algum agente sobrenatural. 
Se  um  acontecimento  ocorresse  sem  qualquer  causa  natural,  se  apenas  acontecesse 
inesperadamente mas sem se se dever à actividade causal de Deus ou de algum agente 
sobrenatural, não seria um milagre no sentido que consideramos — embora satisfaça a 
condição de ser um acontecimento que não teria ocorrido se se devesse apenas a cau‐
sas naturais. Assim, no sentido estrito, um milagre é um acontecimento que 1) ocorre 
mas não ocorreria se se devesse apenas a causas naturais, e 2) ocorre porque foi causa‐
do por Deus ou por qualquer outro agente sobrenatural. Esta é basicamente a explica‐
ção humiana. A própria definição que Hume dá de milagre é: «a transgressão de uma 
lei  da  natureza  por  uma  volição  particular  da  divindade,  ou  pela  intervenção  de  um 
agente invisível».4 

139 
 
Objecções à definição de Hume 

  Será que a caracterização humiana de  «milagre» é adequada? As objecções subsu‐
mem‐se em duas classes: as que afirmam que as duas condições de Hume não são sufi‐
cientes para que algo seja um milagre, e as que afirmam que uma ou outra destas con‐
dições não é necessária para que algo seja um milagre. Será instrutivo considerar um 
ou dois exemplos de cada género de objecção. 
  Duas  características  que  frequentemente  se  associa  à  ideia  de  milagre,  além  das 
duas apontadas por Hume, são as seguintes: 3) que um milagre é um acontecimento 
surpreendente e impressionante e 4) que um milagre serve uma finalidade importante 
e benéfica. As narrativas bíblicas de milagres exibem em geral as características 3 e 4. 
A ressurreição de Lázaro (João: 11) é claramente um acontecimento impressionante e 
benéfico — pelo menos para Lázaro e suas irmãs. A cura dos dois cegos (Mateus: 9:27‐
31) e a alimentação dos cinco mil a partir de cinco pães e dois peixes (Marcos: 6:35‐44) 
também  exibem  estas  duas  características.  Talvez,  portanto,  as  duas  características 
básicas  de  Hume  sejam  inadequadas.  Para  que  um  acontecimento  seja  um  milagre 
genuíno  tem  também  de  ser  impressionante  e  benéfico.  Dado  que  não  serve,  tanto 
quanto  possamos  ver,  qualquer  finalidade  benéfica,  não  chamaríamos  seguramente 
«milagre» à morte súbita de alguém que corre para impedir uma criança de ser atingi‐
da por um comboio que se aproxima, acabando a criança por ser atingida. E ninguém 
chama «milagre» a uma folha se agita muito delicadamente no chão, dado que não ser 
de modo algum um acontecimento impressionante ou surpreendente. 
  À objecção de que um milagre tem de ser impressionante ou surpreendente, Hume 
responde: 

  Um milagre pode ser ou não descobrível pelo homem. Isto não altera a sua natureza 
e essência. A ascensão de uma casa ou navio em pleno ar é um milagre visível. A subida 
de uma pena, quando o vento carece da mínima força que tal efeito exige, é de um mila‐
gre real, embora não tão perceptível relativamente a nós.5 

  Suponha‐se que a brisa é suficiente para deslocar uma folha no chão, não mais do 
que meio centímetro, que nenhuma outra força natural causa o movimento da folha, 
mas que Deus intervém directamente para que a folha percorra de facto a distância de 
todo um centímetro. Dificilmente se consideraria este acontecimento, a deslocação de 
todo um centímetro pela folha, surpreendente ou impressionante. Contudo, se soubés‐
semos que nenhuma força natural era suficiente para causar o acontecimento, talvez o 
considerássemos  muito  impressionante.  Mas  se  por  «acontecimento  impressionante 
ou  surpreendente»  entendemos  um  acontecimento  tal  que  um  observador  normal 
prontamente o reconhece como tal, então a ligeira deslocação da folha não seria mini‐
mamente impressionante ou surpreendente. Analogamente, é isto que acontece com o 

140 
 
exemplo humiano da pena que sobe. Um edifício que se erguesse por outros meios que 
não os naturais, contudo, seria um acontecimento impressionante e surpreendente. 
  Pode‐se  compreender  do  seguinte  modo  a  resposta  de  Hume.  Algo  pode  ser  um 
milagre mesmo que sejamos incapazes de o reconhecer  como tal. Ser impressionante 
ou  surpreendente  pode  ser  uma  condição  que  um  acontecimento  tem  de  satisfazer 
para que acreditemos tratar‐se de um milagre, mas não é uma condição que um acon‐
tecimento tem de satisfazer para ser um milagre. Não devemos confundir as condições 
que têm de se verificar para que possamos determinar que ocorreu um milagre, com as 
condições  que  têm  de  se  verificar  para  que  seja  verdade  que  ocorreu  um  milagre. 
Hume argumentaria que as condições 3 e 4 são talvez necessárias para que possamos 
determinar que ocorreu um milagre, mas, ao contrário de 1 e 2, não têm de se verificar 
para  que  um  milagre  ocorra.  Por  outras  palavras,  podemos  distinguir  entre  milagres 
visíveis  e  invisíveis.  Hume  dá‐nos  as  condições  suficientes  para  a  ocorrência  de  um 
milagre. As condições 3 e 4 são talvez necessárias para que ocorra um milagre visível, 
algo que as pessoas comuns possam considerar um milagre, mas 3 e 4 não são necessá‐
rias  para  que  um  acontecimento  seja  um  milagre,  dado  que  não  se  verificam  num 
acontecimento que seja um milagre invisível. 
  Considerámos um exemplo de objecção segundo a qual Hume não apresenta condi‐
ções suficientes para algo ser um milagre. O segundo género de objecção afirma que a 
condição humiana segundo a qual um acontecimento tem de ser uma violação de uma 
lei  da  natureza  não  é  uma  condição  necessária  para  que  algo  seja  um  milagre.  R.  F. 
Holland,  por  exemplo,  sugere  o  exemplo  de  uma  criança  que  deambulou  para  uma 
linha ferroviária sem saber que um comboio se aproxima a grande velocidade. O com‐
boio  faz  uma  curva,  o  que  impede  o  maquinista  de  ver  a  criança.  Precisamente  no 
momento certo, o maquinista desmaia, devido a alguma causa natural que nada tem a 
ver  com  a  presença  da  criança  nos  carris.  Ao  desmaiar,  a  sua  mão  deixa  de  exercer 
pressão na alavanca de controlo, fazendo o comboio parar a alguns metros da criança. 
A  mãe  da  criança,  observando  à  distância  e  incapaz  de  ajudar,  «agradece  a  Deus  o 
milagre;  que  nunca  deixa  de  considerar  como  tal,  embora,  como  a  seu  tempo  vem  a 
saber,  nada  haja  de  sobrenatural  na  maneira  como  os  travões  do  comboio  foram 
accionados».6 
  Temos  de  supor  neste  exemplo  que  o  acontecimento  extraordinário  —  a  paragem 
do comboio a apenas alguns metros da criança — se deve inteiramente a causas natu‐
rais.  Se  a  criança  não  estivesse  nos  carris,  o  comboio  teria  parado  exactamente  no 
mesmo  local.  Se  a  criança  estivesse  nos  carris  apenas  alguns  metros  mais  perto  do 
comboio,  então,  sem  intervenção  divina,  teria  morrido.  Onde  está  então  o  milagre? 
Onde  está  a  mão  de  Deus  neste  acontecimento  espectacular?  Concedamos  que  uma 
causa natural provocou o desmaio do maquinista. Talvez a mãe acredite que embora o 
desmaio se deva a uma causa natural, o facto de o desmaio ter sido tão oportuno, de 
não ter ocorrido alguns momentos depois, se deve de alguma maneira à intervenção de 
Deus. Tem de se fazer uma certa distinção, parece, entre uma feliz coincidência e um 
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milagre  genuíno.  E  mal  tentamos  fazer  esta  distinção,  é  provável  que  acabemos  nas 
duas condições de Hume. Consequentemente, embora possa haver dúvidas acerca da 
adequação  da  caracterização  humiana  de  «milagre»,  não  é  claro  que  qualquer  outra 
caracterização seja mais adequada. 

O argumento contra os milagres 

  É  tempo  de  considerar  o  argumento  central  de  Hume  contra  os  milagres.  Como 
vimos,  Hume  pensa  que  nunca  é  razoável  acreditar  que  ocorreu  um  milagre.  O  seu 
argumento deriva da primeira das duas condições que um acontecimento tem de satis‐
fazer para ser um milagre: 

  Um milagre é uma violação das leis natureza; e na medida em que uma experiência 
firme e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra um milagre, pela própria natu‐
reza  do  caso,  é  tão  completa  como  qualquer  argumento  baseado  na  experiência  que 
imaginar se possa. Porquê pensar que é mais do que provável que todos os homens têm 
de morrer; que o chumbo não pode, por si, ficar suspenso no ar; que o fogo consome a 
madeira e se extingue com a água; senão porque se considera que estes acontecimentos 
concordam  com  as  leis  da  natureza,  sendo  preciso  uma  violação  destas  leis,  ou,  por 
outras palavras, um milagre, para os impedir […] Mas é um milagre que um morto res‐
suscite; porque isso nunca foi observado, em qualquer época ou país. É forçoso que haja, 
portanto, uma experiência uniforme contra cada acontecimento milagroso, de contrário 
o acontecimento não seria digno do seu nome.7 

  A passagem anterior contém o principal argumento de Hume a favor da perspectiva 
de que nunca é de facto razoável acreditar que ocorreu um milagre. O argumento, em 
termos simples, é o seguinte: 

1. Os indícios empíricos a favor de uma lei da natureza são extremamente fortes. 
2. Um milagre é uma violação de uma lei da natureza. 

Logo, 

3. Os indícios empíricos contra a ocorrência de um milagre são extremamente fortes. 

  Por que razão são sempre extremamente fortes os indícios empíricos a favor de uma 
lei da natureza? Pela simples razão de que nunca acreditaríamos que um princípio fos‐
se  uma  lei  da  natureza  a  menos  que  se  observasse  constantemente  a  ocorrência  de 
determinados  acontecimentos  na  natureza  sempre  que outras  condições  na  natureza 
estejam  presentes.  O  princípio  da  gravitação,  para  recorrer  a  um  dos  exemplos  de 
Hume, diz‐nos que o chumbo (ou qualquer corpo pesado) não pode permanecer por si 
suspenso no ar. Observou‐se repetidamente a queda de corpos de peso considerável na 
direcção da Terra quando largados no ar, sem sustentação. Observações deste género 

142 
 
ajudaram  a  confirmar  a  nossa  crença  de  que  o  princípio  da  gravitação  é  uma  lei  da 
natureza. Quando um objecto pesado parece ficar suspenso por si em pleno ar (como 
acontece durante a actuação de um ilusionista), acreditamos geralmente que há uma 
força natural, indetectada por nós, que age sobre o corpo com uma força igual à exer‐
cida pela força gravitacional da Terra. Acreditar no contrário é ir contra a experiência 
constante que nos levou a acreditar no princípio da gravitação. Pois a nossa experiên‐
cia  anterior  diz‐nos  que  os  objectos  pesados  caem,  a  menos  que  haja  um  objecto  ou 
força natural que contrarie a acção da força da gravidade sobre o objecto pesado. 
  Na segunda premissa, Hume afirma que um milagre é uma violação de uma lei da 
natureza. E entendemos isto no sentido de que um milagre é um acontecimento que 
não se deve a qualquer causa ou força natural. Na verdade, é um acontecimento que 
não teria ocorrido se se devesse apenas a causas naturais — dado que a ordem natural 
das coisas não teria produzido aquele acontecimento. Quando nos sentiríamos tenta‐
dos  a  pensar  que  ocorreu  tal  acontecimento?  Só  quando  o  acontecimento  parece 
entrar  em  conflito  com  a  ordem  comum  da  natureza;  só  quando  parece  não  haver 
qualquer  causa  natural  que  o  explique  —  um  acontecimento  como  a  ressurreição  de 
um morto, ou a suspensão de um pedaço de chumbo em pleno ar sem a intervenção 
de uma força natural contrária à força da gravidade. Se o acontecimento parece con‐
formar‐se ao que acreditamos serem as leis da natureza, então não nos sentiremos ten‐
tados a acreditar que é um milagre. 
  Hume conclui que os indícios que contribuíram para estabelecer um determinado 
princípio como uma lei da natureza estão contra a hipótese de que ocorreu um acon‐
tecimento milagroso. E seguramente que tem razão nisto. Se alguém nos diz que ati‐
rou um pedaço de chumbo ao ar e que este caiu ao chão, não teremos dificuldade em 
acreditar que caiu ao chão por causa da experiência constante que temos de objectos 
pesados  a  cair  ao  chão  quando  os  atiramos  ao  ar.  Experiências  constantes  como  esta 
levam‐nos a acreditar que os acontecimentos na natureza têm causas naturais e levam‐
nos  a  formular  princípios  como  o  da  gravitação,  que  especificam  essas  conexões  na 
natureza. Mas se a pessoa nos diz que o pedaço de chumbo ficou simplesmente no ar e 
que  nenhum  vento  forte  ou  força  natural  contrariava  a  força  da  gravidade,  teremos 
muita dificuldade em acreditar que a sua história é verdadeira. Porquanto fazê‐lo seria 
acreditar  ou  que  o  princípio  da  gravitação  é  falso  ou  que  o  pedaço  de  chumbo  de 
alguma maneira não estava sequer sujeito a forças naturais. Mas como a nossa expe‐
riência  favorece  firmemente  a  verdade  do  princípio  da  gravitação  e  a  ideia  de  que  o 
comportamento  de  pedaços  de  chumbo  e  outros  corpos  materiais  se  deve  a causas  e 
forças  naturais,  temos  logo  à  partida  indícios  consideráveis  contra  a  história  narrada 
pela pessoa em causa. 
  Será que então nunca é razoável acreditar que ocorreu um acontecimento que viola 
uma lei da natureza? Hume parece acreditar que é assim. Pois os únicos indícios que 
temos a favor de um milagre são os relatos de testemunhas. E Hume pensa que é sem‐
pre mais razoável acreditar que as testemunhas se enganaram do que acreditar que o 
143 
 
milagre  ocorreu.  Dado  que  contra  o  relato  das  testemunhas  está  toda  a  nossa  expe‐
riência  que  apoia  a  lei  da  natureza  que  o  alegado  milagre  viola.  Além  disso,  Hume 
observa que as testemunhas dos chamados «milagres» são amiúde pessoas ignorantes 
e  primitivas,  que  têm  uma  tendência  natural  para  acreditar  em  acontecimentos 
extraordinários. 
  Hume não aceita que o testemunho humano possa ser tão abrangente e fidedigno a 
ponto de tornar mais do que razoável acreditar que um acontecimento absolutamente 
extraordinário ocorreu, um acontecimento que contraria «a ordem habitual da nature‐
za». 

  Assim, suponha‐se que todos os autores de todas as línguas concordam que, a partir 
do dia 1 de Janeiro de 1600, houve uma escuridão total sobre toda a Terra durante oito 
dias: suponha‐se que a tradição deste acontecimento extraordinário é ainda forte e enér‐
gica entre as pessoas: que todos os viajantes, regressando de países estrangeiros, nos tra‐
zem relatos da mesma tradição, sem a mínima variação ou contradição: é evidente que 
os nossos filósofos de hoje, em vez de duvidar do facto, o deviam aceitar como certo, e 
procurar as causas a partir das quais se pode derivá‐lo.8 

  Mas  podemos  ver  por  esta  passagem  que  Hume  pensa  que  a  quantidade  de  teste‐
munhos  a  favor  do  acontecimento  tem  de  ser  incrivelmente  enorme  antes  de  poder 
contrabalançar  o  peso  dos  indícios  contra  o  acontecimento  retirados  da  nossa  expe‐
riência anterior. Só se a falsidade do testemunho for mais milagrosa do que o aconte‐
cimento testemunhado é que Hume se dispõe a acreditar que o acontecimento ocor‐
reu  e  não  que  as  testemunhas  se  enganaram.  E  no  que  diz  respeito  às  histórias  de 
milagres do cristianismo e de outras religiões, o parecer de Hume é evidentemente que 
o peso dos indícios sugere que as testemunhas estão enganadas. 

Uma violação da natureza 

  Antes  de  tentarmos  avaliar  o  argumento  de  Hume  contra  os  milagres,  precisamos 
de  rever  a  questão  de  saber  ao  certo  aquilo  em  que  temos  de  estar  preparados  para 
acreditar se acreditarmos que um acontecimento viola uma lei da natureza. Suponha‐
se  que  atiramos  um  pedaço  de  chumbo  ao  ar  e  o  observamos  atónitos,  vendo‐o  sus‐
penso em pleno ar durante vários minutos antes de cair lentamente no chão. Há basi‐
camente três alternativas à escolha. Em primeiro lugar, há a possibilidade de uma for‐
ça  natural,  talvez  um  vento  forte,  agir  sobre  o  chumbo  com  uma  força  igual  à  que, 
segundo o princípio da gravidade, atrai o chumbo na direcção da Terra. Em segundo 
lugar, há a possibilidade de o princípio de gravidade ser falso tal como está formulado 
— que uma força natural explique de facto o que acontece ao chumbo, mas seja uma 
força que, se o princípio de gravidade fosse verdadeiro, seria insuficiente para manter 
o chumbo em pleno ar durante esse período de tempo. Poderíamos então rever o prin‐

144 
 
cípio de gravidade à luz deste novo conhecimento. Por fim, há a possibilidade de que 
nenhuma  força  ou  causa  natural  explique  o  que  acontece  ao  pedaço  de  chumbo.  Na 
primeira alternativa, o que acontece está em concordância com o princípio da gravida‐
de. No segundo caso, o que acontece refuta o princípio de gravidade e mostra que este 
não é, como se afirmou, uma lei da natureza. E no terceiro caso o que acontece viola 
uma lei da natureza — supondo que o princípio de gravidade é realmente uma lei da 
natureza.  O  terceiro  caso  não  mostra  que  o  princípio  de  gravidade  não  é  uma  lei  da 
natureza  porque  as  leis  da  natureza  só  nos  dizem  o  que  tem  de  acontecer  quando  o 
que acontece se deve inteiramente a forças naturais. 
  O problema é determinar qual destas três alternativas explica correctamente o facto 
de o chumbo permanecer em pleno ar. Presumivelmente, não é muito difícil excluir a 
primeira alternativa. Mas como decidimos se este acontecimento extraordinário é ou 
não um contra‐exemplo genuíno ao princípio da gravidade (alternativa 2), ou se é ou 
não uma violação genuína de uma lei da natureza (alternativa 3)? Bem, se pudéssemos 
identificar as forças naturais envolvidas, rever o princípio de gravidade para dar conta 
delas,  e  então  causar  acontecimentos  semelhantes  em  circunstâncias  nas  quais  estas 
forças se verificam, teríamos talvez razões para pensar que a alternativa 2 é a explica‐
ção  correcta.  Mas  se  não  conseguirmos  rever  o  princípio  de  gravidade  de  maneira  a 
explicar  este  estranho  acontecimento,  se  não  temos  como  encontrar  uma  reformula‐
ção  que  nos  permita  prever  futuras  ocorrências  de  acontecimentos  como  o  que  está 
em causa, então talvez seja razoável concluir que a permanência do chumbo em pleno 
ar durante aqueles escassos minutos foi uma genuína violação de uma lei da natureza, 
algo que não se deve de modo algum a qualquer força natural.9 
  A  dificuldade  de  escolher  entre  as  alternativas  2  e  3  será  maior  ou  menor  depen‐
dendo  de  quão  inabitual  e  impressionante  for  o  acontecimento.  Se  o  corpo  de  uma 
pessoa for desmembrado, deixando‐se as partes em decomposição ao longo de sema‐
nas, então, se ao colocar numa mesa as diversas partes, estas subitamente se reunirem 
e a pessoa regressar à vida, em plena saúde, ninguém consideraria sequer provável que 
se  pudesse  explicar  tal  acontecimento  revendo  o  que  consideramos  serem  as  leis  da 
natureza.  Assim  parece  que  há  acontecimentos  imagináveis  que,  se  ocorressem, 
defender‐se‐ia, razoavelmente, tratar‐se de violações das leis da natureza. 
  Hume argumenta, como vimos, não que um milagre é impossível, mas que nunca é 
razoável  que  um  homem  sensato  acredite  que  ocorreu  um  milagre.  Porquanto  um 
milagre  é  uma  violação  de  uma  lei  da  natureza  e  como  os  indícios  da  experiência  a 
favor  de  uma  lei  da  natureza  são  indícios  a  favor  da  perspectiva  de  que  os  aconteci‐
mentos que são abrangidos por essa lei se devem a causas naturais, os indícios contra 
qualquer milagre serão provavelmente muito fortes. Por outro lado, os únicos indícios 
que sustentam um milagre são o testemunho dos que afirmam ter presenciado o acon‐
tecimento. Mas é sempre mais razoável acreditar que as testemunhas se enganaram do 
que acreditar que o milagre ocorreu, sobretudo quando consideramos o temperamen‐
to, a falta de instrução e o número das testemunhas de um milagre. 
145 
 
As debilidades do argumento de Hume 

  Penso que há pelo menos duas grandes debilidades no argumento de Hume. A pri‐
meira é que Hume está errado ao sugerir que o único indício a favor de um milagre é o 
testemunho  dos  que  afirmam  tê‐lo  presenciado.  Temos  de  distinguir  entre  indícios 
directos e  indirectos a favor da afirmação de que um determinado acontecimento teve 
lugar.  Se  regresso  ao  meu  acampamento  e  descubro  que  a  geleira  está  danificada,  a 
comida  desapareceu  e  o  acampamento  está  em  desordem  geral,  uma  colega  campista 
poderá dizer‐me que viu um urso passar pelo acampamento.  O seu testemunho é um 
indício directo de que um urso esteve no meu acampamento. Mas a geleira danificada, a 
comida desaparecida e a confusão geral podem também ser indícios de que esteve um 
urso  no  meu acampamento.  Pois  são  factos que  se  pode explicar  melhor  (e  talvez até 
exclusivamente) pela hipótese de que um urso passou de facto pelo meu acampamento. 
Indícios deste último género são indícios indirectos e Hume não considerou a possibili‐
dade de os nossos indícios a favor de um milagre incluírem não só relatos de testemu‐
nhas (indícios directos) mas também muitos factos que se explica melhor pela hipótese 
de que ocorreu um milagre. Na verdade, pode dar‐se o caso de os indícios indirectos a 
favor de um milagre serem mais fortes do que os directos. 

  Temos  um  exemplo  na  narrativa  da  ressurreição  na  religião  cristã.  O  testemunho 
directo a favor deste acontecimento parece‐me muito frágil […] Mas os indícios indirectos 
são muito mais fortes. Temos o testemunho de que os discípulos estavam extremamente 
deprimidos  na  altura  da  crucifixão;  que  tinham  muito  pouca  fé  no  futuro;  e  que,  após 
algum tempo, esta depressão desapareceu e passaram a acreditar ter provas de que o seu 
senhor  ressuscitara  dos  mortos.  Ora,  nenhum  destes  alegados  factos  é  minimamente 
bizarro ou improvável, e temos portanto pouca justificação para não os aceitar com o tes‐
temunho que nos dão. Mas tendo feito isto, enfrentamos o problema de explicar os factos 
que aceitámos. O que fez os discípulos acreditarem, ao contrário da sua convicção ante‐
rior, e apesar de  se  sentirem deprimidos, que  Cristo  ressuscitara dos  mortos?  Evidente‐
mente, uma explicação é a de que ele efectivamente ressuscitou. E esta explicação dá tão 
bem conta dos factos que podemos no mínimo afirmar que os indícios indirectos a favor 
10
do milagre são muito mais fortes do que os directos.  

  A segunda objecção é que Hume seguramente sobrestimou o peso que se deve dar à 
experiência  anterior  a  favor  de  um  princípio  que  se  pensa  ser  uma  lei  da  natureza.  A 
experiência  de  uma  excepção  a  um  princípio  fortemente  sustentado  pela  experiência 
anterior levou frequentemente à revisão do princípio, de maneira a explicar a excepção. 
Mas  na esteira do argumento de  Hume, parece  mais razoável concluir que a excepção 
não  ocorreu  de  facto,  porquanto  entra  em  conflito  com  a  acumulação  de  experiência 
anterior que sustenta o princípio. Como C. D. Broad observa, 

146 
 
Evidentemente, considerou‐se que muitas proposições eram leis da natureza por causa de 
uma experiência invariável a seu favor, mas então observou‐se excepções, e por fim deixou 
de se ver estas proposições como leis da natureza. Mas a primeira excepção relatada esta‐
va, a quem quer que não a tivesse observado por si, exactamente na mesma posição que a 
11
narrativa de um milagre, se Hume tiver razão.  

  A  ideia  geral  é  que  na  aferição  que  Hume  faz  dos  indícios,  é  difícil  compreender 
como alguém poderia razoavelmente acreditar que ocorreu uma excepção a uma supos‐
ta lei da natureza, porquanto a suposta lei terá a seu favor uma experiência invariável. É 
evidente, contudo, que as excepções às supostas leis ocorrem e é também evidente que 
as pessoas razoáveis revêem em consonância os seus princípios científicos. É portanto 
evidente que ao esforçar‐se por atacar os milagres, Hume fez pender a balança tão for‐
temente a favor da experiência invariável que sustenta uma suposta lei da natureza que 
fez parecer irrazoável a prática razoável dos cientistas de rejeitar e rever supostas leis à 
luz de excepções. 
  Juntando estas duas objecções ao argumento de Hume, é justo afirmar que excluiu da 
sua explicação um tipo importante de indícios a favor de milagres (indícios indirectos) 
e, ao mesmo tempo, sobrestimou grosseiramente o peso que se deve dar à experiência 
anterior na sustentação de um princípio que se pensa ser uma lei da natureza. Continua 
a ser verdade, contudo, que uma pessoa razoável exigirá indícios bastante fortes antes 
de acreditar que uma lei da natureza foi violada. É fácil acreditar na pessoa que afirmou 
ter visto a água correr pelo outeiro abaixo, mas é bastante difícil acreditar que alguém 
viu a água correr pelo outeiro acima. 

Acreditar na intervenção divina 
  A nossa preocupação foi o argumento de Hume de que é sempre mais razoável acre‐
ditar que as testemunhas se enganaram do que acreditar na efectiva ocorrência de um 
acontecimento milagroso. O seu argumento, como vimos, diz respeito apenas à primei‐
ra parte da definição de milagre — que se trata de um acontecimento que viola uma lei 
da natureza. Temos de recordar, contudo, que para ser um milagre um acontecimento 
tem  não  só de  ser  uma violação  de  uma  lei  da  natureza, como  também  de  se dever à 
actividade de Deus. Como vimos, uma coisa é um acontecimento não se dever a qual‐
quer  causa  ou  força  natural  e  outra  completamente  diferente  é  dever‐se  a  uma  causa 
12
sobrenatural.  Em resposta a Hume, argumentámos que em determinadas circunstân‐
cias seria razoável acreditar que ocorreu um acontecimento que não se deve a qualquer 
força ou causa natural. Mas tem de se reconhecer que isto não significa que é razoável 
acreditar que ocorreu um milagre. Pois há ainda a questão de o acontecimento se dever 
ou não à actividade de Deus. Que razões, poder‐se‐ia perguntar, teríamos ou descobri‐
ríamos para pensar que o acontecimento em causa se deve à intervenção de Deus? 

147 
 
  Se temos já boas razões para acreditar que Deus existe e que exerce uma vigília provi‐
dencial sobre a sua criação, então podemos ter boas razões para pensar que uma viola‐
ção particular de uma lei da natureza se deve a Deus. Pois o próprio acontecimento e as 
circunstâncias  em  que  ocorre  podem  ser  exactamente  o  que  esperaríamos  no  caso  de 
Deus existir e de exercer uma vigília providencial sobre a sua criação. Na verdade, desde 
que  tenhamos  razões  para  acreditar  que  Deus  existe  e  vigia  providencialmente  a  sua 
criação, a ocorrência esporádica de milagres pode ser aquilo que seria razoável esperar. 
  Se não temos qualquer razão para acreditar que Deus existe, será muito mais difícil 
descobrir razões para pensar que uma violação particular de uma lei da natureza se deve 
à actividade de Deus. Pois teríamos então de ter razões para pensar que a violação é ela 
própria um indício a favor da existência de Deus. E se é o Deus teísta que nos preocupa, 
13
dificilmente parece possível que isto seja assim.  
  Neste capítulo ocupámo‐nos de três questões:  1)  Que condições um acontecimento 
tem de satisfazer para ser um milagre genuíno? 2) Poderá a mundividência que resulta 
do crescimento da ciência e da tecnologia tornar as pessoas de hoje incapazes de acredi‐
tar em  milagres?  3)  Será em circunstância alguma razoável acreditar  na ocorrência de 
um milagre genuíno? No que diz respeito à primeira questão, seguimos a definição de 
Hume em termos de a) ser uma violação de uma lei da natureza e b) dever‐se à activida‐
de directa de Deus. Em resposta à questão 2, embora admitindo que é hoje mais difícil 
atribuir algum acontecimento na natureza a uma causa sobrenatural, argumentei que a 
mundividência moderna não torna impossível a crença em milagres. No que diz respei‐
to a 3, ocupámo‐nos em grande medida do argumento clássico de Hume contra a razoa‐
bilidade da crença na ocorrência de qualquer acontecimento que viole uma lei da natu‐
reza. Concluímos que o seu argumento não é inteiramente bom porque ignora a possi‐
bilidade de haver indícios indirectos fortes a favor da ocorrência de um acontecimento e 
exagera a  importância da  uniformidade da experiência anterior como  indício contra a 
ocorrência de um acontecimento milagroso. Concluí que é perfeitamente possível haver 
circunstâncias em que seria razoável acreditar na ocorrência de uma violação de uma lei 
da  natureza.  Vimos,  contudo,  que  é  razoável  acreditar  que  só  é  razoável  acreditar  na 
ocorrência de um milagre genuíno se for razoável acreditar simultaneamente que ocor‐
reu uma violação de uma lei da natureza e que a violação se deve à intervenção directa 
de Deus. Se temos boas razões para acreditar que Deus existe, então, em determinadas 
circunstâncias  poderá  ser  razoável  acreditar  que  tal  violação  se  deve  à  actividade  de 
Deus.  Mas  na  ausência  de  boas  razões  a  favor  da  existência  de  Deus,  é  muitíssimo 
improvável que uma violação das leis da natureza, e as circunstâncias em que tal ocorre, 
nos dêem justificação para inferir que o Deus teísta existe e que causou essa violação. 

Revisão 
1. Por que razões pensa Bultmann que as pessoas de hoje não podem acreditar em mila‐
gres? Serão as suas razões convincentes? 

148 
 
2. Explique a noção humiana de milagre e indique algumas objecções que é possível levan‐
tar‐lhe. 
3. Qual  é  o  argumento  central  de  Hume  a  favor  da  perspectiva  de  que  nunca  é  razoável 
acreditar que ocorreu um milagre? 
4. Que debilidades se pode encontrar no argumento de Hume? 
5. Se se pode mostrar que ocorreu uma violação de uma lei da natureza, que outras razões 
temos de ter antes de podermos chamar «milagre» a essa violação? Fará diferença ter‐
mos ou não à partida boas razões para acreditar que Deus existe? 

Estudo complementar 
1. Alguns teólogos defendem que não se devia encarar os milagres como violações das leis 
da  natureza; ao  invés, devia‐se entendê‐los como acontecimentos em que alguém tem 
experiência da acção de Deus. Discuta esta perspectiva acerca dos milagres e compare‐a 
com a que se elaborou ao longo deste capítulo. 
2. Suponha que Hume tem razão ao pensar que na prática nunca é razoável acreditar que 
ocorreu  um  milagre.  Que  relevância  teria  esta  perspectiva  para  o  teísmo  tradicional? 
Teríamos  justificação  para  rejeitar  o  teísmo  ou  apenas  para  o  modificar  ligeiramente? 
Explique. 

Notas 
1. Rudolf Bultmann, Kerygma and Myth (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1961), p. 
5. Sublinhados meus. 
2. Ibid., p. 5. 
3. O  ensaio  «Sobre  os  Milagres»  aparece  como  Secção  X  do  Enquiry  Concerning  Human 
Understanding e está nas páginas 109‐131 da edição Selby‐Bigge dos Enquiries de Hume, 
2ª  ed.  (Londres:  Oxford  University  Press,  1902)  [Investigação  Sobre  o  Entendimento 
Humano,  trad.  João  Paulo  Monteiro,  Lisboa:  INCM,  2002).  A  explicação  que  darei, 
embora derivada do ensaio de Hume, não pretende abranger as questões problemáticas 
que surgiram nas diversas interpretações deste ensaio. Para uma explicação de algumas 
destas  questões,  ver  Antony  Flew,  Hume’s  Philosophy  of  Belief  (Londres:  Routledge  & 
Kegan Paul Lda., 1961), Capítulo VIII. 
4. Hume, Enquiries, p. 115. 
5. Ibid. 
6. R. F. Holland, «The Miraculous», American Philosophy Quarterly (1965), pp. 43‐51. 
7. Hume, Enquiries, pp. 114‐115. 
8. Ibid., pp. 127‐128. 
9. Para  uma  explicação  mais  detalhada  segundo  esta  orientação,  ver  R.  G.  Swinburne, 
«Miracles», The Philosophical Quarterly XVIII, n.º 73 (1968), pp. 320‐328. 
10. C. D. Broad, «Hume’s Theory of the Credibility of Miracles», reimpresso em Alexander 
Sesonske  e  Noel  Fleming,  orgs.,  Human  Understanding  (Belmont,  CA:  Wadsworth, 

149 
 
1965), pp. 91‐92. O ensaio de Broad foi publicado originalmente em Proceedings of the 
Aristotelian Society XVII (Londres, 1916‐1917), pp. 77‐94. 
11. Broad, «Hume’s Theory», p. 93. 
12. Um acontecimento pode violar uma lei da natureza não tendo qualquer causa natural e 
ainda  assim  não  ser  um  milagre  em  virtude  de  não  ter  uma  causa  divina.  Mas  se  um 
acontecimento  se  deve  apenas  à  actividade  directa  de  Deus,  então,  se  é  um  aconteci‐
mento abrangido por uma lei natural, violará também essa lei e será portanto um mila‐
gre. 
13. R. G. Swinburne argumentou que pode ser razoável inferir a existência de algum género 
de divindade se a violação ocorrer de maneiras e circunstâncias «fortemente análogas» 
àquelas em que os acontecimentos ocorrem devido a agentes humanos. Ver o seu «Mila‐
gres», The Philosophical Quarterly XVIII, nº 73 (1968), pp. 320‐328. 

150 
 
Capítulo 10 
Predestinação, presciência divina e 
liberdade humana 

Liberdade humana e predestinação divina 
  Enquanto  jovem  de  dezassete  anos  convertido  a  um  ramo  bastante  ortodoxo  do 
protestantismo,  o  primeiro  problema  teológico  que  me  preocupou  foi  a  questão  da 
predestinação e da liberdade humanas. Li algures a seguinte frase retirada do Credo de 
Westminster: «Deus, desde toda a eternidade […] ordenou livre e imutavelmente tudo 
o que acontece». Esta ideia atraía‐me em muitos sentidos. Parecia exprimir a majesta‐
de  e  poder  de  Deus  sobre  tudo  aquilo  que  criara.  Também  me  levou  a  adoptar  uma 
perspectiva optimista sobre os acontecimentos da minha vida que me pareciam maus 
ou infelizes, assim como das vidas alheias. Pois via‐os como se Deus os tivesse planea‐
do antes da criação do mundo — pelo que teriam de servir um objectivo benéfico que 
eu desconhecia. Pensava que também a ocorrência da minha própria conversão teria 
de estar predestinada, tal como a incapacidade de outros para se converterem teria de 
estar  igualmente  predestinada.  Mas  nesta  fase  das  minhas  reflexões,  esbarrei  numa 
dificuldade, que me fez pensar mais arduamente do que antes em toda a minha vida. 
Pois também acreditava ter escolhido Deus pelo meu livre‐arbítrio, e que cada um de 
nós é responsável por escolher ou rejeitar o caminho de Deus. Mas como poderia eu 
ser  responsável  por  uma  escolha  que  Deus  predestinara  desde  a  eternidade  que  eu 
faria naquele momento particular da minha vida? Como pode dar‐se o caso de aqueles 
que rejeitam o caminho de Deus o fazerem por livre‐arbítrio, se Deus, desde a eterni‐
dade,  os  destinou  a  rejeitar  este  caminho?  O  próprio  credo  de  Westminster  parece 
reconhecer  esta  dificuldade.  Pois  na  linha  seguinte  lê‐se:  «No  entanto  […]  por  este 
meio nenhuma violência se exerce sobre a vontade das criaturas». 
  Durante algum tempo aceitei simultaneamente a predestinação divina e a liberdade 
e responsabilidade humanas. Ainda que não conseguisse ver como ambas podiam ser 
verdadeiras, sentia que ambas podiam ser verdadeiras, pelo que as aceitei com base na 
fé. Mas quanto mais pensava no assunto mais me parecia que isso não podia ser. Isto é, 
cheguei à perspectiva, correcta ou incorrectamente, de que não só era incapaz de ver 
como  ambas  podiam  ser  verdadeiras  como  conseguia  ver  que  não  podiam  ambas  ser 
verdadeiras. Abandonei lentamente a crença de que Deus decretara desde a eternidade 
tudo o que acontece. Ao invés, adoptei a perspectiva de que Deus sabe desde a eterni‐

166 
 
dade tudo o que vem a acontecer, incluindo as nossas escolhas e acções livres, mas que 
essas escolhas e acções não estavam predestinadas. 
  O que eu não sabia então era que os tópicos da predestinação, da presciência divina 
e da liberdade humana tinham sido o centro da reflexão filosófica e teológica durante 
séculos. Neste capítulo, iremos contactar com as diversas perspectivas que resultaram 
destes séculos de esforço intelectual, alargando assim a nossa compreensão do concei‐
to teísta de Deus e de um dos problemas que lhe está associado. 

Escolha ou arbítrio livres 

  Talvez  seja  melhor  começar  pela  ideia  de  liberdade  humana.  Porquanto,  como 
veremos, esta ideia foi compreendida de duas maneiras muito diferentes, e a maneira 
que adoptarmos faz muita diferença para o tópico em causa. Segundo a primeira ideia, 
agir livremente consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer. Se o leitor quer sair do 
quarto mas o impedem, pela força, de o fazer, certamente concordamos que ficar no 
quarto  não  é  algo  que  o  leitor  faça  livremente.  Não  fica  no  quarto  de  livre  vontade 
porque isso não é o que escolheu ou quis fazer; trata‐se de algo que acontece contra a 
sua vontade. 
  Suponha‐se que aceitamos esta primeira ideia de liberdade humana, segundo a qual 
agir livremente consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer. O problema da pre‐
destinação divina e da liberdade humana acaba então por não ser um grande problema 
sequer. Por que não? Bem, para tomar o exemplo da minha conversão juvenil: esta foi 
livre se foi algo que quis fazer, que escolhi fazer e que não fiz contra a minha vontade. 
Suponhamos, como creio que seja verdade, que a minha conversão foi algo que escolhi 
e que quis fazer. Haverá alguma dificuldade em acreditar também que desde a eterni‐
dade Deus decretou que naquele momento particular da minha vida eu me converte‐
ria?  Não  parece.  Porquanto  Deus  podia  simplesmente  ter  predestinado  também  que 
naquele momento particular da minha vida eu quereria escolher Cristo, quereria seguir 
o caminho de Deus. Sendo assim, portanto, segundo a nossa primeira ideia de liberda‐
de humana, o meu acto de conversão foi um acto livre da minha parte e foi simulta‐
neamente  predestinado  por  Deus  desde  a  eternidade.  Na  nossa  primeira  ideia  de 
liberdade humana, portanto, não parece haver qualquer conflito real entre a doutrina 
da predestinação divina e a liberdade humana. 
  Será  correcta  a  primeira  ideia  de  liberdade  humana?  Uma  razão  para  pensar  que 
não foi dada pelo filósofo inglês John Locke (1632–1704). Locke pede que suponhamos 
que se leva um homem enquanto dorme para um quarto. A porta, que é a única saída 
do quarto, é então firmemente trancada a partir do exterior. O homem não sabe que a 
porta está trancada, não sabe, portanto, que não pode abandonar o quarto. Acorda, dá 
consigo no quarto, olha em volta, e repara que há pessoas amigáveis, com quem gosta‐
ria de conversar. Assim, decide ficar no quarto em vez de sair.1 

167 
 
  O  que  diremos  deste  homem?  Será  que  ficar  no  quarto  é  algo  que  fez  livremente? 
Bom, segundo a nossa primeira ideia de liberdade humana, parece que sim. Pois ficar 
no quarto é o que ele quer fazer. Pondera a hipótese de sair, sem saber que não o pode 
fazer,  mas  rejeita‐a  porque  prefere  ficar  no  quarto  e  iniciar  uma  conversa  amigável. 
Mas  poderemos  mesmo  acreditar  que  ficar  no  quarto  é  algo  que  ele  faz  livremente? 
Afinal, é a única coisa que pode fazer. O homem fica no quarto por necessidade, dado 
que  não  tem  o  poder  de  sair  do  quarto.  Qual  é  a  diferença  entre  este  homem  e  um 
segundo, colocado de igual modo num quarto, que quer sair mas, sendo incapaz de o 
fazer, também permanece no quarto por necessidade? Estará a diferença no facto de o 
primeiro  homem  fazer  algo  livremente,  ao  passo  que  o  segundo  não?  Ou  dar‐se‐á 
antes o caso de o primeiro homem ter apenas mais sorte do que o segundo? Cada um 
faz o que faz (ficar na sala) por necessidade, e não livremente, mas o primeiro homem 
tem mais sorte na medida em que aquilo que tem de fazer é exactamente aquilo que 
quer fazer. Locke conclui que o primeiro homem não é mais livre do que o segundo, 
apenas  que  tem  mais  sorte.  Pois  a  liberdade,  argumenta  Locke,  consiste  em  mais  do 
que apenas fazer o que se quer ou escolhe; tem também de ser o poder de agir de outra 
maneira. E a razão por que nenhum dos homens ficou livremente no quarto é a de não 
poderem agir de outra maneira, abandonando a sala. 

O poder de agir de outro modo 

  A segunda ideia de liberdade humana é a de que só fazemos algo livremente se, no 
momento imediatamente anterior à acção, tivermos o poder de agir de outra maneira. 
E penso que reflectindo um pouco podemos ver que a segunda ideia é mais adequada 
do  que  a  primeira.  Considere‐se,  por  exemplo,  o  envelhecimento.  Envelhecer  é  algo 
que  fazemos  por  necessidade  e  não  livremente.  O  simples  facto  de  alguém  preferir 
envelhecer, querer envelhecer, não basta para que seja verdade que a pessoa envelhece 
livremente; quando muito, podemos dizer que envelhece graciosamente. Suponha‐se, 
todavia, que se descobre e disponibiliza um processo pelo qual cada um de nós tem o 
poder de não envelhecer no sentido da decadência física. Embora o tempo continue a 
passar, o processo de envelhecimento nos nossos corpos pode agora ser enormemente 
retardado.  Nestas  condições  podia  ser  verdade  alguém  envelhecer  livremente,  dado 
que  não  envelheceria  por  necessidade,  estando  em  seu  poder  agir  de  outra  maneira. 
Tem  de  se  abandonar  a  primeira  ideia  de  liberdade  a  favor  da  segunda,  pois  é  mais 
adequada. 
  É a segunda ideia de liberdade que parece entrar em conflito com a ideia da predes‐
tinação  divina.  Porquanto  se  Deus  decretou  desde  a  eternidade  que  me  converterei 
num determinado momento, num dia em particular, como pode então estar em meu 
poder, imediatamente antes desse momento, abster‐me de me converter? Atribuir‐me 
tal poder é atribuir‐me o poder de evitar que aconteça algo que Deus decretou desde a 
eternidade que iria acontecer. Seguramente, se Deus decretou desde a eternidade que 

168 
 
algo irá acontecer, não pode estar em poder de uma criatura qualquer impedir que isso 
aconteça.  Portanto,  se  Deus  efectivamente  decretou  desde  a  eternidade  tudo  o  que 
acontece, então nada acontece que possamos impedir de acontecer. Assim, como tudo 
o que faço foi predestinado por Deus, nunca está em meu poder agir de outra maneira. 
E se nunca está em meu poder agir de outra maneira, então nada faço livremente. A 
liberdade humana e a predestinação divina, ao que parece, são inconsistentes entre si. 
  Se  o  argumento  anterior  for  bom,  e  inclino‐me  a  pensar  que  é,  o  teísta  tem  de 
abandonar a crença na liberdade humana ou de abandonar a doutrina da predestina‐
ção divina. E parece razoável que, entre as duas, se prescinda da doutrina da predesti‐
nação.  Que  Deus  tenha  o  controlo  último  sobre  o  destino  da  sua  criação  e  que  Deus 
saiba de antemão tudo o que irá acontecer, são ideias que preservam a majestade divi‐
na e garantem um certo grau de optimismo humano, sem exigir que Deus tenha decre‐
tado a ocorrência de tudo o que efectivamente acontece. E pelo menos à primeira vista 
não  parece  que  a  doutrina  da  presciência  divina  entre  em  conflito  com  a  liberdade 
humana. Pelo que talvez seja razoável rejeitar a doutrina da predestinação divina, pre‐
servando a crença na liberdade humana e a doutrina da presciência divina. 

O conflito entre a liberdade humana e a presciência divina 
  Mas  se  Deus  não  decretou  desde  a  eternidade  tudo  o  que  acontecerá,  como  lhe  é 
possível  ter  conhecimento,  desde  a  eternidade,  de  tudo  o  que  acontece?  Será  que  a 
doutrina  da  presciência  divina  não  pressupõe  a  doutrina  da  predestinação  divina? 
Decretar  que  algo  vai  acontecer  num  determinado  momento  seria  uma  maneira  de 
Deus saber de antemão que isso acontecerá. Mas não é a única maneira de Deus poder 
ter tido tal conhecimento. Temos telescópios, por exemplo, que nos permitem saber o 
que acontece em lugares distantes, porque através do telescópio podemos vê‐los acon‐
tecer. Imagine‐se que Deus tem algo semelhante a um telescópio temporal, um teles‐
cópio que permite ver o que acontece em tempos distantes. Girando as lentes foca‐se 
uma determinada época, digamos, à distância de mil anos no futuro, e vê‐se os aconte‐
cimentos que ocorrem nessa época. Com esta imagem, podemos explicar a presciência 
de  Deus  sem  supor  que  o  seu  conhecimento  deriva  de  ter  anteriormente  decretado 
que  os  acontecimentos  em  causa  ocorrerão.  Deus  conhece  de  antemão  os  aconteci‐
mentos que ocorrerão antevendo‐os e não predestinando‐os. A doutrina da presciência 
divina,  portanto,  não  pressupõe  a  doutrina  da  predestinação  divina.  E,  como  vimos, 
não  parece  haver  qualquer  conflito  entre  a  presciência  divina  e  a  liberdade  humana. 
Pois  embora  a  predestinação  de  algo  por  Deus  imponha  a  ocorrência  desse  algo,  a 
presciência que Deus tem de algo não impõe a sua ocorrência. Não é por Deus saber as 
coisas  de  antemão  que  elas  ocorrem;  ao  invés,  é  por  elas  ocorrerem  que  Deus  tem 
delas presciência. 
  Infelizmente, as coisas não são assim tão simples. Há um problema grave acerca da 
presciência divina e da liberdade humana. E embora talvez não sejamos capazes de o 
169 
 
resolver,  será  instrutivo  tentar  compreendê‐lo  e  ver  que  diversas  «soluções»  foram 
apresentadas por importantes filósofos e teólogos. Talvez a melhor maneira de come‐
çar  seja  apresentar  o  problema  na  forma  de  um  argumento  —  um  argumento  que 
começa  com  a  doutrina  da  presciência  divina  e  termina  com  a  negação  da  liberdade 
humana. Quando compreendermos as principais premissas do argumento, bem como 
as  razões  dadas  a  seu  favor,  teremos  compreendido  um  dos  maiores  problemas  com 
que os teólogos se têm defrontado desde há quase dois mil anos: o problema de recon‐
ciliar a doutrina da presciência divina com a crença na liberdade humana. 

1. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos. 
2. Se  Deus  sabe  antes  de  nascermos  tudo  o  que  faremos,  então  nunca  está  em  nosso 
poder agir de outra maneira. 
3. Se nunca está em nosso poder agir de outra maneira, então não há liberdade humana. 

Logo, 

4. Não há liberdade humana. 

  A primeira premissa do argumento exprime uma aparente consequência da doutri‐
na  da  presciência  divina.  A  terceira  premissa  afirma  apenas  uma  consequência  da 
segunda ideia de liberdade, que já considerámos. Segundo essa ideia, só fazemos algo 
livremente se,  no  momento  imediatamente  antes,  está  em  nosso  poder  agir de  outra 
maneira. Assim, concluímos que o acto de ficar no quarto só é livre se, no momento da 
decisão  de  ficar  no  quarto,  a  pessoa  tem  como  agir  de  outra  maneira  — isto  é,  pode 
abandonar o quarto. Como a porta foi firmemente trancada a partir do exterior, con‐
cluímos que a pessoa não permaneceu livremente no quarto. A premissa 3 apenas reti‐
ra a conclusão lógica a partir desta segunda ideia de liberdade: se nunca está no nosso 
poder (no poder de qualquer ser humano) agir de outra maneira, então não há liber‐
dade humana. Como o argumento é claramente válido, a questão pendente diz respei‐
to à premissa 2: se Deus sabe antes de nascermos tudo o que vamos fazer, então nunca 
está em nosso poder agir de outra maneira. Por que devemos aceitar esta premissa? É 
evidente que se colocássemos a palavra predestina em lugar da palavra sabe a afirma‐
ção seria verdadeira. Mas o propósito de abandonar a predestinação divina a favor da 
presciência divina foi que embora 

a) Se Deus predestinar antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está em nosso 
poder agir de outra maneira. 

pareça seguramente verdadeira, não parece verdade que 

b) Se  Deus  souber  antes  de  nascermos  tudo  o  que  faremos,  então  nunca  está  em  nosso 
poder agir de outra maneira. 

170 
 
  Como a premissa 2 é a mesma que b, por que razão devemos aceitar a sua verdade? 
Quais são as razões pelas quais o defensor deste argumento espera convencer‐nos de 
que 2 é verdadeira? 
  A  premissa  2  é  sustentada  por  um  raciocínio  complexo,  pelo  que  será  melhor 
desenvolvê‐lo através de um exemplo. Suponhamos que são 14 horas numa certa Ter‐
ça‐feira  e  que  o  leitor  tem  uma  aula  de  filosofia  da  religião  que  começa  às  14:30.  Os 
seus  amigos  pedem‐lhe  que  vá  com  eles  ao  cinema,  à  tarde  mas,  após  considerar  a 
proposta,  o  leitor  consegue  de  alguma  maneira  resistir  à  tentação  e  decide  assistir  à 
aula em vez e ir ao cinema. São agora 14:45 e o professor discorre acerca da presciência 
e do livre‐arbítrio. Algo aborrecido, o leitor deseja agora ter ido ver o filme em vez de 
ter  vindo  assistir  à  aula.  Apercebe‐se,  contudo,  que  apesar  de  lamentar  agora  a  sua 
decisão, nada pode fazer. Claro que pode levantar‐se e apressar‐se para ver o resto do 
filme. Mas não pode agora, às 14:45, fazer que não tivesse ido à aula às 14:30, não pode 
agora fazer com que na verdade tenha ido ver o filme, ao invés. Pode lamentar o que 
fez e decidir nunca cometer novamente o mesmo erro mas, quer queira quer não, está 
agora a braços com o facto de ter ido à aula às 14:30, em vez de ter ido ver o filme. Está 
a braços com este facto porque é um facto acerca do passado e o passado não está em 
nosso poder. A nossa incapacidade de alterar o passado é captada pelo coloquialismo 
«Não  adianta  chorar  sobre  o  leite  derramado».  Até  certo  ponto,  contudo,  o  futuro 
parece  aberto,  maleável;  podemos  fazer  que  seja  de  uma  maneira  ou  outra.  O  leitor 
acredita que, por exemplo, na Quinta‐feira, quando houver outra aula, estará em seu 
poder ir à aula ou, em vez disso, ir a um cinema. Mas o passado não está aberto, está 
fechado, sólido como granito, e não está de modo algum em seu poder alterá‐lo. Como 
Aristóteles observou, 

  Ninguém delibera acerca do passado mas apenas acerca do futuro e do que pode ser 
de outra maneira, mas o passado não pode deixar de ter ocorrido; portanto, tem razão 
Agathon  ao  afirmar:  «Pois  só  isto  está  ausente,  mesmo  em Deus:  tornar  inocorridas  as 
coisas que já ocorreram».2 

  Há  evidentemente  uma  grande  quantidade  de  factos  acerca  do  passado  relativa‐
mente  às  14:45  de  Terça‐feira.  Além  do  facto  de  que  às  14:30  o  leitor  foi  à  aula,  há  o 
facto de ter nascido, o facto de se ter tornado estudante universitário, o facto de terem 
ocorrido duas guerras mundiais no século XX — na verdade, todos os factos da histó‐
ria anterior. E o leitor agora sabe que às 14:45 não está em seu poder alterar quaisquer 
destes factos. Nada do que possa fazer agora é tal que, caso o fizesse, qualquer destes 
factos acerca do passado deixaria de ser um facto acerca do passado. Ponderando na 
sua impotência relativamente ao passado, o leitor repara que o professor escreveu no 
quadro outro facto acerca do passado: 

F. Antes de vocês terem nascido Deus sabia que viriam à aula às 14:30 esta Terça‐feira. 

171 
 
  Se Deus existe e a doutrina da presciência divina é verdadeira, F é seguramente um 
facto acerca do passado, e foi um facto acerca do passado em todos os momentos da 
vida do leitor. É um facto acerca do passado agora, às 14:45 de Terça‐feira; era um facto 
acerca do passado ontem; e será um facto acerca do passado amanhã. Nesse momento, 
o professor volta‐se e pergunta: «Estaria em vosso poder às 14:00 terem‐se baldado à 
aula de hoje?» O leitor pensa seguramente que sim — na verdade, lamenta agora não 
ter exercido esse poder — pelo que o professor escreve no quadro: 

A. Estava em vosso poder às 14:00 fazer outra coisa que não vir à aula às 14:30 esta Terça‐
feira. 

  Mas agora pensemos um pouco em F e em A. Às 14:00, F é um facto acerca do pas‐
sado. Mas de acordo com A, estava em seu poder às 14:00 fazer algo (por exemplo, ir 
ao cinema) tal que se o fizesse, algo que é um facto acerca do passado (F) não seria um 
facto acerca do passado. Pois, como é evidente, se o leitor tivesse exercido o seu poder 
de  se  baldar  à  aula  às  14:30,  aquilo  que  Deus  sabia  antes  de  o  leitor  ter  nascido  não 
seria aquilo que efectivamente sabe — que o leitor iria à aula nessa Terça‐feira — mas 
algo muito diferente: que faria outra coisa. E isto por sua vez significa que se F é um 
facto acerca do passado — como seguramente é, no caso de a doutrina da presciência 
divina ser verdadeira — e se A é verdadeira, então estava em seu poder às 14:00 dessa 
Terça‐feira alterar o passado; estava em seu poder fazer algo (ir ao cinema) tal que se o 
fizesse, o que é um facto acerca do passado (F) não seria um facto acerca do passado. 
Se, portanto, o passado nunca está em seu poder, não pode dar‐se o caso de F ser um 
facto acerca do passado e estar também em seu poder às 14:00 baldar‐se à aula às 14:30 
dessa Terça‐feira. 
  Acabámos  de ver que, dada a doutrina da presciência divina e a afirmação de que 
está  em  nosso  poder  ter  feito  algo  que  não  fizemos,  segue‐se  que  o  passado  está  em 
nosso poder. Pois dada a doutrina da presciência divina segue‐se que antes de o leitor 
ter nascido Deus sabia que o leitor iria à aula às 14:30 esta Terça‐feira. E se agora afir‐
mamos que às 14:00 estava em nosso poder ter feito outra coisa, estamos a pressupor 
que às 14:00 estava em seu poder agir de tal modo que antes de ter nascido Deus não 
sabia  que  o  leitor  iria  assistir  à  aula  às  14:30.  Mas  tínhamos  concluído  que  os  factos 
acerca do passado não estão em nosso poder. Se mantivermos esta convicção — como 
parece que temos de fazer — então temos de concluir que se Deus não sabia antes de o 
leitor nascer que iria à aula às 14:30 (esta Terça‐feira), então não estava em seu poder 
às  14:00  agir  de  outra  maneira.  E,  generalizando  a  partir  deste  exemplo  particular, 
podemos concluir que se o passado nunca está em nosso poder, então, se Deus sabe 
antes  de  nascermos  tudo  o  que  faremos,  nunca  está  em  nosso  poder  agir  de  outra 
maneira. 
  Abrimos  caminho  a  custo,  através  do  raciocínio  complexo  que  se  pode  usar  para 
sustentar a premissa 2 do argumento concebido para defender o conflito entre a pres‐

172 
 
ciência divina e a liberdade humana. Essa premissa, como o leitor se recorda, afirma 
que se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está em nosso 
poder agir de outra maneira. Na sua formulação mais simples, o raciocínio apresenta‐
do  a  favor  da  premissa  2  consiste  em  argumentar  que  se  2  não  é  verdadeira,  então 
temos poder sobre o passado. Mas como o passado não está em nosso poder, 2 tem de 
ser verdadeira. De 

I. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos;  

II. Por vezes está em nosso poder agir de outra maneira, 

segue‐se, de acordo com esse raciocínio, que por vezes está em nosso poder determi‐
nar o passado. Como nunca está em nosso poder determinar o passado, as premissas I 
e II não podem ambas ser verdadeiras. Portanto, se I é verdadeira, então II é falsa. Mas 
afirmar  que  I  é  falsa  é  apenas  afirmar  que  nunca  está  em  nosso  poder  agir  de  outra 
maneira.  Assim,  se  I  é  verdadeira,  então  nunca  está  em  nosso  poder  agir  de  outra 
maneira — e isto é exactamente o que afirma a premissa 2. 

Algumas soluções para o conflito 
  Estivemos a ver o que talvez seja o argumento mais forte a favor da perspectiva de 
que  a  doutrina  da  presciência  divina,  tal  como  a  doutrina  da  predestinação  divina, 
entra  fundamentalmente  em  conflito  com  a  crença  na  liberdade  humana,  um  argu‐
mento  que  perturbou  os  filósofos  e  os  teólogos  durante  séculos.  Chegou  a  altura  de 
considerar as diversas «soluções» que foram apresentadas e avaliar os seus pontos for‐
tes e fracos. 
  O próprio argumento limita o número de soluções possíveis às quatro seguintes: 

I. Rejeição  da  premissa  3:  nega‐se  que  só  façamos  algo  livremente  no  caso  de  estar  em 
nosso poder agir de outra maneira. 
II. Rejeição  da  premissa  2:  nega‐se  que  a  presciência  divina  implique  que  nunca  está  em 
nosso poder agir de outra maneira.  
III. Rejeição  da  premissa  1:  nega‐se  que  Deus  tenha  presciência  dos  acontecimentos  do 
futuro.  
IV. Aceitação da conclusão 4: nega‐se que tenhamos liberdade. 

  As soluções III e IV são «radicais», pois redundam na negação quer da doutrina da 
presciência  divina  quer  da  liberdade  humana.  Nenhum  teísta  propõe  seriamente  a 
solução IV, pelo que podemos pô‐la de parte tranquilamente. A solução III, contudo, 
como  veremos,  é  a  solução  preferida  por  diversos  teólogos  importantes,  incluindo 

173 
 
Boécio e S. Tomás de Aquino. Consideremos, portanto, as primeiras três soluções para 
este problema intrigante. 

A definição de liberdade 

  A primeira solução rejeita a premissa 3 do argumento, alegando que exprime uma 
ideia errada da liberdade humana. Como vimos, há duas ideias diferentes de liberdade. 
Segundo  a  primeira,  agir  livremente  consiste  apenas  em  fazer  aquilo  que  se  quer  ou 
escolhe  fazer;  a  liberdade  não  exige  o  poder  de  agir  de  outra  maneira.  Quem  aceita 
esta  ideia  de  liberdade  humana  não  vê,  e  com  razão,  qualquer  conflito  entre  ela  e  a 
doutrina da predestinação divina. Uma solução semelhante foi desenvolvida mais ple‐
namente  pelo  teólogo  americano  Jonathan  Edwards  (1703–1758).  A  adequação  desta 
solução depende inteiramente de se poder ou não defender, contra as críticas dos filó‐
sofos, a sua ideia acerca daquilo em que consiste a liberdade humana.3 Contudo, tendo 
rejeitado esta ideia de liberdade em favor da segunda ideia — a ideia de que só faze‐
mos algo livremente se estiver em nosso poder agir de outra maneira — não insistire‐
mos nesta solução para o problema da presciência divina e da liberdade humana. Pois 
dada a segunda ideia de liberdade humana, tem de se aceitar a verdade da premissa 3. 

Poder sobre o passado 

  A segunda solução principal rejeita a premissa 2, negando assim que a presciência 
divina  implique  que  nunca  está  em  nosso  poder  agir  de  outra  maneira.  Na  verdade, 
esta solução, se for boa, não mostra que 2 é falsa, mas antes que o raciocínio em que se 
procurou sustentá‐la não é bom. Que raciocínio é esse? Bom, em termos mais simples: 
se 2 não é verdadeira, então está em nosso poder determinar o passado — factos acer‐
ca  do  que  Deus  sabia  antes  de  termos  sequer  nascido.  Mas,  prossegue  o  raciocínio, 
nunca  se  dá  o  caso  de  estar  em  poder  de  alguém  determinar  o  passado;  portanto,  2 
tem de ser verdadeira. A segunda solução põe em causa a afirmação de que nunca está 
em nosso poder determinar o passado, argumentando que temos de facto o poder de 
determinar alguns factos acerca do passado, inclusive factos acerca do que Deus sabia 
antes  de  termos  sequer  nascido.  Esta  solução  foi  sugerida  pelo  influente  filósofo  do 
século XIV, Guilherme de Occam (1285–1349). 
  A ideia básica em que assenta a segunda solução envolve uma distinção entre dois 
tipos de factos acerca do passado: factos que são apenas acerca do passado e factos que 
não são apenas acerca do passado. Para ilustrar esta distinção, consideremos dois fac‐
tos acerca do passado, factos acerca do ano de 1941: 

f1. Em 1941 o Japão ataca Pearl Harbor. 
f2. Em 1941 inicia‐se uma guerra entre o Japão e os Estados Unidos com a duração de qua‐
tro anos. 

174 
 
  Relativamente ao século XXI, f1 e f2 são ambas apenas acerca do passado. Mas supo‐
nha‐se que consideramos o ano de 1943. Relativamente a 1943, f1 é um facto que é ape‐
nas acerca do passado, mas f2 não é apenas acerca do passado. É um facto acerca do 
passado relativamente a 1943, pois f2 é, em parte, um facto acerca de 1941, e 1941 está 
no passado de 1943. Mas f2, ao contrário de f1, implica um determinado facto acerca de 
1944 — nomeadamente, 

f3. Em 1944 o Japão e os Estados Unidos estão em guerra. 

  Como f2 implica f3, um facto acerca do futuro relativamente a 1943, podemos afir‐
mar que, relativamente a 1943, f2 é um facto acerca do passado, mas não é apenas um 
facto acerca do passado. Temos então três factos, f1, f2 e f3, acerca dos quais podemos 
afirmar, relativamente ao século XXI, que são factos apenas acerca do passado. Relati‐
vamente a 1943, contudo, só f1 é apenas acerca do passado; f2 é acerca do passado mas 
não apenas acerca do passado, e f3 não é sequer acerca do passado. 
  Tendo  ilustrado  a  distinção  entre  um  facto  que,  relativamente  a  um  determinado 
momento t, é apenas acerca do passado e um facto que relativamente a t não é apenas 
acerca do passado, estamos agora em condições de ver a sua importância. Pense‐se em 
1943 e nos grupos de pessoas que estavam então no poder, tanto no Japão como nos 
Estados Unidos. Não estava em poder de qualquer destes grupos fazer coisa alguma a 
respeito de f1. Ambos os grupos podiam lamentar as acções que tornaram f1 um facto 
acerca  do  passado.  Mas  é  abundantemente  claro  que,  entre  todas  as  coisas  que  em 
1943 estes grupos podiam fazer, nenhuma delas é tal que, caso a tivessem feito, f1 não 
seria um facto acerca do passado. Não faz qualquer sentido olhar para trás, para 1943, e 
afirmar que se ao menos um destes grupos tivesse feito na altura isto e aquilo, então f1 
nunca seria um facto acerca do passado. Não faz sentido precisamente porque, relati‐
vamente a 1943, f1 é um facto apenas acerca do passado. Nada que alguém pudesse ter 
feito em 1943 teria alterado o facto de que em 1941 o Japão atacou Pearl Harbor. 
  Mas e quanto a f2, o facto de em 1941 se ter iniciado uma guerra entre o Japão e os 
Estados Unidos com a duração de quatro anos, o que podemos dizer? Sabemos que em 
1943 nem um nem outro grupo fez coisa alguma que alterasse este facto acerca de 1941. 
A questão, contudo, é se houve ou não coisas que não se fez em 1943, coisas que, não 
obstante, estavam em poder de um ou outro grupo, ou ambos, de tal maneira que, se 
as fizessem, um determinado facto acerca de 1941, f2, não seria sequer um facto. Talvez 
não tenha havido. Talvez o ímpeto da guerra fosse tal que nenhum dos grupos tinha o 
poder de lhe pôr fim em 1943. Maioritariamente, suponho, pensamos de outra manei‐
ra. Pensamos que provavelmente houve determinadas acções que não se realizou mas 
que um ou outro grupo podia ter realizado em 1943, acções que, se tivessem sido reali‐
zadas, teriam posto fim à guerra em 1943. Se aquilo que pensamos ser verdade o é de 
facto,  então  estava  em  poder  de  um  ou  mais  grupos,  em  1943,  determinar  um  facto 
acerca do passado; estava em seu poder em 1943 fazer algo tal que, se o tivessem feito, 

175 
 
um  determinado  facto  acerca  de  1941,  f2,  não  seria  um  facto  acerca  de  1941.  A  razão 
fundamental  por  que,  em  1943,  f2  pode  ter  estado  em  poder  destes  grupos,  ao  passo 
que f1 seguramente não estava, é que, ao contrário de f1, f2 não é apenas acerca do pas‐
sado, no que diz respeito a 1943, porquanto f2 implica um determinado facto acerca de 
1944 — que em 1944, o Japão e os Estados Unidos estão em guerra (f3). 
  O  raciocínio  anterior  sugere  que  a  nossa  convicção  de  que  não  podemos  alterar  o 
passado é seguramente verdadeira, no que diz respeito a factos que são apenas acerca 
do passado. Os factos que são acerca do passado, mas não apenas acerca do passado, 
contudo, podem não estar além do nosso poder de afectar. E Occam viu que os factos 
acerca da presciência divina em que se baseia a negação da liberdade humana são fac‐
tos acerca do passado, mas não apenas acerca do passado. Considere‐se novamente o 
facto  de  que,  antes  de  o  leitor  nascer,  Deus  sabia  que  iria  estar  na  aula  às  14:30  esta 
Terça‐feira. Queremos acreditar que às 14:00 estava em seu poder agir de outra manei‐
ra,  baldando‐se  à  aula  das  14:30.  Atribuir‐lhe  este  poder  implica  que  estava  em  seu 
poder às 14:00 afectar um facto acerca do passado, o facto de que antes de o leitor ter 
nascido Deus sabia que o leitor ia estar na aula às 14:30. Este facto acerca do passado, 
contudo, não é, relativamente às 14:00, um facto apenas acerca do passado. Pois impli‐
ca relativamente às 14:00 um facto acerca do futuro — nomeadamente, que às 14:30 o 
leitor  está  na  aula.  E  a  solução  que  estamos  explorando  defende  que  estava  em  seu 
poder alterar esse facto acerca do passado, se é que às 14:00 estava em seu poder, como 
acreditamos  que  estava,  ter  ido  ao  cinema  em  vez  de  ir  à  aula.  Pois  o  leitor  tinha  o 
poder de fazer algo tal que, caso o fizesse, algo que até então era um facto acerca de 
um momento anterior ao seu nascimento não seria sequer um facto; ao invés, seria um 
facto que, antes de o leitor nascer, Deus sabia que o leitor não estaria na aula às 14:30. 
Como é óbvio, haverá ainda muitos factos acerca da presciência divina que não estão 
em poder do leitor: todos aqueles factos, por exemplo, que relativamente ao momento 
em que se encontra, são factos apenas acerca do passado. O próprio facto que poderia 
estar em seu poder às 14:00 — o facto de que, antes de ter nascido, Deus sabia que o 
leitor estaria na aula às 14:30 — é, às 14:45, enquanto está sentado na aula a lamentar 
não  ter  ido  ao  cinema,  um  facto  que  não  pode  então  (às  14:45)  estar  em  seu  poder, 
porque às 14:45 é um facto apenas acerca do passado. E há muitos factos envolvidos na 
presciência  divina,  que  não  são  apenas  acerca  do  passado,  mas  que,  não  obstante,  o 
leitor não pode alterar, pois os factos que pressupõem acerca do futuro ultrapassam o 
seu  poder. Por  exemplo,  Deus  sabia  antes  de  o  leitor  nascer  que  o  Sol  nasceria  ama‐
nhã. Este facto acerca do passado não é apenas acerca do passado porque implica um 
facto acerca de amanhã, que o Sol nascerá. Não obstante, é um facto que o leitor não 
pode alterar. 
  Estivemos a considerar a segunda solução para o problema da presciência divina e 
da  liberdade  humana.  Como  vimos,  esta  solução  consiste  em  negar  o  raciocínio  que 
sustenta  a  segunda  premissa  do  argumento  pelo  qual  se  desenvolveu  o  problema,  a 
premissa que afirma que se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos, nunca 
176 
 
está  em  nosso  poder  agir  de  outra  maneira.  Segundo  o  raciocínio  que  sustenta  esta 
premissa, dada a presciência divina, só está em nosso poder agir de outra maneira se 
está  em  nosso  poder  alterar  algum  facto  acerca  do  passado,  um  facto  acerca  do  que 
Deus sabia antes de termos nascido. A solução que estivemos a considerar aceita este 
ponto  do  raciocínio  apresentado  a  favor  da  premissa  2,  mas  nega  o  seguinte:  que  o 
passado nunca está em nosso poder. Daqui se argumenta que alguns factos acerca do 
passado não são apenas acerca do passado, que alguns desses factos podem estar em 
nosso poder, e que os factos acerca da presciência divina usados no raciocínio que sus‐
tenta a premissa 2 são disso exemplos. Assim, de acordo com a segunda solução prin‐
cipal, não temos boas razões para aceitar a segunda premissa do argumento que parte 
da presciência divina para concluir a negação da liberdade humana. E sem tais razões, 
tem ainda de se mostrar uma dificuldade real em defender simultaneamente que Deus 
sabe antes de nascermos tudo o que faremos e que por vezes temos o poder de agir de 
outra maneira. 

A negação da presciência 

  A terceira e última solução que consideraremos rejeita a premissa 1 do argumento, 
negando consequentemente que Deus tenha presciência dos acontecimentos do futu‐
ro.  Mais  atrás  chamei  «radical»  a  esta  solução  porquanto,  ao  contrário  das  primeiras 
duas, não procura reconciliar a presciência divina com a liberdade humana, parecendo 
antes  negar  que  haja  sequer  presciência.  Todavia,  como  veremos,  esta  foi  a  solução 
preferida por muitos teólogos importantes na tradição religiosa ocidental. 
  A terceira solução tem duas formas diferentes. A primeira é que as afirmações acer‐
ca  de  determinados  acontecimentos  do  futuro,  que  poderão  ocorrer  ou  não,  não  são 
verdadeiras nem falsas; tornam‐se verdadeiras (ou falsas) quando os acontecimentos a 
que  se referem  ocorrem  efectivamente  (ou não  ocorrem).  Por  exemplo,  agora,  a  afir‐
mação «Você assistirá a uma aula numa determinada hora, num determinado dia da 
próxima  semana»  não  é,  na  perspectiva  em  causa,  verdadeira  nem  falsa.  Na  próxima 
semana, naquela hora daquele dia em particular, a afirmação tornar‐se‐á verdadeira se 
o leitor for à aula e falsa se não for. Desta perspectiva a respeito das afirmações sobre o 
futuro, normalmente atribuída a Aristóteles, resulta que Deus não sabe agora se o lei‐
tor vai ou não assistir à aula naquela hora da próxima semana, que não tem presciên‐
cia de tais acontecimentos do futuro. Porquanto só há conhecimento acerca do que é 
verdade  e,  se  as  afirmações  acerca  do  futuro  não  são  verdadeiras  nem  falsas,  não 
podem ser objecto de conhecimento. 
  A forma mais amplamente aceite da terceira solução assenta na ideia de que Deus é 
«eterno» no segundo dos dois sentidos que apresentámos no Capítulo 1. Aí vimos que 
«ser eterno», no primeiro sentido do termo, é ter duração infinita em ambas as direc‐
ções temporais. No segundo sentido, contudo, «ser eterno» é existir fora do tempo e, 
portanto, independentemente da lei fundamental do tempo, segundo a qual a existên‐

177 
 
cia de tudo o que está no tempo, mesmo um ser perpétuo, divide‐se em partes tempo‐
rais. Como escreveu Boécio, 

Pois tudo o que vive no tempo vive no presente, procedendo do passado para o futuro, e 
no tempo nada é constituído de tal modo que possa abarcar de uma só vez todo o âmbi‐
to da sua vida. Não chegou ainda ao amanhã e já perdeu o ontem; mesmo a vida deste 
dia é vivida em cada momento transitório, passageiro.4 

  Por  contraste  às  coisas  no  tempo,  concebe‐se  que  a  vida  infinita,  interminável,  de 
Deus lhe é inteiramente presente, toda de uma vez. Como tal, Deus tem de estar com‐
pletamente fora do tempo. Pois, como acabámos de ver, a vida de tudo o que está no 
tempo  divide‐se  em  partes  temporais,  sendo  que  num  dado  momento  apenas  uma 
destas partes temporais pode estar presente a esse ser. 
  A ideia de que Deus é eterno no sentido de estar fora do tempo é directamente rele‐
vante para a doutrina da presciência divina. Porquanto a noção de presciência sugere 
naturalmente um ser localizado num dado momento no tempo, que sabe algo que irá 
ocorrer  noutro  momento  posterior  no  tempo.  Assim,  dizemos  que  Deus  sabe  num 
momento antes de o leitor nascer o que o leitor faria às 14:30 desta Terça‐feira. Mas se 
Deus está fora do tempo, então não podemos afirmar que tem presciência dos aconte‐
cimentos  do  futuro,  se  com  isso  pressupomos  que  Deus  está  localizado  num  dado 
momento do tempo e que nesse momento sabe o que irá ocorrer num momento poste‐
rior. Segundo Boécio, Tomás e muitos outros teólogos que defendem a eternidade de 
Deus  no  segundo  sentido,  nada  acontece  no  tempo  que  Deus  desconheça.  Todos  os 
momentos no tempo estão sempre presentes a Deus no mesmo sentido em que aquilo 
que acontece neste preciso momento, no nosso campo de visão, nos está presente. O 
conhecimento  que  Deus  tem  do  que  para  nós  é  o  passado  e  o  futuro  é  exactamente 
como o conhecimento que podemos ter de algo que nos acontece no presente. Estan‐
do  acima  do  tempo,  Deus  apreende  todo  o  tempo  num  relance,  tal  como  nós,  que 
estamos no tempo, podemos apreender com um relance algo que acontece no presen‐
te. Referindo‐se ao conhecimento que Deus tem do que ocorre no tempo, diz‐nos Boé‐
cio: 

  Abrange o leque infinito do passado e do futuro e contempla todas as coisas na sua 
compreensão simples como se ocorressem agora. Assim, se se pensar na presciência pela 
qual Deus distingue todas as coisas, considerar‐se‐á, correctamente, que não se trata de 
presciência dos acontecimentos do futuro, mas de conhecimento de um presente imutá‐
vel. Por esta razão, chama‐se «providência» à presciência divina em vez de «previsão», 
porque está acima de todas as coisas inferiores e a todas observa a partir de cima.5 

  Segundo Boécio, Deus, estritamente falando, não tem presciência, pois a sua posi‐
ção não é a de quem sabe antecipadamente que algo vai acontecer. E no entanto, Deus 
sabe  tudo  o  que  ocorreu,  ocorre  e  ocorrerá.  Mas  sabe‐o  do  mesmo  modo  que  nós 

178 
 
sabemos  o  que  ocorre  no  presente.  Talvez  possamos  tornar  a  situação  de  Deus  mais 
clara se distinguirmos dois sentidos de presciência: presciência1 e presciência2. Um ser 
tem presciência1 de um acontecimento x, digamos, desde que exista num determinado 
momento anterior à ocorrência de x e sabe, nesse momento, que x ocorrerá posterior‐
mente. Este é o género de presciência que Deus não pode ter, se for eterno no segundo 
sentido,  pois  nesse  caso  Deus  não  existe  num  determinado  momento  no  tempo, 
estando antes inteiramente fora do tempo. Um ser tem presciência2 de um aconteci‐
mento  x,  digamos,  desde  que  a  ocorrência  de  x  esteja  presente  a  esse  ser  mas  de  tal 
maneira  que  ocorra  depois  do  momento  em que  nós  (que  estamos  no  tempo)  existi‐
mos agora. Sendo Deus eterno no segundo sentido, não pode ter presciência1 de acon‐
tecimento algum, mas isto não o impede de ter total presciência2 de todos os aconte‐
cimentos que, do ponto de vista de quem existe no tempo, estão ainda por vir. 
  Podemos agora ver como Boécio e Tomás resolvem o problema da presciência divi‐
na e da liberdade humana. Como vimos, o problema é que afirmar simultaneamente as 
duas proposições pressupõe que por vezes temos o poder de alterar um facto acerca do 
passado,  um  facto  acerca  do  que,  num  determinado  momento  antes  de  nascermos, 
Deus já sabia. Se defendemos que nunca está em nosso poder alterar quaisquer factos 
acerca do passado, parece que temos de negar ou a presciência divina ou a liberdade 
humana. Boécio e Tomás chamam a atenção para que isto só é um problema genuíno 
no caso de se atribuir presciência1 a Deus. Pois se Deus tem presciência1, haverá factos 
acerca  de  um  momento  no  passado  que,  se  temos  liberdade  humana,  teríamos  de 
poder alterar. Segundo Boécio e Tomás, não podemos atribuir presciência1 a Deus, pois 
isso  pressupõe  que  Deus  existe  no  tempo.  Deus  tem  presciência2  de  tudo  o  que  está 
ainda por vir. Mas a presciência2 não pressupõe a existência de um facto acerca de um 
momento do passado. Pois Deus não existe no tempo sequer. A presciência2 que Deus 
tem de um acontecimento no tempo não difere realmente do conhecimento que o seu 
professor teve às 14:30 de Terça‐feira quando viu o leitor entrar na sala de aula. Nin‐
guém pensa que o conhecimento obtido por ver o leitor entrar na sala de aula anula o 
poder  que  o  leitor  tinha  antes  de  fazer  outra  coisa  qualquer.  De  igual  modo,  a  pres‐
ciência2 de Deus, dado observar o tempo a partir de cima e apreender o que no tempo 
é futuro mas que é presente do ponto de vista de Deus, não impõe qualquer necessida‐
de  sobre  aquilo  que  vê.  Pois  não  há  um  facto  anterior,  que  envolva  o  conhecimento 
divino  e  que  teria  de  estar  em  seu  poder,  se  o  leitor  tivesse  a  liberdade  para  agir  de 
outra maneira. 
  Neste capítulo estudámos um dos problemas intemporais do teísmo, o problema da 
presciência divina e da liberdade humana, e considerámos detalhadamente as princi‐
pais  soluções  que  surgiram  ao  longo  de  séculos  de  reflexão  acerca  do  problema.  Das 
três soluções que considerámos, só as duas últimas são defensáveis se, como sugeri, a 
primeira  assentar  numa  ideia  inadequada  da  liberdade  humana.  A  última  solução, 
dado  basear‐se  na  ideia  de  que  Deus  existe  fora  do  tempo,  padecerá  de  quaisquer 
imperfeições  associadas  a  essa  ideia.  Alguns  filósofos  pensaram  que  a  ideia  em  si  é 
179 
 
incoerente,  e  outros  argumentaram  que  embora  a  ideia  possa  ser  coerente,  qualquer 
ser que seja eterno no sentido de existir fora do tempo nunca poderia agir no tempo, e, 
portanto, não podia criar um mundo ou fazer um milagre — actividades que em geral 
se atribui ao Deus teísta. Não é possível, todavia, abordar estes assuntos aqui.6 
  A segunda solução ajusta‐se bem à ideia de que Deus é eterno no primeiro sentido 
apresentado no Capítulo 1, eterno no sentido de ser perpétuo, ter duração infinita em 
ambas as direcções temporais. Nesta perspectiva, atribui‐se a presciência a Deus, mas 
argumenta‐se  que  na  medida  em  que  agimos  livremente  temos  o  poder  de  alterar 
alguns  factos  acerca  do  passado.  Se  tanto  a  segunda  como  a  terceira  soluções  forem 
boas, então, quer se afirme que Deus é eterno no primeiro sentido quer se afirme que é 
eterno no segundo, o problema da predestinação divina e da liberdade humana deixa 
de ser insolúvel para o teísmo. 

Revisão 
1. Explique as  duas ideias diferentes de liberdade humana. Qual delas é mais adequada? 
Porquê? 
2. O que é o problema da presciência divina e da liberdade humana? 
3. Explique  o  raciocínio  básico  que  sustenta  a  afirmação  de  que  se  antes  de  nascermos 
Deus sabe tudo o que faremos, então nunca está em nosso poder agir de outra maneira. 
4. Explique as diversas soluções que se deu ao problema da presciência divina e da liber‐
dade humana. 
5. Como usam Boécio e Tomás a ideia de que Deus é eterno, na solução que adoptaram? 

Estudo complementar 
1. Discuta o seguinte argumento: 
Se Deus é eterno no sentido de existir fora do tempo, então nunca poderia agir, por‐
quanto toda a acção ocorre no tempo. Mas se Deus nunca pudesse agir, nunca poderia 
criar coisa alguma, perdoar fosse a quem fosse, responder a qualquer oração ou realizar 
quaisquer  acções  que  comummente  se  lhe  atribui.  Logo,  se  concebemos  Deus  como 
criador, benevolente, e por aí em diante, não podemos acreditar, sob pena de inconsis‐
tência, que existe fora do tempo. 
2. Das  diversas  soluções  para  o  problema  da  presciência  divina  e  da  liberdade  humana, 
escolha a que pensa ser a melhor e explique as suas razões para a considerar melhor do 
que as outras soluções propostas. 

Notas 
1. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, livro II, Cap. XXI, par. 10, org. 
Peter  H.  Nidditch  (Londres:  Oxford  University  Press,  1975),  p.  238.  [Ensaio  Sobre  o 

180 
 
Entendimento Humano, trad. Eduardo Abranches de Soveral, Lisboa, Fundação Calous‐
te Gulbenkian, 1999.] 
2. Aristóteles,  Nicomachean  Ethics,  VII,  2,  1139b,  em  The  Basic  Works  of  Aristotle,  org. 
Richard McKeon (Nova Iorque: Random House, 1941). [Ética a Nicómaco, trad. António 
C. Caeiro, Lisboa: Quetzal, 2006.] 
3. Para uma defesa brilhante da primeira ideia de liberdade, bem como uma resposta às 
objecções levantadas contra a mesma, ver Jonathan Edwards, Freedom of the Will, org. 
A. S. Kaufman e W. K. Frankena (Indianapolis: The Bobbs‐Merrill Co., 1969). 
4. Boécio,  The  Consolation  of  Philosophy,  prosa  VI,  trad.  Richard  Green  (Nova  Iorque: 
The Bobbs‐Merrill Company Inc., 1962). 
5. Boécio, The Consolation of Philosophy, prosa VI. 
6. Para  um  estudo  excelente  destes  problemas,  ver  Nelson  Pike,  God  and  Timelessness 
(Nova Iorque: Schocken Books Inc., 1970). 

181 
 
Glossário de conceitos e ideias importantes

Capítulo 1: A ideia de Deus

Agnosticismo: Ausência de crença ou descrença em Deus — isto é, suspensão


do juízo acerca da existência de Deus.
Deísmo: Crença de que Deus criou o universo e as leis da natureza, mas não
intervém no mundo.
Deus imanente: Um ser divino que impregna ou existe em todas as coisas
que existem.
Deus transcendente: Um ser divino que está acima do mundo, sendo distinto
e independente do mesmo.
Henoteísmo: Crença em múltiplos deuses mas veneração de apenas um, o
deus supremo ou o deus da própria tribo.
Monoteísmo: Crença numa divindade única, universal, global.
Panteísmo: Crença de que o universo e Deus são o mesmo.
Politeísmo: Crença de que há uma pluralidade de seres divinos ou deuses.
Ser auto­‑existente: Um ser cuja existência se explica pela sua própria natureza.
Ser concebível: Um ser que se pode conceber sem contradição.
Ser contingente: Um ser tal que a) se existe, poderia logicamente não ter
existido e b) se não existe, poderia logicamente ter existido.
Ser dependente: Um ser cuja existência se explica pela acção causal de outro
ser ou seres.
Ser em acto: Um ser que existe.

281
Introdução à Filosofia da Religião

Ser impossível: Um ser que não existe e não pode logicamente existir.
Ser necessário: Um ser que existe e não pode logicamente deixar de existir.
Ser possível: Um ser que ou existe ou podia logicamente existir.
Ser que existe no entendimento: Um ser no qual pensamos.
Ser que não está em acto: Um ser que não existe.
Teísmo: Crença na existência de um Deus perfeitamente bom, criador do
mundo, distinto e independente do mundo, omnipotente, omnisciente,
eterno e auto­‑existente.

Capítulo 2: O argumento cosmológico

Argumento a posteriori: Argumento tal que nem todas as suas premissas bási‑
cas são proposições a priori (de modo equivalente: pelo menos uma das
suas premissas básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento a priori: Argumento tal que todas as suas premissas básicas são
proposições a priori (de modo equivalente, nenhuma das suas premissas
básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento cosmológico: tentativa de derivar a existência de Deus a partir
da existência do universo.
Princípio de não contradição: Para qualquer afirmação e respectiva negação,
P e não P, no máximo uma é verdadeira (de modo equivalente, nenhuma
afirmação pode ser simultaneamente verdadeira e falsa — nada pode,
ao mesmo tempo e no mesmo sentido, ter uma propriedade e carecer
dessa propriedade).
Princípio de razão suficiente: Para tudo o que existe, o facto de essa coisa existir
tem de ter uma explicação; e para qualquer facto positivo acerca de qual‑
quer coisa que exista tem de haver uma explicação para o facto em causa.
Proposição a posteriori: Proposição que só se pode conhecer através da expe‑
riência sensorial.
Proposição a priori: Proposição que se pode conhecer prévia ou indepen‑
dentemente da experiência sensorial.

282
Glossário de conceitos e ideias importantes

Capítulo 3: O argumento ontológico

Argumento ontológico: Tentativa de derivar a existência de Deus a partir da


definição ou conceito de Deus.
Crítica de Gaunilo: A ilha mais grandiosa possível não existe.
Crítica de Kant: A existência não é uma qualidade ou predicado.
Ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo: A existência na realidade
é uma qualidade produtora de grandiosidade.
Mais grandioso: Melhor, mais digno.

Capítulo 4: O argumento do desígnio (o antigo e o novo)

Antigo argumento do desígnio: Como as máquinas são produzidas por desíg‑


nio inteligente e muitas partes naturais do universo se assemelham a
máquinas, provavelmente o universo (ou pelo menos muitas das suas
partes naturais) foi produzido por desígnio inteligente.
Argumento do desígnio: Tentativa de derivar a existência de Deus a partir do
desígnio, da ordem ou da finalidade das coisas no universo.
Argumento por analogia: Se um objecto a tem as propriedades F, G, H, etc.,
bem como a propriedade Z, e o objecto b tem as propriedades F, G, H,
etc., então provavelmente o objecto b tem a propriedade Z.
Outras questões: O debate sobre se a teoria darwinista pode ou não explicar
a «complexidade irredutível» ao nível molecular.
As objecções de Hume a respeito da vastidão do universo e da inade‑
quação do argumento do desígnio para estabelecer que o criador teria
os atributos do deus teísta.
A questão levantada pela existência de um planeta (a Terra) com as cons‑
tantes necessárias para permitir a existência de vida humana.
Sistema teleológico: Sistema de partes em que estas estão dispostas de tal
modo que, nas condições adequadas, funcionam conjuntamente para
servir uma determinada finalidade.

283
Introdução à Filosofia da Religião

Capítulo 5: Experiência mística e religiosa

Crença apropriadamente básica: Crença cuja aceitação é racional para nós


mesmo não havendo quaisquer indícios a seu favor, no sentido de outras
crenças racionais que a sustentem adequadamente.
Crença auto­‑evidente: Crença tal que ao ser compreendida vemos que é ver‑
dadeira.
Derrotadores: Razões para pensar outra coisa.
Experiência ilusória: Experiência cujos conteúdos nem correspondem a qual‑
quer aspecto da realidade nem o representam correctamente.
Experiência religiosa (Otto): Experiência em que se está directamente ciente
de outro ser como sagrado ou divino.
Experiência religiosa (Rowe): Experiência em que se sente a presença ime‑
diata do divino.
Experiência religiosa (Schleiermacher): Experiência em que se é tomado pelo
sentimento de absoluta dependência.
Experiência religiosa mística extrovertida: Experiência em que se olha para
fora, através dos sentidos, para o mundo à nossa volta, e aí se encontra
o divino.
Experiência religiosa mística introvertida: Experiência em que se olha para
dentro e se encontra o divino na parte mais profunda do eu.
Experiência religiosa mística: Experiência em que se sente a união com o divino.
Experiência religiosa não mística: Experiência em que se sente a presença
do divino como um ser distinto de quem tem a experiência.
Experiência verídica: Experiência cujos conteúdos correspondem a um
aspecto da realidade ou o representam correctamente.
Fé: Crença que não assenta numa prova lógica ou num indício material.
Fundacionalismo clássico: Todas as nossas crenças têm de ser ou auto­
‑evidentes ou baseadas em crenças auto­‑evidentes.
Opção genuína: Decisão entre duas hipóteses quando 1) ambas são hipóteses
vivas, 2) a decisão é forçosa e 3) a decisão é momentosa.

284
Glossário de conceitos e ideias importantes

Princípio de credulidade: Se uma pessoa tem uma experiência que parece ser
de x, então, a menos que haja uma razão para pensar de outro modo, é
racional acreditar que x existe.
Tese da unanimidade: Os místicos de diferentes religiões têm basicamente
todos a mesma experiência.

Capítulo 6: Fé e razão

Clifford acerca da crença: «É errado sempre, em todo o lado e para toda a


gente, acreditar em qualquer coisa com indícios insuficientes.»
Plantinga acerca da crença: Algumas crenças (como as que versam sobre a
existência do mundo exterior, a existência de outras mentes e a existên‑
cia de Deus) são apropriadamente básicas para alguns crentes.
Razões conducentes à verdade: Razões que tendem a mostrar que uma
crença é verdadeira.
Razões pragmáticas: Razões que tendem a mostrar que um bem vem ou pode
vir de ter uma crença.
Tomás acerca da fé: A fé é a aceitação de determinadas afirmações acerca de
Deus e das suas actividades, afirmações que excedem a capacidade da
razão humana para prová­‑las.

Capítulo 7: O problema do mal

Analogia Deus­‑pai: Deus é para os seres humanos como os bons pais são para
os seus filhos, a quem amam. Os bons pais, contudo, fazem o melhor que
podem para confortar e acompanhar os seus filhos quando estes sofrem
por razões que não compreendem.
Ateu amigável: Um ateu que pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o Deus teísta existe.
Ateu hostil: Um ateu que pensa que ninguém tem justificação racional para
acreditar que o Deus teísta existe.

285
Introdução à Filosofia da Religião

Defesa do livre­‑arbítrio: Deus, embora omnipotente, pode não ter sido


capaz de criar um mundo com criaturas humanas livres sem com isso
permitir a ocorrência de um mal considerável.
Desvio de G. E. Moore: Inverter o argumento, começando pela negação da
conclusão e concluindo com a rejeição da premissa crucial.
Mal sem sentido: Um mal que Deus (se existe) podia ter impedido sem com
isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal igual ou pior.
Ocultamento de Deus: Ausência de Deus na experiência humana, em parti‑
cular na experiência de seres humanos que sofrem por razões que não
compreendem.
Pressuposto da defesa do livre­‑arbítrio: É logicamente impossível que uma
pessoa realize livremente um acto qualquer tendo sido causalmente
determinada a realizá­‑lo.
Problema indiciário do mal: A afirmação de que o mal no nosso mundo dá
sustentação racional à crença de que Deus não existe.
Problema lógico do mal: A afirmação de que a existência de Deus e a existên‑
cia do mal são logicamente inconsistentes entre si.
Resposta do teísmo céptico: Não se mostrou que é provável que exista mal
sem sentido, dado não haver qualquer boa razão para pensar que temos
conhecimento dos bens que Deus conhece.
Teísta amigável: Um teísta que pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o Deus teísta não existe.
Teísta hostil: Um teísta que pensa que ninguém tem justificação racional para
acreditar que o Deus teísta não existe.
Teodiceia: Tentativa de explicar quais poderão ser os propósitos de Deus em
permitir a abundância do mal no nosso mundo.

Capítulo 8: Milagres e a mundividência moderna

Argumento de Hume contra os milagres: Os indícios da experiência prévia a


favor de uma lei da natureza são extremamente fortes. Sendo um milagre

286
Glossário de conceitos e ideias importantes

a violação de uma lei da natureza, os indícios contra a ocorrência de


milagres são extremamente fortes.
Dois pontos fracos no argumento de Hume: 1) Hume não considera os indí‑
cios indirectos, factos que se podem explicar melhor pela ocorrência de
um milagre. 2) Hume sobrestima o peso que devemos dar à experiência
prévia a favor de um princípio que pensamos ser uma lei da natureza.
Milagre (definição humiana): Acontecimento que 1) ocorre mas não teria
ocorrido se aquilo que acontece se devesse apenas a causas naturais
e 2) ocorre porque foi provocado por Deus ou por um agente sobre‑
natural.
Milagre (sentido popular): Um acontecimento benéfico inesperado.

Capítulo 9: Vida depois da morte

Analogia de McTaggart: Talvez aquando da morte corpórea a mente possa


funcionar sem estar já dependente do cérebro.
Argumento a favor da imortalidade, baseado na mediunidade mental:
O caso de Edgar Vandy.
Argumento de Russell contra a imortalidade: A nossa vida mental depende
da condição do cérebro humano. Logo, é muito provável que quando
o cérebro se decompõe com a morte corpórea a nossa vida mental já
não possa ocorrer.
Argumento filosófico a favor da imortalidade da alma: Uma coisa só pode
ser destruída pela separação das suas partes. Como a alma não tem
partes, não pode ser destruída.
Argumento teológico a favor da imortalidade da alma: Deus criou pessoas
finitas para existirem em irmandade consigo.
Concepção homérica: Só os deuses são imortais, embora a alma humana
sobreviva no Hades como fantasma, mera sombra da antiga pessoa.
Concepção platónica: Os seres humanos são imortais e a alma é a pessoa
(aquilo que raciocina, relembra, etc.).

287
Introdução à Filosofia da Religião

Crítica kantiana ao argumento filosófico: Pode haver modos de destruição


além da separação de partes; por exemplo, reduzindo permanentemente
o seu grau de consciência para zero.
Outras objecções: a) Lucrécio: a alma, como o corpo, é material; b) a alma
ou mente é apenas uma série de acontecimentos mentais ligados pela
memória.
Reencarnação: A alma sofre a transmigração (passagem para outro corpo
aquando da morte) até alcançar a libertação, a saída da alma do ciclo de
renascimento, e é absorvida por deus, a alma universal.
Ressurreição do corpo: A pessoa é vista como uma unidade de alma e corpo.

Capítulo 10: Predestinação, presciência divina


e liberdade humana

Agir livremente, sentido 1: Consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer.


Agir livremente, sentido 2: Consiste em fazer o que se quer quando estava
em nosso poder não o fazer. Esta perspectiva parece entrar em conflito
com a predestinação divina.
Argumento para mostrar que a presciência divina também entra em con‑
flito com a acção livre no sentido 2: O argumento depende da verdade
da afirmação: se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos,
então nunca está em nosso poder agir de modo diferente.
Concepção boeciana de eternidade: Transcender o tempo; estar além ou fora
do tempo; não ter a própria vida dividida em muitas partes temporais,
tais que em cada momento apenas uma destas partes esteja presente a
nós mesmos.
Concepção tradicional de eternidade: Ter existência interminável, sem
começo nem fim; ter duração infinita em ambas as direcções temporais.
Objecção de Locke: Pode­‑se escolher fazer algo e querer fazê­‑lo ainda que
não se pudesse ter feito outra coisa (o homem escolhe ficar no quarto
fechado).

288
Glossário de conceitos e ideias importantes

Presciência divina: Deus sabe de antemão o que acontecerá porque prevê


esses acontecimentos e não por predeterminar a sua ocorrência futura.
Solução de Ockham para o aparente conflito entre a presciência divina e a
liberdade humana: Pode estar em nosso poder alterar factos acerca do
passado, desde que não sejam apenas acerca do passado.
Solução de Tomás para o aparente conflito entre a presciência divina e a
liberdade humana: Deus não é presciente porque é eterno, no sentido
de existir fora do tempo.

Capítulo 11: Muitas religiões

Diferenças importantes: A realidade divina é um deus pessoal; a realidade


divina é um absoluto impessoal; há um ciclo de morte e renascimento;
há apenas uma vida antes do céu ou do inferno; o nosso destino último
é ver pessoalmente Deus; o nosso destino último é perder a consciên‑
cia individual no grande oceano do ser; o locus da revelação divina é a
Bíblia; o locus da revelação divina é o Corão; o locus da revelação divina
são os Vedas; o locus da revelação divina são todos os três.
Exclusivismo: Há apenas uma religião verdadeira e não se pode ser salvo,
iluminado ou abençoado de alguma maneira, em qualquer caminho ofe‑
recido pela religião, sem abraçar explicitamente a única religião verda‑
deira como sua.
Inclusivismo: Só uma religião é verdadeira, mas o Deus dessa religião tam‑
bém salva crentes virtuosos de outras religiões.
Pluralismo: As diversas religiões são interpretações culturalmente influen‑
ciadas de uma única realidade divina subjacente. Cada uma é igualmente
verdadeira e igualmente legítima como meio para a salvação.

289
Leitura complementar

Adams, Marilyn, Horrendous Evils and the Goodness of God, Ithaca, Nova
Iorque: Cornell University Press, 1997.
Alston, Williams P., Divine Nature and Human Language: Essays in Philo‑
sophical Theology, Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1989.
Alston, Williams P., Perceiving God: The Epistemology of Religious Expe‑
rience, Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1991.
Behe, Michael J., Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evo‑
lution, Nova Iorque: The Free Press, 1996.
Broad, C.D., Religion, Philosophy and Psychical Research, Nova Iorque:
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Byrne, Peter, Prolegomena to Religious Pluralism, Nova Iorque: St. Martin’s
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nes & Noble Books, 1979.
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Dembski, W.A., No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be
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2002.

290
Leitura complementar

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Flew, Anthony, The Logic of Immortality, Oxford: Basil Blackwell, 1987.
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Você também pode gostar