William L. Rowe
Tradução de Vítor Guerreiro
Revisão Científica de Desidério Murcho
Para a Peggy
Índice
1. A ideia de Deus 19
2. O argumento cosmológico 39
3. O argumento ontológico 63
4. O argumento do desígnio (o antigo e o novo) 87
5. Experiência mística e religiosa 109
6. Fé e razão 139
7. O problema do mal 169
8. Milagres e a mundividência moderna 199
9. Vida depois da morte 219
10. Predestinação, presciência divina e liberdade humana 241
11. Muitas religiões 263
11
Introdução à Filosofia da Religião
12
Agradecimentos
W.L.R.
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Introdução
Temos de contar a religião, sem dúvida, juntamente com a arte e a ciência, entre
os aspectos mais fundamentais e ubíquos da civilização humana. Como tal, é
digna do escrutínio e do estudo mais cuidadosos. Mas a religião é um aspecto
tão complexo da vida humana e de tão vastas consequências que jamais uma
só disciplina poderá estudá‑la exaustivamente. Por isto se estuda a religião em
diferentes disciplinas: filosofia, história, antropologia, sociologia, psicologia.
A filosofia da religião é um dos ramos da filosofia, como a filosofia da
ciência, a filosofia do direito e a filosofia da arte. Podemos compreender
melhor o que é a filosofia da religião começando pelo que não é. Em pri‑
meiro lugar, não se pode confundir a filosofia da religião com o estudo da
história das principais religiões de acordo com as quais os seres humanos
têm vivido. Ao estudar a história de uma religião particular — o cristianismo,
por exemplo — leríamos algo sobre a sua origem a partir do judaísmo, a vida
de Jesus, a emergência da igreja cristã no seio do império romano, o desen‑
volvimento das doutrinas características da fé cristã. Pode‑se levar a cabo
estudos semelhantes a respeito de outras religiões importantes: judaísmo,
islamismo, budismo, hinduísmo. Embora tais estudos sejam importantes
para a filosofia da religião e por vezes possa haver sobreposição de ambas as
áreas, não as podemos confundir.
Em segundo lugar, não se pode confundir a filosofia da religião com a
teologia. A teologia é uma disciplina em grande medida interior à religião.
15
Introdução à Filosofia da Religião
16
Introdução
17
Introdução à Filosofia da Religião
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Capítulo 1
A ideia de Deus
Em 1963 foi publicado um pequeno livro da autoria de um bispo anglicano, livro que
causou um tumulto religioso no Reino Unido e nos Estados Unidos.1 Em Honest to
God, o Bispo John Robinson atreveu‐se a sugerir que a ideia de deus que predominou
durante séculos na civilização ocidental é irrelevante para as necessidades dos homens
e mulheres de hoje em dia. A sobrevivência da religião no Ocidente, argumenta Robin‐
son, exige que se rejeite esta imagem tradicional de deus, a favor de uma concepção
profundamente diferente, concepção cuja emergência Robinson afirmou ter visto na
obra de pensadores religiosos do século XX, como Paul Tillich e Rudolf Bultmann.
Robinson previu correctamente a reacção que a sua tese ia provocar, sublinhando
que encontraria inevitavelmente resistência, como traição daquilo que se afirma na
Bíblia. Não só as pessoas ligadas à igreja, na sua vasta maioria, se oporiam à perspecti‐
va de Robinson, como a afirmação de que a ideia de deus já morrera ou que pelo
menos estava moribunda provocaria ressentimento nos que tinham rejeitado a sua
crença em deus. Na correspondência com o director do londrino Times, em artigos de
revistas académicas e nos púlpitos de dois continentes, Robinson foi atacado como
ateu disfarçado de bispo e só raramente defendido como profeta de uma nova revolu‐
ção que ocorria no interior da tradição religiosa judaico‐cristã. Um olhar sobre algu‐
mas das ideias de Robinson ajudar‐nos‐á a distinguir diferentes ideias de deus e a con‐
centrarmo‐nos naquela que será o centro das nossas atenções ao longo da maior parte
deste livro.
Antes de surgir a crença de que o mundo no seu todo está sob o controlo soberano
de um único ser, as pessoas acreditavam amiúde numa pluralidade de seres divinos ou
deuses, posição religiosa a que se chama politeísmo. Na antiguidade grega e romana,
por exemplo, os diversos deuses controlavam diferentes aspectos da vida, de modo que
se venerava, naturalmente, vários deuses — um deus da guerra, uma deusa do amor, e
por aí em diante. Às vezes, porém, podia‐se acreditar que há diversos deuses mas
venerar apenas um, o deus da própria tribo, posição religiosa a que se chama heno‐
teísmo. No Antigo Testamento, por exemplo, há referências frequentes a deuses de
outras tribos, embora os hebreus se mantenham fiéis ao seu próprio deus, Jeová. Len‐
tamente, porém, surgiu a crença de que o nosso próprio deus é o criador do Céu e da
Terra, o deus que não é apenas o da nossa própria tribo mas de todos, perspectiva reli‐
giosa a que se chama monoteísmo.
Segundo Robinson, o monoteísmo, a crença num só ser divino, sofreu uma mudan‐
ça profunda, mudança que Robinson descreve com a ajuda das expressões «lá em
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cima» e «lá fora». O Deus «lá em cima» é um ser localizado no espaço acima de nós,
presumivelmente a uma determinada distância da Terra, numa região conhecida como
«os Céus». Esta ideia de Deus está associada a uma certa imagem primitiva em que o
universo consta de três regiões, os Céus em cima, a Terra em baixo e a região das tre‐
vas sob a Terra. Segundo esta imagem, a Terra é frequentemente invadida por seres
dos outros dois domínios — Deus e os seus anjos do Céu, Satanás e os seus demónios
da região subterrânea — que combatem entre si pelo controlo das almas e do destino
dos que habitam o domínio terreno. Esta ideia de Deus como ser poderoso que está «lá
em cima», numa determinada região do espaço, foi lentamente abandonada, afirma
Robinson. Agora explicamos às crianças que os Céus não estão de facto sobre as suas
cabeças, que Deus não está literalmente algures lá em cima, no Céu. Em lugar de Deus
como «o velhote no Céu», surgiu uma ideia de Deus muito mais sofisticada, a que
Robinson se refere como a ideia de Deus «lá fora».
Mudar do Deus «lá em cima» para o Deus «lá fora» é mudar de uma concepção de
Deus como um ser localizado no espaço a uma certa distância da Terra para uma con‐
cepção de Deus como algo distinto e independente do mundo. Segundo esta ideia,
Deus não está em qualquer local ou região do espaço físico. É um ser puramente espi‐
ritual, um ser pessoal, perfeitamente bom, omnipotente, omnisciente, que criou o
mundo, mas não faz parte dele. É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, jul‐
ga‐o, orienta‐o para o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi len‐
tamente desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos ocidentais como
Agostinho, Boécio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem sido a
ideia dominante de Deus na civilização ocidental. Se rotulamos o Deus «lá em cima»
como «o velhote no Céu», podemos rotular o Deus «lá fora» como «o Deus dos teólo‐
gos tradicionais». E é o Deus dos teólogos tradicionais que Robinson considera ter‐se
tornado irrelevante para as necessidades das pessoas de hoje em dia. Quer Robinson
tenha ou não razão — e é muito duvidoso que tenha — é inegavelmente verdade que
quando nós, que herdámos maioritariamente a cultura da civilização ocidental, pen‐
samos em Deus, o ser em que pensamos é em muitos aspectos importantes parecido
com o Deus dos teólogos tradicionais. Será útil, portanto, ao clarificar as nossas pró‐
prias ideias acerca de Deus, explorar com maior detalhe a concepção de Deus que sur‐
giu no pensamento dos grandes teólogos.
Os atributos de Deus
Vimos que, segundo muitos teólogos importantes, se concebe Deus como um ser
perfeitamente bom, distinto e independente do mundo, omnipotente, omnisciente e
criador do universo. Duas outras características que os grandes teólogos atribuíram a
Deus são a auto‐existência e a eternidade. A ideia de Deus que predomina na civiliza‐
ção ocidental é portanto a ideia de um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas
distinto e independente dele, todo‐poderoso (omnipotente), omnisciente, eterno e
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auto‐existente. Claro que esta lista dos elementos mais importantes dessa ideia de
Deus só é esclarecedora para nós na medida em que compreendamos os próprios ele‐
mentos. Como é ser omnipotente? Como compreender a ideia de auto‐existência?
Como se concebe a distinção e independência de Deus perante o mundo? O que se
quer dizer ao afirmar que Deus, e só Deus, é eterno? Só na medida em que pudermos
responder a estas e a outras perguntas semelhantes compreenderemos a ideia central
de Deus que surgiu na civilização ocidental. Antes de passarmos ao estudo da questão
da existência de Deus, portanto, é importante enriquecer a nossa apreensão desta
mesma ideia, procurando responder a algumas daquelas questões fundamentais.
Omnipotência e perfeita bondade
Na sua grande obra, Summa Theologica, S. Tomás de Aquino, que viveu no século
XIII, procura explicar o que é para Deus ser omnipotente. Depois de indicar que, para
Deus, ser omnipotente é ser capaz de fazer tudo o que é possível, Tomás explica cui‐
dadosamente que há dois tipos de possibilidade, a possibilidade relativa e a possibilida‐
de absoluta, e investiga a que tipo de possibilidade se alude quando se afirma que a
omnipotência de Deus é a capacidade de fazer tudo o que é possível. Algo é uma pos‐
sibilidade relativa quando um ser ou mais pode fazê‐lo. Voar por meios naturais, por
exemplo, é possível relativamente às aves mas não relativamente a meros seres huma‐
nos. Algo é uma possibilidade absoluta, porém, se não é uma contradição nos termos.
Derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez é algo muito difícil de fazer, mas
não é uma contradição nos termos; na verdade, isso já foi ocasionalmente feito. Mas
derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez depois de este nos ter colocado em
xeque‐mate não é apenas algo muito difícil de fazer: não se pode fazer sequer, visto
que é uma contradição nos termos. Tornar‐se um solteiro casado, fazer a mesma coisa
ser ao mesmo tempo redonda e quadrada, derrotar alguém no xadrez depois de ele nos
ter colocado em xeque‐mate são coisas que não são possíveis em sentido absoluto; são
actividades que, implícita ou explicitamente, envolvem uma contradição nos termos.
Tendo explicado os dois tipos diferentes de possibilidade, Tomás indica que tem de
ser à possibilidade absoluta que se alude quando se explica a omnipotência de Deus
como a capacidade de fazer tudo o que é possível. Porque se nos referíssemos à possi‐
bilidade relativa, a nossa explicação não seria mais do que afirmar que «Deus é omni‐
potente» significa que Deus pode fazer tudo o que está em seu poder. E embora seja
seguramente verdade que Deus pode fazer tudo o que está em seu poder, isso nada
explica. «Deus é omnipotente», portanto, significa que Deus pode fazer tudo o que
não envolve contradição nos termos. Quererá isto dizer que há coisas que Deus não
pode fazer? Num certo sentido, significa precisamente isso. Deus não pode fazer a
mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada e não pode derrotar‐me num
jogo de xadrez depois de eu o ter colocado em xeque‐mate. Claro que Deus podia
sempre colocar‐me em xeque‐mate antes de eu conseguir fazer‐lhe o mesmo. Mas se
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Deus — por uma razão qualquer — pudesse fazer‐me entrar num jogo de xadrez e
deixar que eu o colocasse em xeque‐mate, então Deus não poderia ganhar aquele jogo
de xadrez. Poderia aniquilar‐me e ao tabuleiro de xadrez, mas não poderia ganhar
aquele jogo. Portanto, há muitas coisas que Deus, apesar da sua omnipotência, não
pode fazer. Seria um erro, porém, concluir a partir daqui que o poder de Deus é de
algum modo limitado, que há coisas que Deus não pode fazer mas que poderia fazer se
o seu poder fosse maior. Pois o poder, como observa Tomás, abrange apenas aquilo
que é possível. E nada há que seja possível fazer mas que Deus não possa fazer por fal‐
ta de poder. Assim, conclui Tomás: «Tudo o que implique contradição não está no
âmbito da omnipotência divina, porque isso não pode ter o aspecto da possibilidade.
Pelo que é mais apropriado afirmar que não se pode fazer tais coisas, do que afirmar
que Deus não as pode fazer.»2
Mas não haverá coisas que, ao contrário de fazer um quadrado redondo, não são
contraditórias e no entanto Deus não as possa fazer? Cometer suicídio ou praticar uma
má acção não envolvem contradição. Muitos teólogos, contudo, negaram que Deus
possa autodestruir‐se ou praticar o mal. Porquanto essas acções são inconsistentes
com a natureza de Deus — com a sua eternidade e perfeita bondade. Poder‐se‐ia
objectar que as perfeições de Deus implicam apenas que este não se autodestruirá nem
praticará o mal, e não que não o possa fazer — Deus tem o poder de praticar o mal,
mas, como é perfeitamente bom, nunca exercerá esse poder. O que escapa a esta
objecção, contudo, é que atribuir a Deus o poder de praticar o mal é atribuir‐lhe o
poder de deixar de ter um atributo (a perfeita bondade) que faz parte da sua própria
essência ou natureza. Ser perfeitamente bom faz tanto parte da natureza de Deus
como ter três ângulos faz parte da natureza de um triângulo. Deus não poderia deixar
de ser perfeitamente bom tal como um triângulo não poderia deixar de ter três ângu‐
los. Perante esta dificuldade, talvez seja necessário corrigir a explicação de Tomás
acerca do que significa Deus ser omnipotente. Em vez da mera afirmação de que isto
significa que Deus tem o poder de fazer tudo o que seja uma possibilidade absoluta,
diremos que significa que Deus pode fazer tudo o que é uma possibilidade absoluta e
que não seja inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais. Como
praticar o mal é inconsistente com a perfeita bondade e como a perfeita bondade é um
atributo fundamental de Deus, não haverá conflito entre o facto de Deus não poder
fazer o mal e o facto de ser omnipotente.
A ideia de que a omnipotência de Deus não inclui o poder de fazer algo que seja
inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais pode ajudar‐nos a
resolver aquilo a que se tem chamado o «paradoxo da pedra». Segundo este paradoxo,
ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar, ou não
tem esse poder. Se tem o poder de criar tal pedra então há algo que Deus não pode
fazer: levantar a pedra que criou. Por outro lado, se não pode criar tal pedra, então há
também algo que não pode fazer: criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar.
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Em qualquer dos casos há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é omnipoten‐
te.
A solução deste quebra‐cabeças é ver que criar uma pedra tão pesada que Deus não
a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos atributos essenciais de Deus —
o atributo da omnipotência. Porquanto se existe uma pedra tão pesada que Deus não
tem o poder de a levantar, então Deus não é omnipotente. Logo, se Deus tem o poder
de criar tal pedra, tem o poder de fazer com que lhe falte um atributo (omnipotência)
que lhe é essencial. Então, a solução adequada do quebra‐cabeças é afirmar que Deus
não pode criar tal pedra, do mesmo modo que não pode praticar uma má acção. Isto
não significa, evidentemente, que haja uma pedra na série infinita das pedras que
pesam mil quilogramas, dois mil quilogramas, três mil quilogramas, quatro mil quilo‐
gramas, e por aí em diante, que Deus não pode criar. No caso de uma má acção, Deus
não pode praticar essa acção porque a sua perfeita bondade lhe é essencial. No caso de
uma pedra tão pesada que não a possa levantar, Deus não pode criar tal pedra porque
a sua omnipotência lhe é essencial.
Vimos que não se pode compreender a omnipotência de Deus como algo que inclui
o «poder» de causar estados de coisas logicamente impossíveis ou de realizar acções
inconsistentes com seus os atributos essenciais. E quanto a mudar o passado? Eviden‐
temente, Deus podia ter impedido que Barack Obama se tornasse presidente dos Esta‐
dos Unidos. Mas poderá Deus fazê‐lo agora? Um estado de coisas em que Obama nun‐
ca tenha sido presidente não é uma impossibilidade lógica; tão‐pouco parece haver
inconsistência entre causar esse estado de coisas e a bondade de Deus ou qualquer
outro dos seus atributos essenciais. Mas parece que não está agora ao alcance de qual‐
quer ser, mesmo um ser omnipotente, fazer que Obama nunca tenha sido presidente.
Assim, embora tenhamos aperfeiçoado a nossa compreensão da noção de omnipotên‐
cia e visto que a omnipotência de Deus não é o poder de causar seja o que for em abso‐
luto, não podemos afirmar ter dado uma explicação completa da ideia de que Deus é
omnipotente. Pois, como acabámos de ver, há acontecimentos do passado que não se
pode mudar agora, mesmo que se seja omnipotente. E pode haver outros estados de
coisas que um ser omnipotente e divino não possa causar.
A ideia de que Deus tem de ser perfeitamente bom liga‐se à perspectiva de que
Deus é um ser digno de gratidão, louvor e veneração incondicionais. Pois nenhum ser
é digno de louvor e veneração incondicionais a menos que seja perfeitamente bom.
Assim, Deus não só é um ser bom como a sua bondade é insuperável. Além disso, Deus
não é perfeitamente bom por acaso; esse modo de ser é a sua natureza. Logicamente,
Deus não poderia deixar de ser perfeitamente bom. Esta é a razão de termos observado
há pouco que Deus não tem o poder de praticar o mal. Porquanto atribuir tal poder a
Deus é atribuir‐lhe o poder de deixar de ser aquilo que necessariamente é.
Afirmamos que Deus é perfeitamente bom por definição? Sim. Mas vemos também
que a definição de Deus como perfeitamente bom está ligada à exigência religiosa de
que Deus seja um objecto de louvor e veneração incondicionais, se é que não está
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mesmo fundada nessa exigência. E esclarecemos também outra coisa. Porquanto afir‐
mámos também que o ser que é Deus não pode deixar de ser perfeitamente bom. Um
solteiro por definição não é casado. Mas uma pessoa solteira pode deixar de não ser
casada. Claro que quando isto acontece (o nosso solteiro casa‐se), a pessoa deixa de ser
solteira. Ao contrário do nosso solteiro, porém, o ser que é Deus não pode abdicar de
ser Deus. Pelo que não afirmamos simplesmente que Deus é por definição perfeita‐
mente bom. Afirmamos também que um ser que seja Deus nunca pode ser outra coisa
senão Deus. O solteiro que vive na porta ao lado pode deixar de ser solteiro. Mas o ser
que é Deus não pode deixar de ser Deus. Podemos formular isto do seguinte modo: ser
solteiro não faz parte da natureza ou essência de um ser que é solteiro. Pelo que,
embora por definição ninguém possa ser solteiro estando casado, essa pessoa pode
deixar de não ser casada porque pode deixar de ser solteira. Mas ser Deus faz parte da
natureza ou essência do ser que é Deus. Então, uma vez que o ser que é Deus não pode
deixar de ser Deus, esse ser não pode deixar de ser perfeitamente bom.
Mas o que é ser perfeitamente bom? Na medida em que Deus é insuperavelmente
bom, tem todas as características que a bondade insuperável implica. Nestas se inclui a
absoluta bondade moral. A bondade moral é uma parte vital, mas não o todo, da bon‐
dade, pois há também o bem amoral. Assim, distinguimos entre duas afirmações que
se pode fazer a propósito da morte de alguém: «Empenhou‐se em levar uma vida boa»
e «Teve uma vida boa». A primeira afirmação diz respeito ao bem moral, a última diz
sobretudo respeito ao bem amoral, como a felicidade, a boa sorte, etc. A perfeita bon‐
dade de Deus tanto envolve o bem moral quanto o amoral. De interesse crucial aqui é
o bem moral de Deus (perfeita justiça, benevolência, etc.), visto que durante muito
tempo se pensou que a bondade moral de Deus é de algum modo a fonte ou o padrão
da moralidade para a vida humana. Além disso, em virtude da sua perfeição moral
essencial, pode‐se fazer alguns juízos acerca do mundo que Deus criou. Podemos estar
certos, por exemplo, de que Deus não criaria um mundo moralmente mau. Pode até
ser verdade que em virtude da sua perfeição moral Deus seja levado a criar o melhor
mundo, em termos morais, de que é capaz. Estes tópicos são importantes. Discutire‐
mos mais tarde o segundo (que género de mundo Deus criaria), quando considerar‐
mos o problema do mal. Será útil ponderar aqui brevemente a conexão entre a perfei‐
ção moral de Deus e a moralidade na vida humana.
Tem‐se defendido que Deus é a fonte ou o cânone dos nossos deveres morais, tanto
dos negativos (por exemplo, o dever de não tirar vidas humanas inocentes) como dos
positivos (por exemplo, o dever de ajudar quem precisa). Geralmente, as pessoas reli‐
giosas acreditam que estes deveres se baseiam de algum modo em mandamentos divi‐
nos. Um crente no judaísmo pode ver os dez mandamentos como regras morais fun‐
damentais que determinam pelo menos grande parte daquilo que estamos moralmen‐
te obrigados a fazer (deveres positivos) ou a abstermo‐nos de fazer (deveres negati‐
vos). É claro que, dada a sua perfeição moral, aquilo que Deus nos ordena tem de ser o
que é moralmente correcto fazer‐se. Mas serão estas coisas moralmente correctas por‐
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que Deus as ordena? Isto é, será que o bem moral destas coisas consiste apenas no fac‐
to de Deus as ter ordenado? Ou será que Deus ordena que se faça estas coisas porque
são correctas? Se formos pela segunda opção, que Deus ordena estas coisas porque vê
que são moralmente correctas, parece que estamos a sugerir que a moralidade existe
independentemente da vontade ou dos mandamentos de Deus. Mas se formos pela
primeira opção, que é o facto de Deus as querer ou ordenar que torna essas coisas cor‐
rectas, parece que estamos a sugerir que não haveria bem nem mal se não houvesse
qualquer ser divino para decretar tais mandamentos. Embora nenhuma das respostas
seja improblemática, a que predomina no pensamento religioso acerca de Deus e da
moralidade é que aquilo que Deus ordena é moralmente bom independentemente dos
seus mandamentos. O facto de Deus nos ordenar certas acções não as torna moral‐
mente rectas; estas são moralmente rectas independentemente das suas ordens e Deus
ordena‐as porque vê que são moralmente rectas. Assim, em que sentido depende a
nossa vida moral de Deus? Ainda que a moralidade em si não dependa necessariamen‐
te de Deus, talvez o nosso conhecimento da moralidade dependa dos mandamentos
divinos (ou pelo menos seja auxiliado por eles). Talvez os ensinamentos da religião
levem os seres humanos a ver que certas acções são moralmente rectas e que outras
são moralmente erradas. Além disso, pode ser que a crença em Deus ajude a prática da
moralidade. Pois embora cumprir o dever por respeito ao próprio dever seja uma parte
importante da vida moral, talvez seja exagerado esperar que os seres humanos comuns
sigam inflexivelmente a vida do dever, mesmo sem razões para associar a moralidade
ao bem‐estar e à felicidade. A crença em Deus pode ajudar a vida moral dando uma
razão para pensar que a relação entre esforçar‐se por levar uma vida boa e ter uma
vida boa não é meramente acidental. Ainda assim, o que faremos com a dificuldade de
que certas coisas são moralmente rectas independentemente do facto de Deus no‐las
ordenar? Considere‐se o facto de Deus acreditar que 2 + 2 = 4. Será 2 + 2 = 4 verdade
porque Deus acredita que é? Ou será que Deus acredita que 2 + 2 = 4 por ser verdade
que 2 + 2 = 4? Se vamos pela última, como parece que devemos fazer, estamos a suge‐
rir que certas afirmações matemáticas são verdadeiras independentemente de Deus
acreditar nelas. Portanto, parece que estamos já comprometidos com a perspectiva de
que o modo como algumas coisas são não tem em última instância a ver com a vonta‐
de ou com os mandamentos de Deus. Talvez as verdades fundamentais da moralidade
tenham o mesmo tipo de estatuto que as verdades fundamentais da matemática.
Auto‐existência
A ideia de que Deus é um ser auto‐existente foi desenvolvida e explicada por Santo
Anselmo no século XI. Usando diversos argumentos, Anselmo persuadira‐se de que
entre os seres que existem há um que é perfeitamente grandioso e bom — nada que
existe ou alguma vez existiu se lhe compara. De tudo o que existe, porém, Anselmo
estava igualmente persuadido de que podemos perguntar o que justifica ou explica o
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facto de existir. Se nos deparamos com uma mesa, por exemplo, podemos perguntar o
que justifica o facto de a mesa existir. E podemos responder à nossa pergunta, pelo
menos em parte, verificando que um carpinteiro pegou numa porção de madeira e fez
a mesa. Poderemos, de igual modo, quanto a uma árvore, montanha ou lago, pergun‐
tar o que explica o facto de existirem. Tentando descobrir mais acerca do ser perfeita‐
mente grandioso e bom, Anselmo faz a mesma pergunta a respeito deste ser. O que
justifica o facto de o ser perfeitamente grandioso e bom existir?
Antes de tentar responder a esta questão, Anselmo observa que há apenas três casos
a considerar: ou a existência de uma coisa se explica por outra coisa, ou se explica por
nada, ou por si mesma. É claro que a existência da mesa se explica por outra coisa (o
carpinteiro). O mesmo acontece com a existência de uma árvore, montanha ou lago.
Cada uma destas coisas existe por causa de outras coisas. Com efeito, tudo o que é
familiar nas nossas vidas parece explicar‐se por outras coisas. Mas mesmo quando não
sabemos o que explica o facto de certa coisa existir, se é que algo o explica, é óbvio que
a resposta tem de ser uma das três que Anselmo propõe. O facto de certa coisa existir
explica‐se ou por referência a outra coisa, ou por nada, ou pela própria coisa. Sim‐
plesmente não há mais hipóteses a considerar. O que dizer então da existência de um
ser perfeitamente grandioso e bom? Será que a sua existência se deve a outra coisa, a
nada, ou a si própria? Ao contrário da mesa, da árvore, da montanha, ou do lago, a
existência do ser perfeitamente grandioso e bom não pode dever‐se a outra coisa,
argumenta Anselmo, pois nesse caso a sua existência dependeria dessoutra coisa e,
consequentemente, não seria o ser supremo. A existência de qualquer coisa superior a
todas as outras coisas não pode depender (nem ter dependido) de qualquer delas. A
existência do ser supremo, portanto, tem de se explicar ou por nada ou por si própria.
Se a existência de algo se explica por nada então esse algo existe sem que haja qual‐
quer explicação para o facto de existir em vez de não existir. Poderia haver algo assim
— algo cuja existência é simplesmente um facto bruto ininteligível, sem qualquer
explicação? A resposta de Anselmo, esteja ou não correcta, é perfeitamente clara: «É
em última análise inconcebível que aquilo que é alguma coisa exista por meio de
nada».3 Infelizmente, Anselmo não explica por que razão não podemos conceber algo
cuja existência seja um facto bruto ininteligível. Presumivelmente, achou que isso era
tão óbvio que não precisava de explicação. Em todo o caso, temos de observar com
cuidado o princípio que Anselmo exprime aqui, pois figurará mais tarde num dos prin‐
cipais argumentos a favor da existência de Deus. A convicção fundamental de Anselmo
é que para tudo o que existe tem de haver uma explicação da sua existência — tem de
haver algo que explique o facto de a coisa existir em vez de inexistir, e esse algo tem de
ser ou outra coisa ou a própria coisa. Negar isto é ver a existência de algo como irra‐
cional, absurda, completamente ininteligível. E Anselmo pensa que o ser supremo não
pode ser assim, tal como nem uma árvore ou uma montanha o podem. A existência do
ser supremo, portanto, não pode explicar‐se por nada. Resta então a terceira via.
Anselmo conclui que a existência do ser supremo se deve a si própria.
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Claro que uma coisa é concluir que a explicação da existência do ser supremo tem
de se encontrar na natureza desse mesmo ser, e outra coisa completamente diferente é
compreender o que há na natureza do ser supremo que justifica a sua existência.
Anselmo não afirma compreender o que há na natureza divina que justifica a existên‐
cia de Deus. Nem compreende exactamente como a natureza de um ser poderá expli‐
car a existência desse ser. Tudo aquilo de que afirma estar certo é que a existência do
ser supremo se deve ao próprio ser supremo. Não quer com isto dizer, obviamente,
que o ser supremo causou a sua própria existência. Pois nesse caso teria de existir
antes de ter existido de modo a causar a sua própria existência e isto é claramente
impossível. Além disso, como vimos, a eternidade é uma das características de Deus,
pelo que é evidente que Deus não começou a existir num determinado momento.
Contudo, Anselmo apresenta uma analogia, procurando ajudar‐nos a compreender
esta ideia bastante difícil. Usando o nosso próprio exemplo, pode‐se exprimir assim a
ideia de Anselmo: suponha‐se que numa noite fria encontramos uma enorme fogueira.
Reparamos que uma pedra perto da fogueira está quente. Se perguntarmos qual a
explicação deste facto acerca da pedra (o facto de estar quente), seria absurdo sugerir
que a explicação tem de estar na própria pedra, que há algo na natureza da pedra que
a faz estar quente. A fogueira e a proximidade entre a pedra e o fogo explicam o calor
da pedra. Suponha‐se que reparamos então que também a fogueira está quente. O que
explica o facto de a fogueira estar quente? Aqui não parece absurdo sugerir que a
explicação reside na própria fogueira. Pertence à natureza de uma fogueira o estar
quente, tal como pertence à natureza de um triângulo o ter três ângulos. Para evitar a
confusão, temos de estar claramente cientes de que procuramos explicar o facto de a
fogueira estar quente e não o facto de a fogueira existir. O facto de a fogueira existir
não se deve à fogueira mas ao campista que ateou a fogueira. O facto de a fogueira que
existe estar quente, contudo, é um facto acerca da fogueira que se explica pela nature‐
za da fogueira, pelo que é ser uma fogueira. Temos então aqui o exemplo de um facto
acerca de algo (o calor da fogueira) que se explica não por outra coisa qualquer mas
pela natureza da própria coisa (a fogueira). Anselmo espera que se virmos uma vez que
um determinado facto acerca de algo se pode explicar não por outra coisa qualquer
mas pela natureza dessa coisa, a ideia de auto‐existência deixará de nos parecer tão
estranha. Quer seja ou não assim, devia ser claro tanto o que se quer dizer com auto‐
existência como por que razão os teólogos tradicionais sentiram que se tratava de uma
característica fundamental do ser divino. Ser um auto‐existente é ter na sua própria
natureza a explicação da sua existência. Como nada pode existir cuja existência seja
ininteligível, sem qualquer explicação (o princípio fundamental de Anselmo), e como
o ser supremo não seria supremo se a sua existência se devesse a outra coisa, a conclu‐
são inevitável é que a explicação da existência de Deus (o ser supremo) está na sua
própria natureza.
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Distinção, independência e eternidade
Temos vindo a explorar as noções de omnipotência, perfeita bondade e auto‐
existência, procurando aprofundar a nossa apreensão da ideia dominante de Deus que
emergiu na civilização ocidental. Explorar‐se‐á alguns dos outros elementos desta
ideia de Deus em capítulos posteriores. Para completar esta exploração inicial, contu‐
do, será instrutivo considerar a noção de que Deus é distinto e independente do mundo
e a concepção de Deus como um ser eterno.
Vimos a emergência do monoteísmo a partir do henoteísmo e do politeísmo. O
monoteísmo é a tradição dominante no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Há
outra perspectiva de Deus que persistiu desde a antiguidade e continua a florescer,
particularmente nas grandes religiões do Oriente, o budismo e o hinduísmo: uma
perspectiva chamada panteísmo. Segundo o panteísmo, tudo o que existe tem uma
natureza interna que é a mesma em todas as coisas e essa natureza interna é Deus.
Mais tarde, quando examinarmos as experiências de alguns dos grandes místicos, con‐
sideraremos o panteísmo de um modo mais completo. A ideia fundamental no mono‐
teísmo, de que Deus é distinto do mundo, constitui uma rejeição do panteísmo.
Segundo a concepção judaico‐cristã e islâmica, Deus e o mundo são inteiramente dis‐
tintos: podia‐se aniquilar por completo tudo o que há no segundo sem que ocorresse a
mais ligeira mudança na realidade do ser divino. Claro que há coisas no mundo que se
assemelham mais a Deus do que outras. Como os humanos são seres vivos e racionais,
assemelham‐se mais a Deus do que as pedras e as árvores. Mas ser como Deus e ser
Deus são coisas bastante diferentes. O mundo não é o divino e a noção de que Deus é
distinto do mundo visa salientar a diferença fundamental entre a realidade de Deus e a
realidade do mundo.
O facto de Deus ser independente do mundo significa que não é regido por quais‐
quer leis físicas, que rejam o funcionamento do universo. Mas significa muito mais do
que isto. Significa também que Deus não está sujeito às leis do espaço e do tempo. De
acordo com a lei do espaço, nenhum objecto pode existir ao mesmo tempo em dois
lugares diferentes. Claro que uma parte de um objecto pode existir numa região do
espaço e outra parte do mesmo objecto (se for um objecto grande) pode existir numa
região diferente do espaço. A lei não nega isto. Nega que um objecto no seu todo possa
existir ao mesmo tempo em duas regiões diferentes do espaço. Se esta lei se aplicasse a
Deus, ou Deus ocuparia qualquer região do espaço num determinado momento e não
outras regiões do espaço nesse mesmo momento ou ocuparia todo o espaço ao mesmo
tempo, mas com apenas uma parte sua em cada região do espaço. Nenhuma destas
alternativas era aceitável para os grandes teólogos do passado. Na primeira alternativa,
embora Deus pudesse estar presente em Évora num determinado momento, não podia
nesse momento estar presente em Lisboa. E na segunda alternativa, embora Deus
pudesse estar presente em Évora e Lisboa ao mesmo tempo, em Évora estaria uma par‐
te de Deus e em Lisboa estaria uma parte diferente de Deus. Na ideia tradicional de
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Deus, não só Deus tem de estar presente em todo o lado ao mesmo tempo como o seu
todo tem de estar ao mesmo tempo em todos os lugares. Deus no seu todo está em
Évora e em Lisboa ao mesmo tempo — na verdade, todo o tempo. Mas esta perspecti‐
va entra em conflito com a lei do espaço. Então a ideia de Deus que emergiu na civili‐
zação ocidental é a de um ser supremo independente das leis da natureza e que trans‐
cende mesmo a lei fundamental do espaço.
A ideia de que Deus não está sujeito à lei do tempo relaciona‐se intimamente, como
veremos, com um dos significados de eternidade. De acordo com a lei do espaço, nada
pode existir inteiramente em duas regiões diferentes do espaço ao mesmo tempo. De
acordo com a lei do tempo, nada pode existir inteira e simultaneamente em dois
momentos diferentes. Para compreender a lei do tempo, basta considerar o exemplo
do homem que existiu ontem, existe hoje e existirá amanhã. O homem no seu todo
existe em cada um destes momentos diferentes. Isto é, não se trata de apenas o seu
braço, por exemplo, ter existido ontem, a sua cabeça existir hoje e as suas pernas exis‐
tirem amanhã. Mas ainda que o homem no seu todo exista em cada um destes três
momentos, o todo da sua vida temporal não existe em cada um destes momentos. A
parte temporal da sua vida que existiu ontem não existe hoje; quando muito o homem
pode participar nela recordando‐a. E a parte temporal da sua vida que existirá amanhã
não existe hoje; quando muito pode participar nela antecipando‐a. Embora o homem
no seu todo exista em cada um destes três momentos, a sua vida inteira não existe em
qualquer um deles. A sua vida, portanto, divide‐se em muitas partes temporais e em
cada momento particular só uma destas partes temporais lhe é presente. Assim, a vida
de uma pessoa exemplifica a lei do tempo. Pois de acordo com essa lei as partes tem‐
porais individuais da vida de uma pessoa não podem estar presentes ao mesmo tempo.
Por razões que não precisamos de desenvolver aqui, os grandes teólogos medievais
hesitavam em dividir a vida de Deus em partes temporais e, portanto, adoptaram a
perspectiva de que Deus transcende a lei do tempo tal como transcende a lei do espa‐
ço. Ainda que seja quase ininteligível, adoptaram a perspectiva, como Anselmo a
exprime, de que «a natureza suprema existe num lugar e num momento de tal manei‐
ra que não a impede de existir desse modo simultaneamente, como um todo, em luga‐
res e momentos diferentes».4 De acordo com esta ideia, toda a vida ingénita e intermi‐
nável de Deus lhe é presente em cada momento do tempo e Deus no seu todo está
simultaneamente presente em cada região do espaço.
Eterno tem dois significados distintos. Num sentido, ser eterno é ter existência
temporal interminável, sem começo nem fim; é ter duração infinita em ambas as
direcções do tempo. Nada há neste significado de eterno que entre em conflito com a
lei do tempo. A lei do tempo implica apenas que qualquer coisa que seja temporal‐
mente infinita terá uma infinidade de partes temporais compondo de tal modo a sua
existência que em nenhum momento estará presente mais do que uma destas partes
temporais; as outras partes temporais estão ou no seu passado ou no seu futuro. De
acordo com o segundo significado de eterno, contudo, a vida de um ser eterno não se
21
divide em partes temporais, pois não está sujeito à lei do tempo. Assim, de acordo com
este significado de eterno, um ser que tivesse duração infinita em cada direcção do
tempo e estivesse sujeito à lei do tempo não seria eterno. Como observou o estudioso
romano Boécio (480–524 d.C.),
Tudo o que está sujeito ao tempo, mesmo aquilo que não tem começo e que não
terá fim numa vida coextensiva com a infinidade do tempo — e foi assim que Aristóteles
concebeu o mundo —, é tal que não se pode correctamente considerar eterno. Porquan‐
to não abrange nem inclui o todo da vida infinita ao mesmo tempo, dado que não
abrange o futuro, que está ainda por vir. Logo, só o que abrange e possui ao mesmo
tempo toda a plenitude da vida infinita, da qual nada de posterior nem de anterior está
ausente, se pode com justeza chamar eterno.5
Boécio, Anselmo, Tomás, e outros teólogos tradicionais interpretaram a eternidade
de Deus no segundo dos dois sentidos que acabámos de distinguir. Defenderam que
Deus está fora do tempo, que não está sujeito à sua lei fundamental. Outros teólogos,
contudo, adoptaram a perspectiva de que Deus é eterno no primeiro sentido — que
tem duração infinita em ambas as direcções temporais. O teólogo inglês do século
XVIII Samuel Clarke, por exemplo, rejeitou como absurda a ideia de que um ser
pudesse transcender o tempo e adoptou a perspectiva de que ser eterno é simplesmen‐
te ser perpétuo, existindo no tempo mas sem ter começo nem fim. Quando mais tarde
estudarmos o problema da presciência divina e da liberdade humana, reconsiderare‐
mos estes dois sentidos de eternidade e observaremos as suas implicações para a dou‐
trina da presciência divina. De momento, contudo, basta reconhecer que a eternidade
é um elemento central na ideia tradicional de Deus e que foi interpretada de duas
maneiras distintas.
Temos vindo a explorar algumas características fundamentais que constituem a
ideia de Deus, que até agora têm sido centrais para a tradição religiosa ocidental.
Segundo esta ideia, Deus é um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto
e independente deste, omnipotente, omnisciente, eterno e auto‐existente. Ao explorar
esta ideia de Deus, vimos também muitas outras concepções do divino associadas ao
politeísmo, henoteísmo, monoteísmo e panteísmo. A ideia de Deus que será de impor‐
tância central para este livro, porém, foi elaborada pelos teólogos tradicionais ociden‐
tais. É a ideia central de Deus das três grandes religiões da civilização ocidental:
judaísmo, cristianismo e islamismo. Até aqui usámos a expressão de Robinson «o Deus
lá fora» e a expressão «o Deus dos teólogos tradicionais» para referir esta ideia de
Deus. Doravante, contudo, chamaremos a esta perspectiva acerca de Deus «ideia teísta
de Deus». Ser teísta, portanto, é acreditar na existência de um ser perfeitamente bom,
criador do mundo mas distinto e independente deste, omnipotente, omnisciente,
eterno (em qualquer dos nossos dois sentidos) e auto‐existente. Um ateísta é alguém
que acredita que o Deus teísta não existe, ao passo que um agnóstico é alguém que
22
ponderou na ideia teísta de Deus mas que não acredita na existência nem na inexis‐
tência do Deus teísta.
Acabámos de usar os termos teísta, ateísta e agnóstico num sentido restrito ou cir‐
cunscrito. No sentido mais amplo, um teísta é alguém que acredita na existência de
um ser ou seres divinos, mesmo que a sua ideia do divino seja bastante diferente da
ideia de Deus que temos vindo a descrever. De igual modo, no sentido mais amplo do
termo, um ateu é alguém que rejeita a crença em toda a forma de divindade, não ape‐
nas no Deus dos teólogos tradicionais. Para evitar a confusão, é importante ter em
mente tanto o sentido circunscrito destes termos como o mais amplo. No sentido mais
circunscrito, o teólogo protestante Tillich é um ateísta, pois rejeitou a crença naquilo a
que chamámos «Deus teísta». Mas no sentido mais amplo é um teísta, dado que acre‐
dita numa realidade divina, embora diferente do Deus teísta. Na maior parte deste
livro usarei os termos teísmo, ateísmo, e agnosticismo no sentido mais circunscrito.
Assim, quando ponderarmos na questão dos fundamentos do teísmo, a nossa preocu‐
pação será saber se a existência do Deus teísta (o Deus dos teólogos tradicionais) tem
uma base racional. E quando perguntarmos, por exemplo, se os factos acerca do mal
no mundo sustentam a verdade do ateísmo, estaremos a perguntar se a existência do
mal nos dá uma base racional para concluir que o Deus teísta não existe.
Tendo clarificado a ideia do Deus teísta, podemos agora considerar algumas destas
questões mais amplas. E começaremos com a questão de saber se se pode ou não justi‐
ficar racionalmente a crença na sua existência
Revisão
1. Defina brevemente os conceitos politeísmo, henoteísmo, e monoteísmo.
2. Explique como pode Deus ser omnipotente e contudo não ter o poder de fazer o mal.
3. O que se entende por um ser auto‐existente e que razões tem Anselmo para pensar que
Deus é um ser auto‐existente?
4. Formule a lei do espaço e a lei do tempo e indique a conexão entre a lei do tempo e o
que se entende pela eternidade de Deus.
5. Descreva a ideia teísta de Deus e o que se entende por teísmo, ateísmo, e agnosticismo.
Estudo complementar
1. Como definiria o termo «Deus»? Se a sua definição de Deus é diferente da ideia teísta
de Deus, explique as diferenças e dê razões em função das quais a sua ideia de Deus
possa ser melhor.
2. Que razões apresentaria para mostrar que Deus existe, tendo em conta o modo como
definiu Deus? Que razões poderia alguém dar para rejeitar quer a sua definição de Deus
quer a sua afirmação de que Deus (como o leitor o definiu) existe realmente? Como lhes
responderia?
23
Notas
1. John A. T. Robinson, Honest to God (Londres: SCM Press Lda., 1963).
2. S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, Q 25, art. 3, in The Basic Writings of Saint
Thomas Aquinas, ed. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).
3. Santo Anselmo, Monologium, VI, in Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N.
Deane (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1962).
4. Santo Anselmo, Monologium, XXII, in Saint Anselm: Basic Writings.
5. Boethius, The Consolation of Philosophy, prose VI, trad. Richard Green (Nova Iorque:
The Bobbs‐Merrill Company, Inc., 1962).
24
Capítulo 2
O argumento cosmológico
O argumento cosmológico tradicional
Desde a antiguidade que as pessoas dadas à reflexão procuram justificar as suas
crenças religiosas. Talvez a crença mais fundamental que se procurou justificar seja a
crença de que Deus existe. Em geral, a tentativa de justificar a crença na existência de
Deus começou quer por factos acessíveis tanto a crentes quanto a descrentes, quer por
factos que normalmente só são acessíveis aos crentes, como a experiência directa de
Deus. Neste capítulo e nos dois seguintes, consideraremos algumas das principais ten‐
tativas de justificar a crença em Deus apelando a factos supostamente acessíveis a
qualquer pessoa racional, religiosa ou não. Começando por tais factos, teólogos e filó‐
sofos desenvolveram argumentos a favor da existência de Deus, argumentos que,
segundo eles, provam que Deus existe, sem margem para dúvida razoável.
É comum dividir‐se os argumentos a favor da existência de Deus em argumentos a
posteriori e argumentos a priori. Um argumento a posteriori depende de um princípio
ou premissa que só se pode conhecer através da nossa experiência do mundo. Um
argumento a priori, por outro lado, assenta supostamente em princípios que se pode
conhecer independentemente da nossa experiência do mundo, reflectindo‐se apenas
neles e compreendendo‐os. Dos três principais argumentos a favor da existência de
Deus — o argumento cosmológico, o argumento do desígnio e o argumento ontológi‐
co — apenas o último é completamente a priori. No argumento cosmológico começa‐
se com factos simples acerca do mundo, como o facto de nele haver coisas cuja exis‐
tência é causada por outras coisas. No argumento do desígnio o ponto de partida é um
facto um pouco mais complicado acerca do mundo, o facto de exibir ordem e teleolo‐
gia. No argumento ontológico, contudo, começa‐se simplesmente com um conceito de
Deus. Neste capítulo consideraremos o argumento cosmológico; nos dois capítulos
seguintes examinaremos o argumento ontológico e o argumento do desígnio.
Antes de formularmos o argumento cosmológico em si, vamos ponderar algumas
questões bastante gerais acerca do mesmo. Historicamente, remonta aos escritos dos
filósofos gregos, Platão e Aristóteles, mas o fundamental no progresso do argumento
deu‐se nos séculos XIII e XVIII. No século XIII, S. Tomás de Aquino apresentou cinco
argumentos distintos a favor da existência de Deus, dos quais os primeiros três são
versões do argumento cosmológico.1 No primeiro, Tomás começa pelo facto de haver
coisas no mundo que sofrem mudanças e conclui argumentativamente que tem de
haver uma causa última da mudança, que seja ela própria imutável. No segundo,
25
começa pelo facto de haver coisas no mundo cuja existência é claramente causada por
outras coisas e conclui argumentativamente que tem de haver uma causa última de
existência, cuja existência seja incausada. No terceiro argumento, Tomás começa pelo
facto de haver coisas no mundo que não têm sequer de existir, coisas que existem mas
que facilmente imaginamos que poderiam não existir, concluindo argumentativamen‐
te que tem de haver um ser que tem de existir, que existe e que não poderia não exis‐
tir. Poder‐se‐ia agora objectar que mesmo que os argumentos de Tomás provassem
para lá de qualquer dúvida a existência de um modificador imutável, de uma causa
incausada e de um ser que não poderia não existir, esses argumentos não conseguem
provar a existência do Deus teísta. Pois o Deus teísta, como vimos, é perfeitamente
bom, omnipotente, omnisciente e criador do mundo, mas distinto e independente
deste. Como sabemos, por exemplo, que o modificador imutável não é malévolo ou
ligeiramente ignorante? A resposta a esta objecção é que o argumento cosmológico
tem duas partes. Na primeira parte trata‐se de provar a existência de um género espe‐
cial de ser — por exemplo, um ser que não poderia não existir ou um ser que causa
mudanças nas outras coisas mas é em si imutável. Na segunda parte do argumento
trata‐se de provar que o ser especial, cuja existência se estabeleceu na primeira parte,
tem, e não pode deixar de ter, as características que formam conjuntamente a ideia
teísta de Deus — perfeita bondade, omnipotência, omnisciência e por aí em diante.
Isto significa, portanto, que os três argumentos de Tomás são versões diferentes da
primeira parte apenas do argumento cosmológico. Com efeito, em secções posteriores
da sua Summa Theologica, Tomás procura mostrar que o modificador imutável, a cau‐
sa incausada da existência e o ser que tem de existir são um e o mesmo e que este úni‐
co ser tem todos os atributos do Deus teísta.
Vimos há pouco que o segundo desenvolvimento fundamental no argumento cos‐
mológico ocorreu no século XVIII, um desenvolvimento que se reflecte nos textos do
filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646–1716) e especialmente nos textos do teólogo e
filósofo inglês Samuel Clarke (1675–1729). Em 1704, Clarke deu uma série de palestras,
publicadas mais tarde com o título A Demonstration of the Being and Attributes of God
[Demonstração da Existência e dos Atributos de Deus]. Estas palestras constituem tal‐
vez a apresentação mais completa, persuasiva e cogente que temos do argumento
cosmológico. As palestras foram lidas pelo principal filósofo céptico setecentista,
David Hume (1711–1776). No seu ataque brilhante à tentativa de justificar a religião no
tribunal da razão, os seus Diálogos Sobre a Religião Natural, Hume apresentou várias
críticas penetrantes aos argumentos de Clarke, críticas que persuadiram muitos filóso‐
fos no período moderno a rejeitar o argumento cosmológico. Ao estudar o argumento,
centrar‐nos‐emos em grande medida na sua forma setecentista e procuraremos avaliar
os seus pontos fortes e fracos à luz das críticas que Hume e outros lhe fizeram.
A primeira parte do argumento cosmológico na sua formulação setecentista procura
provar que há um ser auto‐existente. A segunda parte do argumento procura provar
que o ser auto‐existente é o Deus teísta — ou seja, que tem as características que
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vimos constituir os elementos fundamentais da ideia teísta de Deus. Consideraremos
sobretudo a primeira parte do argumento, pois é contra a primeira parte que os filóso‐
fos, de Hume a Bertrand Russell, têm apresentado objecções muito importantes.
Ao formular a primeira parte do argumento cosmológico vamos usar dois conceitos
importantes: o conceito de ser dependente e o conceito de ser auto‐existente. Por ser
dependente entendemos um ser cuja existência se explica pela actividade causal de
outras coisas. Recordando a divisão de Anselmo nos três exemplos — «explicado por
outro», «explicado por nada» e «explicado por si próprio» — é claro que um ser
dependente é um ser cuja existência se explica por outro ser. Por ser auto‐existente
entendemos um ser cuja existência se explica pela sua própria natureza. Esta ideia,
como vimos no capítulo anterior, é um elemento essencial do conceito teísta de Deus.
Mais uma vez, nos termos dos três exemplos de Anselmo, um ser auto‐existente é um
ser cuja existência se explica por si própria. Munidos destes dois conceitos, o de ser
dependente e o de ser auto‐existente, podemos agora formular a primeira parte do
argumento cosmológico.
1. Todo os ser (que existe ou que já existiu) ou é um ser dependente ou um ser auto‐
existente.
2. Nem todo o ser pode ser dependente.
Logo,
3. Existe um ser auto‐existente.
Validade dedutiva
Antes de olhar criticamente para cada uma das suas premissas, note‐se que este
argumento é, para usar uma expressão do vocabulário lógico, dedutivamente válido.
Para saber se um argumento é ou não dedutivamente válido, basta que perguntemos:
se as suas premissas forem verdadeiras, a conclusão tem de ser verdadeira? Se a res‐
posta for «sim», o argumento é dedutivamente válido. Se a resposta for «não», o
argumento é dedutivamente inválido. Repare‐se que a questão da validade de um
argumento é inteiramente diferente da questão de as suas premissas serem ou não
realmente verdadeiras. O seguinte argumento é inteiramente construído com afirma‐
ções falsas, mas é dedutivamente válido:
1. Cristiano Ronaldo é o presidente de Portugal.
2. O presidente de Portugal é de Beja.
Logo,
3. Cristiano Ronaldo é de Beja.
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O argumento é dedutivamente válido porque embora as suas premissas sejam fal‐
sas, se fossem verdadeiras a conclusão teria de ser verdadeira. Nem Deus, diria Tomás,
poderia fazer que as premissas deste argumento fossem verdadeiras e a sua conclusão
falsa, pois o poder de Deus só abrange o que é possível, e é uma impossibilidade abso‐
luta Cristiano Ronaldo ser o presidente, o presidente ser de Beja e no entanto Cristiano
Ronaldo não ser de Beja.
O argumento cosmológico (isto é, a sua primeira parte) é dedutivamente válido. Se
as suas premissas forem verdadeiras, ou se o fossem, a sua conclusão terá de ser ver‐
dadeira. O nosso exemplo sobre Cristiano Ronaldo deixa claro, contudo, que o facto de
um argumento ser dedutivamente válido é insuficiente para estabelecer a verdade da
sua conclusão. O que mais se exige? Evidentemente, que saibamos ou tenhamos uma
base racional para acreditar que as premissas são verdadeiras. Se sabemos que o argu‐
mento cosmológico é dedutivamente válido e podemos estabelecer que as suas pre‐
missas são verdadeiras, teremos assim provado que a sua conclusão é verdadeira. Será
então que as premissas do argumento cosmológico são verdadeiras? Temos de passar
agora a esta questão mais difícil.
O PRS e a primeira premissa
À partida, a primeira premissa poderá parecer uma verdade óbvia ou mesmo trivial.
Mas não é óbvia nem trivial. E se parece óbvia ou trivial, estamos forçosamente a con‐
fundir a ideia de um ser auto‐existente com a ideia de um ser que não é dependente. É
obviamente verdade que qualquer ser ou é dependente (explica‐se por outras coisas)
ou não é dependente (não se explica por outras coisas). Mas o que a nossa premissa
afirma é que qualquer ser ou é dependente (explica‐se por outras coisas) ou é auto‐
existente (explica‐se por si próprio). Considere‐se novamente os três casos de Ansel‐
mo:
A. Explica‐se por outro.
B. Explica‐se por nada.
C. Explica‐se por si próprio.
A nossa primeira premissa afirma que cada ser que existe (ou já existiu) ou pertence
ao género A ou ao género C. Nega que haja seres do género B. E é esta negação que
torna a primeira premissa simultaneamente importante e controversa. A verdade
óbvia a não confundir com esta negação é a verdade de que todo o ser ou pertence ao
género A ou não pertence ao género A. Embora seja verdade, isto nem é muito impor‐
tante nem controverso.
Vimos que Anselmo adoptou como princípio fundamental a ideia de que para tudo
o que existe há uma explicação da sua existência. Como este princípio fundamental
nega que exista ou que tenha existido algo do género B, é óbvio que Anselmo aceitaria
a primeira premissa do nosso argumento cosmológico. Os defensores setecentistas do
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argumento estavam também convencidos da verdade do princípio fundamental atri‐
buído a Anselmo. E porque estavam convencidos da sua verdade, aceitaram pronta‐
mente a primeira premissa do argumento cosmológico. Mas no século XVIII, o princí‐
pio fundamental de Anselmo foi mais amplamente elaborado e recebeu o nome prin‐
cípio da razão suficiente. Uma vez que este princípio (doravante, PRS) desempenha um
papel tão importante na justificação das premissas do argumento cosmológico, será
útil ponderarmos nele um pouco, antes de continuarmos a nossa investigação da ver‐
dade ou falsidade das premissas do argumento cosmológico.
O PRS, como expresso por Leibniz e Clarke, é um princípio muito geral e com‐
preende‐se melhor se o decompusermos em duas partes. A primeira parte é simples‐
mente uma reposição do princípio de Anselmo, de que tem de haver uma explicação
da existência de todo e qualquer ser. Assim, se encontrarmos um homem numa sala, o
PRS implica que tem de haver uma explicação para o facto de esse homem particular
existir. Um momento de reflexão, contudo, mostra que há muitos factos acerca do
homem além do simples facto de existir. Há o facto de o homem em causa se encon‐
trar presentemente naquela sala e não noutro lugar qualquer, o facto de estar de boa
saúde e o facto de estar naquele momento a pensar em Paris e não, digamos, em Lon‐
dres. O objectivo da segunda parte do PRS é exigir também uma explicação para estes
factos. Podemos formular o PRS, portanto, como o princípio de que tem de haver uma
explicação a) da existência de todo e qualquer ser e b) de qualquer facto positivo, seja ele
qual for. Estamos agora em condições de estudar o papel que este princípio muito
importante desempenha no argumento cosmológico.
Como o defensor do argumento cosmológico aceita as duas partes do PRS, é óbvio
que apelará à primeira parte, PRSa, como justificação da primeira premissa do argu‐
mento cosmológico. Claro que podemos e devemos investigar a questão mais profunda
de saber se o defensor do argumento tem uma justificação racional para aceitar o pró‐
prio PRS. Mas deixaremos esta questão de lado por enquanto. Temos de ver primeiro
se o defensor do argumento tem razão ao pensar que se o PRS for verdadeiro, então
ambas as premissas do argumento cosmológico serão verdadeiras. E acabámos de ver
que se pelo menos a primeira parte do PRS — ou seja, PRSa — for verdadeira, a pri‐
meira premissa do argumento cosmológico será verdadeira. E quanto à segunda pre‐
missa? Por que razões pensa o defensor que esta tem de ser verdadeira?
A segunda premissa
De acordo com a segunda premissa, nem todos os seres que existem podem depen‐
der de outros — isto é, nem todos podem dever a explicação da sua existência a outro
ser ou seres. Supostamente, o defensor do argumento pensa que há algo de fundamen‐
talmente errado na ideia de que todo o ser que existe depende de outros, que cada ser
existente foi causado por outro ser que por sua vez foi causado por outro ser, e por aí
em diante. Mas o que pensa ele ao certo que esteja errado nesta ideia? Para nos ajudar
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a compreender o seu pensamento, vamos simplificar as coisas supondo que agora ape‐
nas existe uma coisa, A1, talvez um ser vivo, cuja existência foi causada por outra coisa,
A2, que pereceu pouco depois de ter causado a existência de A1. Suponha‐se além disso
que a existência de A2 foi causada de modo semelhante há algum tempo por A3 e a de
A3 por A4, e por aí fora em direcção ao passado. Cada um destes seres depende de
outro; deve a sua existência ao objecto anterior da série. Se nada tivesse existido além
destes seres, então o que a segunda premissa afirma não seria verdade. Pois se todo o
ser que existe ou já existiu é um A e foi produzido por um A anterior, então todo o ser
que existe ou já existiu dependeria de outro e, consequentemente, a premissa dois do
argumento cosmológico seria falsa. Assim, se o defensor do argumento cosmológico
tiver razão, tem de haver algo errado na ideia de que todo o ser que existe ou existiu é
um A e que todos formam uma série causal: A1 causado por A2, A2 causado por A3, A3
causado por A4… An causado por An+1. Como se propõe o defensor do argumento cos‐
mológico mostrar que há algo de errado nesta perspectiva?
Uma ideia popular mas incorrecta de como o defensor tenta mostrar que algo está
errado nesta perspectiva, a perspectiva de que todo o ser pode depender de outro, é a
de que a rejeita com o seguinte argumento:
1. Tem de haver um primeiro ser para iniciar qualquer série causal.
2. Se todo o ser fosse dependente não haveria um primeiro ser para iniciar a série causal.
Logo,
3. Nem todo o ser pode ser dependente.
Embora este argumento seja dedutivamente válido e a sua segunda premissa seja
verdadeira, a sua primeira premissa ignora a possibilidade distinta de uma série causal
infinita, sem qualquer primeiro membro. Assim, se regressarmos à nossa série de seres
A, onde cada A depende de outro A, tendo sido produzido pelo A precedente na série
causal, é óbvio que se a série existisse não teria um primeiro membro; para cada A na
série haveria um A precedente que o produziu, ad infinitum. A primeira premissa do
argumento apresentado pressupõe que uma série causal tem de parar num primeiro
membro, algures no passado distante. Mas parece não haver uma boa razão para pres‐
supor isto.
Os defensores setecentistas do argumento cosmológico reconheceram que a série
causal de seres dependentes pode ser infinita, sem um primeiro membro para iniciar a
série. Rejeitaram contudo a ideia de que todo o ser que existe ou que existiu depende
de outro; não por nesse caso não haver um primeiro membro da série de seres depen‐
dentes, mas porque então o facto de haver e sempre ter havido seres dependentes não
teria explicação. Para compreender o seu raciocínio, regressemos à nossa simplificação
do pressuposto de que as únicas coisas que existem ou já existiram são seres depen‐
dentes. Na nossa simplificação desse pressuposto, apenas um dos seres dependentes
30
existe de cada vez, cada um perecendo à medida que produz o seguinte na série. Tal‐
vez a primeira coisa a observar acerca deste pressuposto seja não haver qualquer indi‐
víduo A na série causal de seres dependentes cuja existência não se explica — A1 expli‐
ca‐se por A2, A2 por A3, e An por An+1. De modo que primeira parte do PRS, PRSa, pare‐
ce cumprir‐se. Não há qualquer ser particular cuja existência careça de explicação. O
que falta explicar, então, se todos os particulares A na série causal de seres dependen‐
tes têm uma explicação? Falta explicar a própria série. Ou, como optei por exprimir, o
facto de haver e sempre ter havido seres dependentes. Suponha‐se portanto que pergun‐
tamos por que razão existem e sempre existiram seres A. Não basta afirmar que sem‐
pre houve seres A a produzir outros A — não podemos explicar por que razão sempre
houve seres A afirmando que sempre houve seres A. Tão‐pouco, supondo que nunca
existiram senão seres A, podemos explicar o facto de sempre ter havido A apelando a
qualquer outra coisa que não seja um A — pois tal coisa nunca teria existido. Assim a
suposição de que as únicas coisas que existem ou já existiram dependem de outras
deixa‐nos com um facto para o qual não pode haver explicação — nomeadamente, o
facto de haver seres dependentes em vez de não haver.
Questionando a justificação da segunda premissa
Os críticos do argumento cosmológico levantaram diversas objecções importantes à
afirmação de que se todo o ser fosse dependente, a série ou colecção desses seres não
teria explicação. A nossa compreensão do argumento cosmológico, bem como dos seus
pontos fortes e fracos, será aprofundada por uma consideração cuidadosa destas críti‐
cas.
A primeira crítica é que o defensor do argumento cosmológico comete o erro de tra‐
tar a colecção ou série de seres dependentes como se ela própria fosse um ser depen‐
dente e, portanto, exigisse uma explicação da sua existência. Mas, segundo a objecção,
a colecção de seres dependentes não é ela própria um ser dependente, do mesmo
modo que uma colecção de selos não é ela própria um selo.
A segunda crítica é que o defensor comete o erro de inferir que, porque cada mem‐
bro da colecção de seres dependentes tem uma causa, a própria colecção tem de ter
uma causa. Mas, como Russell fez notar, tal raciocínio é tão falacioso como inferir que
a espécie humana (isto é, a colecção de seres humanos) tem de ter uma mãe porque
cada membro da colecção (cada ser humano) tem uma mãe.
A terceira crítica é que o defensor do argumento não percebe que haver uma expli‐
cação para uma colecção de coisas não é mais do que haver uma explicação para cada
uma das coisas que formam a colecção. Dado que na colecção (ou série) infinita de
seres dependentes, cada ser que a compõe tem de facto uma explicação — em virtude
de ter sido causado por um membro precedente da colecção — a explicação da colec‐
ção, segundo a crítica, já foi dada. Como Hume comentou:
31
Consideraria bastante irrazoável, depois de lhe mostrar as causas particulares de
cada indivíduo numa colecção de vinte partículas de matéria, que me perguntasse
depois qual fora a causa da totalidade dos vinte. Isto foi satisfatoriamente explicado
quando se explicou a causa das partes.2
Por fim, mesmo que o defensor do argumento cosmológico possa responder satisfa‐
toriamente a estas objecções, tem ainda de enfrentar uma última objecção à sua enge‐
nhosa tentativa de justificar a segunda premissa do argumento cosmológico. Pois
podemos concordar que se nada existe além de uma colecção infinita de seres depen‐
dentes, a existência da colecção infinita não tem explicação; mas ainda assim recusar‐
mo‐nos a concluir daqui que há algo de errado na ideia de que todo o ser depende de
outro. Poder‐se‐ia perguntar: por que razão devemos pensar que tudo tem de ter uma
explicação? Que mal tem admitir que o facto de haver e sempre ter havido seres
dependentes é um facto bruto, um facto sem qualquer explicação? Por que tem de
haver uma explicação para tudo, afinal? Temos de ver agora o que se pode responder a
estas diversas objecções.
Respostas às críticas
É seguramente um erro pensar que uma colecção de selos é ela própria um selo e é
muito provavelmente um erro pensar que a colecção de seres dependentes é ela pró‐
pria um ser dependente. Mas o mero facto de pensar que tem de haver uma explicação
não só para cada membro da colecção de seres dependentes mas para a própria colec‐
ção não dá ao defensor do argumento uma razão suficiente para concluir que tem de
ver a própria colecção como um ser dependente. A colecção de seres humanos, por
exemplo, não é seguramente ela própria um ser humano. Tendo admitido isto, contu‐
do, podemos ainda assim procurar explicar por que há uma colecção de seres huma‐
nos, por que razão há coisas como seres humanos de todo em todo. Pelo que o mero
facto de se exigir uma explicação para a colecção de seres dependentes não prova que
quem pede a explicação tem de supor que a própria colecção é apenas mais um ser
dependente.
A segunda crítica atribui o seguinte pedaço de raciocínio ao defensor do argumento
cosmológico:
1. Todos os membros da colecção de seres dependentes têm uma causa ou explicação.
Logo,
2. A colecção de seres dependentes tem uma causa ou explicação.
Como vimos ao apresentar esta crítica, os argumentos deste género não são nor‐
malmente de confiança. Seria um erro concluir que uma colecção de objectos é leve
32
apenas porque cada objecto da colecção é leve, porquanto se a colecção contém mui‐
tos objectos, pode ser muito pesada. Por outro lado, se sabemos que cada berlinde
pesa mais de 28 gramas, podemos inferir validamente que a colecção de berlindes pesa
mais de 28 gramas. Felizmente, contudo, não temos de decidir se a inferência de 1 para
2 é válida ou inválida. Não precisamos de resolver esta questão porque o defensor do
argumento cosmológico não precisa de usar esta inferência para estabelecer que a
colecção de seres dependentes tem de ter uma explicação. Não precisa de usar esta
inferência porque tem no PRS um princípio do qual se segue imediatamente que a
colecção de seres dependentes tem uma causa ou explicação. Pois, segundo o PRS,
todos os factos positivos têm de ter uma explicação. Se é um facto que existe uma
colecção de seres dependentes, então, segundo o PRS, também esse facto tem de ter
uma explicação. De maneira que é ao PRS que o defensor do argumento cosmológico
apela ao concluir que a colecção de seres dependentes tem de ter uma explicação e
não a uma inferência duvidosa a partir da premissa de que cada membro da colecção
tem uma explicação. Parece então que nenhuma das primeiras críticas é suficiente‐
mente forte para levantar qualquer obstáculo sério ao raciocínio usado para sustentar
a segunda premissa do argumento cosmológico.
A terceira objecção afirma que explicar a existência de uma colecção de coisas é o
mesmo que explicar a existência de cada um dos seus membros. Se considerarmos
uma colecção de seres dependentes na qual cada ser que consta na colecção se explica
pelo membro precedente que o causou, é evidente que nenhum membro da colecção
carecerá de uma explicação para a sua existência. Mas, segundo a crítica, se explicámos
a existência de todos os membros de uma colecção, explicámos a existência da colec‐
ção — nada falta explicar. Esta crítica persuasiva, originalmente apresentada por
David Hume, teve uma aceitação considerável no período moderno. Mas a crítica
assenta num pressuposto que o defensor do argumento cosmológico não aceitaria. O
pressuposto é que para explicar a existência de uma colecção de coisas basta explicar a
existência de cada membro da colecção. Ver o que está errado neste pressuposto é
compreender o que está em causa no raciocínio desenvolvido pelo defensor do argu‐
mento cosmológico para estabelecer que nem todo o ser pode ser dependente.
Para a existência da colecção de seres dependentes ter explicação, os defensores
setecentistas teriam evidentemente de exigir que se satisfizesse as seguintes duas con‐
dições:
C1. A existência de cada membro da colecção de seres dependentes tem uma explicação.
C2. Há uma explicação da razão por que há quaisquer seres dependentes.
Segundo os defensores do argumento cosmológico, se todo o ser que existe ou já
existiu é um ser dependente — isto é, se o todo da realidade consiste em nada mais do
que uma colecção de seres dependentes — ter‐se‐á satisfeito C1, mas não C2. E como
não se satisfaz C2, não há explicação para a colecção de seres dependentes. A terceira
33
crítica afirma, na verdade, que satisfazendo‐se C1 satisfaz‐se C2 e, como numa colec‐
ção de seres dependentes cada membro se explica por seja o que for que o tenha pro‐
duzido, ter‐se‐á satisfeito C1. Logo, ter‐se‐á satisfeito C2 e a colecção de seres depen‐
dentes terá uma explicação.
Embora seja uma questão complicada, considero possível ver‐se que a terceira críti‐
ca assenta num erro: o erro de pensar que satisfazendo‐se C1 se satisfaz forçosamente
C2. Trata‐se de um erro natural, pois é fácil imaginar circunstâncias em que satisfa‐
zendo‐se C1 se satisfaz também C2. Suponha‐se, por exemplo, que no todo da realida‐
de se inclui não só uma colecção de seres dependentes mas também um ser auto‐
existente. Suponha‐se além disso que em vez de cada ser dependente ter sido produzi‐
do por outro ser dependente qualquer, todo o ser dependente foi produzido pelo ser
auto‐existente. Por fim, considere‐se simultaneamente a possibilidade de a colecção de
seres dependentes ser temporalmente finita e ter um primeiro membro, e a possibili‐
dade de a colecção de seres dependentes se prolongar infinitamente no passado, sem
qualquer primeiro membro. Usando G para representar o ser auto‐existente, pode‐se
esquematizar a primeira possibilidade do seguinte modo:
[INSERIR GRÁFICO DA PÁGINA 28]
Diremos que G sempre existiu e sempre existirá. Podemos pensar em d1 como um
ser dependente que existe presentemente, e em d2, d3, etc., como seres dependentes
que existiram num dado momento do passado, e em dn como o primeiro ser depen‐
dente a existir. Pode‐se representar a segunda possibilidade do seguinte modo:
[INSERIR GRÁFICO DA PÁGINA 29]
Neste diagrama não há qualquer primeiro membro da colecção de seres dependen‐
tes. Cada membro da colecção infinita, porém, se explica por referência ao ser auto‐
existente G, que o produziu. O que é interessante em ambos os casos é que a explica‐
ção dada para os membros da colecção de seres dependentes traz em si, pelo menos
parcialmente, uma resposta à questão de saber por que há de todo em todo seres
dependentes. Em ambos os casos podemos explicar por que há seres dependentes
indicando que há um ser auto‐existente que se tem empenhado em produzi‐los. Então,
sabendo nós que a existência de cada membro da colecção de seres dependentes se
explica pelo facto de G o ter produzido, ficámos a saber por que razão há seres depen‐
dentes.
Poder‐se‐ia objectar que não saberemos realmente por que há seres dependentes
enquanto não soubermos por que razão G os tem produzido. Mas é óbvio que podía‐
mos também afirmar que não explicámos realmente a existência de um ser dependen‐
te particular, por exemplo, d3, enquanto não soubermos também não só que G o pro‐
duziu, mas por que razão G o produziu. O que precisamos captar, contudo, é que ten‐
34
do nós admitido que a existência de todos os seres dependentes se explica por G,
temos de admitir que o facto de haver seres dependentes foi também explicado. Pelo
que é natural pensar‐se que explicar a existência dos membros da colecção de seres
dependentes nada mais é do que explicar a existência dos seus membros. Pois, como
vimos, explicar a existência da colecção é explicar a existência de cada membro e a
razão por que há de todo em todo seres dependentes. E nos exemplos que considerá‐
mos, ao fazer a primeira (explicar por que cada ser dependente existe) fizemos já a
segunda (explicar por que há de todo em todo seres dependentes). Temos agora de
ver, contudo, que supondo que o todo da realidade consiste apenas numa colecção de
seres dependentes, explicar a existência de cada membro não é o mesmo que explicar
por que razão há seres dependentes.
Nos exemplos que considerámos, saímos da colecção de seres dependentes para
explicar a existência dos membros. Mas se os únicos seres que existem ou já existiram
são dependentes, então cada ser dependente será explicado por outro ser dependente
qualquer, ad infinitum. Isto não significa que haverá um ser dependente particular cuja
existência é inexplicada. Cada ser dependente tem uma explicação da sua existência —
nomeadamente, no ser dependente que o precedeu e produziu. Pelo que se satisfaz C1:
há uma explicação da existência de cada membro da colecção de seres dependentes.
Voltando a C2, contudo, podemos ver que não será satisfeita. Não podemos explicar
por que há (ou alguma vez houve) seres dependentes apelando a todos os membros de
uma colecção infinita de seres dependentes. Pois se a questão a que se tem de respon‐
der é a de saber por que há de todo em todo seres dependentes (ou alguma vez hou‐
ve), não podemos responder‐lhe indicando que sempre houve seres dependentes, cada
um dos quais explica a existência de outro ser dependente qualquer. Assim, supondo
que todo o ser é dependente, parece que não haverá explicação da razão por que há
seres dependentes. C2 não será satisfeita. Logo, supondo que todo o ser é dependente,
não haverá qualquer explicação para a existência da colecção de seres dependentes.
A verdade do PRS
Chegamos agora à última crítica ao raciocínio que sustenta a segunda premissa do
argumento cosmológico. Segundo esta crítica, admite‐se que a suposição de que todo
o ser é dependente implica que haverá um facto bruto no universo — isto é, um facto
para o qual não pode haver qualquer explicação. Pois não haverá qualquer explicação
para o facto de existir e sempre ter existido seres dependentes. É este facto bruto que
os defensores do argumento descreviam ao chamar a atenção para que se todo o ser
depende de outro, a existência da própria série ou colecção de seres dependentes care‐
ce de explicação. A última crítica pergunta que mal há em admitir que o universo con‐
tém tal facto bruto e ininteligível. Ao fazer esta pergunta o crítico desafia o princípio
fundamental, PRS, em que assenta o argumento cosmológico. Pois, como vimos, a
primeira premissa do argumento nega que exista um ser cuja existência não tenha
35
explicação. Para sustentar esta premissa o defensor apela à primeira parte do PRS. A
segunda premissa do argumento afirma que nem todo o ser pode depender de outro.
Para sustentar esta premissa o defensor apela à segunda parte do PRS, a parte que
afirma ter de haver uma explicação para todo e qualquer facto positivo.
O defensor raciocina que se todo o ser dependesse de outros, então mesmo que se
satisfizesse a primeira parte do PRS — todo o ser teria uma explicação — violar‐se‐ia a
segunda parte: não haveria explicação para o facto positivo de haver e sempre ter
havido seres dependentes. Em primeiro lugar, como todo o ser é supostamente depen‐
dente, nada haveria fora da colecção de seres dependentes para explicar a existência da
colecção. Em segundo lugar, o facto de cada membro da colecção se explicar por outro
ser dependente qualquer é insuficiente para explicar por que há e sempre houve seres
dependentes. Por fim, nada há na colecção de seres dependentes que sugira que a pró‐
pria colecção é auto‐existente. Consequentemente, se todo o ser fosse dependente, o
facto de haver e sempre ter havido seres dependentes não teria explicação. Mas isto
viola a segunda parte do PRS. Pelo que a segunda premissa do argumento cosmológico
tem de ser verdadeira: nem todo o ser pode ser dependente. Esta conclusão, contudo,
não é melhor do que o princípio, PRS, em que assenta. E questionar a verdade do PRS
é o que está em causa na última crítica. Por que, afinal, devemos aceitar a ideia de que
todo o ser e todo o facto positivo têm de ter uma explicação? Por que, resumindo,
devemos acreditar no PRS? Estas são questões importantes e qualquer juízo último do
argumento cosmológico depende de como se lhes responde.
Na sua maioria, os teólogos e filósofos que aceitam o PRS tentaram defendê‐lo de
uma de duas maneiras. Alguns defenderam que se conhece (ou pode conhecer) a ver‐
dade do PRS intuitivamente. Querem com isto dizer que se compreendermos inte‐
gralmente e reflectirmos no que o PRS afirma podemos ver que tem de ser verdadeiro.
Sem dúvida que há afirmações cuja verdade se conhece intuitivamente. «Todos os
triângulos têm exactamente três ângulos» ou «Nenhum objecto físico pode ocupar
duas regiões diferentes do espaço ao mesmo tempo» são exemplos de afirmações cuja
verdade podemos apreender compreendendo‐as apenas e reflectindo nelas. A dificul‐
dade de afirmar que se conhece a verdade do PRS intuitivamente, contudo, é que
diversos filósofos bastante capazes não conseguem, após uma reflexão cuidada,
apreender a sua verdade, e alguns desenvolveram argumentos sérios sustentando a
conclusão de que o princípio é de facto falso.3 É evidente, portanto, que nem todos os
que reflectiram no PRS ficaram persuadidos da sua verdade e há quem esteja conven‐
cido de que há boas razões para pensar que é falso. Mas embora o facto de alguns pen‐
sadores capazes não conseguirem apreender a verdade do PRS, e de poderem mesmo
argumentar que é falso, seja uma razão decisiva para pensar que o PRS não é uma ver‐
dade tão óbvia como, por exemplo, «Nenhum objecto físico pode ocupar duas regiões
diferentes do espaço ao mesmo tempo», não basta para estabelecer que o PRS não é
uma verdade de razão. Talvez nesta fase tudo o que se pode fazer seja reflectir cuida‐
dosamente no que o PRS afirma e formar um juízo autónomo sobre se é uma verdade
36
fundamental acerca do modo como a realidade tem de ser. E se após reflectir cuidado‐
samente no PRS se tiver esta impressão, pode‐se ter justificação racional para o consi‐
derar verdadeiro e, tendo visto que sustenta as premissas do argumento cosmológico,
aceitar como verdadeira a conclusão deste argumento.
A segunda maneira pela qual os filósofos e os teólogos que aceitam o PRS procura‐
ram defendê‐lo é afirmando que embora se possa desconhecer a sua verdade, é ainda
assim uma pressuposição da razão, um pressuposto fundamental que as pessoas racio‐
nais fazem, reflictam ou não o suficiente para estarem cientes desse pressuposto. É
provavelmente verdade que há alguns pressupostos que todos fazemos acerca do
mundo, pressupostos tão fundamentais que não estamos, maioritariamente, cientes
deles. E suponho que seja talvez verdade que o PRS é um pressuposto deste género.
Que relevância teria esta perspectiva do PRS para o argumento cosmológico? Talvez o
principal a reter seja que mesmo que o PRS seja um pressuposto que todos partilha‐
mos, as premissas do argumento cosmológico podem ainda assim ser falsas. Pois o
próprio PRS pode ainda assim ser falso. O facto, se é que se trata de um facto, de todos
pressupormos que todo o ser existente e todo o facto positivo têm uma explicação não
implica que nenhum ser existe e nenhum facto positivo se verifica sem que qualquer
deles tenha, respectivamente, uma explicação. A natureza não é obrigada a satisfazer
os nossos pressupostos. Como em tempos comentou o filósofo americano William
James a propósito de outro assunto: «Na grande hospedaria da natureza, raramente os
bolos, a manteiga e o xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos».
O nosso estudo da primeira parte do argumento cosmológico levou‐nos ao princí‐
pio fundamental em que assentam as suas premissas, o princípio da razão suficiente.
Vimos que excepto se o PRS nos parecer algo, depois de uma reflexão ponderada, de
cuja verdade temos a certeza, não podemos razoavelmente afirmar saber que as pre‐
missas do argumento cosmológico são verdadeiras. Claro que podem ser verdadeiras.
Mas a menos que saibamos que são verdadeiras, não podem servir‐nos para estabelecer
a conclusão de que há um ser cuja existência se explica pela sua própria natureza. Se
contudo se mostrasse que embora não saibamos que o PRS é verdadeiro, todos pressu‐
pomos, não obstante, que o PRS é verdadeiro, então, quer o PRS seja ou não verdadei‐
ro, para ser consistentes devemos aceitar o argumento cosmológico. Pois, como vimos,
as suas premissas implicam a conclusão e parecem de facto seguir‐se do PRS. Mas nin‐
guém conseguiu ainda mostrar que o PRS é um pressuposto partilhado maioritaria‐
mente ou por todos. Pelo que a nossa conclusão final tem de ser que, à excepção dos
que após uma reflexão ponderada concluem razoavelmente que o PRS é uma verdade
fundamental de razão, o argumento cosmológico não nos dá uma boa base racional
para acreditar que entre os seres que existem há um cuja existência se explica pela sua
própria natureza. E uma vez que a concepção clássica de Deus é a de um ser cuja exis‐
tência se explica pela sua própria natureza, além da excepção apontada, o argumento
cosmológico é incapaz de nos dar uma boa base racional para acreditar que Deus exis‐
te.
37
O argumento cosmológico kalam
Uma versão do argumento cosmológico que tem a sua origem na filosofia árabe tem
sido também alvo de atenção na filosofia contemporânea da religião. Ao contrário da
versão de Samuel Clarke, que admite a possibilidade de uma série interminável de
acontecimentos que se prolongue infinitamente no passado, segundo o argumento
kalam é impossível que exista um infinito efectivo. Se este aspecto do argumento kalam
está correcto, então, como uma série efectiva de acontecimentos que se prolonga
interminavelmente no passado seria um infinito efectivo, é impossível que exista tal
série. Isto não significa que não pode haver uma série potencialmente infinita, uma
série que em qualquer momento em que a consideramos é finita mas à qual se pode
adicionar sucessivamente elementos ad infinitum. Pois tal série nunca seria efectiva‐
mente infinita. Mas por que razão se afirma que é impossível uma série infinita efectiva
de acontecimentos que levam do passado ao presente? Considere‐se tal série intermi‐
nável de acontecimentos do passado. Suponha‐se que cada um destes acontecimentos
demora uma certa quantidade de tempo, por muito pequena que seja, a ocorrer. Por
muito pouco tempo que cada acontecimento leve a ocorrer, afirma‐se que dado não
haver qualquer primeiro acontecimento na série de acontecimentos do passado, nunca
se poderia chegar ao ponto onde estamos, o presente.
Se concedemos a impossibilidade de um infinito efectivo, podemos ter a certeza de
que o nosso universo teve um começo. Pois se o nosso universo nunca teve um come‐
ço, então a série de acontecimentos em que consiste a sua existência temporal do pas‐
sado constituiria um infinito efectivo. Contudo, a confiança que temos no facto de o
nosso universo ter tido um começo não tem de se apoiar neste argumento filosófico;
pois segundo as melhores estimativas da ciência actual o nosso universo teve de facto
um começo. Começou a existir há cerca 14,5 mil milhões de anos, o planeta Terra há
cerca de 4,5 mil milhões de anos e os seres vivos na Terra há cerca de 3,5 mil milhões
de anos.
Podemos agora enunciar o primeiro passo do argumento cosmológico kalam do
seguinte modo:
1. Se o nosso universo nunca teve um começo, ocorreu uma série infinita efectiva de
acontecimentos.
2. Uma série infinita efectiva de acontecimentos no tempo é impossível.
Logo,
3. O nosso universo teve um começo.
O segundo passo do argumento kalam levanta a questão de o começo do nosso uni‐
verso ter ou não uma causa. É importante ver que, segundo a ciência actual, o começo
do nosso universo assinala também o começo do tempo.4 Assim, não há simplesmente
38
qualquer momento no tempo antes do começo do nosso universo, qualquer momento
prévio em que algo ou alguém pudesse agir de modo a causar o início do nosso univer‐
so. Isto significa que se o nosso universo tivesse uma causa, essa causa (qualquer que
fosse) não podia ter causado o nosso universo, existindo num momento qualquer do
tempo antes de o nosso universo existir, agindo então de maneira a causar a existência
do nosso universo. Como poderia então a existência do nosso universo ter sido causa‐
da? Um eminente defensor do argumento cosmológico kalam, William Lane Craig,
reparou que vários filósofos admitiram a causalidade simultânea. Craig cita um exem‐
plo dado por Immanuel Kant: o assentar de uma bola pesada numa almofada ser a
causa de uma concavidade nessa almofada. Craig conclui:
Parece não haver qualquer dificuldade conceptual em afirmar que a causa da origem
do universo agiu simultaneamente (ou coincidentemente) ao originar do universo.
Devíamos portanto afirmar que a causa da origem do universo é causalmente anterior ao
Big Bang, embora não lhe seja temporalmente anterior.5
A ideia, portanto, é que o tempo começa com o começo do universo. A causa do
universo, qualquer que seja, não é em si temporal, uma vez que se requer a sua exis‐
tência para que o universo (e o tempo) comecem a existir. Que propriedades tem uma
entidade intemporal de ter para causar intemporalmente a existência de um universo
temporal, partindo do princípio de que a razão nos exige que suponhamos que o Big
Bang tem de ter uma causa? Craig pensa que tal entidade teria as propriedades que
constituem o Deus do teísmo tradicional: perfeita bondade, omnisciência e omnipo‐
tência. Permanece a questão de um ser ter realmente de ter ou não estas três proprie‐
dades para ser a causa intemporal do universo temporal. Presumivelmente, um ser
com estas propriedades seria capaz de causar a existência do universo temporal. Mas
ao inferir, a partir do que nos parece ter sido causado (o nosso universo), a natureza
do ser que o causou, não podemos simplesmente pressupor que o ser tem proprieda‐
des que não são de modo algum necessárias para poder ser a causa do nosso universo.
Um ser com poder e conhecimento suficientes para causar um universo temporal não
tem de ter conhecimento absoluto de tudo o que é cognoscível (não tem de ser omnis‐
ciente). Tão‐pouco tem de ser perfeitamente bom. Além disso, se olharmos para a qua‐
lidade de uma parte do que foi produzido, o único planeta no universo com que esta‐
mos familiarizados, dificilmente poderíamos pensar que a causa do nosso universo
teria de ser moralmente perfeita. É muito difícil argumentar que um ser com poder e
conhecimento suficientes, embora carecendo da perfeita bondade, seria incapaz de
causar a existência do nosso universo. Esta objecção, contudo, não mostra que o
argumento cosmológico kalam não pode desempenhar um papel importante na defesa
do teísmo tradicional. Pois o argumento cosmológico, quer na forma tradicional apre‐
sentada por Clarke, quer na versão kalam, é apenas um de vários argumentos impor‐
tantes a favor da existência do Deus teísta. Se o argumento kalam sustenta a existência
39
de um criador do universo, outro argumento qualquer pode sustentar a conclusão de
que um criador seria moralmente perfeito. E tal como um ramo pode ser insuficiente
para suster um objecto pesado embora um feixe de vários ramos seja suficiente, tam‐
bém os vários argumentos tomados em conjunto podem ser suficientes para sustentar
a existência de um ser omnisciente, omnipotente, perfeitamente bom e criador do
mundo.
Revisão
1. Formule a primeira parte do argumento cosmológico e descreva o que se entende por
um ser dependente e por um ser auto‐existente.
2. Explique o que se entende por princípio da razão suficiente.
3. Descreva resumidamente as diversas objecções que se tem levantado contra o raciocí‐
nio usado para justificar a afirmação de que nem todo o ser pode ser dependente.
Alguma dessas objecções é boa?
4. Como têm os filósofos procurado defender o princípio da razão suficiente?
5. Se não se conhece a verdade do princípio da razão suficiente, que conclusão devemos
retirar quanto ao argumento cosmológico?
Estudo complementar
1. Discuta a seguinte resposta ao argumento cosmológico:
Talvez possamos explicar a existência do mundo supondo que Deus existe e o criou.
Mas resta‐nos então a existência de Deus. Como vamos explicá‐la? Se afirmamos que a
existência de Deus não tem explicação, podemos afirmar a mesma coisa acerca do
mundo. Se afirmamos que a existência de Deus se explica por si própria, podemos
afirmar a mesma coisa acerca do mundo. Portanto, a hipótese mais simples é ou que o
mundo não tem explicação ou que se explica a si próprio.
2. Na vida humana explicamos constantemente uma coisa através de outra, ainda que
sejamos incapazes de explicar a segunda. Se, em todos os nossos assuntos práticos, as
explicações têm de chegar a um fim, será que isso não mostra que o princípio da razão
suficiente é falso, ou pelo menos que é uma ideia imprática? Discuta.
Notas
1. S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, 1a, 2, 3, em The Basic Writings of Saint Tho‐
mas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).
2. David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, pt. IX, org. H. D. Aiken (Nova
Iorque: Hafner Publishing Company, 1948), pp. 59–60. [Diálogos Sobre a Religião Natu‐
ral, Edições 70, Lisboa, 2005.]
40
3. Para uma breve explicação de dois destes argumentos ver o prefácio do meu The Cos‐
mological Argument (Nova Iorque: Fordham University Press, 1998).
4. Ver a famosa palestra de Stephen Hawking: «The Beginning of Time» em
http://www.hawking.org.uk/lectures/bot.html.
5. «Creation and Big‐Bang Cosmology»,
http://www.leaderu.com/offices/billcraig/docs/creation.html.
41
Capítulo 3
O argumento ontológico
Talvez seja melhor pensar no argumento ontológico não como um único argumento
mas como uma família de argumentos, em que cada membro começa com um concei‐
to de Deus e, apelando apenas a princípios a priori, procura estabelecer que Deus exis‐
te efectivamente. Nesta família de argumentos, o mais importante historicamente é o
apresentado por Anselmo no segundo capítulo do seu Proslogium (um discurso).1 Na
verdade, é justo afirmar que o argumento ontológico começa com o Capítulo 2 do
Proslogium de S. Anselmo. Numa obra anterior, Monologium (um solilóquio), Ansel‐
mo procurara estabelecer a existência e natureza de Deus entretecendo diversas ver‐
sões do argumento cosmológico. No prefácio ao Proslogium Anselmo comenta que
após a publicação do Monologium começou a procurar um único argumento que por si
só estabelecesse a existência e natureza de Deus. Depois de muito esforço árduo e
infrutífero, Anselmo diz‐nos que procurou afastar o projecto da sua mente, para se
dedicar a tarefas mais compensadoras. A ideia, contudo, continuou a assombrá‐lo até
que um dia se lhe tornou clara a prova que procurara tão arduamente. É esta prova
que Anselmo apresenta no segundo capítulo do Proslogium.
Conceitos fundamentais
Antes de apresentar passo a passo o argumento de Anselmo, será útil introduzir
alguns conceitos que nos ajudarão a compreender algumas das ideias centrais que
figuram no argumento. Suponha‐se que desenhamos, na nossa imaginação, uma linha
vertical e imaginamos que no lado esquerdo da nossa linha estão todas as coisas que
existem e no lado direito da linha estão todas as coisas que não existem. Podíamos
então começar a fazer uma lista de algumas coisas que estão em ambos os lados da
nossa linha imaginária. A lista poderia começar da seguinte maneira:
COISAS QUE EXISTEM COISAS QUE NÃO EXISTEM
O Empire State Building A Fonte da Juventude
Cães Unicórnios
O planeta Marte O Abominável Homem das Neves
Cada uma das coisas (ou géneros de coisas) apresentadas até agora tem a seguinte
característica: logicamente, podia estar no outro lado da linha. A Fonte da Juventude,
42
por exemplo, está no lado direito da linha mas logicamente nada há de absurdo na
ideia de que a Fonte da Juventude podia estar no lado esquerdo. De igual modo,
embora os cães existam, podemos seguramente imaginar, sem cair em qualquer
absurdo lógico, que os cães podiam não ter existido: podiam estar no lado direito da
linha. Registemos então esta característica das coisas até agora apresentadas, introdu‐
zindo a ideia de coisa contingente: algo que podia logicamente estar no lado da linha
oposto ao lado onde efectivamente está. O planeta Marte e o Abominável Homem das
Neves são coisas contingentes apesar de o primeiro existir e o último não.
Suponha‐se que acrescentamos algo à nossa lista, escrevendo no lado direito a
expressão «o objecto que é ao mesmo tempo completamente redondo e completamen‐
te quadrado». O quadrado redondo, contudo, ao contrário das outras coisas apresen‐
tadas no lado direito da linha, é algo que logicamente não podia estar no lado esquer‐
do. Vendo isto, introduzamos a ideia de coisa impossível como algo que está no lado
direito da linha e logicamente não podia estar no lado esquerdo.
Olhando mais uma vez para a nossa lista, surge a questão de haver ou não alguma
coisa no lado esquerdo da nossa linha imaginária que, ao contrário das coisas apresen‐
tadas até agora no lado esquerdo, logicamente não poderia estar no lado direito. Por
enquanto, não temos de responder a esta questão. Mas é útil ter um conceito para
aplicar a quaisquer coisas desse género, se as houver. Consequentemente, introduza‐
mos a noção de coisa necessária: algo que está no lado esquerdo da nossa linha imagi‐
nária e logicamente não podia estar no direito.
Por fim, podemos introduzir a ideia de coisa possível: qualquer coisa que ou está no
lado esquerdo da nossa linha imaginária ou podia logicamente estar no lado esquerdo.
As coisas possíveis, portanto, serão todas aquelas que não são impossíveis — isto é,
todas aquelas que são ou contingentes ou necessárias. Se não há coisas necessárias,
então todas as coisas possíveis serão contingentes e todas as coisas contingentes serão
possíveis. Se há algo necessário, contudo, então haverá algo possível que não é contin‐
gente.
Munidos com os conceitos que se acabou de explicar podemos passar à clarificação
de certas distinções e ideias importantes no pensamento de Anselmo. A primeira é a
distinção entre a existência no entendimento e a existência na realidade. A noção que
Anselmo tem de existência na realidade é a mesma que a nossa noção de existência —
isto é, estar no lado esquerdo da nossa linha imaginária. Como a Fonte da Juventude
está no lado direito da linha, não existe na realidade. As coisas que existem são, para
usar a expressão de Anselmo, as que existem na realidade. A noção que Anselmo tem
de existência no entendimento, contudo, é diferente de qualquer ideia que normal‐
mente usemos. Mas o que Anselmo quer dizer com «existência no entendimento» não
é particularmente misterioso. Quando pensamos numa determinada coisa, por exem‐
plo, na Fonte da Juventude, essa coisa, na perspectiva de Anselmo, existe no entendi‐
mento. Pelo que algumas coisas que estão em ambos os lados da nossa linha imaginá‐
ria existem no entendimento, mas apenas as que estão no lado esquerdo da linha exis‐
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tem na realidade. Haverá alguma coisa que não exista no entendimento? Sem dúvida.
Porquanto há coisas, quer existentes quer inexistentes, nas quais nunca pensámos.
Suponha‐se agora que afirmo que a Fonte da Juventude não existe. Como para negar
inteligivelmente a existência de algo tenho de ter esse algo em mente, segue‐se, na
perspectiva de Anselmo, que sempre que alguém afirma que algo não existe, esse algo
existe no entendimento.2 Pelo que ao afirmar que a Fonte da Juventude não existe
estou a pressupor que a Fonte da Juventude existe no entendimento. E ao afirmar que
não existe afirmei (na perspectiva de Anselmo) que não existe na realidade. Isto signi‐
fica que a minha afirmação simples de que a Fonte da Juventude não existe equivale à
afirmação algo mais complexa de que a Fonte da Juventude existe no entendimento
mas não na realidade — em resumo, que a Fonte da Juventude existe apenas no
entendimento.
Tendo em conta o que foi dito, podemos compreender por que Anselmo insiste que
qualquer pessoa que ouve Deus, pensa em Deus, ou até mesmo que nega a existência
de Deus está ainda assim comprometida com a perspectiva de que Deus existe no
entendimento. Além disso, podemos compreender por que Anselmo trata aquilo a que
chama a afirmação do tolo, de que Deus não existe, como a afirmação de que Deus
existe apenas no entendimento — isto é, que Deus existe no entendimento mas não na
realidade.
No Monologium, Anselmo procurou provar que entre os seres que efectivamente
existem há um que é o maior, o mais elevado e o melhor. Mas no Proslogium, Anselmo
empenha‐se em provar que entre as coisas que existem, há uma que não só é a maior
entre os seres existentes, mas é tal que nenhum ser concebível é maior. Temos de dis‐
tinguir entre estas duas ideias: 1) um ser maior do que o qual nenhum ser existe, e 2)
um ser maior do que o qual nenhum ser é concebível. Se as únicas coisas a existir fos‐
sem uma pedra, uma rã e um ser humano, a última destas, o ser humano, satisfaria a
nossa primeira ideia mas não a segunda — pois podemos conceber um ser (um anjo ou
Deus) maior do que um humano. A ideia que Anselmo tem de Deus, como a exprime
no Proslogium, Capítulo 2, é a mesma que em 2 acima; é a ideia de «um ser maior do
que o qual nada se pode conceber». Penso que nos será mais fácil compreender o
argumento de Anselmo se fizermos duas ligeiras alterações ao modo como ele expri‐
miu a sua ideia de Deus. No lugar da sua expressão colocarei o seguinte: «o ser maior
do que o qual nenhum é possível».3 Esta ideia diz que se um determinado ser é Deus,
então nenhum ser possível pode ser maior do que aquele; ou, conversamente, se um
dado ser é tal que é possível haver um maior do que ele, então esse ser não é Deus. O
que Anselmo se propõe então demonstrar é que o ser maior do que o qual nenhum é
possível existe na realidade. Demonstrando isto, terá demonstrado que Deus, como o
concebe, existe na realidade.
Mas o que entende Anselmo por maior? Será um edifício, por exemplo, maior do
que um homem? Anselmo observa: «Mas não me refiro à grandeza física, o modo
como um objecto material é grande, mas àquilo que é tanto maior quanto melhor ou
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mais digno é — a sabedoria, por exemplo».4 Contraste‐se a sabedoria com o tamanho.
Anselmo afirma que a sabedoria é algo que contribui para a grandeza de uma coisa. Se
algo passa a ter mais sabedoria do que antes (permanecendo as outras características
na mesma), então esse algo tornou‐se maior, melhor, mais digno do que antes. Ansel‐
mo afirma que a sabedoria é uma qualidade produtora de grandeza. Mas o mero facto
de algo aumentar em tamanho (grandeza física) não torna esse algo melhor do que era
antes. Pelo que o tamanho, ao contrário da sabedoria, não é uma qualidade produtora
de grandeza. Por maior do que Anselmo entende melhor do que, superior a, ou mais
digno do que, e considera que algumas características, como a sabedoria e a bondade
moral, são produtoras de grandeza, na medida em que qualquer coisa que as tenha se
torna uma coisa melhor do que seria se não as tivesse (mantendo‐se iguais as suas
outras características).
Chegamos agora ao que podemos chamar a ideia crucial no argumento ontológico
de Anselmo. Anselmo pensa que a existência na realidade é uma qualidade produtora
de grandeza. Como devemos entender esta ideia? Será que Anselmo quer dizer que
uma coisa que existe é maior do que uma que não existe? Embora Anselmo não colo‐
que esta questão nem lhe responda, é talvez razoável pensar que não queria dizer isto.
Isto porque quando discute a sabedoria como uma qualidade produtora de grandeza,
Anselmo tem o cuidado de não afirmar que qualquer coisa sábia é melhor do que
qualquer coisa néscia; Anselmo reconhece que uma pessoa justa mas néscia pode ser
melhor do que uma pessoa sábia mas injusta.5 Sugiro que Anselmo queria que qual‐
quer coisa que não existe mas podia ter existido (que está no lado direito da nossa
linha mas podia estar no esquerdo) seria maior do que é se tivesse existido (se estives‐
se no lado esquerdo da nossa linha). Anselmo não está a comparar duas coisas diferen‐
tes (uma existente e outra inexistente), afirmando que a primeira é portanto maior do
que a segunda. Ao invés, está a falar acerca de uma única coisa e a chamar a atenção
para o facto de que se não existe mas podia ter existido, então essa coisa seria maior se
tivesse existido. Usando a distinção que Anselmo faz entre a existência no entendi‐
mento e a existência na realidade, podemos exprimir do seguinte modo a ideia crucial
do seu raciocínio: Se algo existe apenas no entendimento, mas podia ter existido na
realidade, então podia ser maior do que é. Como a Fonte da Juventude, por exemplo,
existe apenas no entendimento mas, ao contrário do quadrado redondo, podia existir
na realidade, segue‐se do princípio de Anselmo que a fonte da juventude podia ser
maior do que é.
Desenvolvendo o argumento ontológico de Anselmo
Depois de termos visto algumas das ideias importantes em causa no argumento
ontológico de Anselmo, podemos considerar o seu desenvolvimento gradual. Ao apre‐
sentar o argumento de Anselmo vou usar o termo Deus em lugar da expressão mais
45
longa «o ser maior do que o qual nenhum é possível»; sempre que o termo Deus apa‐
rece devemos pensar nele apenas como uma abreviatura da expressão mais longa.
1. Deus existe no entendimento.
Como vimos, quem quer que tenha ouvido falar no ser maior do que o qual nenhum é
possível está, na perspectiva de Anselmo, comprometido com a premissa 1.
2. Deus poderia existir na realidade (Deus é um ser possível).
Creio que Anselmo supõe a verdade da premissa 2 sem que o faça de modo explícito
na sua argumentação. Ao afirmar 2, não pretendo sugerir que Deus não existe na reali‐
dade. Tudo o que se quer dizer é que, ao contrário do quadrado redondo, Deus é um
ser possível.
3. Se algo existe apenas no entendimento e podia existir na realidade, então podia ser
maior do que é.
Como vimos, esta é a ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo. Pretende‐se
que seja um princípio geral que se aplica a qualquer coisa.
Os passos 1 a 3 constituem as premissas fundamentais do argumento ontológico de
Anselmo. Destes três itens segue‐se, segundo Anselmo, que Deus existe na realidade.
Mas como se propõe Anselmo convencer‐nos de que se aceitamos as premissas de 1 a 3
estamos comprometidos pelas regras da lógica a aceitar a sua conclusão de que Deus
existe na realidade? Anselmo defende a sua conclusão apresentando o que se chama
uma «demonstração por reductio ad absurdum». Em vez de mostrar directamente que
a existência de Deus se segue das premissas 1 a 3, Anselmo convida‐nos a supor que
Deus não existe (isto é, que a conclusão que ele deseja estabelecer é falsa) e então
mostra como esta suposição, quando a combinamos com as premissas de 1 a 3, leva a
um resultado absurdo, um resultado que não podia de modo algum ser verdadeiro
porque é contraditório. Em resumo, com a ajuda das premissas 1 a 3 Anselmo mostra
que a suposição de que Deus não existe se reduz a um absurdo. Uma vez que a suposi‐
ção de que Deus não existe leva a um absurdo, tem de se rejeitar essa suposição, a
favor da conclusão de que Deus existe.
Conseguirá Anselmo reduzir ao absurdo a crença do tolo, de que Deus não existe? A
melhor maneira de responder a esta questão é seguir os passos do seu argumento.
4. Suponha‐se que Deus existe apenas no entendimento.
Esta suposição, como vimos, é a maneira de Anselmo exprimir a crença do tolo de que
Deus não existe.
5. Deus podia ser maior do que é. (2, 4 e 3)6
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O passo 5 segue‐se dos passos 2, 4 e 3. Como 3, se for verdadeiro, se aplica a qualquer
coisa, aplicar‐se‐á a Deus. O passo 3, portanto, implica que se Deus existe apenas no
entendimento e podia existir na realidade, então Deus podia ser maior do que é. Se é
assim, então dados os passos 2 e 4, o passo 5 tem de ser verdadeiro. Porquanto o que o
passo 3 afirma, quando aplicado a Deus, é que dados os passos 2 e 4, segue‐se 5.
6. Deus é um ser maior do que o qual é possível haver outro.
Seguramente que se Deus é tal que podia logicamente ter sido maior, então Deus é um
ser tal que é possível haver outro maior.
Estamos agora em condições de avaliar o argumento por redução ao absurdo de
Anselmo. Mostrou‐nos que se aceitamos os passos de 1 a 4 temos de aceitar o passo 6.
Mas 6 é inaceitável; é o absurdo que Anselmo procurava. Isto porque ao substituir
Deus no passo 6 pela expressão mais longa à qual serve de abreviação, vemos que 6
equivale à seguinte afirmação absurda:
7. O ser maior do que o qual nenhum é possível é um ser tal que um ser maior é possível.
Como os passos de 1 a 4 nos levam a uma conclusão obviamente falsa, se aceitarmos as
premissas 1 a 3, as premissas fundamentais de Anselmo, como verdadeiras, então
temos de rejeitar como falsa a premissa 4: a suposição de que Deus existe apenas no
entendimento. Assim mostrámos que:
8. É falso que Deus exista apenas no entendimento.
Mas uma vez que a premissa 1 nos diz que Deus existe no entendimento, e a premissa
8 nos diz que Deus não existe apenas aí, podemos inferir que:
9. Deus existe na realidade bem como no entendimento. (1, 8)
O que dizer deste argumento? Na sua maioria, os filósofos que o ponderaram rejei‐
taram‐no devido à convicção fundamental de que a partir da análise lógica de uma
certa ideia ou conceito nunca podemos determinar se existe na realidade qualquer
coisa que satisfaça essa ideia ou conceito.
Podemos examinar, por exemplo, a ideia de um elefante ou a ideia de um unicórnio,
mas é apenas através da experiência que temos do mundo que podemos determinar se
existem coisas que satisfaçam a nossa primeira ideia e não a segunda. Anselmo, contu‐
do, pensa que o conceito de Deus é absolutamente único; pensa que a partir de uma
análise deste conceito se pode determinar que existe na realidade um ser que o satis‐
faz. Além disso, Anselmo apresenta‐nos um argumento para mostrar que isso se pode
fazer no caso da ideia de Deus. Podemos, como é óbvio, rejeitar simplesmente o seu
argumento por violar a convicção fundamental acima indicada. Muitos críticos, con‐
tudo, procuraram provar de um modo mais directo que o argumento de Anselmo é
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mau e chamar a atenção para o passo particular que está incorrecto. No que se segue,
examinaremos as três principais objecções que foram apresentadas pelos críticos do
argumento.
A crítica de Gaunilo
A primeira crítica importante foi apresentada por um contemporâneo de Anselmo,
um monge de nome Gaunilo, que escreveu uma objecção intitulada «Em Defesa do
Tolo».7 Gaunilo procurou provar que o raciocínio de Anselmo é incorrecto, aplicando‐
o a coisas que não são Deus, coisas que sabemos que não existem. Gaunilo tomou
como exemplo a ilha maior do que a qual nenhuma é possível. Não existe realmente
qualquer ilha assim. Mas, argumenta Gaunilo, se o raciocínio de Anselmo estivesse
correcto podíamos mostrar que tal ilha existe realmente. Como existir é maior do que
não existir, se a ilha maior do que a qual nenhuma é possível não existe, então essa é
uma ilha maior do que a qual é possível haver outra. Mas é impossível que a ilha maior
do que a qual nenhuma é possível seja uma ilha maior do que a qual é possível haver
outra. Portanto, a ilha maior do que qual nenhuma é possível tem de existir. Acerca
deste argumento, comenta Gaunilo:
Se um homem tentasse mostrar‐me através de tal raciocínio que esta ilha existe
realmente e que não se devia duvidar mais da sua existência, das duas, uma: ou pensava
que ele estava a brincar, ou já não sabia qual de nós era o maior tolo: eu mesmo, supon‐
do que aceitava esta prova; ou ele, se supusesse que tinha estabelecido com alguma cer‐
teza a existência desta ilha.8
A estratégia de Gaunilo é clara. Usando o mesmo raciocínio que Anselmo usa no
seu argumento, podemos provar a existência de coisas que sabemos que não existem.
Portanto, o raciocínio de Anselmo na sua prova da existência de Deus tem de estar
incorrecto. Na sua resposta a Gaunilo, Anselmo insistiu em que o seu raciocínio se
aplica apenas a Deus e não pode ser usado para estabelecer a existência de outras coi‐
sas além de Deus. Infelizmente, Anselmo não explicou ao certo por que razão o seu
raciocínio não se pode aplicar a coisas como a ilha de Gaunilo.
Em defesa de Anselmo contra a objecção de Gaunilo, deve‐se observar que a objec‐
ção supõe que a ilha de Gaunilo é uma coisa possível. Mas isto exige que acreditemos
que uma coisa finita e limitada (uma ilha) possa ter perfeições ilimitadas. E não é de
todo em todo claro que isto seja possível. Tente‐se pensar, por exemplo, num jogador
de hóquei maior do que o qual nenhum é possível. Quão depressa teria esse jogador de
patinar? Quantos golos teria tal jogador de marcar num jogo? Quão rápido teria de
arremessar o disco? Será que este jogador poderia alguma vez cair, ser bloqueado, ou
sofrer uma penalidade? Embora a expressão «O jogador de hóquei maior do que o qual
nenhum é possível» pareça ter significado, assim que tentamos obter uma ideia clara
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de como seria tal ser, descobrimos que não podemos sequer formar uma ideia coeren‐
te dele. Isto porque nos pede para pensar numa coisa finita e limitada — um jogador
de hóquei ou uma ilha — para depois pensarmos que essa coisa exibe perfeições infini‐
tas e ilimitadas. Talvez então, visto que o raciocínio de Anselmo se aplica apenas a coi‐
sas possíveis, Anselmo possa rejeitar que seja aplicável à ilha de Gaunilo, com base em
que a ilha maior do que a qual nenhuma é possível é, como o quadrado redondo, uma
coisa impossível.
A crítica de Kant
A objecção de longe mais famosa ao argumento ontológico foi formulada por
Immanuel Kant no século XVIII. Segundo esta objecção, o erro contido no argumento
é a afirmação, implícita na premissa 3, de que a existência é uma qualidade ou predi‐
cado que torna qualquer coisa maior. Esta afirmação tem duas partes: 1) a existência é
uma qualidade ou predicado e 2) a existência, como a sabedoria e ao contrário da
grandeza física, é uma qualidade ou predicado produtor de grandeza. Pode‐se aceitar 1
mas objectar a 2. A objecção que Kant tornou famosa, contudo, dirige‐se a 1. Segundo
esta objecção, a existência não é de modo algum um predicado. Portanto, como o
argumento de Anselmo implica, na terceira premissa, que a existência é um predicado,
tem de se rejeitar o argumento.
O que se quererá dizer com a doutrina filosófica de que a existência não é um pre‐
dicado? A ideia central nesta doutrina diz respeito ao que fazemos quando atribuímos
uma certa qualidade ou predicado a uma coisa, como, por exemplo, quando dizemos
que uma mulher que mora ao nosso lado é inteligente, tem um metro e oitenta de
altura, ou é magra. Em cada caso parece que afirmamos ou pressupomos que existe
uma mulher que mora ao lado atribuindo‐lhe depois um certo predicado — «inteli‐
gente», «com um metro e oitenta de altura» ou «magra». E o que muitos defensores da
doutrina de que a existência não é um predicado defendem é que isto é uma caracte‐
rística geral da predicação. Defendem que quando atribuímos uma qualidade ou pre‐
dicado a uma coisa, afirmamos ou pressupomos que a coisa existe e então atribuímos‐
lhe o predicado. Se isto for verdade, então é claro que a existência não pode ser um
predicado que possamos atribuir ou negar a algo. Visto que se fosse um predicado,
então quando afirmamos que algo existe estaríamos a afirmar ou a pressupor que exis‐
te passando então a predicar a sua existência. Por exemplo, se a existência fosse um
predicado, então ao afirmar «Os tigres existem» estaríamos a afirmar ou a pressupor
que os tigres existem para depois predicar a sua existência. Além disso, se a existência
fosse um predicado, quando afirmássemos «os dragões não existem», estaríamos a
afirmar ou a pressupor que os dragões existem, para depois negar que a existência se
lhes aplique. Resumindo, se a existência fosse um predicado, a declaração existencial
afirmativa «Os tigres existem» seria redundante, e a declaração existencial negativa
«Os tigres não existem» seria contraditória. Mas é óbvio que «Os tigres existem» não é
49
redundante e que «Os dragões não existem» é verdadeira e, portanto, não é contradi‐
tória. Segundo os defensores da objecção de Kant, isto mostra que a existência não é
um predicado genuíno.
Segundo os defensores da objecção anterior, quando afirmamos que os tigres exis‐
tem e que os dragões não existem não afirmamos que certas coisas (os tigres) têm um
predicado especial ao passo que outras (os dragões) não têm: a existência. Ao invés,
afirmamos algo acerca do conceito de tigre e do conceito de dragão. No primeiro caso
afirmamos que há algo no mundo ao qual o conceito de tigre se aplica; no segundo,
afirmamos que nada há no mundo ao qual o conceito de dragão se aplique.
Embora esta objecção ao argumento ontológico tenha tido ampla aceitação, é duvi‐
doso que seja uma refutação conclusiva do argumento. Pode ser verdade que a exis‐
tência não é um predicado; que ao afirmar a existência de uma coisa não estamos a
atribuir um determinado predicado ou atributo a essa coisa. Mas os argumentos apre‐
sentados a favor desta perspectiva parecem assentar em afirmações incorrectas ou
incompletas acerca da natureza da predicação. Por exemplo, o argumento que enun‐
ciámos assenta na afirmação de que quando atribuímos um predicado a qualquer coisa
afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe. Mas esta afirmação parece incorrec‐
ta. Ao afirmar que o Dr. Doolittle é um zoófilo parece que estou a atribuir o predicado
zoófilo ao Dr. Doolittle, mas ao fazê‐lo não estou seguramente a afirmar ou a pressu‐
por que o Dr. Doolittle existe efectivamente. Embora não exista, é verdade que o Dr.
Doolittle é um zoófilo. O que é facto é que podemos falar acerca de muitas coisas que
não existem e nunca existiram, e atribuir predicados a essas coisas. Merlin, por exem‐
plo, como Houdini, era um mágico, embora Houdini tenha existido e Merlin não. Se,
como os exemplos sugerem, a afirmação de que sempre que atribuímos um predicado
a alguma coisa afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe é uma afirmação falsa,
então precisaremos de um argumento melhor para defender a doutrina de que a exis‐
tência não é um predicado. Há dúvidas, contudo, sobre se alguém terá conseguido
apresentar um argumento realmente conclusivo a favor da perspectiva de que a exis‐
tência não é um predicado.9
Uma terceira crítica
Uma terceira objecção ao argumento ontológico põe em causa a premissa de que
Deus poderia existir na realidade (que Deus seja um ser possível). Como vimos, esta
premissa afirma que «o ser maior do que o qual nenhum é possível» não é um objecto
impossível. Mas será isto verdade? Considere‐se a série dos números naturais — 1, 2, 3,
4, etc. Sabemos que qualquer número inteiro nesta série, por maior que seja, é tal que
é possível outro número maior. Portanto, «o número natural maior do que o qual
nenhum é possível» é um objecto impossível. Talvez isto também se aplique a «o ser
maior do que o qual nenhum é possível». Isto é, talvez seja possível, independente‐
mente da grandeza de um ser, haver outro maior. Se assim for, portanto, o Deus de
50
Anselmo não seria um objecto possível, assim como não o é «o número natural maior
do que o qual nenhum é possível». O simples facto de haver graus de grandeza, contu‐
do, não nos permite concluir que o Deus de Anselmo é como «o número natural maior
do que o qual nenhum é possível». Os ângulos, por exemplo, têm graus de tamanho —
um ângulo pode ser maior do que outro — mas não é verdade que independentemente
do tamanho de um ângulo, seja possível haver um maior. É logicamente impossível
que um ângulo exceda a dimensão de quatro ângulos rectos. A noção de ângulo, ao
contrário da noção de número natural, implica um grau de tamanho que é impossível
ultrapassar. Será o Deus de Anselmo como o maior número natural, e portanto impos‐
sível, ou como o maior ângulo, e portanto possível? Alguns filósofos argumentaram
que o Deus de Anselmo é impossível.10 Mas os argumentos a favor desta conclusão não
são persuasivos. Talvez por isso se interprete melhor esta objecção não como prova de
que o Deus de Anselmo é impossível, mas como o levantar da questão de algum de nós
estar ou não em condições de saber que «o ser maior do que o qual nenhum é possí‐
vel» é um objecto possível. Pois o argumento de Anselmo não pode ser uma prova efi‐
caz da existência de Deus a menos que as suas premissas sejam não só verdadeiras,
mas também que se saiba que são verdadeiras. Logo, se não sabemos que o Deus de
Anselmo é um objecto possível, então o seu argumento não pode provar‐nos a existên‐
cia de Deus — não nos permite saber que Deus existe.
Uma última crítica
Demos uma vista de olhos ao argumento de Anselmo e às três principais objecções
que outros filósofos lhe levantaram. Nesta última secção apresento uma crítica algo
diferente ao argumento, uma crítica sugerida pela convicção fundamental que se indi‐
cou antes — nomeadamente, que da mera análise lógica de uma certa ideia ou concei‐
to, nunca podemos determinar que existe alguma coisa na realidade que satisfaça essa
ideia ou conceito.
Suponha‐se que alguém se nos dirige e diz:
Proponho‐me definir o termo Deus como um ser absolutamente perfeito, que existe.
Uma vez que não pode ser verdade que um ser absolutamente perfeito, que existe, não
exista, não pode ser verdade que Deus, como o defini, não exista. Portanto, Deus tem de
existir.
Isto parece um argumento ontológico muito simples. Começa com uma ideia parti‐
cular ou conceito de Deus e termina concluindo que Deus, concebido desse modo,
tem de existir. O que podemos responder a isto? Podemos começar por objectar a esta
definição de Deus, afirmando 1) que só se pode definir um termo com predicados e 2)
que a existência não é um predicado. Mas suponha‐se que o nosso amigo não se deixa
impressionar por esta resposta — quer porque pensa que ninguém explicou exausti‐
51
vamente o que é um predicado, nem provou que a existência não é um predicado, quer
porque pensa que qualquer pessoa pode definir uma palavra do modo como bem lhe
apetece. Podemos aceitar que o nosso amigo defina a palavra Deus como bem lhe ape‐
teça e esperar ainda assim mostrar que dessa definição não se segue que existe efecti‐
vamente algo a que este conceito de Deus se aplica? Penso que sim. Convidemo‐lo
primeiro, contudo, a considerar alguns conceitos além do seu peculiar conceito de
Deus.
Vimos que o termo mágico se pode aplicar tanto a Houdini como a Merlin, ainda
que o primeiro tenha existido ao passo que o segundo nunca existiu. Observando que
o nosso amigo usou que existe como parte da sua definição de Deus, suponha‐se que
concordamos com ele em poder definir uma palavra do modo como nos apetecer
introduzindo, consequentemente, as seguintes palavras com as seguintes definições:
Define‐se magião como um mágico que existe.
Defini‐se mágio como um mágico inexistente.
Aqui introduzimos duas palavras e usámos que existe e inexistente nas suas defini‐
ções. Segue‐se agora algo interessante do facto de que existe fazer parte da nossa defi‐
nição de um magião. Pois embora sendo verdade que Merlin era um mágico, não é
verdade que Merlin fosse um magião. E segue‐se algo interessante de termos incluído
inexistente na definição de mágio. Pois embora sendo verdade que Houdini foi um
mágico, não é verdade que foi um mágio. Houdini foi um mágico e um magião, mas
não um mágio, ao passo que Merlin era um mágico e um mágio, mas não um magião.
Acabámos de ver que introduzir que existe ou inexistente na definição de um con‐
ceito tem uma consequência muito importante. Se introduzimos que existe na defini‐
ção de um conceito, segue‐se que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar esse
conceito. E se introduzimos inexistente na definição de um conceito, segue‐se que
nenhuma coisa existente pode exemplificar esse conceito. Nenhuma coisa inexistente
pode ser um magião e nenhuma coisa existente pode ser um mágio.
Mas terá alguma coisa existente de exemplificar o conceito de magião? Não! Do fac‐
to de se incluir que existe na definição de magião não se segue que algo existente é um
magião — tudo o que se segue é que nenhuma coisa inexistente é um magião. Se não
existissem quaisquer mágicos, nada haveria a que se pudesse aplicar o conceito de
magião. Sendo assim, é óbvio que não se segue meramente da nossa definição de
magião que algo existente é um magião. Só se existirem mágicos é que será verdade
que uma coisa existente é um magião.
Estamos agora em condições de ajudar o nosso amigo a ver que, do mero facto de se
definir Deus como ser absolutamente perfeito que existe, não se segue que há um ser
existente que seja Deus. Segue‐se algo interessante desta definição — nomeadamente,
que nenhum ser inexistente pode ser Deus. Mas o facto de haver ou não algo existente
que seja Deus depende inteiramente de haver ou não algo existente que seja um ser
52
absolutamente perfeito. Se não existe qualquer ser absolutamente perfeito, nada have‐
rá a que se possa aplicar este conceito de Deus. Sendo assim, é óbvio que não se segue
meramente desta definição de Deus que há algo existente que seja Deus. Só se existir
um ser absolutamente perfeito é que será verdade que Deus, como o nosso amigo o
concebe, existe.
Implicações para o argumento de Anselmo
Pode‐se agora seguir as implicações destas considerações para o engenhoso argu‐
mento de Anselmo. Anselmo imagina Deus como um ser maior do que o qual nenhum
é possível. Afirma então que a existência é uma qualidade produtora de grandeza;
qualquer coisa que a tenha é maior do que seria se lhe faltasse a existência. É então
óbvio que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar o conceito anselmiano de
Deus. Porquanto se supomos que algo inexistente exemplifica o conceito anselmiano
de Deus e se também supomos que esse algo inexistente podia existir na realidade (ou
seja, se supomos que é algo possível), então supomos que esse algo inexistente 1) podia
ser maior e 2) é, ainda assim, uma coisa maior do que a qual não é possível haver
outra. Até aqui o raciocínio de Anselmo é, segundo penso, irrepreensível. Mas o que se
segue daí? Tudo o que daí se segue é que nenhuma coisa inexistente pode ser Deus
(como Anselmo o imagina). Tudo o que se segue é que dado o conceito anselmiano de
Deus, a proposição «Alguma coisa inexistente é Deus» não pode ser verdadeira. Mas,
como vimos, isto também acontece com a proposição «Alguma coisa inexistente é um
magião». Falta mostrar que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano
de Deus. O que realmente se segue deste raciocínio é que só algo que exista efectiva‐
mente pode logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. E esta conclusão não é
desinteressante. Mas do simples facto de que nada senão algo existente poderia exem‐
plificar o conceito anselmiano de Deus não se segue que algo existente exemplifica
efectivamente o seu conceito de Deus — do mesmo modo que não se segue do simples
facto de nenhuma coisa inexistente poder ser um magião que alguma coisa existente é
um magião.11
Há, contudo, uma dificuldade importante nesta crítica ao argumento de Anselmo.
Esta dificuldade surge quando atentamos na sua afirmação implícita de que Deus é
uma coisa possível. Para ver ao certo o que é esta dificuldade, regressemos à ideia de
coisa possível. Uma coisa possível, segundo determinámos, é qualquer coisa que está
ou no lado esquerdo da nossa linha imaginária ou que logicamente podia estar no lado
esquerdo da linha. As coisas possíveis, então, serão todas as coisas que, ao contrário do
quadrado redondo, não são impossíveis. Suponha‐se que concedemos a Anselmo que
Deus, como ele o concebe, é uma coisa possível. É claro que o mero conhecimento de
que algo é uma coisa possível não nos permite concluir que essa coisa é uma coisa
existente. Visto que muitas coisas possíveis, como a Fonte da Juventude, não existem.
Mas se algo é uma coisa possível, então ou é uma coisa existente ou uma coisa inexis‐
53
tente. Pode‐se dividir exaustivamente o conjunto das coisas possíveis em coisas possí‐
veis que existem efectivamente e coisas possíveis que não existem. Portanto, se o Deus
de Anselmo é uma coisa possível, ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente.
Concluímos, contudo, que nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo;
portanto, parece que temos de concluir com Anselmo que alguma coisa efectivamente
existente exemplifica de facto o seu conceito de Deus.
Para ver a solução desta importante dificuldade precisamos de regressar a um
exemplo anterior. Consideremos mais uma vez a ideia de um magião, um mágico exis‐
tente. Por acaso têm existido mágicos — Houdini, o Grande Blackstone, e outros. Mas,
obviamente, podia não ter sido assim. Suponha‐se, momentaneamente, que nunca
tinham existido quaisquer mágicos. O conceito de «mágico» teria ainda aplicação, pois
continuaria a ser verdade que Merlin era um mágico. E quanto ao conceito de
«magião»? Será que esse conceito discriminaria qualquer objecto possível? Não! Pois
nenhuma coisa inexistente poderia exemplificar o conceito de «magião». E supondo
que nunca existiram mágicos, nenhuma coisa existente exemplificaria o conceito de
«magião».12 Teríamos então o conceito coerente de «magião», que não seria exemplifi‐
cado por qualquer objecto possível. Pois se todos os objectos possíveis que são mági‐
cos fossem coisas inexistentes, nenhum deles seria um magião; e como nenhum objec‐
to possível que existe seria um mágico, nenhum seria um magião. Teríamos então o
conceito coerente e consistente de «magião», que na verdade não é exemplificado por
qualquer objecto possível. Formulada assim, a nossa conclusão parece paradoxal. Visto
que nos inclinamos a pensar que só conceitos contraditórios, como «quadrado redon‐
do», não são exemplificados por quaisquer coisas possíveis. A verdade, contudo, é que
quando que existe está incluído num certo conceito ou é por ele implicado, pode acon‐
tecer que nenhum objecto possível exemplifique de facto esse conceito. Pois nenhum
objecto possível que não exista exemplificará um conceito como «magião», que inclui
que existe; e se não há coisas existentes que exemplifiquem as outras características
incluídas no conceito — por exemplo, «ser um mágico» no caso do conceito «magião»
— então nenhum objecto possível que exista exemplificará o conceito. Dito da forma
mais simples: ao perguntar se qualquer coisa possível é ou não um magião, a resposta
dependerá inteiramente de haver ou não quaisquer coisas existentes que sejam mági‐
cos. Se nenhuma coisa existente é um mágico, então nenhuma coisa possível é um
magião. Um objecto possível é um magião só se alguma coisa efectivamente existente
for um mágico.13
Aplicando estas considerações ao argumento de Anselmo podemos ver a solução da
nossa importante dificuldade. Dado o conceito anselmiano de Deus e o seu princípio
de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza, segue‐se de facto que só
algo efectivamente existente poderia logicamente exemplificar o seu conceito de Deus.
Mas argumentámos que não se segue, a partir destas considerações apenas, que Deus
existe efectivamente — que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano
de Deus. A dificuldade com que nos deparámos, contudo, é que ao adicionar a premis‐
54
sa de que Deus é uma coisa possível, ou seja, a premissa de que algum objecto possível
exemplifica o conceito anselmiano de Deus, segue‐se realmente que Deus existe efec‐
tivamente: que algo efectivamente existente exemplifica o seu conceito de Deus. Pois
se um objecto possível exemplifica o seu conceito de Deus, esse objecto ou é uma coisa
existente ou uma coisa inexistente. Mas uma vez que nenhuma coisa inexistente pode
exemplificar o conceito anselmiano de Deus, segue‐se que o objecto possível que
exemplifica o seu conceito de Deus tem de ser um objecto possível que exista efecti‐
vamente. Portanto, dado 1) o conceito anselmiano de Deus, 2) o seu princípio de que a
existência é uma qualidade produtora de grandeza e 3) a premissa de que Deus, como
Anselmo o concebe, é uma coisa possível, segue‐se de facto que o Deus de Anselmo
existe efectivamente.
Uma concessão demasiado generosa
Penso que podemos ver que ao conceder a Anselmo a premissa de que Deus é uma
coisa possível concedemos muito mais do que pretendíamos. Pensámos conceder ape‐
nas que o conceito anselmiano de Deus, ao contrário do conceito de quadrado redon‐
do, não é contraditório nem incoerente. Mas sem nos apercebermos, estávamos de
facto a conceder muito mais do que isto, como se tornou visível quando considerámos
a ideia de «magião». Nada há de contraditório na ideia de um magião, um mágico que
existe. Mas ao afirmar que um magião é uma coisa possível, estamos, como vimos, a
sugerir directamente que alguma coisa existente é um mágico. Pois se nenhuma coisa
existente é um mágico, o conceito de magião não se aplicará de modo algum a qual‐
quer objecto possível. A mesma ideia se aplica ao Deus de Anselmo. Uma vez que o
conceito anselmiano de Deus não se pode logicamente aplicar a uma coisa inexistente,
os únicos objectos possíveis aos quais se poderá aplicar são objectos possíveis que exis‐
tam efectivamente. Portanto, ao conceder que o Deus de Anselmo é uma coisa possí‐
vel, não estamos a conceder apenas que a sua ideia de Deus não é incoerente nem con‐
traditória. Suponha‐se, por exemplo, que todo o ser existente tem uma imperfeição
que podia não ter tido. Sem nos apercebermos, estávamos a negar isto ao conceder
que o Deus de Anselmo é um ser possível. Pois se todo o ser existente tem um defeito
que podia não ter tido, então todo o ser existente podia ser maior. Mas se todo o ser
existente podia ser maior, então o conceito anselmiano de Deus não se aplicará a
qualquer objecto possível. Portanto, se concedemos a Anselmo o seu conceito de Deus
e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandeza, então ao
conceder que Deus, como Anselmo o concebe, é um ser possível, estaremos a conceder
muito mais do que a coerência do seu conceito de Deus. Estaremos a conceder, por
exemplo, que uma coisa existente é tão perfeita quanto o pode ser. Pois a verdade é
que só se alguma coisa existente for tão perfeita quanto o pode ser é que o Deus de
Anselmo será uma coisa possível.
55
A nossa última crítica ao argumento de Anselmo é apenas esta. Ao conceder que o
Deus de Anselmo é uma coisa possível, estamos de facto a conceder que o Deus de
Anselmo existe efectivamente. Mas como o objectivo do argumento era provar que o
Deus de Anselmo existe, não se pode pedir que concedamos em lugar de premissa
uma afirmação que quase equivale à conclusão que se tem de provar. O conceito
anselmiano de Deus pode ser coerente e o seu princípio de que a existência é uma qua‐
lidade produtora de grandeza pode ser verdadeiro. Mas tudo o que daqui se segue é
que nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo. Se a tudo isto acrescen‐
tarmos a premissa de que Deus é uma coisa possível, seguir‐se‐á que Deus existe efec‐
tivamente. Mas a premissa adicional não afirma apenas que o conceito anselmiano de
Deus não é incoerente nem contraditório. Equivale à afirmação de que um ser existen‐
te é supremamente grandioso. E como em parte é isto que o argumento procura pro‐
var, cai em petição de princípio: pressupõe a ideia cuja verdade devia provar.
Se a crítica acima está correcta, o argumento de Anselmo não pode ser uma prova
da existência de Deus. Contudo, isto não equivale a afirmar que o argumento não é um
trabalho de génio. Talvez nenhum outro argumento na história do pensamento tenha
levantado tantas questões filosóficas fundamentais e estimulado tanta reflexão. Mes‐
mo não conseguindo ser uma prova da existência de Deus, continuará a ser uma das
maiores façanhas do intelecto humano.
Revisão
1. O que se entende por ser impossível, ser possível, ser contingente, e ser necessário? Dê
um exemplo de cada um dos três.
2. Que distinção faz Anselmo entre a existência no entendimento e a existência na reali‐
dade?
3. Qual é a ideia crucial no argumento ontológico?
4. Quais são, resumidamente, as três objecções tradicionais ao argumento ontológico?
5. Explique a última objecção, que afirma que o argumento ontológico cai em petição de
princípio.
Estudo complementar
1. No Capítulo 3 do seu Proslogium, Anselmo introduz o princípio de que se um ser existe
de tal modo que não podia deixar de existir, é maior do que um ser que existe mas que
podia não existir. Compare e contraste este princípio com a ideia crucial do argumento
ontológico. Tente formular uma segunda versão do argumento ontológico usando o
princípio do Proslogium, no Capítulo 3.
2. Qual das diversas objecções ao argumento ontológico lhe parece mais plausível? Qual
lhe parece menos plausível? Porquê?
56
Notas
1. Alguns filósofos pensam que Anselmo apresenta um argumento diferente e mais
cogente no Capítulo 3 do seu Proslogium. Para este ponto de vista, ver Charles Harts‐
horne, Anselm’s Discovery (La Salle, IL: Open Court Publishing Co., 1965) e Norman
Malcom, «Anselm’s Ontological Arguments», The Philosophical Review LXIX, n.º 1
(1960), pp. 41‐62. Para uma explicação esclarecedora das intenções de Anselmo no
Proslogium, II e III, e em recentes interpretações de Anselmo, ver o ensaio de Arthur C.
McGill, «Recent Discussions of Anselm’s Argument» em The Many‐Faced Argument,
org. John Hick e Arthur C. McGill (Nova Iorque: The MacMillan Co., 1967), pp. 33‐110.
[Santo Anselmo, Proslogion, trad. Costa Macedo, Porto: Porto Editora, 1996.]
2. Anselmo admite que se possa pronunciar a frase «Deus não existe» sem que se tenha
no entendimento o objecto ou ideia que a palavra Deus refere. Ver Santo Anselmo,
Proslogium, IV, em Saint Anselm: Basic Writings, trad. Sidney N. Deane (La Salle, IL:
Open Court Publishing Co., 1962). Mas quando se compreende de facto o objecto que a
palavra refere, então quando se usa a palavra numa frase que nega a existência desse
objecto, tem de se ter esse objecto no entendimento. É duvidoso, contudo, que Ansel‐
mo pensasse que as expressões incoerentes ou contraditórias como quadrado redondo
refiram objectos que podem existir no entendimento.
3. Anselmo fala de um ser em vez de o ser maior do que o qual nenhum ser se pode con‐
ceber. O seu argumento é mais fácil de apresentar se exprimirmos a sua ideia de Deus
em termos de o ser. Em segundo lugar, para evitar as conotações psicológicas de se
pode conceber substituí essa expressão por possível.
4. S. Anselmo, Monologium, II, em Saint Anselm: Basic Writings.
5. S. Anselmo, Monologium, XV, em Saint Anselm: Basic Writings.
6. Os números entre parêntesis referem‐se a passos anteriores no argumento, do qual se
deriva o presente passo.
7. O breve ensaio de Gaunilo, a resposta de Anselmo, e várias das principais obras de
Anselmo, traduzidas por Sidney N. Deane, estão coligidas em Saint Anselm: Basic Wri‐
tings.
8. Deane, Saint Anselm: Basic Writings, p. 151.
9. Talvez a apresentação mais sofisticada da objecção segundo a qual a existência não é
um predicado seja a de William P. Alston, «The Ontological Argument Revisited», The
Philosophical Review, LXIX (1960), pp. 452–474.
10. Ver, por exemplo, a discussão que C. D. Broad faz do argumento ontológico, em Reli‐
gion, Philosophy, and Physical Research (Nova Iorque: Harcourt, Brace & Co., 1953).
11. Pode‐se encontrar um argumento segundo estas linhas no esclarecedor ensaio de J.
Shaffer, «Existence, Predication and the Ontological Argument», Mind LXXI (1962), pp.
307–325.
12. Estou em dívida para com o Professor William Wainwright, por me chamar a atenção
para esta ideia.
13. Na linguagem dos mundos possíveis, podemos afirmar que um objecto x é um magião
num mundo possível w, desde que i) x seja um mágico em w e ii) x seja um mágico em
57
qualquer mundo que seja o mundo efectivo. Para mais informação sobre este assunto,
bem como uma discussão crítica de algumas versões do argumento ontológico, ver o
meu ensaio «Modal Versions of the Ontological Argument» em Louis Pojman, org. Phi‐
losophy of Religion: An Anthology, 3.ª ed. (Belmont, CA: Wadsworth, 1998).
58
Capítulo 4
O argumento do desígnio (o antigo e o
novo)
O ponto de partida do antigo argumento do desígnio é o nosso sentimento de
assombro não por existirem coisas mas por muitas das coisas que existem no nosso
universo manifestarem ordem e desígnio. Partindo deste sentido de assombro, o
argumento procura convencer‐nos de que seja o que for que produziu o universo, tem
de ser um ser inteligente. Talvez a formulação mais famosa do argumento esteja nos
Diálogos Sobre a Religião Natural, de David Hume:
Olhai o mundo em volta: contemplai o todo e cada parte: descobrireis que não é
senão uma enorme máquina, subdividida num número infinito de máquinas menores,
que por sua vez se subdividem para lá do que os sentidos e faculdades humanos conse‐
guem seguir e explicar. Todas estas diversas máquinas, e mesmo as suas partes mais
diminutas, ajustam‐se entre si com uma precisão que deixa estupefactos todos os
homens que já as contemplaram. A curiosa adaptação de meios a fins em toda a nature‐
za assemelha‐se exactamente, embora em muito os exceda, aos produtos do engenho
humano; do desígnio, pensamento, sabedoria e inteligência humanos. Visto que, portan‐
to, os efeitos se assemelham entre si, somos levados a inferir, segundo todas as regras da
analogia, que as causas também se assemelham; e que o Autor da Natureza é de algum
modo similar à mente do homem, embora detentor de faculdades muito mais vastas,
proporcionais à grandeza da obra que executou. Com este argumento a posteriori, e
apenas com este argumento, provamos de uma só vez a existência de uma Divindade, e a
sua similaridade com a mente e inteligência humanas.1
Argumento por analogia
Há uma analogia, diz‐nos esta passagem, entre muitas coisas na natureza e coisas
produzidas por seres humanos — como por exemplo, máquinas. Visto que sabemos
que as máquinas (relógios, câmaras, máquinas de escrever, automóveis, etc.) são pro‐
duzidas por seres inteligentes, e visto que muitas coisas na natureza se assemelham
tão intimamente a máquinas, estamos autorizados «segundo todas as regras da analo‐
gia» a concluir que seja o que for que tenha produzido esses objectos naturais é um ser
inteligente. O argumento do desígnio, então, tal como esta passagem o apresenta, é
59
um argumento por analogia, e para o que nos interessa pode‐se apresentá‐lo do
seguinte modo:
1. As máquinas são produzidas por desígnio inteligente.
2. O universo assemelha‐se a uma máquina.
Logo,
3. Provavelmente o universo foi produzido por desígnio inteligente.
As questões críticas que temos de considerar ao avaliar o antigo argumento do
desígnio resultam sobretudo do facto de o argumento usar o raciocínio analógico. Para
melhor compreender tal raciocínio, consideremos o seguinte exemplo do seu uso.
Suponha o leitor que trabalha num laboratório químico e que de algum modo conse‐
guiu produzir um novo composto. Ocorre‐lhe que um trago deste composto químico
poderá ter resultados bastante benéficos. Por outro lado, visto que não se conhece
bem as suas propriedades, também lhe ocorre que o composto pode ser consideravel‐
mente prejudicial. Sendo ao mesmo tempo cauteloso e curioso, o leitor procura um
modo de descobrir se o químico o irá beneficiar ou prejudicar, sem chegar realmente a
bebê‐lo. Ocorre‐lhe que podia colocar sub‐repticiamente um pouco do químico na
comida dos seus convidados para o jantar nessa noite e simplesmente esperar para ver
o que acontece. Se todos morrerem no espaço de uma hora após a ingestão do quími‐
co, então terá indícios excepcionalmente fortes de que este lhe fará mal. Por razões
óbvias, contudo, sente que é incorrecto experimentar noutros seres humanos um quí‐
mico desconhecido, particularmente nos seus convidados para jantar. Ao invés, coloca
alguns macacos ou ratos em contacto com o químico e conclui, a partir do efeito que
tem sobre eles, o efeito provável que terá em si.
Reflectir neste exemplo ajudar‐nos‐á a compreender o que o raciocínio analógico é
e por que às vezes temos de o usar ao tentar descobrir algo acerca de nós próprios e do
mundo. Se tivesse dado o químico a um grupo de seres humanos — os seus convida‐
dos para jantar, digamos — então a partir do efeito do químico neles poderia inferir o
efeito que teria em si. Tal raciocínio não seria analógico visto que os seus convidados
são exactamente como o leitor; pertencem à mesma categoria natural a que o leitor
pertence: a categoria dos seres humanos. Acontece que não podia envolver‐se num
raciocínio tão directo porque a categoria natural imediata — a categoria dos seres
humanos — a que o leitor pertence não podia ser objecto de estudo no que diz respei‐
to a esse composto. O leitor faz então o melhor que pode: escolhe uma categoria natu‐
ral, a categoria dos macacos, à qual o leitor não pertence, mas a cujos membros se
assemelha em alguns aspectos. O leitor é semelhante aos macacos pelo facto de ter um
sistema nervoso, sangue quente, e noutros aspectos. Além disso, os modos pelos quais
se assemelha aos macacos são relevantes para descobrir o efeito provável do químico
no leitor. As criaturas que têm um sistema nervoso central, sangue quente, e são simi‐
60
lares noutros aspectos, tendem a ter respostas similares a substâncias químicas. De
modo que embora o raciocínio analógico que o leitor acaba por usar seja algo mais
fraco do que o raciocínio directo que teria usado se pudesse experimentar o químico
em seres humanos, é, não obstante, um bom raciocínio, e dá‐lhe indícios relevantes
sobre o efeito provável que o químico terá em si.
O argumento do desígnio procura responder à questão de o universo resultar ou
não de desígnio inteligente. Se tivéssemos observado a origem de muitos universos
além do nosso e observado também que resultaram, na totalidade ou na maioria, de
desígnio inteligente, podíamos então argumentar directamente que o nosso universo
talvez tenha surgido por desígnio inteligente. Isto não seria raciocínio analógico visto
que teríamos raciocinado a partir de coisas (outros universos) que são exactamente
semelhantes ao nosso objecto de estudo, o nosso universo. Mas como não temos qual‐
quer conhecimento ou experiência de outros universos além do nosso, temos de usar o
raciocínio analógico; temos de começar com coisas que se assemelham mas não são o
mesmo que o nosso universo e inferir que uma vez que essas coisas surgiram por
desígnio inteligente, é provável que o nosso universo tenha surgido por desígnio inte‐
ligente. Sendo este um argumento analógico baseado na semelhança entre coisas dife‐
rentes, tem de ser mais fraco do que um argumento directo a partir de coisas exacta‐
mente semelhantes (isto é, outros universos), mas isto é claramente o melhor que
podemos fazer se procuramos conhecimento acerca de seja o que for que produziu o
nosso universo. Obviamente que a força do argumento dependerá das características
em função das quais estoutras coisas se assemelham ao nosso universo e da relevância
destas características para a questão de o nosso universo ter ou não surgido por desíg‐
nio inteligente. Temos agora de dar continuidade a estas questões mais amplas. Temos
de colocar duas questões:
1) Em função de que características se diz que o nosso universo se assemelha a uma
máquina?
2) São estas características relevantes para a questão de o universo ter ou não surgido por
desígnio inteligente?
O universo como máquina
De que maneira ou maneiras se assemelhará o universo a uma máquina? O teólogo
setecentista inglês, William Paley, um dos maiores defensores do argumento do desíg‐
nio, comparou o universo a um relógio e afirmou que toda a manifestação de desígnio
que há num relógio há também no funcionamento da natureza. E, na passagem dos
Diálogos Sobre a Religião Natural atrás citada, chama‐se a atenção para «uma curiosa
adaptação de meios a fins» em toda a natureza. Ao que parece, então, o modo como o
universo supostamente se assemelha a uma máquina assenta na ideia de que há partes
da natureza que se relacionam entre si do mesmo modo que as partes de uma máquina
61
se relacionam entre si. Se podemos obter uma imagem mais clara do modo exacto
como as partes das máquinas se relacionam entre si, podemos ver se os defensores do
argumento do desígnio têm razão ao pensar que há muitas coisas na natureza cujas
partes se relacionam entre si exactamente do mesmo modo.
Se examinarmos um relógio de bolso que funciona em condições, depressa observa‐
remos que as suas partes estão conectadas de tal modo que quando uma parte se
move, isto causa também o movimento de outras partes — as rodas dentadas, por
exemplo, estão dispostas de tal modo que o movimento de uma causa o movimento de
outra. Esta é uma característica comum das máquinas com partes móveis, e é também
uma característica que se encontra no universo. O nosso sistema solar, por exemplo,
compõe‐se de partes — o Sol, os planetas, as suas luas — que se movem, e ao mover‐se
causam, através da força gravitacional, o movimento de outras partes. Embora isto seja
verdade, não diz todavia tudo acerca de como as partes das máquinas se relacionam
entre si. Visto que se olharmos novamente para o nosso relógio, descobrimos não só
que as suas partes estão dispostas de modo a funcionarem conjuntamente, mas que
sob as condições adequadas funcionam conjuntamente para servir uma determinada
finalidade. As partes de um relógio estão dispostas de modo a funcionarem conjunta‐
mente sob as condições adequadas para nos permitir saber as horas. O mesmo sucede
com as partes de outras máquinas — automóveis, câmaras ou máquinas de escrever.
As partes destas máquinas relacionam‐se todas entre si de tal modo que funcionam
conjuntamente sob as condições adequadas para servir uma finalidade.
Captemos esta interessante característica das máquinas introduzindo a ideia de sis‐
tema teleológico. Digamos que um sistema teleológico é qualquer sistema composto de
partes em que estas se encontram dispostas de tal modo que funcionam conjuntamen‐
te sob as condições adequadas para servir uma determinada finalidade. Na sua maior
parte, as máquinas são claramente sistemas teleológicos. Além disso, uma máquina de
alguma complexidade pode muito bem ter partes que são elas próprias sistemas teleo‐
lógicos. Um automóvel, por exemplo, é um sistema teleológico; as suas partes estão
dispostas de tal modo que sob condições adequadas funcionam conjuntamente para
permitir que alguém viaje rapidamente de um lugar para outro. Mas muitas das partes
de um automóvel são também sistemas teleológicos. O carburador, por exemplo, é um
sistema de partes dispostas de tal modo a fornecer a mistura adequada de combustível
e ar para a combustão.
Os defensores do argumento do desígnio afirmam que a base da analogia entre o
universo e as máquinas é que se encontra, no mundo natural, muitas coisas, e partes
de coisas, que são sistemas teleológicos. O olho humano, por exemplo, é claramente
um sistema teleológico. As suas partes exibem uma ordem intricada e estão dispostas
de tal modo que sob condições adequadas funcionam conjuntamente para permitir
que uma pessoa veja. Outros órgãos nos seres humanos e animais são também indubi‐
tavelmente sistemas teleológicos, cada um servindo uma finalidade qualquer razoa‐
velmente clara. Na verdade, parece razoável pensar que as plantas e animais que com‐
62
põem uma grande parte do mundo natural são sistemas teleológicos. Como o filósofo
novecentista C. D. Broad comentou:
Podemos agora ver, penso, a força com que este argumento afecta a imaginação dos
seus defensores. Uma vez compreendido o que é um relógio, como funciona e qual é a
sua finalidade, seria completamente absurdo supor que a sua origem se deve a algum
acidente em vez de ao desígnio inteligente. Mas se olharmos cuidadosamente para
muitas coisas na natureza — plantas e animais, por exemplo — descobrimos que as
suas partes exibem uma disposição ordenada, adequada a uma finalidade (sobrevivên‐
cia do organismo e reprodução da sua espécie) que, quando muito, excede a organiza‐
ção segundo fins das partes do relógio. Que absurdo, portanto, supor que o mundo
natural surgiu por acidente em vez de desígnio inteligente. Parte da força deste argu‐
mento na imaginação humana exprime‐se na seguinte observação do filósofo seiscen‐
tista, Henry More:
Por que outra razão teriam as nossas pernas e braços três juntas, bem como os
dedos, senão por ser melhor do que ter duas ou quatro? E por que serão os nossos den‐
tes incisivos aguçados como cinzéis de corte mas os nossos dentes interiores largos para
triturar, e não o contrário? Mas talvez tivéssemos conseguido sobreviver a custo nessa
circunstância mais difícil. Mais uma vez, por que será a disposição dos dentes tão feliz,
ou, ao invés, por que não há dentes noutros ossos além dos maxilares? Porquanto pode‐
riam ter sido tão eficazes como estes. Mas a razão é nada ser feito tolamente ou em vão;
isto é, há uma providência divina que ordena todas as coisas.3
Temos procurado responder à primeira das duas questões críticas dirigidas ao
argumento do desígnio: em função de que características se diz que o nosso universo é
semelhante a uma máquina? Vimos que no mundo natural há muitas coisas (plantas e
animais, por exemplo) que parecem partilhar com as máquinas a interessante e impor‐
tante característica de serem sistemas teleológicos. Antes de nos voltarmos para a
segunda questão crítica, contudo, temos de identificar exactamente o que aceitamos
63
acerca do nosso universo se aceitarmos a afirmação de que as plantas e os animais,
como as máquinas, são sistemas teleológicos.
Uma coisa é acreditar que o universo contém muitas partes que são sistemas teleo‐
lógicos; outra completamente diferente é acreditar que o universo em si é um sistema
teleológico. Nada que tenhamos considerado até agora mostra que o universo em si é
um sistema teleológico. Para o mostrar, teríamos de afirmar que o próprio universo
tem uma finalidade e que as suas partes estão dispostas de tal modo que funcionam
conjuntamente para a realização dessa finalidade. Mas será que podemos, olhando
apenas para o pequeno fragmento do nosso universo que nos é acessível, ter a espe‐
rança de distinguir a finalidade do universo em si? Parece claro que não podemos. Se
sabemos que Deus criou o universo e também por que o criou, podemos razoavelmen‐
te inferir que o universo em si é um sistema teleológico. Mas como o argumento do
desígnio é um argumento a favor da existência de Deus, não pode pressupor a sua exis‐
tência e finalidades sem pressupor aquilo que está a tentar provar. Quando muito,
então, o que podemos dizer é que o universo contém muitas partes (além de objectos
feitos por seres humanos, como máquinas) que são sistemas teleológicos. E isto signi‐
fica que não temos justificação para afirmar que o universo em si é como uma máqui‐
na. O que talvez tenhamos justificação para afirmar é que o universo contém muitas
partes naturais (isto é, partes que não são feitas pelos seres humanos) que se asseme‐
lham a máquinas; estas assemelham‐se a máquinas porque, como elas, são sistemas
teleológicos. Aceitando esta limitação, podemos rever a nossa formulação do argu‐
mento do desígnio, do seguinte modo:
1. As máquinas são produzidas por desígnio inteligente.
2. Muitas partes naturais do universo assemelham‐se a máquinas.
Logo,
3. Provavelmente, o universo (ou pelo menos muitas das suas partes naturais) foi produ‐
zido por desígnio inteligente.
Indícios de desígnio inteligente
A segunda questão crítica que temos de levantar a respeito do argumento do desíg‐
nio é se a característica em função da qual muitas partes naturais do universo se asse‐
melham a máquinas é relevante ou não para a questão de o universo (ou muitas das
suas partes naturais) ter surgido através de desígnio inteligente. É evidente que a res‐
posta a esta questão é sim. Sabemos que o desígnio inteligente explica o facto de as
máquinas serem sistemas teleológicos. Descobrimos então que o mundo natural con‐
tém muitos sistemas teleológicos. Que explicação mais plausível se pode dar da sua
origem do que supor que também estes surgiram através de desígnio inteligente? E
visto ser claro que nenhum ser humano podia ter sido o criador inteligente do univer‐
64
so (ou das suas partes naturais que são sistemas teleológicos), parece razoável supor
que algum ser sobre‐humano concebeu inteligentemente o universo no seu todo, ou
pelo menos muitas das suas partes.
Ainda que o desígnio inteligente seja uma hipótese plausível para explicar os muitos
sistemas teleológicos no mundo natural, será a única hipótese disponível? Antes de
Charles Darwin (1809–1882) e da teoria da evolução, é duvidoso que alguém tenha tido
uma explicação naturalista dos sistemas teleológicos na natureza que pudesse seria‐
mente competir com a hipótese do desígnio inteligente. Mas, desde o desenvolvimen‐
to da teoria da evolução, o argumento do desígnio tem perdido alguma da sua força
persuasiva, pois temos agora uma hipótese naturalista razoavelmente bem elaborada
para explicar os sistemas teleológicos na natureza. Resumidamente, a teoria darwinista
da selecção natural parece explicar por que a natureza contém tantos organismos cujas
diversas partes se encontram tão bem ajustadas à sua sobrevivência. Segundo esta teo‐
ria, os animais e as plantas sofrem variações ou mudanças que são herdadas pelos seus
descendentes. Algumas variações dão aos organismos uma vantagem sobre o resto da
população na luta constante pela sobrevivência. Como as plantas e os animais geram
mais crias do que o ambiente pode sustentar, aqueles em que ocorrem variações favo‐
ráveis tendem a sobreviver em maior número do que aqueles em que ocorrem varia‐
ções desfavoráveis. Assim, acontece que ao longo de grandes períodos de tempo emer‐
gem lentamente grandes populações de organismos altamente desenvolvidos cujas
partes se encontram tão peculiarmente ajustadas à sua sobrevivência.
Durante o final do século XX e o início do século XXI teve lugar um debate sobre se
a teoria darwinista da selecção natural consegue explicar adequadamente os organis‐
mos vivos complexos que habitam o nosso planeta. Embora a ciência biológica pareça
estar firmemente enraizada na teoria darwinista da evolução, a própria teoria continua
a ser criticada por alguns biólogos que argumentam que a selecção natural sem desíg‐
nio inteligente é inadequada para explicar a complexidade dos seres vivos que habitam
o nosso planeta. Por exemplo, o biólogo Michael J. Behe argumenta que o princípio de
selecção natural de Darwin não pode explicar o facto de muitos sistemas biológicos
serem «irredutivelmente complexos» ao nível molecular.4 Behe fala numa ratoeira
como exemplo de algo que é irredutivelmente complexo. As ratoeiras têm diversas
partes interligadas (mola, base, martelo, charneira e barra de preensão), e todas estas
são necessárias para realizar a finalidade da ratoeira — apanhar ratos. Um sistema bio‐
lógico irredutivelmente complexo é um sistema que, como uma ratoeira, simplesmen‐
te não pode funcionar a menos que todas as suas partes estejam presentes e adequa‐
damente conectadas. Como a evolução darwinista procede por ligeiras modificações
sucessivas em sistemas operacionais, que por acaso se adaptam a mudanças ambien‐
tais, afirma‐se que é extremamente difícil ver, se não mesmo impossível, como através
da teoria darwinista se pode chegar a sistemas irredutivelmente complexos ao nível
molecular. Se a posição defendida por Behe fosse correcta, seria uma objecção impor‐
tante à capacidade de a selecção natural darwinista explicar sistemas complexos ao
65
nível molecular. É óbvio que há uma grande distância entre os dados de Behe e a con‐
clusão de que uma explicação adequada de sistemas biológicos irredutivelmente com‐
plexos ao nível molecular exige a existência de um ser omnipotente, omnisciente, per‐
feitamente bom, que criou directamente estes sistemas irredutivelmente complexos.
Na verdade, nem Behe nem William Dempski,5 outro importante defensor do desígnio
inteligente, afirmam explicitamente que o argumento do desígnio inteligente é um
indício a favor da existência do Deus teísta. Dempski mantém oficialmente o silêncio
acerca da identidade do criador, e Michael Behe admite que este possa fazer parte do
mundo natural.6 Presentemente, há algum debate académico sobre se a selecção natu‐
ral darwinista pode explicar adequadamente os sistemas biológicos irredutivelmente
complexos ao nível molecular. Diga‐se, em boa verdade, contudo, que na sua maioria
os biólogos adoptam a perspectiva de que não há razões suficientes para pensar que
não pode explicá‐los.
Kenneth R. Miller, professor de biologia na Universidade de Brown e teísta, concor‐
da com Behe que se o darwinismo não pode explicar a aparente complexidade irredu‐
tível ao nível da célula viva então está condenado. Miller observa, contudo, que embo‐
ra a biologia celular não existisse no tempo de Darwin, Darwin teve o cuidado de pro‐
curar explicar como a sua teoria podia dar conta de um sistema irredutivelmente com‐
plexo, dando uma explicação evolucionista do exemplo do olho humano, usado por
Paley.7 Na perspectiva de Miller, o argumento de Behe a partir da complexidade irre‐
dutível é apenas mais uma tentativa falhada de encontrar no nosso planeta a ocorrên‐
cia de algo que a ciência é supostamente incapaz de explicar.
Enquanto teísta, Miller encara o universo como criação de Deus. Na verdade, argu‐
menta que dada a teoria do Big Bang acerca da origem do universo faz todo o sentido
supor que a existência do nosso universo foi causada por um ser sobrenatural. Mas
Miller afirma que a teoria darwinista pode explicar a lenta emergência ao longo do
tempo de sistemas teleológicos intricados, incluindo plantas, os animais inferiores e os
seres humanos. Para Miller, só da origem do nosso universo se pode razoavelmente
afirmar que foi um acto de criação e desígnio inteligente. Na verdade, ao contrário de
Behe, Miller é muito cuidadoso quanto a afirmar que há acontecimentos no nosso pla‐
neta que são inexplicáveis sem alguma actividade imediata, directa, de Deus. Pois é
demasiado frequente mostrar‐se, a longo prazo, que os acontecimentos terrenos
supostamente resultantes da exclusiva intervenção directa de Deus são consequência
causal de forças puramente naturais. É a própria origem do universo, cujas constantes
são tais que permitem a emergência da vida humana neste planeta tão insignificante,
que Miller acredita ter sido directamente causada por Deus. Visto que uma coisa é
argumentar que Deus é indispensável para explicar os sistemas teleológicos intricados
que observamos na Terra, e outra completamente diferente é argumentar que Deus é
indispensável para explicar por que há um universo cujas constantes são tais que per‐
mitem a ocorrência de um planeta com condições que tornam a vida possível, é
melhor tratar o último como um argumento separado — o novo argumento do desíg‐
66
nio. Examinaremos esse argumento mais à frente neste capítulo, depois de considerar
as críticas de Hume ao antigo argumento do desígnio.
Seja a teoria darwinista da selecção natural verdadeira ou falsa, tem de se admitir
que é uma adversária de peso da hipótese do criador inteligente como possível expli‐
cação para o facto de o mundo natural conter tantos sistemas teleológicos altamente
desenvolvidos. O que isto acarreta para o argumento do desígnio é que este já não tem
a força persuasiva de que em tempos gozou. Embora nos dê indubitavelmente alguma
base para pensar que muitas partes do mundo natural surgiram por desígnio inteligen‐
te, temos agora razões para questionar a força da inferência que parte dos sistemas
teleológicos na natureza para chegar a um criador inteligente, visto que temos na teo‐
ria da selecção natural uma hipótese alternativa com explica esses sistemas teleológi‐
cos.
As críticas de Hume ao argumento do desígnio
Embora os Diálogos Sobre a Religião Natural, de Hume, tenham sido escritos antes
do advento da teoria darwinista, há muito que foram reconhecidos como a ofensiva
clássica ao argumento do desígnio. Para o que nos interessa, pode‐se dividir as críticas
de Hume em dois grupos: as críticas à afirmação de que o universo é como uma
máquina, e as críticas à afirmação de que o argumento do desígnio nos dá uma base
adequada para acreditar no Deus teísta. A melhor forma de concluir o nosso estudo do
antigo argumento do desígnio é ver algumas das principais objecções de Hume.
Em primeiro lugar, Hume sublinha que a vastidão do universo enfraquece a afirma‐
ção de que este se assemelha a uma máquina ou a qualquer outra criação humana,
como uma casa ou um navio. Em segundo lugar, Hume faz notar que embora haja
ordem e desígnio na parte do universo em que habitamos, tanto quanto sabemos pode
haver vastas extensões do universo onde reine o caos absoluto. E, por fim, embora
admitindo a observação de que o desígnio inteligente é a causa da produção de coisas
no pequeno fragmento de universo que podemos observar, Hume argumenta que a
conclusão de que o desígnio inteligente é a força produtiva em todo o universo é um
salto irrazoável. «Uma pequena parte deste grande sistema, durante um espaço muito
breve de tempo, mostra‐se‐nos imperfeitamente; e vamos, partindo daí, pronunciar‐
nos decisivamente a respeito da origem do todo?»8
Estas objecções dirigem‐se à segunda premissa da formulação original do argumen‐
to do desígnio, a premissa de que o universo no seu todo se assemelha a uma máquina.
As objecções, contudo, não afectam tão directamente a versão revista do argumento
em que a segunda premissa diz: «Muitas partes naturais do universo assemelham‐se a
máquinas». Na versão revista não se faz qualquer afirmação acerca do universo no seu
todo ou acerca das partes do universo que somos incapazes de observar. Por conse‐
guinte, como nos ocupamos agora da versão revista, podemos pôr tranquilamente de
parte o primeiro grupo das críticas de Hume.
67
O segundo grupo de críticas dirige‐se não ao argumento como o formulámos, mas a
qualquer tentativa de interpretar o argumento como base adequada para a crença teís‐
ta — a crença de que existe um ser sumamente perfeito que criou o universo. E a este
respeito, não há dúvida de que Hume tem razão. Ao inspeccionar o universo, podemos
talvez concluir que surgiu por desígnio inteligente, mas o argumento do desígnio é
incapaz de ir além disso; não nos dá qualquer base racional para pensar que seja o que
for que produziu o universo é perfeito, um ou espiritual. Não podemos inferir que o
que produziu o universo é supremamente sábio ou bom porque, tanto quanto sabe‐
mos, o universo é um produto muito imperfeito, mais semelhante a um Edsel ou um
Corvair do que a um Rolls Royce. E mesmo que se soubesse que o mundo na sua vasti‐
dão é uma obra excelente, ainda assim, tanto quanto sabemos, este mundo podia ser o
último de uma série de mundos, muitos dos quais criações desajeitadas e ineptas,
antes de a divindade ter finalmente conseguido aprender a arte de fazer mundos.
Faz parte da crença teísta a ideia de que há um único ser que produziu o mundo,
mas uma vez que sabemos que muitas máquinas, edifícios, automóveis, e outros enge‐
nhos resultam dos esforços combinados de muitos criadores, o universo, tanto quanto
sabemos, podia ser o produto do trabalho de muitas divindades menores, cada uma
detentora de uma inteligência e perícia limitadas.
Faz parte da crença teísta a ideia de que a divindade é incorpórea (não tem corpo),
um ser puramente espiritual. Mas, uma vez mais, se inferimos, a partir da semelhança
entre o mundo natural e uma máquina, a semelhança entre aquilo que terá causado
ambos, então, visto que no caso das máquinas não conhecemos qualquer causa (um
ser humano) que seja incorpórea, não temos base para inferir que seja o que for que
produziu o mundo é um ser incorpóreo.
Hume resume este segundo grupo de objecções fazendo notar que quem quer que
limite a base da sua crença religiosa ao argumento do desígnio «poderá talvez afirmar,
ou conjecturar, que, a dada altura, o universo surgiu por algo semelhante ao desígnio:
mas além dessa posição não pode estar seguro de uma única circunstância que seja; e
terá então de corrigir cada detalhe da sua teologia recorrendo ao maior desregramento
caprichoso e hipotético.»9
É claro o que o segundo conjunto de críticas lançadas por Hume acarreta. Não se
pode estabelecer o teísmo apenas através do argumento do desígnio. Muitos teístas
aceitariam esta implicação. Argumentariam, contudo, que os diversos argumentos
importantes a favor da existência de Deus, tomados em conjunto, dão efectivamente
uma base racional para acreditar no Deus teísta. Pelo que o segundo conjunto de críti‐
cas apresentadas por Hume, embora mostre claramente as limitações do argumento
do desígnio, não afecta a afirmação mais geral de que os argumentos tradicionais a
favor da existência de Deus, tomados em conjunto, dão ao teísmo uma base racional.
68
O novo argumento do desígnio
O novo argumento do desígnio surgiu durante o século XX, alimentado por desco‐
bertas científicas e teorias respeitantes tanto à origem do nosso universo como às con‐
dições que nele tiveram de prevalecer desde o início para que o tipo de vida que
conhecemos tivesse alguma hipótese sequer de ocorrer no universo à medida que este
se desenvolvia. Ao contrário dos defensores do argumento que Darwin e Hume critica‐
ram, os defensores do novo argumento não começam pela existência de seres vivos
(plantas e animais) procurando uma explicação para o facto de serem sistemas teleo‐
lógicos tão intricados. Podem mesmo conceder que Darwin tem uma explicação para
isso. Ao invés, os defensores do novo argumento do desígnio perguntam que condi‐
ções tem de haver no universo para que seja sequer possível a existência de seres vivos.
E afirmam que dada a mais prometedora explicação para a origem do universo dispo‐
nível na ciência moderna — a teoria do Big Bang — as hipóteses de o universo se
desenvolver de tal modo que a vida é possível são incrivelmente pequenas, muito
menos do que uma hipótese num milhão. Veja‐se então a coisa assim: havia milhões
de maneiras diferentes de o universo se poder ter desenvolvido a partir do Big Bang. E
apenas de uma dessas maneiras o universo viria a ter as características necessárias para
a emergência e existência contínua do tipo de vida que conhecemos. Um exemplo
popular de uma das inúmeras condições que tinham de ser precisamente do modo
como são para que a surgimento da vida fosse sequer possível diz respeito à taxa de
expansão do universo a partir do momento inicial do Big Bang. Se a taxa de expansão
fosse ligeiramente mais rápida, não teria sido possível formarem‐se as galáxias, estrelas
e planetas, com o resultado de que o tipo de vida que conhecemos não teria tido hipó‐
tese de existir. Alternativamente, como afirma Stephen Hawking, «Se a taxa de expan‐
são do universo um segundo depois do Big Bang tivesse sido menor ainda que por um
em cem mil triliões, o universo teria voltado a ser uma bola de fogo quente».10 Quando
percebemos que a taxa de expansão é apenas uma das muitas condições diferentes que
tinham de estar exactamente ajustadas para que a vida fosse possível no universo, a
hipótese de um criador inteligente que ajustou o estado inicial do universo parece uma
explicação muito mais plausível do que o apelo ao mero acaso para o facto de que o
nosso universo é adequado à vida.
Creio que tem de se reconhecer que este argumento a favor de um criador inteli‐
gente das condições iniciais tem algum mérito. Contudo, seria um erro, como Hume
nos ensinou, concluir algo mais, além de que o argumento sustenta a ideia de que a
existência de desígnio inteligente teve um papel no início do universo. Pode ter havido
muitos criadores cooperando mutuamente; o criador, se houve apenas um, podia ter
acertado finalmente na taxa de expansão, depois de muitas tentativas falhadas; o cria‐
dor inteligente podia desde então ter perdido todo o interesse que teve em tempos no
bem‐estar dos seres vivos no universo. Resumindo, mesmo que este argumento seja
bom, deixa ainda em aberto a questão de o criador inteligente do nosso universo ser
69
ou não o deus teísta. (Como vimos, ao discutir o antigo argumento do desígnio, os
teístas podem perfeitamente concordar com isto, argumentando ao invés que cada um
dos argumentos a favor da existência de Deus pode sustentar diferentes características
da ideia teísta de Deus.)
Há, contudo, uma objecção ao argumento que merece consideração. E se tivessem
ocorrido milhões de outros Big Bangs? E se o nosso universo (o universo que começou
com o Big Bang a que se referem as nossas teorias científicas) for apenas um entre
milhões de outros que, não tendo condições indispensáveis à vida, são desconhecidos?
Se assim fosse, seria provável que um destes Big Bangs tivesse as condições iniciais
para se desenvolver de tal modo que aí pudesse haver vida. Pegando num baralho de
cartas que não esteja viciado, é extremamente improvável que tirar cinco cartas aleato‐
riamente resulte numa sequência ordenada de cartas do mesmo naipe. Mas se houver
milhares e milhares de baralhos de cartas que não estejam viciados, de cada um dos
quais se retira cinco cartas aleatoriamente, será muito provável, na verdade, que um
desses lances seja uma sequência ordenada de cartas do mesmo naipe. Talvez se passe
o mesmo com o nosso universo Big Bang, caso em que seria insurpreendente que um
universo Big Bang contenha vida. E como somos seres vivos fazemos forçosamente
parte desse insurpreendente universo.11
Há pouco considerámos as objecções do biólogo Kenneth R. Miller às críticas de
Michael Behe à selecção natural darwinista como explicação dos sistemas biológicos
irredutivelmente complexos que se encontra no nosso planeta. Enquanto cristão, Mil‐
ler acredita que Deus é o criador do universo no qual por acaso há um pequeno plane‐
ta com as condições adequadas à emergência de seres vivos inteligentes. Contra a sua
perspectiva considerámos uma objecção preferida dos inteístas. Porque, como vimos,
se tivesse havido milhões e milhões de Big Bangs resultando em milhões e milhões de
universos, seria provável um deles ter constantes que permitissem a existência de vida
humana. Miller, obviamente, está ciente desta possibilidade alternativa. Tem de se
admitir, contudo, que uma vez que apenas podemos observar o nosso próprio univer‐
so, não se pode obter indícios para determinar se a hipótese do universo múltiplo está
correcta. Miller conclui razoavelmente que, sendo os indícios para a hipótese do uni‐
verso múltiplo inalcançáveis, há justificação intelectual para levar a sério a alternativa
tradicional: que o nosso universo, em vez de ter ocorrido por acaso, foi criado por
Deus.12 Note‐se, contudo, que qualquer ser sobrenatural com poder absoluto e conhe‐
cimento suficiente seria também capaz de criar o nosso universo. Não se exige, por
exemplo, um ser que seja moralmente perfeito. Não obstante, como não temos indí‐
cios a favor da hipótese do universo múltiplo, a alternativa de um criador sobrenatural
permanece uma possibilidade genuína.1
1
A noção de possibilidade genuína é aqui crucial. O argumento teísta pressupõe que qualquer possi‐
bilidade lógica é uma possibilidade genuína, razão pela qual é necessário então explicar por que razão
uma possibilidade genuína ocorreu em vez de qualquer outra. A ideia de que toda a possibilidade lógica
70
Argumentos aceitáveis
Neste e nos dois capítulos anteriores, debatemo‐nos com os três argumentos prin‐
cipais a favor da existência de Deus. Tentámos compreender estes argumentos bem
como as principais objecções que foram apresentadas contra eles. Em cada caso, sugeri
que os argumentos são insuficientes para nos dar uma base racional persuasiva para
pensar que o Deus teísta existe. O argumento cosmológico, ainda que seja sólido, não
nos permite saber que há um ser auto‐existente, porque assenta num princípio, o prin‐
cípio de razão suficiente (PRS), que, quando muito, poucos de nós sabem se é verda‐
deiro. O argumento ontológico, embora belo e genial, não prova que existe um ser
insuperavelmente grandioso, porque cai em petição de princípio — teríamos de saber
que a conclusão é verdadeira de modo a saber que as suas premissas são verdadeiras.
E, por fim, os argumentos do desígnio, tanto o antigo quanto o novo, dão‐nos, quando
muito, base para pensar que algumas partes naturais do universo ou o universo em si
surgiram por desígnio inteligente.
E se juntarmos os argumentos, tentando justificar o teísmo não com os três separa‐
damente mas como se fossem um só? Isto seria útil se cada um dos argumentos conse‐
guisse realmente dar uma base racional sólida para algum aspecto do Deus teísta. Mas,
como vimos, nem o argumento cosmológico nem o argumento ontológico conseguem
fazer isto. A nossa avaliação final dos argumentos, portanto, é que, tomados separa‐
damente ou em conjunto, não conseguem provar a crença teísta. Como o filósofo e
psicólogo americano William James comentou: «Os argumentos a favor da existência
de Deus aguentaram‐se durante centenas de anos sob as vagas da crítica incrédula que
se abatiam sobre os mesmos, nunca os desacreditando aos olhos dos crentes, mas em
geral desgastando lentamente a argamassa de entre as juntas.»13
Não se deve entender a nossa conclusão de que os três argumentos tradicionais não
conseguem provar a existência de Deus no sentido de serem intelectual ou religiosa‐
mente inúteis. Porquanto foram avaliados à luz de um cânone excepcionalmente ele‐
vado. Perguntámos se os argumentos funcionam como demonstrações ou provas da
existência de Deus; e vimos que ficam aquém de satisfazer este cânone elevado. Alguns
filósofos e teólogos contemporâneos, portanto, contentam‐se em pensar, não que os
argumentos provam a existência de Deus, mas que mostram que a existência de Deus é
uma hipótese plausível para explicar o mundo e a nossa experiência. Os argumentos,
nesta perspectiva, dão‐nos razões para defender que a crença em Deus é racional. São
é uma possibilidade genuína permaneceu incontestada na filosofia até Saul Kripke ter introduzido a
ideia de que nem todas as possibilidades lógicas são possibilidades genuínas. Se aceitarmos que nem
tudo o que é logicamente possível é genuinamente possível, o teísta terá de explicar por que razão cer‐
tas outras possibilidades lógicas são possibilidades genuínas. Cf. Naming and Necessity, de Saul Kripke
(Londres: Blackwell, 1980) e Essencialismo Naturalizado, de Desidério Murcho (Coimbra: Angelus
Novus, 2002). (N. do R. C.)
71
argumentos aceitáveis no sentido em que apresentam considerações a favor da hipóte‐
se de que Deus existe.
Embora não possamos elaborar muito detalhadamente esta última ideia, é impor‐
tante reconhecer que um argumento a favor de uma conclusão pode ser aceitável ain‐
da que não a consiga provar. O argumento cosmológico, por exemplo, não é uma pro‐
va da sua conclusão porque assenta num princípio (PRS) que não sabemos nem pode‐
mos provar se é verdadeiro. Mas o PRS, não obstante, pode ser um princípio plausível,
um princípio que se poderá razoavelmente considerar digno de crença. Nessa medida,
o argumento cosmológico pode dar peso à crença teísta, embora não consiga ainda
prová‐la. Até certo ponto, pode‐se fazer comentários semelhantes acerca do argumen‐
to ontológico e do argumento do desígnio. Por isso, embora se tenha visto que a afir‐
mação tradicional de que estes argumentos provam a existência de Deus está incorrec‐
ta, isto não exclui a possibilidade de que um ou mais dos argumentos possam desem‐
penhar um papel importante na defesa intelectual do teísmo.14
Revisão
1. Explique por que o antigo argumento do desígnio tem de usar o raciocínio analógico.
Que duas questões críticas temos de levantar acerca desse argumento?
2. Explique o que se entende por sistema teleológico. Será razoável pensar que muitas coi‐
sas na natureza são sistemas teleológicos?
3. Que críticas levanta Hume à afirmação de que o universo se assemelha a uma máquina?
4. Explique como o novo argumento do desígnio não é afectado pela evolução darwinista.
Que objecção se pode levantar ao novo argumento do desígnio?
5. Que conclusões gerais se pode retirar a respeito dos três principais argumentos a favor
da existência de Deus?
Estudo complementar
1. Descreva o tipo de mundo que tornaria prováveis as seguintes perspectivas (cada uma
por sua vez):
a. Há muitas divindades finitas.
b. Há um Deus, omnipotente e perfeitamente bom.
c. Há um Deus, omnipotente mas que não é perfeitamente bom.
d. Há um Deus, perfeitamente bom mas que não é omnipotente.
2. Supondo que o mundo nos dá alguns indícios de desígnio inteligente, desenvolva um
argumento a favor da ideia de que o teísmo é mais provável do que o politeísmo
enquanto explicação dos indícios de desígnio inteligente que há no mundo.
72
Notas
1. David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, II, org. H. D. Aiken (Nova Iorque:
Hafner Publishing Company, 1948), p. 17. [Diálogos sobre a Religião Natural, trad. Álva‐
ro Nunes, Lisboa: Edições 70, 2005.]
2. C. D. Broad, The Mind and Its Place in Nature (Londres: Routledge & Kegan Paul, Ltd.,
1925), p. 83.
3. Citado por J. J. C. Smart em «The Existence of God», em New Essays in Philosophical
Theology, org. Antony Flew e Alasdair MacIntyre (Londres: SCM Press Ltd, 1955), p. 43.
4. Michael J. Behe, Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution (Nova
Iorque: The Free Press, 1996), p. 54.
5. William A. Dempski, No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be Purchased
Without Intelligence (Lanham, MD: Roman and Littlefield, 2002).
6. Michael J. Behe, «The Modern Design Hypothesis: Breaking Rules», em God and De‐
sign: The Teleological Argument and Modern Science, org. Neil A. Manson (Nova
Iorque: Routledge, 2003), pp. 277‐291.
7. Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God (Nova Iorque: HarperCollins Publishers Inc.,
1999), p. 135.
8. Hume, Dialogues, II, pp. 22‐23.
9. Hume, Dialogues, V, p. 40.
10. Stephen Hawking, A Brief History of Time (Nova Iorque: Bantam Books, 1988), p. 123.
[Breve História do Tempo, trad. Ribeiro da Fonseca, Lisboa, Gradiva, 1988.]
11. Para uma perspectiva mais completa desta objecção, ver Peter van Inwagen, Metaphy‐
sics (São Francisco: Westview Press, 1993) pp. 132‐148.
12. Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God, pp. 230‐232.
13. William James, The Varieties of Religious Experience (Nova Iorque: The Modern Li‐
brary, 1936), p. 427.
14. Para uma explicação dos argumentos segundo esta linha, ver George F. Thomas, Philo‐
sophy and Religious Belief (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1970), Capítulo 6.
73
Capítulo 5
Experiência mística e religiosa
Antes de Robinson Crusoe ter efectivamente visto o homem Sexta‐feira, a sua justi‐
ficação para acreditar que havia alguém que não ele próprio na ilha consistia em vestí‐
gios deixados por Sexta‐feira, tais como pegadas. O crente que baseia a sua crença em
Deus apenas em argumentos a favor da existência de Deus, como os argumentos cos‐
mológico e do desígnio encontra‐se numa situação algo semelhante à de Crusoe antes
de ter realmente visto Sexta‐feira. A crença em Deus assenta numa convicção de que o
mundo e o modo como as coisas nele se inter‐relacionam são vestígios da actividade
de Deus, testemunhando a existência de um género de ser supremo. Depois de ter
realmente visto Sexta‐feira, porém, as razões que Crusoe tinha para acreditar que não
estava sozinho na ilha não se limitavam aos vestígios deixados por Sexta‐feira; nestas
se incluía o contacto directo, em pessoa, com o próprio Sexta‐feira. Analogamente, as
pessoas que têm experiências místicas e religiosas encaram amiúde a experiência mís‐
tica e religiosa como uma consciência pessoal directa do próprio Deus e, consequen‐
temente, como uma justificação excepcionalmente forte para a crença em Deus. Neste
capítulo consideraremos a experiência mística e religiosa com o objectivo de avaliar
até que ponto podem justificar racionalmente a crença.
Para uma definição de experiência religiosa
A nossa primeira tarefa é tentar compreender o que é a experiência religiosa. Como
caracterizaremos a experiência religiosa? Esta questão é excepcionalmente difícil e
qualquer caracterização a que cheguemos será provavelmente inadequada, talvez
mesmo um pouco arbitrária. Mas precisamos de ter alguma ideia, por muito vaga e
inadequada que seja, daquilo que esperamos examinar. Comecemos por considerar um
exemplo claro de experiência religiosa — a experiência de Saulo na estrada para
Damasco. Depois, podemos ver o modo como alguns dos mais capazes estudiosos da
experiência religiosa tentaram caracterizá‐la.
Em viagem aproximava‐se de Damasco e subitamente um clarão vindo do céu fulgu‐
rou perto dele. E caiu ao chão e ouviu uma voz que lhe dizia: «Saulo, Saulo, por que me
persegues?» E retorquiu: «Quem és, Senhor?» e a voz respondeu: «Sou Jesus, a quem
persegues; mas levanta‐te e entra na cidade, e dir‐te‐ão o que tens de fazer.» Os homens
que viajavam com ele ficaram sem palavras, ouvindo a voz mas não vendo quem quer
que fosse. Saulo levantou‐se do chão e quando os seus olhos se abriram, não conseguia
74
ver; então levaram‐no pela mão e trouxeram‐no para Damasco. E durante três dias con‐
tinuou sem ver e não comeu nem bebeu.1
Nesta experiência, que mostrou ser o ponto de viragem na vida de Saulo, transfor‐
mando‐o de Saulo, o perseguidor, em Paulo, o apóstolo, há da parte de Saulo a cons‐
ciência de uma figura divina — «Quem és, Senhor?» — acompanhada de uma boa
dose de temor e tremor, e uma consciência da sua própria insignificância. Não é muito
claro o que Saulo efectivamente viu com os próprios olhos, talvez apenas uma luz
ofuscante que o cegou temporariamente. Ouviu de facto uma voz e compreendeu o
que esta lhe dizia.
Embora a experiência de Saulo seja claramente religiosa, não nos diz o que é uma
experiência religiosa, nem nos dá uma caracterização pela qual possamos distinguir a
experiência religiosa da irreligiosa. Não é preciso ver uma luz ofuscante nem ouvir
uma voz para ter uma experiência religiosa. Além disso, ver uma luz ofuscante e ouvir
uma voz apenas não basta para fazer uma experiência religiosa. Como caracterizare‐
mos então a experiência religiosa?
Dependência, alteridade e união
No seu importante livro A Ideia do Sagrado, o teólogo alemão Rudolf Otto (1896–
1937) procurou chegar ao elemento essencial da experiência religiosa examinando cri‐
ticamente a caracterização da experiência religiosa dada pelo teólogo oitocentista,
Friedrich Schleiermacher. Segundo Schleiermacher, o que distingue a experiência reli‐
giosa é que nela é‐se dominado pelo sentimento de dependência absoluta. É óbvio que
muitas vezes temos consciência de nós próprios como seres dependentes — dos nos‐
sos amigos, ou do capricho dos professores que avaliam ensaios. Tais sentimentos de
dependência não são distintamente religiosos e Schleiermacher não pensou que fos‐
sem. São apenas exemplos do sentimento de dependência relativa. Na experiência reli‐
giosa, contudo, o elemento central é o sentimento de dependência absoluta, a cons‐
ciência do eu como absolutamente dependente.
Otto sugere o nome de «sentimento de criatura» para esse elemento da experiência
religiosa que Schleiermacher procurou descrever como a consciência do eu como
absolutamente dependente. A sua objecção fundamental não é que Schleiermacher foi
incapaz de discriminar um elemento importante da experiência religiosa, visto que
Otto admite prontamente que o sentido do eu como criatura é um elemento da expe‐
riência religiosa. A sua objecção é que o sentimento de criatura não é o elemento mais
fundamental da experiência religiosa e ao fazer dele o elemento fundamental Sch‐
leiermacher incorreu em dois erros. O primeiro destes erros é o subjectivismo, fazendo
da consciência, não de outro mas do eu como absolutamente dependente, a essência
da experiência religiosa. O segundo erro é que Schleiermacher pensa que só se chega a
Deus através da inferência. Pois ao converter em essência da experiência religiosa uma
75
certa consciência que se tem do eu, Schleiermacher foi levado a considerar Deus não
como objecto de consciência imediata mas como algo a que se tem de chegar em
resultado de uma inferência, enquanto causa da nossa dependência absoluta, da qual
temos experiência imediata.
Em lugar da explicação de Schleiermacher da essência da experiência religiosa
enquanto consciência do eu como absolutamente dependente, Otto afirmou que o
elemento essencial é a consciência de outro (algo exterior ao próprio) como sagrado
ou divino. Assim, para Otto, a consciência imediata de Deus é o elemento verdadeira‐
mente essencial, e a sensação do eu como absolutamente dependente (sentimento de
criatura) é um resultado imediato do elemento essencial, a consciência de outro como
sagrado. Otto lançou‐se então numa análise penetrante dos elementos (como a reve‐
rência, o mistério, o terror) que estão contidos na consciência de algo como sagrado.
Na esteira de Otto, poderíamos caracterizar provisoriamente a experiência religiosa
como uma experiência em que se tem directamente consciência de outro (algo exterior
ao eu) como sagrado (divino). E talvez esta caracterização da experiência religiosa seja
a mais adequada que se pode dar. Há, contudo, uma dificuldade. Na caracterização de
Otto tem‐se consciência de outra coisa, algo distinto e exterior ao eu. Sem dúvida que
muitas experiências religiosas são assim. Mas a forma mais elevada de experiência mís‐
tica parece uma experiência em que não há qualquer consciência de outra coisa como
distinta do eu. O que os místicos religiosos se parecem esforçar por alcançar é uma
experiência em que a consciência que se tem do eu como algo distinto do objecto da
experiência é suprimida, destruída. A forma mais elevada de experiência mística é uma
forma de união absoluta com o divino — uma experiência em que o eu acede e se tor‐
na uno com o divino de modo que não há sequer, na experiência, qualquer consciência
de outro (algo distinto do eu).
Considere‐se, por exemplo, as duas seguintes passagens do teólogo místico alemão
Mestre Eckhart (1260–1328):
Nestas duas passagens, Eckhart indica claramente que a alma se encontra no seu
estado mais abençoado ou perfeito quando tem experiência do divino tão intensamen‐
te que perde a própria identidade e se torna una com o divino. Neste estado não há
qualquer consciência do divino como objecto e da alma como sujeito, distinta do divi‐
no. Como observou o filósofo místico Plotino (205–270 d.C.): «Não devíamos falar em
ver, mas, ao invés, em visto e vidente, devíamos falar ousadamente numa Unidade
76
simples, dado que neste ver nem distinguimos nem há dois.»4 A dificuldade na carac‐
terização que Otto dá da experiência religiosa é excluir as experiências do tipo descrito
por Eckhart e Plotino, experiências que têm sido prezadas pelos místicos religiosos
como a mais elevada forma que se pode alcançar de contacto directo com o divino.
A presença do divino
No interesse, então, de não excluir tais experiências da categoria de experiência reli‐
giosa, sugiro que corrijamos do seguinte modo a caracterização de Otto: diremos que
uma experiência religiosa é uma experiência em que se sente a presença imediata do
divino. Há que esclarecer várias coisas acerca desta caracterização da experiência reli‐
giosa.
Em primeiro lugar, pretendo que esta caracterização inclua aquelas experiências do
divino em que não há qualquer sentido de alteridade (as experiências dos místicos
religiosos, por exemplo), mas antes um sentido de união ou identidade com o divino,
bem como as experiências em que há um sentido evidente de alteridade, de encontro
com a figura divina, como, por exemplo, na experiência de Saulo na estrada para
Damasco. Em segundo lugar, temos de ter cuidado para não confundir a crença de que
o divino está presente com a sensação de presença do divino. Um católico que partici‐
pe na comunhão pode perfeitamente acreditar na presença do divino, tendo‐lhe sido
ensinado que a substância do pão se torna divina quando consagrada pelo padre. Mas
pode não ter experiência directa do divino e talvez não sinta a presença imediata do
divino quando participa na comunhão. Sentir a presença imediata do divino é ter uma
experiência particular que se aceita como experiência directa do divino. Pode‐se acre‐
ditar na presença do divino sem ter experiência directa do divino. Em terceiro lugar,
ao caracterizar uma experiência religiosa como uma experiência em que se sente a
presença imediata do divino, delimitamos de duas maneiras importantes a ideia de
experiência religiosa. Não tomamos em consideração as experiências religiosas que
não têm por objecto o divino — por exemplo, sentir‐se arrependido por ter pecado —
e excluímos experiências do divino, se as há, em que não se tem consciência do objec‐
to da experiência como divino. Talvez uma pessoa por vezes tenha experiência de
Deus mas sem sentir a presença de Deus, porque não consegue reconhecer que é Deus
quem lhe aparece. Casos como este dão‐se na percepção sensorial comum. Alguém
pode percepcionar directamente uma nogueira mas não sente estar na presença de
uma nogueira porque essa pessoa pensa (erradamente) que aquilo de que está a ter
experiência é um ácer. A pessoa pode até mais tarde afirmar (erradamente) que nunca
viu uma nogueira. Assim, também, não podemos excluir que alguém percepcione
realmente Deus sem sentir a presença de Deus, porque a pessoa se engana acerca
daquilo de que tem experiência. Se há tais experiências, não pertencem à nossa carac‐
terização do que é uma experiência religiosa. Em quarto lugar, por «o divino» não
entendo apenas o deus teísta. Porquanto há muitas concepções do divino além do
77
deus teísta. Por «o divino» entendo seja o que for que um grupo religioso, incluindo
grupos religiosos inteístas, reconheça como divindade. Reconhecidamente, isto torna a
nossa caracterização da experiência religiosa um pouco vaga e imprecisa. Mas isto é
inevitável, dado o facto de haver diversas religiões com diversas concepções do divino,
algumas em si mesmas muito vagas e imprecisas. Finalmente, temos de reconhecer
que ao afirmar que alguém teve uma experiência religiosa, não estamos a ser tenden‐
ciosos quanto à questão da existência ou inexistência do divino de que a pessoa teve
experiência. Pode‐se sentir a presença de um determinado objecto mesmo quando
esse objecto não está efectivamente presente para poder ser percepcionado. Por exem‐
plo, podemos estar tranquilamente sentados a uma secretária, a escrever, e, de súbito,
sentir fortemente a presença de outra pessoa na sala, voltando‐nos então para desco‐
brir que ninguém lá está. Assim, o mero facto de se sentir a presença imediata de algo
(divino ou não) não implica em si a existência desse algo que está em causa. Macbeth
teve realmente uma experiência na qual sentiu a presença imediata de um punhal,
ainda que o punhal não existisse lá. Ao afirmar, portanto, que Saulo teve uma expe‐
riência religiosa na estrada para Damasco deixamos em aberto a questão de a expe‐
riência ter sido delusória, como a experiência que Macbeth teve do punhal, ou verídica,
como quando, por exemplo, temos experiência directa de algo que existe realmente,
independentemente de nós. A questão que temos em última instância de levantar,
portanto, não é a de as pessoas terem realmente ou não experiências religiosas — têm‐
nas seguramente — mas a de ser ou não razoável pensar que as suas experiências são
verídicas e não delusórias.
Até agora caracterizámos a experiência religiosa de modo a incluir quer experiên‐
cias em que se sente a presença do divino como distinto do eu, quer experiências em
que se sente a união entre o eu e uma presença divina. Podemos considerar as do pri‐
meiro género como experiências religiosas amísticas; as do segundo género deixam‐se
caracterizar melhor como experiências religiosas místicas. O nosso objectivo aqui é
olhar para as experiências religiosas, tanto amísticas como místicas, tendo em vista
determinar em que medida a sua existência dá uma base racional para a crença em
Deus (ou alguma realidade divina).
Experiências religiosas amísticas
As experiências em que se sente a presença imediata de um ser divino podem ter
conteúdo visual e auditivo. A experiência religiosa de Saulo, por exemplo, tinha con‐
teúdo sensorial — uma luz ofuscante, uma voz, e por aí em diante. Mas outras expe‐
riências do divino não têm conteúdo sensorial. Eis o relato de uma experiência seme‐
lhante:
De uma só vez senti […] a presença de Deus — falo na coisa como dela tive cons‐
ciência — como se a sua bondade e o seu poder me penetrassem por completo […]
78
Então, lentamente, o êxtase abandonou o meu coração; isto é, senti que Deus retirara a
comunhão que concedera […] Julgo por bem acrescentar que neste meu êxtase Deus não
tinha forma, cor, odor, nem sabor; além disso, que o sentimento da sua presença não era
acompanhado de qualquer localização determinada […] No fundo, a expressão mais ade‐
quada para transmitir o que senti é esta: Deus estava presente, embora invisível; não se
deixava apreender por qualquer dos meus sentidos, no entanto a minha consciência per‐
cepcionava‐o.5
Depara‐se‐nos a questão de a existência de experiências como esta nos dar ou não
(pelo menos aos que as têm) uma boa razão para acreditar que Deus existe (ou algum
género de ser divino). Inicialmente, pode haver a tentação de pensar que não o fazem,
com o pretexto de os relatos de experiências religiosas não serem talvez senão relatos
de certos sentimentos (alegria, êxtase, etc.) que de vez em quando se apoderam de
pessoas que já acreditam em Deus e estão talvez demasiado ansiosas para se sentir
escolhidas para uma aparição especial do divino. Contra essa objecção, contudo, note‐
se que alguns dos que relatam ter tido experiências religiosas da variedade amística
estão profundamente cientes da diferença entre ter experiência dos próprios senti‐
mentos (alegria, tristeza, serenidade, etc.) e experiências que envolvem sentir a pre‐
sença de outro ser. Estão também cientes de que desejar uma certa experiência pode
levar a confusões entre essa experiência e outra qualquer. A menos que tenhamos uma
razão muito forte para não o fazer, devemos aceitar que os seus relatos são sinceros,
esforços cuidadosos para exprimir o conteúdo das suas experiências. E esses relatos
não são principalmente relatos de estados psicológicos subjectivos; são relatos de
encontros com o que se entende ser um ser divino com existência independente.
Contudo, mesmo reconhecendo que não é justo descrever as experiências apenas
como relatos de sentimentos pessoais, por que razão se deveria pensar serem percep‐
ções verídicas daquilo de que aparentam ser uma experiência? Não se faz justiça à
experiência que Macbeth tem de um punhal descrevendo‐a como a experiência de um
certo sentimento por Macbeth; parece uma experiência de um objecto distinto do
próprio Macbeth. Mas a experiência era uma alucinação. Por que não pensar que são
alucinações todas as experiências em que se sente a presença imediata de Deus (ou de
alguma figura divina)? A resposta dada por quem pensa que as experiências religiosas
constituem uma boa razão para acreditar que Deus existe é a de que só as devemos
rejeitar como delusórias se tivermos uma razão especial para pensar que o são. E na
ausência dessas razões especiais, é racional vê‐las como provavelmente verídicas. Será
útil examinar com algum detalhe esta linha de raciocínio.
Se uma pessoa tem uma experiência que considera ser de um objecto particular,
será o facto de ter essa experiência uma boa razão para acreditar na existência desse
objecto particular? Intuitivamente, a nossa resposta é «não». Inclinamo‐nos a respon‐
der «não» porque todos podemos pensar em experiências que são aparentemente de
um objecto particular, quando na verdade tal objecto não existe. Considere‐se dois
79
exemplos: O leitor entra numa sala e tem uma experiência visual que considera ser a
percepção de uma parede vermelha. Sem o leitor saber, há lâmpadas vermelhas apon‐
tadas para a parede branca para a qual o leitor olha, fazendo‐a parecer vermelha. Aqui
está o leitor a ter experiência de uma parede que existe realmente e é branca, mas não
há qualquer parede vermelha para o leitor percepcionar. Como pode então o facto de o
leitor ter uma experiência, que aparenta claramente ser a percepção de uma parede
vermelha, ser uma boa razão para pensar que existe realmente uma parede vermelha?
Mais uma vez, sem o leitor saber, alguém deita um poderoso alucinogénio no seu café,
fazendo‐o ter uma experiência que o leitor entende ser a percepção de uma enorme
serpente enrolada, frente à cadeira onde está sentado. Ao contrário do primeiro exem‐
plo (há uma parede, só que não é vermelha), não há qualquer serpente que o leitor
esteja a ver. Outras pessoas na sala, que não têm qualquer motivo para o enganar,
garantem‐lhe que não há qualquer serpente na sala. A experiência que o leitor tem da
serpente é inteiramente delusória. Portanto, como pode o facto de o leitor ter uma
experiência, que aparenta claramente ser a percepção de uma serpente enrolada, ser
uma boa razão para pensar que a serpente enrolada existe?
Uma experiência é uma boa razão para acreditar que uma afirmação é verdadeira se
essa experiência justificar racionalmente a crença na afirmação, não havendo razões
para pensar de outro modo. Razões para pensar de outro modo são: A) razões para
pensar que a afirmação é falsa ou B) razões para pensar que dadas as circunstâncias
em que ocorre, a experiência não é suficientemente indicativa da verdade da afirma‐
ção. Considere‐se novamente o segundo exemplo. Como sabemos que as outras pes‐
soas que estão na sala irão ver as coisas físicas realmente existentes (incluindo as ser‐
pentes), se estas lá estiverem realmente, o leitor passa a ter uma razão de tipo A para
pensar de outro modo. Isto é, quando outros, que estão em condições de ver, afirmam
que não há qualquer serpente, o leitor passa a ter uma razão para pensar que a serpen‐
te não existe realmente. No nosso primeiro exemplo, se supusermos que tudo o que o
leitor sabe é que há lâmpadas vermelhas apontadas para a parede e que tais lâmpadas
fariam a parede parecer vermelha, mesmo sendo branca, a nossa razão para pensar de
outro modo não é em si uma razão para pensar que não há qualquer parede vermelha.
É uma razão de tipo B. Diz‐nos que, seja a parede vermelha ou não, dadas as circuns‐
tâncias (há lâmpadas vermelhas apontadas para a parede) a experiência do leitor não é
suficientemente indicativa da verdade de que a parede é vermelha. Porquanto o leitor
sabe agora que podia ter aquela experiência mesmo sendo a parede branca.
Vimos que temos de distinguir entre o facto de uma experiência ser uma boa razão
a favor de uma afirmação e o facto de essa experiência justificar a afirmação indepen‐
dentemente de tudo o mais que sabemos. Quem pensa que ter uma experiência, supos‐
tamente de um objecto particular, é uma boa razão para pensar que esse objecto parti‐
cular existe, reconhece que podemos conhecer ou descobrir razões do tipo A ou do
tipo B para pensar de outro modo. Insiste apenas que na ausência de tais razões refu‐
tantes, quem tem tal experiência tem justificação racional para acreditar que o objecto
80
particular existe. Richard Swinburne argumentou estar aqui em causa um princípio
fundamental de racionalidade, a que chama «princípio da credulidade».6 Segundo este
princípio, se uma pessoa tem uma experiência que parece ser de x, então, a menos que
haja uma razão para pensar de outro modo, é racional acreditar que x existe. Conce‐
dendo este princípio, parece arbitrário recusar a sua aplicação a experiências religiosas
— experiências em que se sente a presença imediata do divino. Portanto, a menos que
haja uma razão para pôr em causa estas experiências, parece racional acreditar que
Deus ou algum ser divino existe.
Antes de nos voltarmos para a consideração das experiências religiosas místicas,
temos de assinalar duas dificuldades na perspectiva de que o princípio de credulidade
torna racional aceitarmos as experiências religiosas amísticas como verídicas. A pri‐
meira dificuldade é que o princípio de credulidade pressupõe que temos uma ideia das
razões que poderemos ter para questionar as nossas experiências e que temos maneira
de saber se estas razões estão ou não presentes. Considere‐se mais uma vez o nosso
exemplo da experiência em que o leitor supõe percepcionar uma enorme serpente
enrolada. Como outros objectos físicos que compõem o mundo que percepcionamos
através dos nossos cinco sentidos, as serpentes são objectos públicos, observáveis por
outros que satisfazem certas condições. Isto é, podemos prever que as pessoas com
visão saudável observarão uma serpente (se ali estiver alguma) desde que haja boa
iluminação e as pessoas olhem na direcção certa. É porque os objectos físicos estão
sujeitos a tais previsões que podemos compreender as eventuais razões para questio‐
nar uma experiência que parece a percepção de uma serpente; e podemos amiúde
saber se tais razões estão presentes. No caso de seres divinos, contudo, as coisas são
bastante diferentes. Supõe‐se que depende inteiramente do arbítrio de Deus revelar ou
não a sua presença a um ser humano. Se Deus o faz, pode ou não dar‐se a conhecer a
outros que estão numa situação semelhante. Isto significa que é bastante difícil desco‐
brir razões para pensar que a experiência religiosa amística de alguém é delusória. Mas
uma vez que o princípio de credulidade supõe que compreendemos as eventuais
razões para pôr uma experiência em causa, há dúvidas sobre a justiça de aplicar o
princípio a experiências cujos sujeitos as tomam por percepções da presença de um ser
divino. É óbvio que sendo Deus um ser perfeitamente bom, não podemos, a partir des‐
se facto apenas, encontrar uma razão para pensar que uma experiência que aparente‐
mente se tem de Deus é delusória. Suponha‐se que alguém relata uma experiência,
que interpreta como percepção de uma ordem de Deus, para que mate quem quer que
procure sinceramente viver uma vida moral e piedosa. Podemos estar certos de que
Deus não revelou essa mensagem e ter assim uma razão para pensar que a experiência
é delusória. Restam dúvidas, contudo, sobre haver ou não um leque adequado de
razões para pôr em causa a aplicação do princípio de credulidade às experiências reli‐
giosas. Assim, sabendo nós que um pressuposto do princípio de credulidade não foi
adequadamente satisfeito pelas experiências religiosas, é no mínimo duvidoso que o
81
princípio nos dê justificação para considerar as experiências religiosas como percep‐
ções genuínas da realidade.
Suponhamos que alguém que não teve experiências religiosas examina vários rela‐
tos de pessoas que as desfrutaram. Um aspecto saliente destas experiências é estarem
na sua maioria inseridas numa ou noutra de uma pluralidade de tradições religiosas,
que não podem ser todas verdadeiras. Por exemplo, a experiência de Saulo na estrada
para Damasco está inserida no cristianismo enquanto experiência de Jesus como ser
divino. Nenhuma experiência semelhante faz parte do judaísmo ou do islão. Na verda‐
de, nestas tradições religiosas, Jesus não é sequer um ser divino. As experiências que se
tem de Alá no islamismo ou de Deus no judaísmo não são experiências de um ser divi‐
no que seja uma trindade de pessoas, como é o Deus cristão. No hinduísmo pode‐se
ter experiência de Crixna como ser divino, mas não de Jesus. Além disso, no hinduís‐
mo há também uma vertente em que se tem experiência da presença divina, Brama,
como algo que não é uma pessoa. Parece improvável que todas estas experiências reli‐
giosas possam ser percepções verídicas de uma presença divina. Estas experiências
impregnam e sustentam tradições religiosas rivais, mutuamente contraditórias.
Tomando consciência disto, que perspectiva deve adoptar quem não teve quaisquer
experiências religiosas? Se o princípio da credulidade funciona para uma qualquer,
funcionará igualmente para todas. Mas dificilmente poderão todas elas ser percepções
verídicas de uma presença divina. Confrontada com esta situação, parece racional que
esta pessoa não aceite qualquer destas experiências religiosas como verídicas. Assim,
mesmo que concordemos em continuar a aplicar o princípio de credulidade às expe‐
riências religiosas, pode perfeitamente acontecer que a pessoa que não teve qualquer
experiência religiosa tenha justificação racional para não aceitar tais experiências
como percepções verídicas da realidade. Pois o facto de estas experiências sustentarem
tradições religiosas conflituantes nas quais estão inseridas pode dar a essa pessoa uma
razão para não aceitar como verídica qualquer experiência religiosa particular.
Experiências religiosas místicas
Os estudantes do misticismo normalmente distinguem dois tipos gerais de expe‐
riência religiosa mística: a extrovertida e a introvertida. A extrovertida olha para fora,
através dos sentidos, para o mundo à nossa volta, e descobre aí a realidade divina. A
maneira introvertida volta‐se para dentro e encontra a realidade divina na parte mais
profunda do eu. A última é a mais importante dos dois tipos de experiência mística,
mas será útil examinar ambos com algum detalhe.
Experiência extrovertida
Na maneira extrovertida, os místicos usam os sentidos para percepcionar o mesmo
mundo de árvores, outeiros, riachos e ribeiros que todos percepcionamos. Mas numa
82
experiência mística, vêem estes objectos triviais transfigurados e transformados —
vêem uma essência interna em todas estas coisas e podem sentir a unidade entre o seu
eu mais profundo e esta essência interna, que parece a mesma nos diferentes objectos
percepcionados. W. T. Stace relata uma experiência deste tipo, a experiência de um
americano a quem Stace chama «N. M.». A experiência de N. M. ocorreu enquanto
olhava para o pátio de um antigo prédio de apartamentos.
Os edifícios eram decrépitos e feios, o chão estava coberto de tábuas, trapos e
escombros. Subitamente, todos os objectos no meu campo de visão adquiriram um tipo
curioso e intenso de existência própria; isto é, tudo parecia ter um «interior» — existir
como eu existia, tendo interioridade, um tipo de vida individual, e todos os objectos
observados deste ponto de vista pareciam extremamente belos. Estava lá um gato, com a
cabeça levantada, observando indolentemente uma vespa que se movia sem se mover
mesmo acima da sua cabeça. Tudo estava premente da vida que era a mesma no gato, na
vespa, nas garrafas partidas, e apenas se manifestava diferentemente nestes indivíduos
(que não deixavam por isso de ser indivíduos, ainda assim). Todas as coisas pareciam
brilhar com uma luz que vinha do seu interior.7
Stace relata que em conversa com N. M. este lhe disse que não só todos aqueles
objectos externos pareciam partilhar uma e a mesma vida, mas que a vida partilhada
por esses objectos era também a mesma vida que tinha e tem em si próprio. A explica‐
ção de N. M. continua:
Senti uma completa certeza de que naquele momento via as coisas como realmente
eram e fiquei cheio de dor ao me aperceber da situação real dos seres humanos, vivendo
continuamente no meio de tudo isto sem ter consciência. Esta ideia apoderou‐se da
minha mente e chorei. Mas chorei também pelas coisas em si, que nunca vimos e que na
nossa ignorância tornamos feias, e vi que toda a fealdade era uma chaga da vida […]
Ganhei consciência do tempo outra vez e a impressão de entrar no tempo foi tão nítida
como se tivesse entrado na água, passando de um elemento mais rarefeito para um mais
denso.8
Diversos místicos de várias tradições religiosas têm relatado experiências semelhan‐
tes à de N. M. Por exemplo, Stace sugere que a experiência de N. M. é semelhante à de
Eckhart:
Aqui (isto é, na experiência) todas as folhas de erva, a madeira e a pedra, todas as
coisas são Uma […] Quando está um homem no mero entendimento? Quando vê cada
coisa separada das outras. E quando está acima do entendimento? Quando tudo vê em
tudo, então ergue‐se o homem acima do mero entendimento.9
83
Reflectindo na experiência mística do tipo extrovertido, podemos numerar os
seguintes aspectos como características da experiência:
1. Olha para fora através dos sentidos.
2. Vê a essência interna nas coisas, uma essência que parece viva, bela e a mesma em
todas as coisas.
3. Sensação de união entre o eu mais profundo e esta essência interior.
4. Sentimento de ter experiência do divino.
5. Sensação de realidade, de ver as coisas como realmente são.
6. Sensação de paz e felicidade.
7. Intemporalidade, nenhuma consciência da passagem do tempo durante a experiência.
Experiência introvertida
Na experiência mística introvertida olha‐se para dentro e descobre‐se o divino no
âmago da alma. Não se trata simplesmente de pensar em si próprio. Segundo os místi‐
cos tem de se aceder à parte mais profunda e sombria de si próprio, o que é extraordi‐
nariamente difícil de fazer. Primeiro há que se desligar do estado normal de consciên‐
cia. O que é o estado de normal de consciência? Nesse estado, pode‐se estar ciente de
uma série de conteúdos de consciência: sensações, desejos, sentimentos, imagens,
quereres, memórias, pensamentos. Desde que se esteja ocupado com qualquer destes
— mesmo pensamentos nobres acerca de Deus — não se pode aceder à parte mais
profunda do eu, onde nada há senão silêncio. Todos os grandes místicos concordam a
este respeito. Tem de se pôr de lado o estado normal de consciência; tem de se esva‐
ziar a consciência de todos estes conteúdos. Eckhart, usando a expressão: «o nasci‐
mento de Cristo na alma» para a experiência mística do tipo introvertido sublinha a
importância e a dificuldade de se desligar do estado normal de consciência.
O nascimento é impossível sem um completo afastamento da sensação […] E exige‐
se uma grande força para reprimir todos os agentes da alma e fazê‐los deixar de funcio‐
nar. Congregá‐los exige muita força, e sem essa força não pode ser feito.10
Talvez reconhecendo a extrema dificuldade de alcançar o desligamento, os místicos
desenvolveram vários «exercícios» para ajudar a levar a cabo esta tarefa. Há as técnicas
ioga da Índia, por exemplo, em que se procura obter o domínio sobre a vida consciente
através de exercícios de respiração. E os místicos cristãos nos mosteiros católicos
desenvolveram a técnica da «oração», não no sentido usual de pedir coisas a Deus,
mas no sentido da meditação, praticada com a intenção de remover obstáculos à
obtenção da união com Deus.
Suponha‐se que de algum modo se atingia o desligamento, afastando da consciên‐
cia a actividade dos sentidos e do intelecto. O que aconteceria? Em vez de perder a
consciência ou adormecer, pode‐se ter experiência do âmago da alma, que se esvaziou
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de todo o conteúdo. Os místicos descrevem esta experiência como uma experiência de
vazio, uma sensação de nada. Usa‐se metáforas como «escuridão», «um ermo», «o
deserto» para caracterizar esta experiência do vazio. Os místicos insistem na ideia de
que só à medida que o eu perde consciência de si próprio e de outras coisas pode ficar
vazio e preparar‐se para a entrada de Deus. Como Eckhart observa:
A palavra genuína da eternidade pronuncia‐se apenas nessa eternidade do homem
que é ele próprio um deserto, alienado de si e de toda a multiplicidade.11
De igual modo, o místico espanhol São João da Cruz (1542–1591) afirma:
Agora a alma tem de se esvaziar de todas estas formas, figuras e imagens imagina‐
das, e tem de permanecer na escuridão a respeito destes sentidos para alcançar a Divina
União.12
Aparentemente, se Deus entra realmente na alma, quando esta alcança o seu estado
total de vazio e escuridão, tem‐se a sensação de se encontrar a realidade última, tem‐
se uma experiência de unidade com esta realidade, e uma sensação total de paz e feli‐
cidade. Na tradição mística católica, chama‐se «visão beatífica» a esta experiência, e
por muita dificuldade que os que a alcançaram tenham em descrevê‐la, é sobremanei‐
ra evidente que para os místicos esta experiência é uma pérola de grande valor. Para
eles, transcende tudo o mais que a vida na Terra tem para oferecer.
Reflectindo na experiência mística do tipo introvertido, podemos numerar os
seguintes aspectos característicos dessa experiência:
1. Um estado de consciência desprovido dos seus conteúdos comuns: sensações, imagens,
pensamentos, desejos, e por aí em diante.
2. Uma experiência de unidade absoluta, sem distinções ou divisões.
3. Sensação de realidade, de se ter experiência da realidade última.
4. Sentimento de que se tem experiência do divino.
5. Sensação total de paz e felicidade.
6. Intemporalidade, nenhuma consciência da passagem do tempo durante a experiência.
A tese da unanimidade
Uma dificuldade que encontrámos nas experiências religiosas comuns é serem apa‐
rentemente de seres divinos muito diferentes — Jesus, Crixna, Alá, Brama, e outros.
Consideramo‐la uma dificuldade porque as experiências estão inseridas e apoiam tra‐
85
dições religiosas rivais que não podem ser todas verdadeiras. Até certo ponto, portan‐
to, aceitar a veracidade de uma destas experiências é levantar dúvidas acerca das expe‐
riências comuns de uma tradição religiosa rival. Por contraste, muitos filósofos e pen‐
sadores religiosos argumentaram que as experiências místico‐religiosas do tipo intro‐
vertido são fundamentalmente as mesmas, afirmação a que por vezes se chama «tese
da unanimidade». William James exprimiu‐a do seguinte modo:
86
riência pesa normalmente a favor da veracidade da experiência. Claro que o facto de
alguém em Chicago não ter ouvido a voz que descrevi não é relevante porque essa pes‐
soa não tinha maneira (não estava na sala de aula) de ouvir a voz. Tão‐pouco é rele‐
vante o facto de a voz não ter sido ouvida por alguns estudantes que estavam na sala
de aula mas tinham adormecido. Pois embora pudessem ouvir a voz, não satisfaziam
outra condição necessária (estar acordado) para se ouvir a voz, se é que estava real‐
mente ali uma voz para se fazer ouvir.
Voltando à experiência mística, podemos agora ver a importância da tese da una‐
nimidade para a questão de a experiência do místico ser verídica ou delusória. O facto
de vários indivíduos terem essencialmente a mesma experiência é relevante para a
questão de a experiência ser ou não verídica desde que seja razoável pensar que há
condições tais que, quando satisfeitas, uma pessoa teria a experiência se esta fosse
verídica e não a teria se fosse delusória. Os místicos parecem de facto empenhar‐se em
satisfazer certas condições (o desligamento, por exemplo) e têm amiúde a experiência
quando se satisfaz estas condições. Mas não há maneira clara ou segura de saber se
alguém satisfez realmente as condições exigidas pela experiência mística. Além disso,
pode acontecer que o objecto de experiência, se é um ser divino, possa ou não optar
por se revelar mesmo quando se satisfaz as condições necessárias. Por estas razões, é
difícil saber em que circunstâncias se deve pôr em causa a veracidade da experiência
mística pelo facto de alguém se empenhar em satisfazer as condições para ter a expe‐
riência sem o conseguir. Não obstante, parece razoável ver o facto de os místicos em
toda a parte terem a mesma experiência como um ponto a favor da veracidade dessa
experiência.
Mas será a tese da unanimidade verdadeira? Será que os místicos em toda a parte
têm basicamente a mesma experiência? Se pensamos em indivíduos que gozam de
experiências do tipo introvertido, talvez pareça que a resposta tem de ser «sim». Pois
sendo experiências místicas introvertidas, terão as características de 1 a 6, em cujos
termos se caracterizou a experiência mística introvertida. Temos de nos lembrar, con‐
tudo, que o item 4 menciona o sentido de que se encontra «o divino», e que permiti‐
mos intencionalmente que a expressão «o divino» substitua seja o que for que qual‐
quer grupo religioso reconheça como tal. Assim, quando Eckhart descreve a sua expe‐
riência como aquela em que o eu se perde na divindade, a natureza divina comum às
três pessoas da trindade — o Deus Pai, o Deus Filho e o Deus Espírito Santo — e
quando um místico hindu descreve as suas experiências como união com Brama, o eu
universal, temos duas concepções bastante diferentes do divino, mas ambas as expe‐
riências são exemplos de experiência mística introvertida.
Como os místicos de diferentes tradições religiosas — cristã, judaica, islâmica, hin‐
du e outras — usam concepções bastante diferentes do divino para caracterizar a rea‐
lidade que encontram nas suas respectivas experiências místicas, por que deveremos
acreditar que todos gozam da mesma experiência? Nalgumas formas de hinduísmo
concebe‐se o divino como realidade impessoal, ao passo que quando Santa Teresa
87
caracteriza a sua experiência como «união com Deus», usa a concepção cristã do divi‐
no como um ser supremo, amoroso, pessoal. Confrontado com estes factos, como pode
o defensor da tese da unanimidade continuar a afirmar que os místicos cristãos,
judeus, islâmicos, hindus e budistas têm todos precisamente a mesma experiência?
Pode‐se fazê‐lo distinguindo entre a experiência e a sua interpretação e sugerindo que
as diferenças que aparecem nas descrições que os místicos dão da realidade que
encontram se devem em larga medida a diferentes interpretações da mesma experiên‐
cia e não a descrições directas de experiências diferentes. No seu proveitoso livro, The
Teachings of the Mystics [Os Ensinamentos dos Místicos], Stace introduz a distinção do
seguinte modo:
Numa noite escura ao relento avista‐se algo que emite um brilho branco. Uma pes‐
soa poderá pensar que é um fantasma. Uma segunda pessoa poderá pensar que se trata
de um lençol estendido na corda da roupa. Uma terceira pessoa poderá supor que se tra‐
ta de uma pedra pintada de branco. Aqui temos uma única experiência com três inter‐
pretações diferentes. A experiência é genuína, mas as interpretações podem ser verda‐
deiras ou falsas. Para compreender seja o que for do misticismo, é essencial que façamos
uma distinção similar entre uma experiência mística e as interpretações que dela se pode
fazer quer pelos próprios místicos quer pelos que o não são. Por exemplo, a mesma
experiência mística pode ser interpretada por um cristão em termos de crenças cristãs e
por um budista em termos de crenças budistas.14
88
unanimidade dos místicos a respeito da sua experiência continua a ser um aspecto a
favor da sua veracidade. Como decidiremos então o assunto?
Experiência mística: verídica ou delusória?
Ao ajuizar se uma experiência é verídica ou delusória também temos em conta o
estado das pessoas que têm a experiência. O uso de santonina e o consumo excessivo
de álcool provocam estados anormais nas pessoas que os consomem, estados que cau‐
sam experiências distorcidas e delusórias do mundo. E é precisamente por esta razão
que Russell defende que se deve considerar delusória a experiência do místico. Pois, ao
contrário do cientista, que apenas exige de nós a capacidade normal de visão e outras
percepções, o místico, argumenta Russell, «exige mudanças no observador, através do
jejum, exercícios de respiração, e uma cuidadosa abstenção da observação externa».16
O místico, como o bêbado, produz em si próprio estados corporais e mentais anóma‐
los. Russell argumenta que tais estados levam a percepções inexactas e anómalas que
muito provavelmente são delusórias. Com perspicácia e estilo característicos, Russell
conclui: «De um ponto de vista científico, não podemos fazer qualquer distinção entre
o homem que come pouco e vê o Céu e o homem que bebe muito e vê serpentes. Cada
um se encontra numa condição física anormal e portanto tem percepções anormais».17
Embora o estado sentimental de paz e felicidade do místico seja algo que Russell valo‐
riza muito, a experiência do místico, na medida em que pretende ser um encontro
com a realidade objectiva, é rejeitada por Russell como muito provavelmente delusó‐
ria.
Penso que há um pressuposto tácito na rejeição da experiência mística por Russell,
um pressuposto que tem de ser posto em causa. Sabemos acerca dos estados corpóreos
e mentais anómalos que causam percepções distorcidas e delusórias do mundo físico,
o mundo da nossa experiência comum. É necessário recordar, contudo, que o místico
afirma percepcionar um domínio que transcende o mundo da experiência comum, um
reino espiritual inteiramente diferente do mundo físico. O pressuposto tácito no
argumento de Russell é que os estados corpóreos e mentais que interferem com per‐
cepções fidedignas do mundo físico interferem também com percepções fidedignas de
um mundo espiritual além do físico, se é que há um mundo espiritual para ser percep‐
cionado. Talvez este pressuposto seja razoável, mas é certo que a sua verdade não é
óbvia. De facto, pode haver razões para pensar que o exacto contrário deste pressupos‐
to é muito provavelmente verdadeiro. Como escreve Broad:
Suponha‐se por momentos que há um aspecto do mundo que permanece inteira‐
mente fora do alcance das pessoas comuns na vida quotidiana. Parece então muito pro‐
vável que um certo grau de anormalidade física e mental seja uma condição necessária
para nos libertarmos suficientemente dos objectos da percepção sensorial comum, de
modo a contactar cognitivamente com este aspecto da realidade. Portanto, o facto de as
89
pessoas que afirmam este tipo peculiar de cognição exibirem geralmente certas anorma‐
lidades físicas e mentais é precisamente o que seria de esperar se as suas afirmações fos‐
sem verdadeiras. Talvez seja preciso ser um pouco «avariado» para se ter acesso a fendas
por onde espreitar o mundo supra‐sensorial.18
Embora seja um céptico religioso, Broad argumenta vigorosamente a favor da pers‐
pectiva de que as experiências místicas são muito provavelmente verídicas. Broad
resume assim a sua posição:
Por fim chego, ao argumento a favor da existência de Deus que se baseia na ocor‐
rência de experiências especificamente místicas e religiosas. Estou disposto a admitir
que tais experiências ocorrem entre pessoas de diferentes raças e tradições sociais, e que
ocorreram em todos os períodos da história. Estou disposto a admitir que, embora as
interpretações que delas se tem feito difiram ainda mais, há provavelmente certas carac‐
terísticas comuns a todas e que bastam para as distinguir de todos os outros tipos de
experiência. Consequentemente, penso ser provável que na experiência religiosa e místi‐
ca os homens entrem em contacto com uma realidade, ou aspecto da realidade, com o
qual não contactam de outra maneira.19
Face ao facto, já considerado, de a unanimidade não mostrar por si a veracidade de
uma experiência, e face ao facto de, na passagem citada, Broad não mencionar qual‐
quer argumento, além da unanimidade, favorável à sua perspectiva positiva da expe‐
riência mística, temos de perguntar o que leva Broad a avaliá‐la desta maneira. As suas
razões, expressas como argumento, são as seguintes:
1. Há um acordo considerável entre os místicos no que diz respeito à realidade de que
têm experiência.
2. Quando há um acordo considerável entre observadores acerca daquilo de que enten‐
dem ter experiência, é razoável concluir que as suas experiências são verídicas, a
menos que haja uma razão positiva para as considerar delusórias.
3. Não há razões sólidas para pensar que as experiências místicas são delusórias.
Logo,
4. É razoável acreditar que as experiências místicas são verídicas.
A premissa crucial neste argumento é a número 2, que Broad argumenta ser o pos‐
tulado prático que usamos ao lidar com experiências amísticas.20 No caso da unanimi‐
dade entre bêbados que vêem ratos e serpentes, Broad argumenta que temos de facto
uma razão positiva para pensar que as suas experiências são delusórias:
Sendo este o género de coisas (ratos e serpentes) que podíamos ver se estivessem
ali, o facto de não as podermos ver torna a sua ausência muito provável […] Parece assim
90
razoável concluir que o acordo entre bêbados não é um sinal de revelação mas de delu‐
são.21
As afirmações que os místicos fazem, contudo, não entram em conflito com o que
percepcionamos no nosso estado normal de consciência. Pelo que Broad conclui que
dada a aplicação à experiência mística do postulado prático que aplicamos em tudo o
mais é razoável encarar a experiência mística como verídica.
Embora Russell não discuta o postulado prático de Broad, nada nos seus comentá‐
rios acerca da experiência mística sugere que Russell rejeitaria o postulado ou se recu‐
saria a aplicá‐lo à experiência mística. O seu desacordo com Broad diz respeito à pre‐
missa 3. Porquanto, como vimos, Russell pensa que o facto de os místicos estarem
amiúde em estados físicos ou mentais anómalos quando têm as suas experiências mís‐
ticas é uma razão positiva para pensar que são delusórias. Vimos, contudo, que Russell
aceita um pressuposto discutível ao rejeitar a premissa 3, e considerámos as razões de
Broad para se recusar a aceitar tal pressuposto.
No que diz respeito ao desacordo entre Russell e Broad a propósito da premissa 3,
inclino‐me para o lado de Broad. É razoável acreditar 1) que a natureza da realidade
que os místicos encontram talvez exigisse de nós algumas mudanças significativas,
para que a percepcionássemos, mudanças que podiam bem interferir com observações
exactas do mundo físico comum, e 2) que se a experiência mística fosse verídica causa‐
ria mudanças bastante extraordinárias nos que desfrutaram da experiência. Pelo que o
mero facto de os místicos sofrerem determinadas alterações corporais e mentais não
constitui uma razão positiva para pensar que a experiência mística é delusória.
Um caminho intermédio
Deveremos concluir, com Broad, que a experiência mística é provavelmente verídi‐
ca? A minha reserva quanto a isto diz respeito à aplicação do postulado prático de
Broad à experiência mística. Quando nos confrontamos com um grau razoável de
unanimidade entre os que desfrutam de uma dada experiência há, penso, uma diferen‐
ça importante entre 1) saber como proceder para descobrir razões positivas, se as hou‐
ver, para rejeitar a sua experiência como delusória e 2) não saber como proceder para
descobrir tais razões positivas, se as houver. Quando nos encontramos na situação 1,
como é óbvio que nos encontramos no caso das pessoas que têm experiência de ratos e
serpentes e que consomem habitualmente álcool em excesso, a aplicação do postulado
de Broad é sem dúvida justificada. Mas quando nos encontramos na situação 2, como
os amísticos parecem estar relativamente à experiência mística, talvez não se justifique
a aplicação do postulado de Broad — caso em que a questão de a experiência mística
ser verídica ou delusória parece acabar em algo como um impasse.
Há mais de cem anos, James concluiu o seu brilhante estudo do misticismo retiran‐
do três conclusões:
91
1. Os estados místicos, quando bem desenvolvidos, normalmente são, com todo o
direito, fonte de autoridade absoluta para os indivíduos a quem sobrevêm.
2. Deles não emana qualquer autoridade que impusesse a quem está de fora o dever de
aceitar acriticamente aquelas revelações.
3. Desfazem a autoridade da consciência amística ou racionalista, apenas com base na
compreensão e nos sentidos. Mostram que aquela é apenas um tipo de consciência.22
É improvável que os estudos do misticismo ao longo dos anos que desde então
decorreram tenham invalidado estas conclusões. A terceira conclusão simplesmente
observa que as experiências místicas estabelecem que há um modo de consciência
além do estado normal de consciência. Ao contrário de Russell (temos boas razões
para pensar que as experiências místicas são delusórias) e de Broad (temos boas razões
para pensar que as experiências místicas são verídicas), James adopta um caminho
intermédio na sua segunda conclusão, sugerindo que nós, amísticos, não temos quais‐
quer boas razões para ver as experiências místicas como verídicas nem boas razões
para as considerar delusórias. A isto acrescenta, na sua primeira conclusão, que os
próprios místicos não só vêem em geral as suas experiências como verídicas como têm
justificação para o fazer. Embora não tenhamos discutido a primeira conclusão de
James, as considerações que apresentámos neste capítulo apontam de facto nas direc‐
ções adoptadas na sua segunda e terceira conclusões.
Discutimos duas dificuldades na perspectiva de que o princípio da credulidade tor‐
na racional aceitar como verídicas experiências religiosas comuns. Podemos agora
resumir as nossas conclusões acerca da questão de as experiências religiosas místicas
darem ou não uma base racional para acreditar na realidade do divino. Como con‐
cluímos, com James, que os amísticos não têm de facto boas razões para aceitar a vera‐
cidade das experiências místicas, o facto de haver experiências místicas não dá aos
amísticos uma base racional para acreditar na realidade do divino. Além disso, mesmo
que os amísticos alinhassem com Broad, considerando provável a veracidade das expe‐
riências místicas, o facto de diferentes místicos usarem diferentes concepções do divi‐
no para interpretar as suas respectivas experiências tornaria difícil determinar se a rea‐
lidade apreendida pelos místicos é ou não divina, e em que sentido o seria. O próprio
Broad é cuidadoso, comentando que não pensa haver quaisquer boas razões para
supor que a realidade encontrada pelos místicos é pessoal. Portanto, no que diz respei‐
to ao Deus teísta, parece razoavelmente claro que as experiências místicas muito pou‐
co adiantam a uma base racional para acreditar na existência de tal ser. E esta conclu‐
são tanto pode aplicar‐se aos místicos quanto aos amísticos. Pois embora possamos
admitir com James que os místicos têm justificação para considerar verídicas as suas
experiências, na medida em que a própria experiência é um encontro com a absoluta
unidade, desprovida de distinções, a experiência não justificaria por si a crença no
Deus teísta. O místico teísta, que já acredita no Deus teísta, pode interpretar a sua
experiência como um encontro com algum aspecto daquele ser. Mas isto é bastante
92
diferente de defender que a própria experiência justifica a crença do místico na reali‐
dade do Deus teísta.
Revisão
1. Explique o que se entende por experiência religiosa. Em que diferem as experiências
religiosas amísticas das experiências religiosas místicas?
2. O que é o princípio de credulidade? Como ajuda a mostrar a veracidade das experiên‐
cias religiosas amísticas?
3. Que argumento fundamental apresenta Broad em defesa da sua perspectiva de que é
razoável pensar que a experiência mística é verídica?
4. Explique a diferença entre as perspectivas de Russell e de Broad sobre se é razoável ou
não encarar a experiência mística como verídica.
5. A experiência mística dá boas razões para acreditar no deus teísta? Discuta.
Estudo complementar
1.* Discuta criticamente o seguinte argumento:
As experiências religiosas amísticas não provam a existência de Deus. Mas tem de se
explicar o facto de haver tais experiências. E a explicação mais simples é que existe um
Deus que faz as pessoas ter experiência dele. Portanto, é muito provável que Deus exis‐
ta.
2.* James afirma que os estados místicos têm o direito de ser fonte de autoridade absoluta
para aqueles a quem sobrevêm. Terá James razão, ou será que quem tem estas expe‐
riências devia vê‐las como delusórias? Discuta.
Notas
1. Actos dos Apóstolos 9:3‐9 (Edição Canónica Revista).
2. R. B. Blakney, Meister Eckhart: A Modern Translation (Nova Iorque: Harper & Row Pub‐
lishers, 1941), p. 200.
3. Ibid. pp. 200‐201.
4. Citado por Walter T. Stace em Mysticism and Philosophy (Nova Iorque: J. B. Lippincott
Co., 1960), p. 233.
5. William James, The Varieties of Religious Experience (1902) (Nova Iorque: The Modern
Library, 1936), pp. 67‐68.
6. Richard Swinburne, The Existence of God (Oxford: The Clarendon Press, 1979), p. 254.
7. Stace, Mysticism and Philosophy, pp. 71‐72.
8. Ibid.
9. Ibid, p. 63.
10. Blakney, Meister Eckhart, p. 109.
11. Ibid, p. 120.
93
12. St. John of the Cross, The Dark Night of the Soul, trad. e org. K. F. Reinhardt (Nova Ior‐
que: Ungar Publishing Co., 1957), p. 51.
13. James, The Varieties of Religious Experience, p. 410.
14. W. T. Stace, The Teachings of the Mystics (Nova Iorque: New American Library, 1960),
p. 10.
15. C. D. Broad, «Arguments for the Existence of God, II» The Journal of Theological Studies
XL (1939), p. 161.
16. Bertrand Russell, Religion and Science (Londres: Oxford University Press, 1935), p. 187.
17. Ibid, p. 188.
18. Broad, «Arguments for the Existence of God, II», p. 164.
19. C. D. Broad, Religion, Philosophy and Physical Research (Nova Iorque: Humanities
Press, 1969), pp. 172–173.
20. Broad, «Arguments for the Existence of God, II», p. 163. O princípio de Broad é similar
ao princípio de credulidade discutido antes. A diferença principal é que o princípio de
Broad aceita uma experiência como verídica (a menos que haja razões positivas para
pensar que é delusória) quando há uma série de experiências que concordam com ela.
O princípio de credulidade não requer experiências concordantes.
21. Ibid., p. 162.
22. James, The Varieties of Religious Experience, p. 414.
94
Capítulo 6
Fé e razão
A questão central que tem ocupado a nossa atenção desde o primeiro capítulo é a
de haver ou não fundamentos racionais que sustentem as afirmações fundamentais
das religiões teístas. Até agora a nossa preocupação foi o estudo das razões que fre‐
quentemente se dá a favor da afirmação de que o deus teísta existe. Na sua formulação
mais geral, a questão central que temos vindo a tratar é a seguinte: será que a razão
estabelece a verdade do teísmo (ou a sua probabilidade)? Para tal, observámos com
algum cuidado os indícios a favor do teísmo veiculados pela experiência religiosa e os
argumentos tradicionais a favor da existência de Deus. Assim, para caracterizar a
abordagem que adoptámos, podemos afirmar ter avançado com base em dois pressu‐
postos: em primeiro lugar, pressupusemos que se deve ajuizar as crenças religiosas, do
mesmo modo que as crenças científicas e históricas, no tribunal da razão; em segundo
lugar, pressupusemos que as crenças religiosas só serão aprovadas no tribunal da razão
quando forem adequadamente sustentadas por indícios favoráveis. Chegou o momen‐
to de deitar um olhar crítico aos dois pressupostos.
Contra o nosso primeiro pressuposto, afirma‐se frequentemente que só se pode
aceitar crenças religiosas com base na fé e não na razão. No mínimo, portanto, temos
de considerar o que é a fé e se é racional ou irracional aceitar crenças religiosas com
base nela. Contra o segundo pressuposto, observa‐se que nem toda a crença aprovada
no tribunal da razão o pode ser em virtude de se apoiar noutra crença, que seja um
indício a seu favor. Afirma‐se que algumas das nossas crenças são racionais (são apro‐
vadas no tribunal da razão) ainda que não as adoptemos com base em quaisquer
outras crenças que possam ser indícios a seu favor. Se isto for verdade (e penso que é),
temos de considerar a questão de as crenças religiosas poderem ou não integrar esta
categoria e serem portanto aprovadas no tribunal da razão, mesmo na ausência de
indícios favoráveis, dados por outras crenças que adoptamos.
Crenças religiosas e fé
Alguns pensadores religiosos argumentaram que a própria natureza da religião exi‐
ge que as suas crenças assentem na fé, e não na razão. Pois, segundo o argumento, a
crença religiosa exige a aceitação incondicional por parte do crente, aceitação que além
disso resulta de uma decisão livre de tornar‐se crente. Mas se a crença religiosa tivesse
base racional, a razão estabeleceria indiscutivelmente a sua verdade ou apenas a torna‐
ria provável. No primeiro caso, em que a razão prova a crença, o intelecto informado
95
impõe‐na, sem deixar espaço para uma decisão livre. E no segundo caso, em que a
razão apenas mostra que a crença é provável, se a crença religiosa assentasse inteira‐
mente na razão, a aceitação incondicional da crença religiosa seria injustificada e
absurda. Talvez então a crença religiosa assente de facto na fé e não na razão.
Mas o que é a fé? E como se relaciona com a razão? Será que entra em conflito com
a razão ou a complementa? Ao tentar responder a estas questões, centraremos a nossa
atenção em duas perspectivas acerca da fé e da razão: a primeira é tradicional, desen‐
volvida por S. Tomás de Aquino; a segunda, mais radical, foi formulada por William
James.
Tanto Tomás como James encaram os objectos da fé como afirmações, sobretudo
acerca do divino. A fé é portanto a aceitação de determinadas afirmações a respeito de
Deus e das suas actividades. Por vezes, contudo, não pensamos na fé como uma acei‐
tação da verdade de certas afirmações, mas como confiança em certas pessoas e insti‐
tuições. Assim, dizemos coisas como «tem fé nos teus amigos» ou «vamos restabelecer
a fé no governo». Mas como confiar numa pessoa ou instituição envolve em geral
acreditar em determinadas afirmações acerca delas, ou aceitá‐las, a fé em alguém ou
em algo pressupõe a crença de que algumas afirmações acerca dos mesmos são verda‐
deiras. Quando tais crenças não assentam na razão, a fé em alguém ou algo pode pres‐
supor a fé de que determinadas afirmações são verdadeiras.
Tomás: uma perspectiva tradicional
Tomás diz‐nos que a fé está entre o conhecimento e a opinião — que por um lado é
como o conhecimento e difere da opinião, e por outro é como a opinião e difere do
conhecimento. Quando tomamos conhecimento de que algo é de certo modo, a razão
tem indícios conclusivos de que é desse modo; algo nos compele a dar a nossa adesão
intelectual à proposição conhecida, que portanto não é um acto livre da nossa parte.
Além disso, a nossa adesão à proposição que conhecemos é firme e segura. Segundo
Tomás, esta adesão intelectual é um aspecto comum à fé e ao conhecimento. Mas para
que o acto de fé seja livre, o intelecto não pode ser compelido por indícios conclusivos
que resultam em conhecimento. Ao contrário do conhecimento, portanto, a fé não
dispõe de indícios conclusivos a favor da proposição que é objecto de crença. No acto
de fé, a adesão produz‐se no intelecto por livre vontade.
A opinião difere do conhecimento por não dispor de indícios conclusivos a favor da
proposição que se aceita e pela sua incerteza, temendo‐se que a opinião alternativa
seja verdadeira. A fé, como a opinião, não dispõe de indícios conclusivos, mas, como o
conhecimento, a sua adesão intelectual à proposição em causa é firme e sem hesita‐
ções.
Tomás divide as verdades acerca do divino em verdades que se pode demonstrar
pela razão humana e verdades que não se pode conhecer pelo poder da razão humana.
Nas verdades do primeiro género incluem‐se afirmações como «deus existe» e «deus
96
criou o mundo». Mas há muitas verdades acerca do divino que, afirma Tomás, «exce‐
dem a capacidade da razão humana».1 Muitas destas verdades são importantes para a
nossa salvação. Pelo que embora a razão não as possa demonstrar, é importante que se
acredite nelas. A crença nelas assenta na fé e não na razão. Como a razão não impõe ao
intelecto a aceitação destas verdades acerca do divino, podemos aceitá‐las livremente
pela fé. Além disso, como a aceitação destas crenças é um acto livre, o acto de fé do
crente pode ser um gesto meritório, valendo‐lhe a aprovação e recompensa da parte de
Deus. Para Tomás, portanto, a fé não entra em conflito com a razão mas «aperfeiçoa o
intelecto» e pode ser um acto mental livre e meritório.
E quanto às verdades acerca do divino que se pode demonstrar pela razão humana?
Serão, ainda assim, objectos adequados da fé? Tomás responde que é também apro‐
priado sugerir a sua aceitação pela fé. Pois conhecer estas proposições pela demonstra‐
ção da sua verdade é uma tarefa difícil, para o sucesso da qual poucos dispõem de
tempo, formação e recursos. Não obstante, quem conhece estas proposições através da
demonstração não as aceita também pela fé. Pois é impossível a mesma proposição ser
(ao mesmo tempo) objecto de conhecimento e de fé. Na vida além‐túmulo, quando os
fiéis puderem ver Deus claramente, deixarão de viver pela fé.
Há evidentemente muitas afirmações acerca do divino que excedem a capacidade
da razão humana para as apreender. Que Deus é trino, por exemplo, não se pode pro‐
var nem refutar pela razão. Como determina Tomás quais são as afirmações acerca do
divino que se deve aceitar com base na fé? Por exemplo, devemos acreditar que Deus é
trino ou devemos acreditar que não é? A resposta a esta questão está em ver que
embora a fé se distinga da razão, não pode existir por si. Pois a razão guia a fé, mos‐
trando que as afirmações aceites com base na fé foram reveladas por Deus. Como nos
diz Tomás: «A fé […] não aceita seja o que for, excepto por ser revelado por Deus».2
Temos de distinguir, portanto, entre uma afirmação S e a afirmação «Deus revelou
S». Se S é uma afirmação que pertence apropriadamente à fé, a razão será incapaz de a
demonstrar ou apresentar indícios directos a favor de S. Mas a razão assiste a fé apre‐
sentando indícios a favor da afirmação de que Deus revelou S. Segundo Tomás, a razão
dá‐nos argumentos prováveis para sustentar a perspectiva de que Deus revelou muitas
verdades nas escrituras. Estes argumentos apelam a considerações como o cumpri‐
mento de profecias anunciadas na Bíblia, o sucesso alcançado pela igreja sem prometer
prazeres nem recorrer à violência, e a ocorrência de milagres.3 Dessa maneira, Tomás
pensa poder mostrar a razoabilidade de considerar que as escrituras foram reveladas
por Deus. Como as escrituras, segundo Tomás, ensinam que Deus é trino, a fé aceita
essa crença, ainda que seja insusceptível de demonstração ou refutação directas pela
razão.
O tratamento clássico da fé e da razão adoptado por Tomás enfrenta essencialmen‐
te duas dificuldades. Em primeiro lugar, concede à razão o poder de provar certas
afirmações fundamentais acerca de Deus — que existe, que é perfeitamente bom, cria‐
dor do mundo — afirmações que hoje em dia muitos supõem «exceder a capacidade
97
da razão humana», para usar a sua expressão. Em segundo lugar, torna a fé de certa
maneira dependente da razão no que diz respeito a determinar que afirmações Deus
terá de facto revelado. Como observa o filósofo inglês John Locke, «O que quer que
Deus tenha revelado é seguramente verdadeiro; quanto a isso não há dúvida. Trata‐se
do objecto adequado da fé; mas cabe à razão ajuizar se é ou não uma revelação divi‐
na».4
James: uma perspectiva radical
No período moderno, James elaborou, no seu agora clássico ensaio «A Vontade de
Acreditar»,5 uma perspectiva radical acerca do âmbito da fé, que não está sujeita às
duas dificuldades que afectam o tratamento dado por Tomás à fé e à razão.
O Armador de Clifford: «A Ética da Crença»
Para compreender a perspectiva de James temos antes de considerar a posição
adoptada pelo matemático e filósofo inglês, William Clifford (1845–1879), posição a
que o ensaio de James procura responder. Num artigo intitulado «A Ética da Crença»,
Clifford conta‐nos a história de um armador:
Um armador preparava‐se para enviar para o mar um navio com emigrantes. Sabia
que o navio estava velho e tinha defeitos de construção; que conhecera já muitos mares
e climas e teve de ser reparado muito mais de uma vez. Alguém sugeriu ao armador que
o navio talvez não estivesse em condições de navegar. Estas dúvidas pesavam‐lhe na
consciência e deixavam‐no infeliz; pensou que talvez devesse mandar inspeccionar e
renovar profundamente o navio, embora isto provavelmente ficasse bastante caro. Antes
de o navio zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos
melancólicos. Disse para consigo que o navio enfrentara com êxito tantas viagens e resis‐
tira a tantas tempestades que não havia razão para supor que não regressaria ileso tam‐
bém desta viagem. O armador confiaria na providência, que seguramente não deixaria
de proteger todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a pátria em busca de uma
vida melhor alhures. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da honestidade de
construtores e empreiteiros. Assim alcançou uma certeza sincera e confortável de que o
seu navio era completamente seguro e estava em condições de navegar; viu‐o partir com
despreocupação e desejos caridosos de que os exilados fossem bem‐sucedidos no novo e
estranho lar que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou
em pleno mar sem deixar rasto.6
Clifford afirma que este homem é culpado pela morte dos náufragos. O facto de o
armador acreditar sinceramente na robustez do seu navio não lhe diminui a culpa,
porquanto, sublinha Clifford: «não tinha o direito de acreditar, tendo em conta os
98
indícios disponíveis». Em vez de subordinar a crença à inspecção rigorosa das condi‐
ções do navio, o armador optou por acreditar sem quaisquer indícios adequados.
Segundo Clifford, não há qualquer justificação para adoptar uma crença sem indícios
suficientes. O armador, não tendo obtido quaisquer indícios relevantes a respeito do
estado do seu navio, errou, portanto, ao acreditar que este estava em condições. Supo‐
nhamos que o navio estava realmente em condições e que fizera a viagem em seguran‐
ça. Teria isto alterado o juízo que Clifford faz do armador? Nada disso:
O homem não seria inocente; apenas não teria sido descoberto. A questão do cor‐
recto e do incorrecto tem a ver com a origem da crença do armador, e não com o seu
conteúdo; não é a crença que conta, mas o modo como a adoptou; não se trata de a
crença ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o direito de acreditar
com base nos indícios de que dispunha.7
Contra o juízo que Clifford faz do armador, poderíamos objectar que confundiu o
facto de o armador acreditar que o seu navio está em condições com a sua acção de
enviar o navio para o mar sem inspecção adequada. É no último, diríamos, que está a
imoralidade. Afinal de contas, embora o armador acreditasse (sem bons indícios) que
o seu navio estava em condições, podia ainda assim ter ordenado uma inspecção ade‐
quada antes de enviar o navio para o mar. O que é moral ou imoral são as acções e não
a mera adopção de crenças.
Clifford, contudo, reconhece a distinção que fizemos entre a crença do armador e a
sua acção de enviar o navio para o mar. Concorda, além disso, que a acção foi imoral.
Mas insiste que é preciso condenar também a crença do armador. Pois as crenças
levam naturalmente à acção. E uma pessoa que tenha o hábito de acreditar em coisas
sem indícios suficientes, ou sem indícios sequer, irá frequentemente adoptar crenças
que levam naturalmente a acções de facto nocivas para outros, como ilustra o exemplo
do armador.
Ao reflectir no exemplo do armador e nos comentários de Clifford, talvez partilhe‐
mos a sua opinião. Quando uma crença é tal que leva naturalmente a acções que
podem ser nocivas para outros, é imoral adoptar essa crença com base em indícios
insuficientes. Não se deve adoptar tais crenças quando não há quaisquer indícios a seu
favor. Pois sabemos que quando as pessoas se entregam a tais crenças na ausência de
indícios adequados, os resultados para a humanidade são muitas vezes nocivos, se não
mesmo desastrosos. Mas há seguramente crenças cuja adopção não leva tendencial‐
mente a acções nocivas para outros. Pode tratar‐se de crenças insignificantes, coisas
triviais, como acreditar que fazia calor há um ano neste mesmo dia, ou crenças impor‐
tantes que tendencialmente levam apenas a acções úteis aos outros, como acreditar
que os seres humanos são basicamente bons e amigáveis. Se acreditar que os outros
são essencialmente bons e afáveis, posso ficar mais disposto a ser afável com eles do
que se acreditasse no contrário. Com crenças como estas, parece irrazoável, pelo
99
menos superficialmente, afirmar que é imoral adoptá‐las na ausência de indícios ade‐
quados de que são verdadeiras. Clifford, contudo, é intransigente na sua perspectiva:
Se me permito acreditar seja no que for com indícios insuficientes, da mera crença
pode não resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca ter ocasião de
a exibir em acções públicas. Mas não posso deixar de cometer este grande mal contra a
humanidade: o de tornar‐me crédulo. O perigo para a sociedade não é meramente o de
acreditar em coisas erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas o de se tornar
crédula e perder o hábito de testar as coisas e de as investigar; pois então recairá forço‐
samente na selvajaria.8
Seja uma crença trivial ou significativa e tenda a gerar acções nocivas para os
outros, ou significativa e tenda a gerar acções benéficas para outros, o juízo de Clifford
continua igual: só temos justificação para adoptar essa crença se tivermos indícios
suficientes de que é verdadeira. Pois de contrário prejudicar‐nos‐emos, a nós e à
sociedade, ao enfraquecer o hábito de exigir indícios a favor das nossas crenças, um
hábito que lentamente nos fez sair da era da superstição e da selvajaria. É evidente,
portanto, que Clifford não admite excepções à sua regra de não acreditar numa coisa a
não ser na presença de indícios suficientes. Resume o seu ponto de vista com um
comentário citado por James em «A Vontade de Acreditar»: «É sempre errado, seja
onde for e por quem for, acreditar em qualquer coisa com base em indícios insuficien‐
tes».9 É portanto evidente que no caso de Clifford ter razão não há justificação para
acreditar na verdade do teísmo sem indícios adequados a seu favor. De igual modo,
não há justificação para acreditar na verdade do ateísmo sem indícios adequados a seu
favor. Se nem temos indícios adequados a favor do teísmo nem a favor do ateísmo,
então, na perspectiva de Clifford, não temos alternativa senão suspender o juízo —
isto é, ser agnósticos.
Até onde vai a concordância de James
Embora, como mencionámos, o artigo «A Vontade de Acreditar», de James, seja um
ataque à perspectiva de Clifford, o grau de concordância entre ambos é digno de nota.
Em primeiro lugar, James concorda com a afirmação fundamental de Clifford de que
as pessoas têm de ser ajuizadas (louvadas ou censuradas) tanto em termos das acções
que praticam como das crenças que adoptam. Em segundo lugar, James concorda com
Clifford em que não é o conteúdo das crenças que deve determinar o modo como se
ajuíza uma pessoa mas a maneira como a crença é adoptada. Por fim, se dividirmos
como se segue a perspectiva de Clifford em duas regras para reger crenças, é razoa‐
velmente claro que James concorda inteiramente com a primeira:
100
1. Se um indivíduo sabe de indícios contra uma hipótese e também da ausência de quais‐
quer bons indícios a seu favor, e se ainda assim se permite acreditar nessa hipótese por
lhe dar uma satisfação privada, pratica uma imoralidade.
2. Se um indivíduo não tem indícios a favor de uma crença e nenhum indício contra a
mesma, é imoral aceitá‐la ou rejeitá‐la; deve suspender o juízo e esperar pelos indícios.
É relativamente à segunda destas regras que James se afasta de Clifford. Como
veremos, o desacordo de James com a regra 2 não é tão grande quanto seria de esperar.
Mas antes de entrarmos nos detalhes deste desacordo, será útil formular as regras 1 e 2
em termos ligeiramente diferentes, termos que James usa no seu ensaio. Segundo
James, as nossas crenças têm duas, e só duas, determinantes: a razão e as paixões. A
razão avalia uma crença em termos dos indícios que há a favor ou contra essa crença e
leva‐nos a acreditar de acordo com os indícios. As paixões são todos os factores, além
dos factores intelectuais, que nos levam a aceitar ou rejeitar uma hipótese. Desde o
tempo de Platão que os filósofos têm em geral adoptado a perspectiva de que temos o
dever de suprimir as paixões no que diz respeito às crenças, permitindo que seja ape‐
nas a razão, e só a razão, a força determinante no modo como se formam as nossas
crenças. Clifford filia‐se claramente nesta tradição e também James tem pelo menos
um pé firmemente assente nela. A regra 1 de Clifford compreende os casos em que a
razão rejeita uma crença mas no qual permitimos que as nossas paixões desautorizem
a razão. A regra 2 compreende os casos em que a razão é neutra mas nos quais em vez
de suspender o juízo permitimos que a crença se paute pelas paixões. Em ambos os
casos se sacrifica a razão às paixões e tal sacrifício, segundo Clifford, é incorrecto.
James concorda com Clifford no primeiro caso mas discorda profundamente no
segundo. Não afirma que é incorrecto pautar as nossas crenças pelo que nos dizem as
paixões, sempre que a razão é neutra. Ao invés, defende que há casos especiais em que
a razão é neutra e no entanto não é incorrecto pautarmo‐nos pelas paixões. Temos
agora de procurar ver o que são estes casos especiais e por que razão James pensa que
a crença religiosa é um desses casos.
Crença religiosa: um caso especial
Definições essenciais
Pode‐se exprimir do seguinte modo a ideia fundamental de James, relativamente à
segunda regra de Clifford:
Quando, e só quando, uma hipótese é 1) intelectualmente indecidível e 2) nos apre‐
senta uma opção genuína, não é incorrecto acreditar o que nos apetecer a respeito dessa
hipótese, não é incorrecto deixar a nossa natureza passional decidir.
101
Ao exigir a indecidibilidade intelectual da hipótese, James deixa claro que é a
segunda regra de Clifford que está em causa: o exemplo em que a razão é neutra no
que diz respeito à hipótese. E ao exigir que a hipótese exprima uma opção genuína
antes de podermos afirmar o direito de acreditar como nos apetecer, James deixa claro
que não temos o direito de seguir as nossas paixões sempre que a razão é neutra, mas
apenas quando nos confrontamos com algo mais além da neutralidade da razão: uma
opção genuína.
James explica‐nos que por «opção genuína» entende uma decisão entre duas hipó‐
teses, que é viva, momentosa e forçosa. Uma opção (uma decisão entre duas hipóteses)
pode estar viva ou morta para nós. Uma opção está viva quando ambas as hipóteses
estão vivas para nós, quando ambas nos atraem e parecem possibilidades reais para as
nossas vidas. James ilustra: «Se lhe digo: “Torne‐se um teósofo ou um maometano”,
trata‐se provavelmente uma opção morta, porque é improvável que para si qualquer
destas hipóteses seja uma hipótese viva. Mas se digo: “torne‐se um agnóstico ou um
cristão”, sucede o contrário: tendo em conta a sua formação, cada uma destas hipóte‐
ses exercerá algum fascínio, por muito leve que seja, sobre as suas crenças».10
Uma opção pode ser momentosa ou trivial. Uma opção é momentosa quando
podemos não vir a ter outra oportunidade de decidir entre as duas hipóteses, não
podemos reverter facilmente a escolha que fizermos e há algo de importância conside‐
rável que depende de fazer a escolha certa. Durante a guerra do Vietname, muitos
jovens tiveram de escolher entre servir o seu país numa causa que sentiam ser injusta
ou recusar‐se a prestar esse serviço. Tratava‐se obviamente de uma escolha momento‐
sa: a escolha errada podia levar a perdas pessoais consideráveis; uma vez tomada a
decisão, não se podia revertê‐la facilmente; tão‐pouco era possível adiá‐la.
Uma opção pode ser forçosa ou evitável. Uma opção é forçosa quando as conse‐
quências de recusar decidir entre uma de duas hipótese são as mesmas que decidir
efectivamente entre uma delas.11 Se recebo uma proposta de emprego importante e me
dão um prazo absolutamente inadiável para decidir, de tal maneira que ao fim desse
prazo a oferta é retirada e proposta a outra pessoa disposta a aceitá‐la, a decisão que
tenho perante mim é entre responder dentro do prazo e aceitar a oferta ou responder
dentro do prazo e rejeitar a oferta, decisão que é forçosa. É forçosa porque as conse‐
quências de me recusar a decidir entre aceitar ou rejeitar são as mesmas que as de
simplesmente rejeitar. As duas acções, de responder para rejeitar a oferta e pura e
simplesmente não responder, são diferentes, mas as consequências são as mesmas.
Recusar decidir é praticamente o mesmo que decidir rejeitar a oferta. Uma opção é
evitável quando há uma diferença real entre recusar decidir e decidir por uma das duas
hipóteses. Se o leitor faz um teste em que tem de responder «verdadeiro» ou «falso»
em que recebe cinco pontos por cada resposta correcta, perde cinco pontos por cada
resposta errada, e não ganha nem perde quando não responde, então a decisão entre
responder «verdadeiro» ou «falso» é evitável, e não forçosa. Pois as consequências de
102
não dar qualquer resposta são diferentes das consequências de cada uma das duas
outras respostas possíveis.
É importante reconhecer que, para uma dada hipótese, há sempre três maneiras
diferentes de lhe responder. Podemos acreditar que é verdadeira, acreditar que é falsa
ou suspender o juízo a seu respeito. É também importante reconhecer que a decisão
entre acreditar que uma hipótese é verdadeira e acreditar que é falsa nunca é forçosa
no que diz respeito à verdade e ao erro. Porquanto a pessoa que recusa acreditar, que
suspende o juízo, nem acerta na verdade nem cai em erro. Pelo que se a decisão entre
duas hipóteses que não podem ser ambas verdadeiras — por exemplo, «Deus existe» e
«Deus não existe» — for forçosa, as consequências em causa têm de ser algo mais do
que a verdade e o erro.
Suponhamos, por exemplo, que decidi dar‐lhe um milhão de euros se você acreditar
que o Futebol Clube do Porto irá ganhar o campeonato no próximo ano, e nada caso
acredite no contrário ou não acredite nem deixe de acreditar. O leitor tem a opção de
acreditar em «O Futebol Clube do Porto irá ganhar o campeonato no próximo ano» e
acreditar em «O Futebol Clube do Porto não vai ganhar o campeonato no próximo
ano». Evidentemente, uma destas hipóteses é verdadeira e a outra falsa. Pelo que o
crente em qualquer das duas hipóteses irá ou acertar na verdade (tem uma crença ver‐
dadeira) ou cair em erro (tem uma crença falsa). Quem suspender o juízo, contudo,
nem acerta na verdade nem cai em erro. Pelo que a opção não pode ser forçosa no que
diz respeito à verdade e ao erro. Mas é forçosa quanto a receber a minha oferta de um
milhão de euros. Pois o leitor tanto perde esta quantia se suspender o juízo como per‐
de se acreditar que o Futebol Clube do Porto não vai ganhar o campeonato no próximo
ano. Há portanto um sentido evidente em que as consequências (pelo menos uma
consequência importante) de suspender o juízo são as mesmas que acreditar numa das
duas hipóteses.
A hipótese religiosa de James
Agora que tratámos destes preliminares, podemos voltar‐nos para a posição de
James de que a religião se subsume na sua tese fundamental: a hipótese religiosa fun‐
damental é intelectualmente indecidível ao mesmo tempo que nos confronta com uma
opção genuína. James caracteriza a hipótese religiosa em duas partes: 1) o que é
melhor ou supremo é eterno e 2) ficamos melhor se acreditarmos que aquilo que é
melhor é eterno. A ideia de que o que é melhor é eterno tem diferentes interpretações,
consoante a tradição religiosa em que nos situamos. Na tradição religiosa ocidental
podemos compreender a primeira parte da hipótese religiosa como a afirmação de que
o deus teísta existe. A segunda parte é a afirmação de que mesmo agora ficaremos
melhor caso acreditemos no deus teísta. Por que ficaremos melhor? Se o deus teísta
existir e acreditarmos nele, beneficiaremos imediatamente da vida eterna, da graça
divina e de outras bênçãos espirituais. Portanto, para o que nos interessa, entendere‐
103
mos a primeira parte da hipótese religiosa como a afirmação de que o deus teísta exis‐
te, e a segunda parte como a afirmação de que mesmo agora ficaremos melhor caso
acreditemos no deus teísta. (Nas religiões inteístas, «o que é melhor é eterno» terá
uma interpretação diferente da afirmação de que o deus teísta existe.)
Intelectualmente indecidível
Será que a afirmação implícita de James, de que a hipótese religiosa é intelectual‐
mente indecidível, está correcta? Alguns, incluindo Tomás, diriam que não. Muitos
teístas defendem que os argumentos a favor da existência de Deus e os factos da expe‐
riência religiosa dão uma justificação racional suficiente para acreditar que Deus exis‐
te. Alguns ateus, contudo, pensam que os factos acerca do mal dão uma justificação
racional adequada para a crença de que o deus teísta não existe. Na medida em que há
indícios racionais adequados quer a favor do teísmo quer a favor do ateísmo, James,
juntamente com Clifford, compromete‐se com a perspectiva de que devemos acreditar
de acordo com os indícios, independentemente daquilo que a nossa natureza passional
nos diz. Todavia, a posição de James não é implausível. Pode dar‐se o caso de ser ver‐
dade que os nossos intelectos racionais são incapazes de decidir a questão de o deus
teísta existir ou não, quer por não haver bons indícios para qualquer dos dois lados da
questão quer por os indícios de um lado serem compensados por indícios igualmente
bons do outro lado. Assim, talvez a afirmação de que o deus teísta existe seja tal que
não se pode determinar a sua verdade ou falsidade através da investigação racional. Se
isto for verdade, então, segundo Clifford, temos o dever de ser agnósticos. James, con‐
tudo, discorda, porque considera que a questão religiosa surge‐nos como uma questão
viva, momentosa e forçosa.
Uma opção genuína
Para quem foi criado na tradição religiosa ocidental básica, como eu, é bem prová‐
vel que a opção entre acreditar que Deus existe ou acreditar que não existe seja uma
opção viva. E a decisão entre acreditar que Deus existe ou acreditar que não existe
parece momentosa, pelo menos num dos sentidos de «momentosa». Pois se Deus exis‐
te e acreditamos nele, recebemos um certo bem vital por acreditar — a vida eterna, a
graça divina, e outras bênçãos. Se Deus existe e não acreditamos na sua existência,
tudo isto se perde. Será a decisão única e irreversível caso se mostre insensata? É
menos claro se a questão religiosa é momentosa em qualquer destes sentidos. Posso
adoptar a crença no próximo ano em vez de neste ano, ou posso adoptar uma crença
agora e mais tarde alterá‐la. Ainda assim, podemos concordar com James em que a
questão religiosa é momentosa no sentido mais relevante de nos dar um bem de infini‐
tas dimensões se escolhermos correctamente.
104
Será a opção entre acreditar que o deus teísta existe e acreditar que tal ser não exis‐
te uma opção forçosa? Como vimos, esta opção não é forçosa quanto à verdade e ao
erro. Pois se Deus existe, o ateu cai em erro mas o agnóstico não, já que para errar (ter
uma crença falsa) é preciso ter uma crença. Mas, como James salienta, se a hipótese
religiosa for verdadeira, então o agnóstico e o ateu estão no mesmo barco: ambos per‐
dem o bem vital que a religião tem para oferecer. Pelo que se o teísmo for verdadeiro,
a opção entre acreditar que Deus existe e acreditar que não existe é uma opção forçosa
no que diz respeito ao bem vital. Falando da hipótese religiosa, James afirma que
ao permanecer cépticos e esperando que se faça mais luz […] perdemos o bem, no caso
de ser verdade, tão certamente como se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se
um homem hesitasse indefinidamente pedir uma mulher em casamento, por não ter a
certeza absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. Não esta‐
rá a privar‐se dessa possibilidade angélica particular tão decisivamente como se casasse
com outra pessoa?12
Será talvez digno de nota o facto de James não provar que a opção entre acreditar
que Deus existe e acreditar que não existe é momentosa ou forçosa. Tudo o que conse‐
gue provar é que é momentosa e forçosa se for verdade que Deus existe. Pois só no
caso de Deus existir é que estará em jogo na decisão um bem vital (a vida eterna). Se
Deus não existir, a decisão entre as duas hipóteses não é momentosa. Nem forçosa.
Porquanto, como vimos, a opção não é forçosa a respeito da verdade e do erro; é‐o
apenas a respeito do bem vital que é a vida eterna, a graça divina, e as outras bênçãos
que decorrem da crença. Mas no caso de o ateísmo ser verdadeiro, não há qualquer
bem vital que possa tornar forçosa a opção. Em resposta a isto, o melhor que podemos
dizer é que James mostrou que a opção religiosa pode ser momentosa e forçosa; não
temos como saber que não é. Isto significa, contudo, que para a questão religiosa
exemplificar a tese fundamental de James é preciso revê‐la mais ou menos da seguinte
maneira:
Quando uma hipótese é intelectualmente indecidível e a opção entre acreditar nela
e acreditar na sua negação é viva, então, se tanto 1) acreditar simplesmente na hipótese
como 2) acreditar na hipótese e dar‐se o caso de ser verdadeira, resultam num bem vital
para o crente, um bem inacessível a quem não acreditar na hipótese, então não é errado
acreditar o que nos apetecer a respeito dessa hipótese, não é errado deixar a decisão à
nossa natureza passional.
Se I se verificar, a opção será momentosa e forçosa. Se 2 se verificar, a opção poderá
ser momentosa e forçosa, consoante a hipótese for verdadeira ou não. A opção entre
acreditar que Deus existe e acreditar que não existe subsume‐se no caso 2: pode ser
momentosa e forçosa.
105
A defesa jamesiana da crença passional
Descrevemos a tese fundamental de James, tanto na sua forma original como na
forma revista, e vimos como a hipótese teísta exemplifica a forma revista da tese.13
Chegou o momento de considerar a defesa jamesiana do direito a acreditar o que nos
apetecer, no que diz respeito à hipótese teísta.
Na esteira de James, podemos pensar no teísta, no agnóstico e no ateu como pes‐
soas que adoptam políticas diferentes. O teísta adopta a política de arriscar o erro em
troca da oportunidade de acertar na verdade e conseguir um bem vital. O teísta arrisca o
erro porque tem uma crença (que Deus existe) a favor da qual não dispõe de indícios
adequados. Pelo que, tanto quanto sabe o teísta, a sua crença é falsa. Mas arrisca em
troca da oportunidade de acertar na verdade (uma crença verdadeira, no caso de Deus
existir) e a oportunidade de beneficiar de um bem vital (a vida eterna e outras bên‐
çãos, que o teísta recebe no caso de Deus existir). O agnóstico adopta a política de
arriscar não acertar na verdade e não conseguir um bem vital, em troca da certeza de
evitar o erro. Ao não acreditar de uma ou outra maneira no que diz respeito à hipótese
teísta, o agnóstico pode consolar‐se na certeza de ter evitado o erro, uma certeza de
que nem o teísta nem o ateu podem gozar. Mas, com a mesma certeza, o agnóstico
ignora a oportunidade de ter uma crença verdadeira e conseguir um bem vital, um
bem que o agnóstico, tanto quanto o ateu, seguramente perderá. O ateu adopta a polí‐
tica de arriscar o erro e não conseguir um bem vital, em troca da oportunidade de acer‐
tar na verdade.
Segundo Clifford, como carecemos de indícios adequados quer a favor quer contra a
hipótese teísta, é incorrecto adoptar quer a política do teísta quer a política do ateu; ao
invés, temos o dever de adoptar a política do agnóstico. Mas a posição de Clifford,
segundo James, reduz‐se a uma mera decisão passional de evitar o erro a todo o custo.
Antes arriscar não acertar na verdade e não conseguir um bem vital do que arriscar o
erro. Eis a decisão tomada por Clifford. James nada encontra de atraente ou persuasivo
nessa decisão.
É como um general que diz os seus soldados que mais vale evitar eternamente a
batalha do que arriscar uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre inimigos
ou sobre a natureza. Os nossos erros não são com certeza coisas tão horrivelmente sole‐
nes. Num mundo onde estamos tão certos de incorrer neles, por muito prudentes que
sejamos, uma certa ligeireza de espírito parece mais saudável do que este nervosismo
exagerado por sua causa.14
A perspectiva do próprio James é que, das três políticas delineadas acima, nenhuma
regra nos compromete a escolher qualquer uma em particular. Defende o nosso direito
a seguir a política teísta, mas não pensa que alguém tenha o dever de seguir aquela
política. Cada pessoa tem o direito de adoptar a política que melhor se adequa à sua
106
própria natureza passional. Clifford tem o direito de adoptar a política agnóstica. Só
erra ao tentar impor aquela política como um dever a todos os outros. James conclui
com um apelo à tolerância:
Se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos
perante a verdade, parece que pregar tão solenemente que temos o dever de aguardar
pelo toque do sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar,
se quisermos — espero que não pense que o nego — mas se o fizermos, fazemo‐lo por
nossa conta e risco, tal como se acreditássemos. Em todo o caso agimos, tomando as
rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós devia impor vetos aos outros, nem trocar
palavras agressivas. Devemos, pelo contrário, respeitar delicada e profundamente a
liberdade mental de cada um: só então realizaremos a república intelectual, só então
teremos aquele espírito de tolerância íntima sem o qual toda a tolerância exterior se tor‐
na oca […] só então vivemos e deixamos viver, nas coisas especulativas como nas práti‐
cas.15
James apresentou uma defesa persuasiva do direito de acreditar o que nos apetecer
a respeito da hipótese teísta. Todavia, penso que está enganado ao representar a esco‐
lha entre as três políticas como uma escolha que não se pode fazer com base numa
justificação racional. Na verdade, parece que a sua própria perspectiva é a de que a
política do teísta — arriscar o erro em troca da oportunidade de acertar na verdade e
conseguir um grande bem — é uma opção racional e que o teísta não é irrazoável ao
adoptá‐la. E James é talvez injusto com Clifford quando sugere que este adopta a polí‐
tica do agnóstico — arriscar não acertar na verdade e não conseguir um bem vital em
troca da certeza de evitar o erro — por mero medo patológico de adoptar uma crença
falsa. Afinal, Clifford apresentou razões para seguir a política do agnóstico. Talvez as
suas razões não sejam muito boas, mas James devia responder a essas razões em vez de
depreciar os seus motivos. Não é que o próprio Clifford receie cometer um erro (acre‐
ditar numa falsidade), pois sabe perfeitamente que quem acredita de acordo com a
força dos indícios aceitará às vezes uma crença falsa — raramente dispomos da totali‐
dade dos indícios relevantes para uma crença. Clifford pensa que quando nos permiti‐
mos acreditar em algo com indícios insuficientes enfraquecemos um hábito importan‐
te em nós e nos outros, «o hábito de testar as coisas e de as investigar», um hábito que
lentamente nos fez sair da era da superstição e da selvajaria. Esta é a razão fundamen‐
tal de Clifford quando insiste que adoptemos a política agnóstica sempre que o nosso
intelecto não consiga decidir entre duas hipóteses rivais. E em resposta James tem de
argumentar ou que a adopção da política teísta não enfraquecerá este hábito ou que o
bem possível a obter pela adopção da política teísta ultrapassa o perigo de se enfra‐
quecer este hábito em nós e nos outros. É esta a verdadeira questão entre James e Clif‐
ford e é uma pena que o próprio James não lhe tenha respondido.
107
Vimos duas perspectivas da fé apresentadas por Tomás e por James. Ambos enca‐
ram a fé religiosa como a aceitação de determinadas afirmações acerca do divino e
ambos se preocupam em mostrar que a fé religiosa não é irracional nem irrazoável.
Tomás argumenta que a razão humana pode demonstrar algumas verdades acerca do
divino e defende que a fé não é irrazoável porque a razão mostra que as afirmações
aceites pela fé nos são provavelmente reveladas por Deus. James adopta uma perspec‐
tiva mais radical. Defende que não se pode demonstrar pela razão a verdade ou a pro‐
babilidade de qualquer das afirmações acerca do divino que são fundamentais para a
religião, porque foram provavelmente reveladas por Deus. Não obstante, argumenta
que adoptar a política da fé é uma opção intelectualmente defensável e não a violação
de qualquer genuína obrigação intelectual.
Crenças religiosas e indícios
Fizemos já notar o nosso pressuposto de que as crenças religiosas, como todas as
outras crenças, só serão aprovadas no tribunal da razão se forem adequadamente sus‐
tentadas por indícios. Também afirmámos que se deve sujeitar este pressuposto ao
escrutínio crítico. Pois vimos que nem todas as nossas crenças racionalmente defendi‐
das podem ser racionais apenas em virtude de se sustentarem noutras crenças que
defendemos e que são indícios a favor das primeiras. Além disso, avançámos para a
consideração da perspectiva de James, que defende não ser errado aceitar determina‐
das crenças sem indícios desde que essas crenças nos apresentem uma opção genuína.
Assim, atentemos agora directamente no nosso pressuposto. Ao examiná‐lo, conside‐
raremos uma perspectiva importante, desenvolvida por Alvin Plantinga, de que «é
inteiramente correcto, racional, razoável e adequado acreditar em Deus sem quaisquer
indícios ou argumentos».16
Recorde‐se o juízo de Clifford de que é uma transgressão do nosso dever intelectual
acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes. Chama‐se indiciarismo a
tal perspectiva. Podemos caracterizar o indiciarismo como a perspectiva de que uma
crença só tem justificação racional se houver indícios suficientes a seu favor.17 Uma
crença é racional (tem justificação racional) quando há uma justificação racional para
a adoptar. E temos justificação racional para a adoptar, segundo o indiciarismo, quan‐
do dispomos de indícios adequados a seu favor. Dada a possibilidade de uma pessoa
dispor de indícios inacessíveis a outras, pode ser racional para uma dada pessoa adop‐
tar uma crença, não sendo racional para outra pessoa adoptar a mesma crença. Um
físico, por exemplo, terá justificação racional para defender algumas crenças que não
seriam racionais para quem pouco ou nada sabe de física.
O indiciarismo é o pressuposto que nos comprometemos examinar. Muitos teístas e
inteístas (ateus e agnósticos) que discutem crenças religiosas são indiciaristas. Defen‐
dem, portanto, que a crença em Deus (acreditar que Deus existe) só é racional se hou‐
ver indícios adequados a favor da sua existência. Onde discordam é na questão de
108
haver ou não indícios adequados a favor da sua existência. Por exemplo, Tomás e Ber‐
trand Russell tendem a concordar que as crenças religiosas só são racionais se são ou
podem ser suficientemente sustentadas por indícios ou razões. Russell não pensa que
há bons indícios a favor das crenças religiosas; ao passo que Tomás pensa que há.
Por que razão haveria alguém de pensar que acreditar em Deus sem quaisquer indí‐
cios é racional ou que pode ser racional? Como primeiro passo para responder a esta
questão, temos de nos persuadir daquilo que já mencionámos: nem todas as nossas
crenças racionalmente defendidas podem ser racionais apenas em virtude de se sus‐
tentarem noutras crenças que defendemos e que constituem indícios a favor das pri‐
meiras. Pois suponhamos que isto não era assim. Então, se tivermos uma crença racio‐
nal, esta só será racional devido a outra crença nossa, a qual é um bom indício a favor
da primeira. Mas essoutra crença não pode ser um bom indício a favor da primeira, no
sentido de a tornar racional, a menos que também ela seja uma crença cuja adopção é
para nós racional. Também ela, portanto, se torna racional para nós devido a outra
crença racional que adoptamos e que constitui um indício a seu favor. Já se vê que isto
seria um processo interminável. Na verdade, para ter uma só crença racional teríamos
de adoptar um número infinito de crenças cuja adopção fosse racional. Assim, o pro‐
cesso de tornar racional uma crença apenas através de outra crença racional que adop‐
tamos tem de chegar ao fim. Tem de haver crenças cuja adopção é racional sem as
basearmos noutras crenças que sejam indícios a favor das primeiras. Na esteira de
Plantinga, chamemos‐lhes «crenças apropriadamente básicas». Uma crença apropria‐
damente básica é uma crença que é racional adoptar mesmo não tendo indícios a seu
favor, no sentido de ter outras crenças racionais que a sustentem adequadamente.
Para compreender a perspectiva de Plantinga temos de distinguir as crenças apro‐
priadamente básicas das crenças que embora sendo básicas, não são apropriadamente
básicas. Um jogador compulsivo pode subitamente acreditar que o próximo naipe de
cartas que receber será o naipe vencedor. Pode não ter quaisquer outras crenças que
considere indícios importantes a favor desta crença. Talvez esta crença seja causada
por uma necessidade psicológica profunda. O jogador tem uma crença básica, mas não
apropriadamente básica. Porquanto nada há nele ou na circunstância em que se
encontra que torne a crença racional. Contraste‐se isto com a situação de alguém que
olha pela janela e tem a experiência visual que depreende ser de um gato trepando a
uma árvore, formando imediatamente a crença de que está ali um gato a trepar a uma
árvore. A situação em que a pessoa se encontra — de olhar pela janela e aparentemen‐
te ver um gato a trepar a uma árvore, etc. — torna racional a sua crença de que está ali
um gato a trepar a uma árvore. Não se dá o caso de a pessoa ter outras crenças racio‐
nais, inferindo daí a crença que agora tem — não diz para si própria: «Estou a olhar
pela janela e aparentemente vejo um gato a trepar a uma árvore. Vejamos. O que posso
inferir a partir desta crença? Oh, sim, posso inferir que vejo um gato a trepar a uma
árvore». A pessoa não tem quaisquer indícios a favor da sua crença, no sentido de
outras crenças com base nas quais adopta a crença de que está ali um gato a trepar a
109
uma árvore. A sua crença é portanto básica e racional (é uma crença apropriadamente
básica). Podemos afirmar que a crença dessa pessoa se baseia numa situação que dá à
pessoa justificação racional para a adoptar. A crença do jogador ou não tem bases, ou
baseia‐se numa situação que não torna racional a sua adopção pelo jogador.
Se aceitarmos o que se acabou de dizer, podemos ainda assim considerar que a pes‐
soa que adopta a anterior crença apropriadamente básica de que está um gato a trepar
a uma árvore dispõe de indícios adequados ou suficientes. Pois tem os indícios dos
seus sentidos, a sua experiência de aparentemente ver um gato trepar à árvore, para
sustentar a sua crença básica de que está um gato a trepar a uma árvore. Assim pode‐
mos concluir que este exemplo de crença apropriadamente básica não é uma excepção
ao nosso pressuposto indiciarista: uma crença só é racional quando se sustenta em
indícios adequados. Não obstante, embora tenhamos o direito de encarar as crenças
que Plantinga considera serem apropriadamente básicas como crenças sustentadas por
indícios adequados, temos de compreender que segundo a sua concepção de indício,
uma crença apropriadamente básica é uma crença que não se baseia em quaisquer
indícios de todo em todo, pois para Plantinga os indícios são apenas proposições em
que se acredita. Desse ponto de vista, uma crença apropriadamente básica não é sequer
adoptada com base em indícios, porquanto uma crença básica não se baseia noutras
crenças que adoptamos. Assim, se aceitarmos a concepção que Plantinga tem de «bons
indícios», segundo a qual estes consistem noutras crenças racionais que geram a cren‐
ça em causa, tornando‐a racional, concluímos que uma crença apropriadamente básica
é uma crença racional que não adoptamos com base em quaisquer indícios.
Dada a sua concepção de «indício», pode‐se agora ver como Plantinga defende a
tese aparentemente espantosa de que é racional acreditar em Deus na ausência de
quaisquer indícios. Isto não é senão a afirmação de que as pessoas por vezes se encon‐
tram em situações que geram e tornam racional a crença de que Deus existe, ainda que
estas situações não incluam crenças racionais que sirvam de base à crença de que Deus
existe, adoptada por essas pessoas. Que situações deste género há? O que nos ocorre
primeiro são as experiências religiosas que considerámos no capítulo anterior. Pode‐se
ter uma experiência que aparentemente é um encontro directo com Deus, formar ime‐
diatamente a crença de que se tem experiência de Deus, e a partir daí concluir que
Deus existe. Nesta situação, a crença de que se tem experiência de Deus é básica, e
será apropriadamente básica no caso de a experiência da pessoa e a situação em que
ela se encontra tornarem a crença racional. Por outro lado, a partir desta crença básica
pode‐se inferir imediatamente a crença na existência de Deus, que por isso, estrita‐
mente falando, não é ela mesma básica. (Plantinga observa que, tipicamente, a crença
na existência de Deus se infere a partir de crenças básicas que a implicam directamen‐
te.) Plantinga, contudo, sugere um âmbito consideravelmente amplo de situações que
do seu ponto de vista geram uma crença apropriadamente básica que implica directa‐
mente a existência de Deus.
110
Ao ler a Bíblia, pode‐se ficar impressionado com uma profunda sensação de que
Deus se nos dirige. Ao fazer o que considero ser desprezível, errado ou imoral, posso
sentir‐me culpado aos olhos de Deus e formar a crença Deus desaprova a minha acção.
Ao confessar‐me e arrepender‐me, posso sentir‐me perdoado, formando a crença Deus
perdoa a minha acção.18
É evidente que sentir‐se culpado aos olhos de Deus não é em si suficiente para justi‐
ficar racionalmente a crença básica de que Deus desaprova o que se fez. Pois suponha‐
se que o leitor também tem razões muito fortes para acreditar que não pode deixar de
se sentir religiosamente culpado quando faz algo perverso, dada a sua educação reli‐
giosa austera. Isto é, tem boas razões para acreditar, que independentemente de Deus
existir ou não, sentir‐se‐á religiosamente culpado ao fazer algo perverso, dada a sua
educação religiosa. Nesta situação, pode não ser racional adoptar a crença de que Deus
desaprova o que fez. Pois sabe que mesmo que Deus não exista, continuaria a sentir‐se
religiosamente culpado ao fazer algo perverso.
O que acabamos de ver lembra‐nos outra consideração geral: quando se tem apa‐
rentemente uma experiência de X, até que ponto isso justifica racionalmente a crença
em X? Posso ter uma experiência que considero ser a percepção de uma parede verme‐
lha. Mas essa experiência não tornará racional a afirmação de que estou a ver uma
parede vermelha se sei que a parede está iluminada por lâmpadas vermelhas. Pois nes‐
se caso sei que mesmo que a parede seja branca (e não vermelha) parecer‐me‐á verme‐
lha. Assim, para que uma situação torne racional a minha crença de que há uma pare‐
de vermelha ou a minha crença de que Deus desaprova o que fiz, tem de incluir não só
uma experiência adequada mas também uma condição grosso modo semelhante à
ausência de boas razões para pensar que a crença é falsa ou que a experiência não
aponta suficientemente para a verdade da crença.
Tendo visto o que uma situação tem de incluir para uma crença formada nessa
situação seja apropriadamente básica (isto é, básica e que a situação torna racional),
podemos ter alguma hesitação em concordar com Plantinga que abundam as situações
nas quais a crença em Deus (ou alguma crença que directamente a implique) é de fac‐
to apropriadamente básica. Mas se aceitarmos as restrições que Plantinga impõe aos
indícios a favor de outras crenças que temos na base das quais se infere a crença em
causa, penso que temos de concordar em que há de facto situações nas quais a crença
em Deus é apropriadamente básica. Plantinga dá o exemplo de um teísta de catorze
anos, educado para acreditar no teísmo, numa comunidade onde todos acreditam no
mesmo.
Podemos supor que este teísta de catorze anos não acredita em Deus com base em
indícios. Nunca ouviu falar no argumento cosmológico, teleológico ou ontológico; na
verdade, ninguém alguma vez lhe apresentou quaisquer indícios de todo em todo. E
embora lhe tenham falado muitas vezes em Deus, ele não vê esses testemunhos como
111
indícios; não raciocina da seguinte maneira: «todos aqui afirmam que Deus nos ama e se
preocupa connosco; quase tudo o que dizem é verdade; portanto isso é provavelmente
verdade». Ao invés, limita‐se a acreditar no que lhe ensinam.19
Evidentemente, na situação descrita, o nosso rapaz de catorze aos tem uma crença
básica em Deus e tem justificação racional para adoptar essa crença. Porquanto parte
do que foi estipulado para esta situação é que ele não tem boas razões (e não seria
plausível esperar que tivesse) para pensar que Deus não existe ou que a sua comunida‐
de pode não ter justificação racional para adoptar as suas crenças religiosas. Infor‐
mam‐nos de que o rapaz não infere a sua crença a partir de quaisquer outras crenças
que tenha, o que garante o carácter básico da sua crença em Deus. Este é portanto um
exemplo inequívoco em que a crença em Deus é apropriadamente básica. É evidente,
além disso, que não é assim tão difícil formar crenças apropriadamente básicas, em
particular quando pensamos num crente de tenra idade, inserido numa comunidade
de crentes. Tivesse o nosso rapaz de catorze anos sido educado de acordo com estipu‐
lações semelhantes numa comunidade de ateus e a sua crença de que Deus não existe
seria apropriadamente básica. E se as crianças muito jovens podem ter crenças racio‐
nalmente justificadas, muitos de nós — pelo menos durante algum tempo — tiveram
uma crença apropriadamente básica na existência do Pai Natal. Pois os nossos pais
disseram‐nos que tal ser existia e acreditámos imediatamente na existência do Pai
Natal sem que tenhamos inferido esta crença a partir de outras que já tínhamos. Evi‐
dentemente, ao contrário da crença em Deus, após um período de tempo relativamen‐
te curto, os nossos semelhantes arranjam maneira de nos libertar desta crença, pelo
que deixou de ser apropriadamente básica.
A questão interessante levantada pelo nosso exame da perspectiva de Plantinga é a
de a crença em Deus (ou as crenças que implicam directamente a existência de Deus)
poder ou não ser apropriadamente básica para adultos contemporâneos, relativamente
sofisticados, que contactaram com 1) as razões a favor da descrença predominantes na
nossa cultura e com 2) a disparidade entre as religiões do mundo no que diz respeito a
que crenças religiosas se sustentam racionalmente em experiências religiosas. O nosso
teísta de catorze anos não só não ouviu falar no argumento ontológico como também
podemos supor que nunca reflectiu na abundância de dor e sofrimento intensos que
ocorrem diariamente no nosso mundo, e que nunca pensou seriamente na questão de
todo este sofrimento, aparentemente sem qualquer sentido, ser ou não permitido por
um ser omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom. Tão‐pouco o nosso rapaz de
catorze anos leu e avaliou as teorias psicológicas e sociológicas que procuram explicar,
num enquadramento naturalista (em vez de sobrenaturalista), a emergência de cren‐
ças e experiências religiosas. A questão que se põe é se um adulto inteligente, que
tenha investigado estas matérias, tem ou não justificação racional para acreditar em
Deus na ausência total de argumentos sérios a favor do teísmo.20 Além disso, o que
acontece se o nosso teísta cristão de catorze anos entrar em contacto com outras tra‐
112
dições religiosas — o judaísmo, o islamismo, o hinduísmo, o jainismo, o budismo — e
concluir acertadamente que os rapazes de catorze anos nessas tradições também têm
crenças religiosas apropriadamente básicas, com justificações muito semelhantes à
sua? Suponha‐se que ele compreende que se tivesse nascido hindu acreditaria em
Brama, e não em Deus, de uma maneira apropriadamente básica. Se concluir então
que o divino não pode ser ao mesmo tempo Deus e Brama, não sentirá a necessidade
de ter algo como argumentos e razões a favor do teísmo cristão, contra as afirmações
religiosas do budismo?21 Assim, embora Plantinga tenha estabelecido que a crença em
Deus pode ser apropriadamente básica em situações como a do rapaz de catorze anos,
permanece em aberto a questão de a crença em Deus poder ou não ser apropriada‐
mente básica para adultos contemporâneos, intelectualmente sofisticados, informados
acerca da existência de tradições religiosas muito diferentes e das principais razões a
favor da descrença que predominam na nossa cultura.
A defesa de Plantinga do carácter apropriadamente básico da crença teísta em Deus
tem também de explicar por que tantos seres humanos, racionais em todos os outros
aspectos, nunca conseguem alcançar uma crença apropriadamente básica na existên‐
cia de Deus. À primeira vista pensaríamos que se Deus existe e nos criou com a ten‐
dência para formar crenças teístas em circunstâncias diversas, a quantidade de pessoas
a fazê‐lo seria maior, o que resultaria numa quantidade muito menor de ateus e agnós‐
ticos, além de crentes cuja perspectiva do divino difere radicalmente do Deus do teís‐
mo clássico — como muitos hindus ou budistas, por exemplo. Respondendo a esta
objecção, Plantinga sugere que o pecado humano pode distorcer o funcionamento
adequado da faculdade cognitiva, o nosso sentido do divino, que nas condições ade‐
quadas dá lugar à crença no Deus do teísmo. Pelo que a sua defesa do carácter apro‐
priadamente básico da crença teísta depende em parte da verdade das afirmações do
teísmo ortodoxo acerca de Deus e do pecado humano. Embora seja improvável que
esta perspectiva ganhe simpatizantes e influencie ateus e agnósticos, esse facto não é
muito importante para saber se a perspectiva é verdadeira ou falsa. É evidente que esta
sofisticada teoria apresenta uma nova abordagem da questão da justificação racional
da crença teísta. E num período em que a confiança nos argumentos tradicionais a
favor da existência de Deus está em declínio, merece a atenção cuidada dos estudantes
de filosofia da religião.22
Revisão
1. O que entende Tomás por fé e como pensa que se relaciona com a razão?
2. Quais são as duas regras que regem as crenças, segundo Clifford? James aceita ambas,
apenas uma, ou nenhuma? Explique.
3. Explique o que James entende por opção genuína. Terá James razão ao pensar que a
hipótese religiosa nos surge como uma opção genuína intelectualmente indecidível?
Explique.
113
4. Quais são as semelhanças e diferenças entre as perspectivas de James e de Tomás
quanto à fé? Como procura cada um deles mostrar que a fé não é irrazoável?
5. O que é uma crença apropriadamente básica? Em que situações pode a crença em
Deus ser apropriadamente básica? Explique.
Estudo complementar
1. Clifford defende que nunca é correcto fazer seja o que for que enfraqueça «o hábito de
testar as coisas e investigá‐las». Concorda com Clifford? Se não, porquê? Se concorda
com Clifford, a defesa que James faz da política do crente parece‐lhe plausível? Expli‐
que.
2. Avalie criticamente o argumento, mencionado no início deste capítulo, a favor da
perspectiva de que a natureza da religião exige que as suas crenças assentem na fé, não
na razão.
Notas
1. Vernon J. Bourke, trad., Summa Contra Gentiles, L.1, Cap. 3 (Nova Iorque: Doubleday &
Company, Inc., 1956).
2. S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II, pt. II, Q1, art. 1, in The Basic Writings of
Saint Thomas Aquinas, org. Anton C. Pegis (Nova Iorque: Random House, 1945).
3. Bourke, Summa Contra Gentiles, L.1, Cap. 7.
4. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, L.IV, Cap. 28, sec. 10, org.
Peter H. Nidditch (Londres: Oxford University Press, 1975). [Ensaio Sobre o Entendi‐
mento Humano, trad. Eduardo Abranches de Soveral, Lisboa: Gulbenkian, 1999.]
5. William James, Essays in Pragmatism, org. A. Castell (Nova Iorque: Hafner Publishing
Co., 1948), pp. 88–109. [«A Vontade de Acreditar», in Fé, Epistemologia e Virtude, org.
Desidério Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2009.]
6. William Clifford, Lectures and Essays, vol. II, org. F. Pollock (Londres: Macmillan and
Co., 1879), pp. 177‐178. [«A Ética da Crença», in Fé, Epistemologia e Virtude, org. Desi‐
dério Murcho, Lisboa, Bizâncio, 2009.]
7. Ibid., p. 178.
8. Ibid., pp. 185‐186.
9. James, Essays in Pragmatism, p. 93.
10. Ibid., p. 89.
11. Nesta explicação do que seja uma opção forçosa, orientei‐me pelo excelente estudo de
George Nakhnikian sobre «A Vontade de Acreditar», de James, An Introduction to Phi‐
losophy (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1967), pp. 273–286.
12. James, Essays in Pragmatism, p. 106.
13. Se por «bem vital» se entender determinados estados psicológicos (como a paz de espí‐
rito), que o crente pode fruir, quer Deus exista realmente quer não, então a hipótese
teísta pode exemplificar a afirmação original da tese de James. (Para essa explicação do
bem vital, ver Nakhnikian, An Introduction to Philosophy, pp. 276‐279.) Mas se inter‐
114
pretarmos o bem vital como o fiz, como algo que o crente recebe apenas de Deus,
então a hipótese teísta exemplifica apenas a forma revista da tese jamesiana. Porquan‐
to a hipótese teísta só será importante e compulsiva relativamente a esse bem vital no
caso de o teísmo ser verdadeiro.
14. James, Essays in Pragmatism, p. 100.
15. Ibid., pp. 108–109.
16. Alvin Plantinga, «Reason and Belief in God», em Faith and Rationality, org. Alvin Plan‐
tinga e Nicholas Wolterstorff (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1983),
p. 17.
17. Alguns filósofos têm uma perspectiva mais restrita do indiciarismo. Identificam‐no
com a perspectiva de que as crenças religiosas só são racionais se forem sustentadas
por indícios suficientes.
18. «Is Belief in God Properly Basic?», NOUS 15 (1981), p. 46. [«É a Crença em Deus Apro‐
priadamente Básica?», in Fé, Epistemologia e Virtude, org. Desidério Murcho, Lisboa:
Bizâncio, 2009.]
19. Plantinga, «Reason and Belief in God», p. 33.
20. Esta crítica é desenvolvida por Philip L. Quinn in «In Search of the Foundations of
Theism», Faith and Philosophy 2 (1985), pp. 469–486. Para uma perspectiva relaciona‐
da, ver Stephen J, Wykstra, «Toward a Sensible Evidentialism: On the Notion of “Need‐
ing Evidence”», in Philosophy of Religion: Selected Writings, 3.ª ed., org. W. L. Rowe e
W. J. Wainwright (Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), pp. 481–491.
21. Regressaremos a esta questão no Capítulo 11: Muitas Religiões.
22. O trabalho principal de Plantinga, onde expõe a sua perspectiva, é Warranted Christian
Belief (Oxford: Oxford University Press, 1999).
115
Capitulo 7
O problema do mal
Temos procurado familiarizar‐nos até agora com a principal ideia de Deus que
emergiu na civilização ocidental — a ideia teísta de um ser perfeitamente bom, criador
do mundo mas separado e independente do mesmo, omnipotente, omnisciente, eter‐
no e auto‐existente (Capítulo 1) — e examinámos algumas das principais tentativas de
justificar a crença na existência do Deus teísta (capítulos 2 a 5). Nos capítulos 2 a 4
ponderámos os três principais argumentos a favor da existência de Deus (cosmológico,
ontológico e do desígnio), argumentos que apelam a factos supostamente acessíveis a
qualquer pessoa racional, religiosa ou não. E no Capítulo 5 examinámos a experiência
religiosa e mística como uma fonte da crença em Deus e como justificação para a
mesma. No Capítulo 6 considerámos o papel da fé na formação e sustentação das
crenças religiosas, reflectindo no papel legítimo que as razões pragmáticas desempe‐
nham, por contraste com as razões conducentes à verdade, na justificação da crença
religiosa. Também considerámos a importante questão de a crença em Deus poder ter
ou não justificação racional como crença apropriadamente básica, sem que tenha justi‐
ficação em termos de indícios derivados de outras crenças. Chegou agora a altura de
nos voltarmos para algumas das dificuldades que a crença teísta enfrenta — algumas
das fontes que se pensa justificarem o ateísmo, a crença de que o Deus teísta não exis‐
te. A mais formidável destas dificuldades é o problema do mal.
Há séculos que se sente que a existência de mal no mundo é um problema para o
teísmo. Parece difícil acreditar que um mundo que contenha uma abundância de mal
tão vasta como o nosso possa ser a criação e o objecto de controlo soberano por parte
de um ser perfeitamente bom, omnipotente e omnisciente. Há séculos que o intelecto
humano se confronta com este problema e todos os principais teólogos procuraram
solucioná‐lo.
Temos de ter o cuidado de distinguir entre duas formas importantes do problema
do mal. Chamarei a estas duas formas «forma lógica do problema do mal» e «forma
indiciária do problema do mal». Embora a diferença importante entre estas duas for‐
mas do problema do mal só se torne completamente clara à medida que ambas forem
discutidas em detalhe, será útil ter diante de nós uma breve formulação de ambas as
formas do problema, no início da nossa investigação. A forma lógica do problema do
mal é a perspectiva de que a existência de mal no nosso mundo é logicamente inconsis‐
tente com a existência do Deus teísta. A forma indiciária do problema do mal é a pers‐
pectiva de que a diversidade e a abundância de mal no nosso mundo, embora talvez
não sejam logicamente inconsistentes com a existência do Deus teísta, dão, ainda
116
assim, uma sustentação racional ao ateísmo, a crença de que o Deus teísta não existe.
Temos agora de examinar cada uma destas formas do problema com algum detalhe.
O problema lógico
A forma lógica do problema implica a inconsistência interna do teísmo, porquanto
o teísta aceita duas afirmações que são logicamente inconsistentes entre si. As duas
afirmações em causa são:
1. Deus existe e é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom.
2. O mal existe.
Estas duas afirmações, insiste o defensor da forma lógica do problema, são logicamen‐
te inconsistentes entre si, do mesmo modo que
3. Este objecto é vermelho.
é inconsistente com
4. Este objecto não é colorido.
Suponhamos, por enquanto, que o defensor da forma lógica do problema do mal
conseguia provar‐nos que as afirmações 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si.
Seríamos então forçados a rejeitar ou 1 ou 2, visto que se duas afirmações são logica‐
mente inconsistentes entre si, é impossível que ambas sejam verdadeiras. Se uma delas
é verdadeira, então a outra tem de ser falsa. Além disso, como dificilmente poderíamos
negar a realidade do mal no nosso mundo, parece que teríamos de rejeitar a crença no
deus teísta; seríamos levados à conclusão de que o ateísmo é verdadeiro. Na verdade,
mesmo sendo tentados a rejeitar 2, restando‐nos a opção de acreditar em 1, esta não é
uma tentação a que os teístas na sua maioria possam ceder facilmente. Pois que na sua
maioria os teístas aderem a tradições religiosas que dão ênfase à realidade do mal no
nosso mundo. Na tradição judaico‐cristã, por exemplo, o homicídio é considerado uma
acção má e pecaminosa, e dificilmente se poderá negar a ocorrência de homicídios no
nosso mundo. Então, como os teístas em geral aceitam a realidade do mal no nosso
mundo e a destacam, seria algo desastroso para o teísmo se estabelecêssemos aquela
que é a afirmação central da forma lógica do problema do mal: que 1 é logicamente
inconsistente com 2.
Estabelecendo a inconsistência
Como podemos estabelecer que duas afirmações são inconsistentes entre si? Por
vezes não é preciso estabelecer seja o que for, porque as duas afirmações contradizem‐
se explicitamente, como, por exemplo, as afirmações: «Elisabete tem mais de um metro
117
e meio» e «Elisabete não tem mais do que um metro e meio». É frequente, contudo,
duas afirmações inconsistentes entre si não serem explicitamente contraditórias. Nes‐
ses casos podemos estabelecer que são inconsistentes derivando delas duas afirmações
que são explicitamente contraditórias. Considere‐se as afirmações 3 e 4, por exemplo.
É evidente que estas duas afirmações são logicamente inconsistentes entre si; não
podem ser ambas verdadeiras. Mas não são explicitamente contraditórias. Se nos pedi‐
rem para provar que 3 e 4 são inconsistentes entre si, podemos fazê‐lo derivando a
partir delas afirmações que são explicitamente contraditórias. Para o fazer temos de
acrescentar outra afirmação a 3 e 4:
5. Tudo o que é vermelho é colorido.
De 3, 4 e 5 podemos então derivar facilmente um par de afirmações explicitamente
contraditórias: «Este objecto é colorido» (de 3 e 5) e «Este objecto não é colorido»
(repetição de 4). Este é, então, o procedimento que podemos seguir se nos pedirem
para estabelecer que duas afirmações são logicamente inconsistentes entre si.
Antes de considerar se o defensor da forma lógica do problema do mal pode ou não
estabelecer que as afirmações 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si, temos de
compreender claramente um detalhe muito importante acerca do modo de o fazer.
Quando temos duas afirmações que não são explicitamente contraditórias e queremos
estabelecer que são logicamente inconsistentes, fazemo‐lo acrescentando‐lhes uma
afirmação ou afirmações adicionais e derivando de todo o grupo (o par original e a
afirmação ou afirmações adicionais) um par de afirmações que sejam explicitamente
contraditórias entre si. O detalhe que agora requer muita atenção é o seguinte: para
que este procedimento funcione, a afirmação ou afirmações adicionais têm não só de
ser verdadeiras mas necessariamente verdadeiras. Repare‐se, por exemplo, que a afir‐
mação que adicionámos a 3 e 4 para estabelecer que são inconsistentes entre si é uma
verdade necessária — é logicamente impossível que algo seja vermelho sem ser colori‐
do. Se, contudo, a afirmação ou afirmações adicionais usadas para deduzir as afirma‐
ções explicitamente contraditórias são verdadeiras, mas não necessariamente verda‐
deiras, então embora possamos ter êxito ao deduzir afirmações explicitamente contra‐
ditórias, não teremos conseguido mostrar que as duas afirmações originais são logica‐
mente inconsistentes entre si.
Para ver que isto é assim consideremos o seguinte par de afirmações:
6. O objecto na minha mão direita é uma moeda.
7. O objecto na minha mão direita não é uma moeda de dez cêntimos.
Como é evidente, 6 e 7 não são logicamente inconsistentes entre si, visto que ambas
podem ser verdadeiras, ou poderiam ter sido. Não são logicamente inconsistentes
entre si porque nada há logicamente impossível na ideia de que a moeda na minha
mão direita esteja uma moeda de vinte e cinco ou de cinquenta cêntimos. (Contraste‐
118
se 6 e 7 com 3 e 4. É óbvio que há algo de logicamente impossível na ideia de que um
dado objecto é vermelho e no entanto não é colorido.) Mas note‐se que podemos adi‐
cionar a 6 e 7 uma afirmação tal que a partir das três se pode derivar afirmações expli‐
citamente contraditórias.
8. Todas as moedas na minha mão direita são moedas de dez cêntimos.
A partir de 6, 7 e 8 podemos derivar o par de afirmações explicitamente contraditó‐
rias: «O objecto na minha mão direita é uma moeda de dez cêntimos» (de 6 e 8) e «O
objecto na minha mão direita não é uma moeda de dez cêntimos» (repetição de 7).
Agora suponha‐se que 8 é verdadeira, que na verdade todas as moedas na minha mão
direita são de dez cêntimos. Teremos conseguido, então, deduzir afirmações explici‐
tamente contraditórias a partir do nosso par original, 6 e 7, com a ajuda da afirmação
verdadeira 8. Mas é claro que com este procedimento não teremos estabelecido que 6 e
7 são logicamente inconsistentes entre si. Por que não? Porque 8 — a afirmação adi‐
cional — embora verdadeira, não é necessariamente verdadeira. A afirmação 8 não é
necessariamente verdadeira porque eu podia (logicamente) ter uma moeda de vinte e
cinco cêntimos ou de cinquenta cêntimos na minha mão direita. A afirmação 8 é de
facto verdadeira, mas como podia logicamente ter sido falsa, não é uma verdade
necessária. Temos então de ver muito claramente que, para estabelecer a inconsistên‐
cia lógica entre duas afirmações adicionando uma afirmação e derivando afirmações
explicitamente contraditórias, a afirmação adicional tem de ser não só verdadeira mas
necessariamente verdadeira.
Aplicação ao problema lógico do mal
Como 1) «Deus existe e é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom» e 2) «O
mal existe» não são explicitamente contraditórias, quem defende que 1 e 2 são logica‐
mente inconsistentes entre si tem de legitimar esta afirmação adicionando uma afir‐
mação necessariamente verdadeira a 1 e 2 e deduzindo afirmações explicitamente con‐
traditórias. Mas que afirmação poderíamos acrescentar? Suponha‐se que começamos
com
9. Um ser omnipotente, omnisciente, perfeitamente bom, impedirá a ocorrência seja de
que mal for.
De 1, 2 e 9 podemos derivar as afirmações explicitamente contraditórias «Nenhum
mal existe» (de 1 e 9) e «O mal existe» (repetição de 2). Assim, se pudermos mostrar
que a afirmação 9 é necessariamente verdadeira, teremos conseguido estabelecer a
tese da forma lógica do problema do mal: que 1 e 2 são logicamente inconsistentes
entre si. Mas será 9 necessariamente verdadeira? Relembrando a nossa discussão da
omnipotência, parece que Deus teria o poder de impedir qualquer mal que fosse, pois
119
«impedir a ocorrência de um mal» não parece uma tarefa logicamente contraditória,
como «fazer um quadrado redondo». Mas não é fácil estabelecer que 9 é necessaria‐
mente verdadeira. Visto que na nossa própria experiência sabemos que o mal está por
vezes ligado ao bem de tal modo que não podemos alcançar o bem sem permitir o mal.
Além disso, em tais exemplos, o bem por vezes supera o mal, de modo que um ser
bom pode permitir intencionalmente a ocorrência do mal para realizar um bem que se
lhe sobrepõe.
Gottfried Leibniz dá o exemplo de um general que sabe que para alcançar o bem de
salvar a cidade de ser destruída às mãos de um exército inimigo tem de ordenar aos
seus homens que a defendam, o que resultará na morte e sofrimento de alguns deles.
O bem de salvar as mulheres e crianças da cidade supera o mal do sofrimento e morte
de alguns dos seus defensores. Embora o general possa impedir que estes sofram e
morram, ordenando às suas forças que retirem rapidamente, não o pode fazer sem
abdicar do bem de salvar a cidade e os seus habitantes. Seguramente que não pesamos
contra a bondade do general o facto de este permitir a ocorrência do mal para alcançar
o bem maior. Talvez, portanto, alguns males no nosso mundo estejam ligados a bens
que os superam, de tal maneira que nem Deus pode alcançar os bens em causa sem
permitir que ocorram os males ligados a esses bens. A ser assim, a afirmação 9 não é
necessariamente verdadeira.
É claro que, ao contrário do general, o poder de Deus é ilimitado, e poder‐se‐á pen‐
sar que por muito que o bem e o mal estejam intimamente ligados, Deus podia sempre
alcançar o bem e impedir o mal. Mas isto é ignorar a possibilidade de a ocorrência de
alguns males no nosso mundo ser logicamente necessária para a obtenção de bens que
os superam, de maneira que a tarefa de dar lugar a esses bens sem permitir os males
associados é tão impossível como fazer um quadrado redondo. Assim, mais uma vez,
embora Deus, sendo omnipotente, possa impedir que os males em causa ocorram, não
pode, apesar da sua omnipotência, alcançar os bens maiores e ao mesmo tempo impe‐
dir a ocorrência de tais males.1 Portanto, uma vez que 1) a omnipotência não é o poder
de fazer o que é logicamente impossível e 2) pode ser logicamente impossível impedir
a ocorrência de determinados males no nosso mundo e ainda assim alcançar alguns
bens muito importantes, que superam esses males, não podemos estar certos de que a
afirmação 9 é necessariamente verdadeira; não podemos estar certos de que um ser
omnipotente e perfeitamente bom impedirá a ocorrência seja de que mal for.
Acabámos de ver que a tentativa de estabelecer que 1 e 2 são inconsistentes entre si
deduzindo afirmações explicitamente contraditórias a partir de 1, 2 e 9 é um fracasso.
Pois embora 1, 2 e 9 permitam de facto gerar afirmações explicitamente contraditórias,
não temos como saber se 9 é necessariamente verdadeira.
Da discussão anterior vem‐nos a sugestão de permutar 9 por
10. Um ser bom, omnipotente e omnisciente impede a ocorrência de qualquer mal que
não seja logicamente necessário à ocorrência de um bem que o supere.
120
A afirmação 10, ao contrário da 9, considera a possibilidade de determinados males
estarem de tal modo ligados a bens que os superam, que nem Deus possa realizar esses
bens sem permitir que os males ocorram. A afirmação 10, então, não só parece verda‐
deira como necessariamente verdadeira. O problema agora, contudo, é que a partir de
1, 2 e 10 não se pode derivar afirmações explicitamente contraditórias. Tudo o que
podemos concluir a partir de 1, 2 e 10 é que os males que existem no nosso mundo são
logicamente necessários à ocorrência de bens que os superam, e essa afirmação não é
uma contradição explícita.
É agora patente a dificuldade geral que afecta as tentativas de estabelecer que 1 e 2
são logicamente inconsistentes entre si. Quando adicionamos uma afirmação como 9,
que nos permite derivar afirmações explicitamente contraditórias, não podemos estar
certos de que essa afirmação adicional é necessariamente verdadeira. Por outro lado,
quando adicionamos uma afirmação como 10, que parece necessariamente verdadeira,
verificamos que não é possível derivar afirmações explicitamente contraditórias. Nin‐
guém conseguiu apresentar uma afirmação que saibamos ser necessariamente verda‐
deira e que, adicionada a 1 e 2, nos permita derivar afirmações explicitamente contra‐
ditórias. Por consequência, é razoável concluir que a forma lógica do problema do mal
não é um grande obstáculo para o teísmo. Ninguém conseguiu estabelecer a tese cen‐
tral deste problema, de que 1 e 2 são logicamente inconsistentes entre si, através de um
argumento convincente.
A «defesa do livre‐arbítrio»
Antes de nos voltarmos para a forma indiciária do problema do mal, é importante
que compreendamos a influência de uma defesa tradicional do teísmo contra a forma
lógica do problema do mal. Segundo esta defesa — a «defesa do livre‐arbítrio» —
Deus, apesar da sua omnipotência, pode não ter sido capaz de criar um mundo com
criaturas humanas livres sem com isso permitir a ocorrência de uma quantidade con‐
siderável de mal. Esta defesa depende da suposição básica de que é logicamente
impossível realizar livremente uma acção e estar, ao mesmo tempo, causalmente
determinado a realizar essa mesma acção. Sem esta suposição, a defesa com base no
livre‐arbítrio desmorona‐se. Pois se se pode estar causalmente determinado a realizar
uma acção e ainda assim realizar essa acção livremente, então parece claro que Deus
poderia ter criado um mundo com criaturas humanas livres que não agissem senão
correctamente, que nunca praticassem o mal — pois que, sendo omnipotente, poderia
simplesmente criar as suas criaturas e determiná‐las causalmente a fazer apenas o que
é correcto.
Suponhamos que o pressuposto fundamental da defesa do livre‐arbítrio é verdadei‐
ro, que é logicamente impossível estar causalmente determinado a realizar uma acção
e no entanto realizá‐la livremente. Este pressuposto significa que embora Deus possa
causar a existência de criaturas e determiná‐las causalmente a ser livres a respeito de
121
uma certa acção, não pode determiná‐las causalmente a praticarem ou absterem‐se de
praticar essa acção livremente; quer a pessoa pratique a acção ou se abstenha de a pra‐
ticar, isso dependerá da pessoa e não de Deus, no caso de a prática ou abstenção serem
livres. Suponha‐se agora que Deus cria um mundo com criaturas humanas livres, com
a liberdade de fazer diversas coisas, incluindo bem e mal. Se as criaturas humanas
livres criadas por Deus exercem a sua liberdade para fazer bem ou para fazer mal, é
uma opção delas. E é logicamente possível que independentemente de que criaturas
livres Deus decida trazer à existência, todas se servirão por vezes da liberdade para
fazer mal. Sendo assim, é possível que Deus não pudesse ter criado um mundo com
criaturas livres que não agissem senão correctamente; é possível que qualquer mundo
que Deus pudesse criar tendo criaturas com a liberdade de agir bem ou mal, fosse um
mundo em que estas criaturas por vezes agem mal.
A anterior linha de raciocínio procura estabelecer que a verdade da seguinte afir‐
mação é logicamente possível:
11. Deus, apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo em que há criaturas
humanas livres e nenhum mal.
Mas se é possível 11 ser verdadeira e se também é possível que um mundo com cria‐
turas humanas livres seja melhor do que um mundo sem criaturas humanas livres,
segue‐se que 1 e 2 não são de modo algum inconsistentes entre si. Pois considere‐se o
seguinte grupo de afirmações:
1. Deus existe, é omnipotente, omnisciente e perfeitamente bom.
11. Deus, apesar da sua omnipotência, não pode criar um mundo com criaturas humanas
livres e nenhum mal.
12. Um mundo com criaturas humanas livres e algum mal é melhor do que um mundo
sem criaturas humanas livres.
13. Deus cria o melhor mundo que pode.
De 1, 11, 12 e 13 segue‐se que 2) «O mal existe». Mas se 1, 11, 12 e 13 implicam 2 e não
há inconsistência entre 1, 11, 12 e 13, então não pode haver inconsistência entre 1 e 2. Se
num grupo de afirmações não há inconsistência entre elas, então nenhuma afirmação
que se siga desse grupo de afirmações pode ser inconsistente com uma ou mais afir‐
mações do mesmo grupo.
Podemos agora ver qual a relevância da defesa do livre‐arbítrio para a forma lógica
do problema do mal. Objectámos à última porque ninguém conseguiu estabelecer a
tese central desta forma do problema: que 1) «Deus é omnipotente, omnisciente e per‐
feitamente bom» é inconsistente com 2) «O mal existe». Mas, evidentemente, do facto
de ninguém ter provado que 1 e 2 são inconsistentes entre si não se segue que elas não
são inconsistentes entre si. A defesa do livre‐arbítrio procura dar o último passo: pro‐
var que 1 e 2 são mesmo consistentes entre si. Fá‐lo tentando estabelecer que é possível
122
(logicamente) 11 e 12 serem verdadeiras e não haver inconsistência lógica entre as afir‐
mações do grupo formado por 1, 11, 12 e 13. A questão de a defesa do livre‐arbítrio con‐
seguir ou não mostrar que 1 e 2 são logicamente consistentes entre si é um assunto
demasiado complicado e controverso para o desenvolvermos neste livro.2 Mesmo que
não o consiga, porém, o teísta não tem de se preocupar demasiado com a forma lógica
do problema do mal, pois, como vimos, ninguém estabeleceu que 1 e 2 são inconsisten‐
tes entre si.
O problema indiciário
Volto‐me agora para a forma indiciária do problema do mal — a forma do problema
segundo a qual a diversidade e abundância de mal no nosso mundo, embora talvez
não seja logicamente inconsistente com a existência de Deus, nos dá ainda assim uma
base racional para acreditar na inexistência do Deus teísta. Ao desenvolver esta forma
do problema do mal, será útil centrarmo‐nos num mal particular que o nosso mundo
contenha em considerável abundância. O sofrimento intenso em seres humanos ou
animais, por exemplo, ocorre quotidiana e abundantemente no nosso mundo. Tal
sofrimento intenso é um inequívoco exemplo de mal. Claro que se o sofrimento inten‐
so conduzir a algum bem superior, um bem que não poderíamos obter sem suportar o
sofrimento em causa, poderíamos concluir que o sofrimento é justificado, mas apesar
disso continua a ser um mal. Pois não podemos confundir o sofrimento intenso em si e
por si com as coisas boas a que por vezes conduz ou das quais pode ser uma parte
necessária. O sofrimento intenso nos seres humanos ou animais é mau em si, é um
mal, ainda que por vezes se possa justificar em virtude de fazer parte de algum bem,
ou de conduzir a um bem inalcançável sem esse sofrimento. Por vezes, algo que em si
é mau pode ser bom como meio, por nos levar a algo que é bom em si. Nesse caso,
embora continuando a ser um mal em si, o sofrimento intenso nos seres humanos ou
animais é, não obstante, um mal que se pode ter justificação moral para permitir.
Encarar o sofrimento intenso nos seres humanos ou animais como um mal intrínse‐
co, contudo, não significa que a capacidade para ter experiência do sofrimento intenso
seja em si boa ou má. Como vimos, há alturas em que ter experiência do sofrimento
intenso é muito útil, na medida em que pode fazer‐nos agir com rapidez no sentido de
nos afastarmos de situações que nos são prejudiciais. Assim, a capacidade para ter
experiência de sofrimento intenso é‐nos útil. Além disso, por vezes, uma coisa que em
si mesma é má (a dor ou o sofrimento intenso) pode servir um bom propósito. A forma
indiciária do problema do mal baseia‐se em exemplos de sofrimento intenso, em seres
humanos ou animais, que aparentemente não servem qualquer propósito benéfico.
Desenvolvemos aqui o argumento centrando‐nos num exemplo de sofrimento animal:
um corço que fica horrivelmente queimado durante um incêndio provocado pela des‐
carga de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias antes de morrer. Ao con‐
trário dos seres humanos, não se atribui livre‐arbítrio aos corços, pelo que não pode‐
123
mos imputar o terrível sofrimento do corço a um mau uso do livre‐arbítrio. Por que
permitiria então Deus que isto acontecesse quando, se existe, podia tê‐lo impedido
com tanta facilidade? Admite‐se em geral que somos simplesmente incapazes de ima‐
ginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de
Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. Tão‐pouco parece razoável supor
que há um mal imenso que Deus seria incapaz de impedir se não permitisse que o cor‐
ço sofresse durante cinco dias. Suponha‐se que por «mal sem sentido» entendemos
um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido sem com isso perder um bem superior
ou sem ter de permitir um mal igualmente mau ou pior. Será que o sofrimento do corço
é um mal sem sentido? Seguramente que o terrível sofrimento do animal durante esses
cinco dias não parece do nosso ponto de vista fazer qualquer sentido. Quanto a isto, o
consenso é, ao que parece, quase universal. Pois dada a omnisciência e o poder absolu‐
to de Deus, ser‐lhe‐ia extremamente fácil ter impedido o incêndio ou ter impedido que
o corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como vimos, é extraordinariamente
difícil imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva
razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. E é igualmente difícil
imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se visse forçado a permitir caso
impedisse o sofrimento do corço. Parece, portanto, perfeitamente razoável pensar que
o sofrimento do corço é um mal sem sentido, um mal que Deus (se existe) podia
impedir sem com isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente
ou pior.
À luz de tais exemplos de males horríveis, pode‐se formular da seguinte maneira o
argumento indiciário:
1. Provavelmente, há males sem sentido (por exemplo, o sofrimento do corço).
2. Se deus existe, não há males sem sentido.
Logo,
3. Provavelmente, Deus não existe.
Este argumento surge da perspectiva comum de que no nosso mundo ocorrem dia‐
riamente males terríveis, males que temos razões para pensar que um ser omnipoten‐
te, omnisciente e perfeitamente bom teria impedido. E parece dar‐nos uma boa razão
para considerar provável a inexistência de Deus.
Respostas ao problema indiciário
Das duas formas do problema do mal que considerámos, a primeira (a forma lógica)
não parece um obstáculo sério à crença teísta. A segunda (a forma indiciária) parece
um obstáculo importante, pois a sua tese básica — que a abundância de males terríveis
no nosso mundo nos dá uma razão para pensar que Deus não existe — é aparentemen‐
124
te plausível. Temos agora de considerar duas respostas importantes ao desafio coloca‐
do pelo problema indiciário do mal.
Teísmo céptico
Na área de estudos da filosofia surgiu uma posição conhecida como teísmo céptico.
Pode‐se descrever grosso modo o teísmo céptico como a posição que defende que os
argumentos contra a verdade do teísmo pecam por pressupor a verdade de determina‐
das afirmações, as quais ou são falsas ou não se demonstrou que são verdadeiras. A
resposta do teísta céptico ao argumento indiciário do mal é que a verdade da premissa
crucial no argumento («provavelmente, há males sem sentido») permanece indemons‐
trada; visto que, segundo o teísta céptico, não temos razões adequadas para sequer
considerar plausível a inexistência de um bem que justificasse a permissão por Deus
quer do sofrimento terrível do corço quer de qualquer outro exemplo semelhante, de
que tenhamos consciência. Por que nos dispomos a pensar que o sofrimento do corço,
muito provavelmente, não tem qualquer sentido? É porque não podemos conceber ou
mesmo imaginar um bem que simultaneamente superasse o sofrimento do corço e
fosse tal que um ser omnipotente e omnisciente não encontrasse maneira de produzir
esse bem, ou um bem igual ou superior, sem ter de permitir o sofrimento terrível do
corço. Pense‐se novamente no sofrimento do corço. Não só está terrivelmente quei‐
mado, como agoniza durante cinco dias no chão da floresta, até finalmente sobrevir a
morte. Haverá algum bem importante que um ser omnipotente e omnisciente só
pudesse originar permitindo que aquele corço sofresse durante cinco dias a fio, em vez
de, digamos, quatro, três, dois, um, ou mesmo nenhum — por exemplo, fazendo por
misericórdia que a morte do corço fosse simultânea às suas terríveis queimaduras? A
mente humana fica perplexa com a ideia de que um ser omnipotente e omnisciente se
encontrasse em tais apuros. Mas a resposta do teísta céptico é que, tanto quanto sabe‐
mos, a razão por que a mente humana fica perplexa com este estado de coisas é sim‐
plesmente por não saber o suficiente. Sugere que se Deus existe e se soubéssemos o
que ele sabe, então talvez soubéssemos que Deus não chegou sequer a ter escolha.
Pois, segundo o teísta céptico, Deus podia muito bem saber que se impedisse que
aquele corço ficasse terrivelmente queimado, ou se retirasse apenas um aos dos cinco
dias de terrível sofrimento do corço, teria de permitir outro mal equivalente, ou pior,
ou teria de perder um bem importante, com o resultado de que o mundo em geral
seria pior do que é por Deus ter permitido que aquele corço sofresse intensamente
durante cinco dias. Além disso, o facto de não conseguirmos imaginar o que esse bem
podia ser não é de modo algum surpreendente, dada a disparidade entre os bens
conhecíveis pelas nossas mentes e os bens conhecíveis por um ser perfeitamente bom,
omnisciente e criador do mundo. Pelo que, segundo o teísta céptico, não estamos sim‐
plesmente em condições de ajuizar razoavelmente que Deus podia ter impedido os
cinco dias de terrível sofrimento do corço sem perder um bem superior ou sem ter de
125
permitir um mal equivalente ou pior. As nossas mentes limitadas são simplesmente
incapazes de conceber os bens que seriam acessíveis à mente de Deus. E dado que
somos simplesmente incapazes de conhecer muitos dos bens que Deus conheceria,
não é de modo algum espantoso o facto de ser impensável que qualquer bem que
conheçamos justifique razoavelmente que um ser infinitamente bom e omnipotente
permita o terrível sofrimento do corço. Na verdade, dado o imenso abismo entre o
conhecimento de Deus e o nosso, o facto de nenhum bem que conheçamos parecer de
modo algum justificar que Deus permita o terrível sofrimento do corço é talvez preci‐
samente aquilo que seria de esperar no caso de um ser como Deus existir realmente.3
Stephen Wykstra, defensor do teísmo céptico, argumentou que para acreditar
razoavelmente na probabilidade de que o sofrimento do corço não tem sentido algum,
temos de ter uma razão positiva para pensar que, no caso de haver um bem que justifi‐
casse que Deus permitisse o sofrimento do corço, provavelmente conheceríamos esse
bem. Mas Wykstra afirma que, muito provavelmente, os bens conhecíveis por Deus
não são conhecíveis por nós. Para ilustrar esta afirmação, Wykstra chama a atenção
para que ao inspeccionar a sua garagem, não vendo lá cão algum, poderíamos concluir
que não há cão algum na garagem. Mas pelo facto de inspeccionar a sua garagem e não
ver lá pulgas, não poderíamos concluir que não há pulgas na garagem. Pois temos
razão para pensar que se houvesse pulgas na garagem, provavelmente não as consegui‐
ríamos ver. Assim, o facto de não sermos capazes de conceber um bem que possa justi‐
ficar que Deus permita o sofrimento do corço não nos autoriza a pensar que não há tal
bem. Pois, na perspectiva de Wykstra, se houvesse tal bem visado por Deus para per‐
mitir o sofrimento do corço, é bastante provável que não o conhecêssemos. Assim, o
facto de não podermos sequer imaginar o que tal bem seria, longe de ser uma razão
para pensar que a existência de Deus é improvável, é precisamente o que seria de espe‐
rar no caso de Deus existir.
Wykstra reconhece que um deus perfeitamente bom só permitiria o sofrimento,
como o terrível sofrimento do corço, se «ao fazê‐lo se alcançasse um bem superior».
Também observa «que tais bens, muitas vezes, ultrapassam completamente a nossa
compreensão». Mas então afirma:
O fulcro da minha crítica tem sido o de que isto é precisamente o que seria de espe‐
rar no caso de o teísmo ser verdadeiro: pois se pensarmos claramente no género de ser
em que o teísmo propõe que acreditemos, é inteiramente plausível — dado o que sabe‐
mos acerca dos nossos limites cognitivos — que estejam normalmente muito além do
nosso alcance os bens em virtude dos quais tal ser permite o sofrimento que conhece‐
mos. Como esse estado de coisas é precisamente o que seria de esperar no caso de o
teísmo ser verdadeiro, como pode a sua constatação ser um indício contra o teísmo? (p.
91)
126
No seu ensaio, Wykstra faz notar que tanto entre os crentes como entre os descren‐
tes há uma «intuição pertinaz de que o sofrimento inescrutável no nosso mundo retira
de alguma maneira a força ao teísmo». Observa também que os crentes têm uma firme
tendência natural para encarar o sofrimento inescrutável como uma dificuldade inte‐
lectual ou obstáculo à crença, especialmente quando afecta aqueles que essas pessoas
mais amam, algo que na ausência de uma explicação sensata tende a pesar contra o
teísmo. Wykstra, não obstante, pensa que esta intuição pertinaz, comum a crentes e
descrentes, é um erro. Pois tendo em conta as nossas limitações e a omnisciência e
omnipotência de Deus, Wykstra considera plausível que muito do sofrimento no nosso
mundo seja inescrutável para nós. Assim, conclui que os crentes e os descrentes sim‐
plesmente não conseguem ver o que a hipótese teísta de facto inclui.
Ao defender a razoabilidade da suposição de que os bens que justificam os males
horrendos no nosso mundo são inconhecíveis por nós Wykstra recorre à analogia dos
bons pais. A ideia é que Deus, sendo perfeitamente amoroso, é para nós humanos
como os bons pais são para os seus filhos, a quem amam. E tal como os seus filhos
muitas vezes não conseguem compreender os bens por causa dos quais os seus dedi‐
cados pais permitem que lhes aconteça coisas, também nós, seres humanos, não con‐
seguimos compreender os bens por causa dos quais Deus permite que nós, as suas
criaturas, sofram os males que nos atingem. Todavia, não há um consenso genuíno
relativamente à questão de a analogia proposta ser assim tão favorável ao teísmo como
Wykstra supõe. É verdade que os pais dedicados podem ter de permitir que os seus
filhos doentes sejam separados deles, internados num hospital, forçados a engolir
medicamentos que sabem mal e entregues ao cuidado de estranhos, para que possam
ficar curados. A criança muito jovem, evidentemente, pode não compreender por que
razão os seus pais o tiraram de casa e o deixaram ao cuidado de estranhos. Da mesma
maneira, dirá o teísta, um pecado que cometemos ou algo que esteja além da nossa
compreensão pode ter‐nos separado de Deus. Mas noutros aspectos a analogia dos
bons pais não funciona. Quando as crianças estão doentes e internadas num hospital,
os pais dedicados procuram por todos os meios possíveis consolar o filho, dando‐lhe
garantias especiais do amor que lhe têm enquanto está separado deles e a sofrer por
uma razão que não compreende. Nenhum pai dedicado aproveita a ocasião de o seu
filho estar no hospital para tirar férias, dizendo para consigo que os médicos e enfer‐
meiras vão seguramente tomar conta do pequeno Joãozinho enquanto os pais estão
fora. Mas inúmeros seres humanos, incluindo muitos crentes, suportam um sofrimen‐
to horrível sem quaisquer garantias do amor e preocupação divinos enquanto este
período de sofrimento dura. Pode‐se encontrar indícios a favor desta afirmação na
bibliografia acerca das vítimas do holocausto. Na verdade, ao contrário do que pensa
Wykstra, algumas das pessoas que ponderam a questão do silêncio e da ocultação de
Deus concluem que dados os horrendos males no nosso mundo, a ausência de Deus é
um indício decisivo da sua inexistência.4 Seguramente, afirmam, se existisse um Deus
bondoso, este desejaria que tivéssemos conhecimento da sua presença, dado que os
127
males horrendos no nosso mundo parecem dar‐nos razão para duvidar da sua existên‐
cia. Como Wykstra reconhece, muita gente considera o mal e sofrimento no nosso
mundo razões para concluir que Deus não existe. E a aparente ocultação de Deus
parece apenas dar razões adicionais para concluir que nenhum ser assim existe. Os
teístas cépticos, contudo, chamam a atenção para um aspecto importante, argumen‐
tando que, se Deus existe, como o seu conhecimento superaria por completo o nosso,
é provável que haja bens que o nosso conhecimento não abrange, embora acessíveis a
Deus, bens cuja realização, tanto quanto sabemos, pode justificar tanto o ocultamento
de deus relativamente a nós como a permissão divina de todo o sofrimento humano e
animal que não decorre do mau uso do livre‐arbítrio humano. É claro que este pro‐
blema continuará a ser uma questão importante e controversa para o pensamento
humano.
Teodiceias
A segunda resposta consiste em apresentar uma teodiceia — uma tentativa de expli‐
car que objectivos Deus poderia ter para permitir a abundância de mal no nosso mun‐
do. Ao contrário da resposta do teísmo céptico, que consiste em questionar se se apre‐
sentou ou não razões suficientes para mostrar que a premissa 1 do argumento indiciá‐
rio é verdadeira, uma teodiceia procura dar algumas razões positivas para pensar que a
premissa 1 é provavelmente falsa. Em vez de comentar muito brevemente diversas teo‐
diceias — o mal é o castigo pelo pecado, o mal deve‐se ao livre‐arbítrio, o mal é neces‐
sário para que valorizemos o bem, etc. — será mais útil olhar com algum detalhe para
uma das teodiceias mais prometedoras, uma teodiceia da «edificação da alma», desen‐
volvida e defendida pelo proeminente filósofo e teólogo contemporâneo, John Hick.5
Antes de dar uma sinopse da teodiceia da edificação da alma, será útil reflectir na
relevância geral das teodiceias para o problema indiciário do mal. O que se procura ao
certo com uma teodiceia? Procura‐se explicar com algum detalhe qual é exactamente
o bem que justifica a permissão divina do sofrimento do corço? Não. Tal explicação
suporia um conhecimento dos objectivos específicos de Deus, um conhecimento que
seria irrazoável esperar que tivéssemos sem que Deus no‐lo revelasse detalhadamente.
Uma teodiceia procura ater‐se a um bem (real ou imaginário) e argumentar que a
obtenção desse bem justificaria a permissão por um ser omnipotente de males como o
sofrimento do corço. Independentemente de obter o bem em causa ser ou não a razão
efectiva de Deus permitir males como o sofrimento do corço, isto não faz parte daqui‐
lo que uma teodiceia procura estabelecer. Apenas se pretende mostrar que se o objec‐
tivo de Deus ao permitir males como o sofrimento do corço fosse obter o bem em
questão, então (dado o que sabemos) seria razoável acreditar que um ser omnipotente
teria justificação para permitir tais males. Assim, portanto, uma teodiceia procura pôr
em dúvida a premissa 1 do nosso argumento do mal.
128
O sofrimento do corço é um exemplo de mal natural — um mal que resulta de for‐
ças naturais. Quando alguém tortura e mata uma criança inocente, o sofrimento da
criança é um exemplo de mal moral — um mal que resulta da decisão consciente de
um agente pessoal. Segundo Hick, que bens se promove pela abundância de mal natu‐
ral e moral no nosso mundo? Na teodiceia de Hick figuram dois bens. O primeiro é o
estado em que se encontram todos os seres humanos que se desenvolvem através das
suas escolhas livres para se tornarem seres morais e espirituais. O segundo é o estado
em que tais seres entram numa vida eterna de felicidade e alegria na companhia de
Deus. Comecemos a nossa sinopse considerando o primeiro destes estados, aquele em
que todos os seres humanos se desenvolvem através das suas escolhas livres para se
tornarem seres morais e espirituais. Como podia a obtenção de tal bem justificar a
permissão por um ser omnipotente e omnisciente de males como o sofrimento do cor‐
ço e o sofrimento da criança inocente, que é brutalmente torturada e morta?
Como o sofrimento do corço e o sofrimento da criança são, respectivamente, exem‐
plos de mal natural e de mal moral, podem exigir respostas diferentes. Comecemos
pelos horrendos males morais como o sofrimento da criança enquanto é torturada. O
primeiro passo de Hick é argumentar que se o bem em causa é o desenvolvimento
moral e espiritual através de escolhas livres, então um ambiente em que não houvesse
sofrimento significativo, nenhuma ocasião para escolhas morais importantes, não seria
um mundo em que o crescimento moral e espiritual são possíveis. Em particular, um
mundo em que ninguém possa fazer mal aos outros, em que nenhuma dor ou sofri‐
mento resulte de qualquer acção, não seria um mundo em que tal crescimento moral e
espiritual pudesse ocorrer.
Penso que podemos conceder a Hick que um paraíso indolor, um mundo em que
ninguém se pudesse ferir e ninguém pudesse fazer mal, seria destituído de desenvol‐
vimento moral e espiritual importante. Mas como compreender o facto de o mundo
em que vivemos ser tão frequentemente hostil a esse desenvolvimento moral e espiri‐
tual? Porquanto é evidente, como Hick tem o cuidado de indicar, que muita da dor e
sofrimento no nosso mundo frustram tal desenvolvimento.
A situação geral é assim a de que, tanto quanto sabemos, o sofrimento ocorre
desorganizada, inútil e portanto injustificadamente. A sua relação com a edificação da
alma, no passado, no presente ou no futuro, parece meramente fortuita. Em vez de servir
um propósito construtivo, a dor e a angústia parecem atingir o ser humano de uma for‐
ma desordenada e absurda, com o resultado de que o sofrimento é muitas vezes imere‐
cido e não raro ocorre em quantidades que excedem seja o que for que pudesse ser
objecto de um plano moral.6
Hick responde perguntando‐nos o que aconteceria se o nosso mundo fosse tal que o
sofrimento nele ocorresse «não fortuita e portanto injustamente, mas ao contrário,
justa e portanto infortuitamente».7 Hick argumenta que num tal mundo as pessoas
129
evitariam fazer o mal por medo e não por sentido de dever. Além disso, mal se visse
que o sofrimento é sempre para bem do sofredor, a angústia humana deixaria de «evo‐
car a profunda empatia pessoal ou convocar a assistência colectiva, a ajuda e o serviço
abnegados. Pois tais reacções compassivas pressupõem que o sofrimento é imerecido e
mau para o sofredor».8 Hick conclui então:
Parece então que, num mundo que servirá de cenário ao amor compassivo e à abne‐
gação pelos outros, o sofrimento tem de recair sobre a humanidade com alguma da
desordem e desigualdade de que temos agora experiência. Tem de ser aparentemente
imerecido, absurdo e insusceptível de racionalização moral. Pois é precisamente esta
característica da nossa humanidade comum que gera a empatia entre os homens e evoca
a generosidade, a bondade e a boa vontade que se conta entre os valores mais elevados
da vida pessoal.9
Suponhamos, em concordância com Hick, que um ambiente adequado ao desen‐
volvimento, pelos seres humanos, das qualidades mais elevadas da moral e da vida
espiritual, tem de ser tal que inclua genuinamente sofrimento, dificuldades, desilu‐
sões, fracasso e derrota. Porquanto o crescimento moral e espiritual pressupõe estas
coisas. Suponhamos também que tal ambiente tem de funcionar, pelo menos na maior
parte dos casos, segundo leis gerais e fiáveis; porquanto só com base em tais leis pode‐
rá alguém empenhar‐se na tomada orientada de decisões, essencial a uma vida racio‐
nal e moral. E dadas estas duas suposições é compreensível, penso, que um ser omnis‐
ciente e omnipotente tenha justificação moral para permitir a ocorrência de males,
tanto morais como naturais. Além disso, como Hick sublinha, é importante que não
nos seja evidente que o bem do crescimento moral e espiritual exige todos os exemplos
de sofrimento que ocorrem e deles resulta. Pois então deixaríamos de procurar elimi‐
nar estes males e assim diminuiríamos as próprias lutas humanas que tão amiúde pro‐
duzem o crescimento moral e espiritual.
A nossa excursão à teodiceia de Hick mostrou‐nos, talvez, como uma teodiceia
pode conseguir justificar a permissão do mal natural e do mal moral por Deus. Mas até
agora não nos deram qualquer justificação para a permissão do sofrimento horrível do
corço, nem temos qualquer justificação para o atroz sofrimento da criança inocente
que é brutalmente torturada e morta por um ser humano adulto. No caso do sofrimen‐
to do corço podemos afirmar que dada a existência de animais no nosso mundo e o
funcionamento deste segundo leis naturais, é inevitável que ocorram exemplos de
sofrimento animal intenso e prolongado. No caso do sofrimento daquela criança ino‐
cente em particular, pode‐se dizer que ao aproximarem‐se do desenvolvimento moral
e espiritual, talvez seja inevitável que os seres humanos por vezes prejudiquem grave‐
mente os outros, através de um mau uso da liberdade. Mas nada disto justificará
moralmente que um ser todo‐poderoso e omnisciente permita o sofrimento daquele
corço em particular ou o sofrimento daquela criança inocente em particular. É sim‐
130
plesmente irrazoável acreditar que se o adulto agiu livremente ao espancar brutalmen‐
te e matar a criança inocente, o seu desenvolvimento moral e espiritual teria sido per‐
manentemente frustrado caso fosse impedido de a espancar e matar. E é também irra‐
zoável acreditar que há justificação moral para permitir tal acto mesmo que impedi‐lo
diminua de alguma maneira a odisseia moral e espiritual do perpetrador. E no caso do
corço, é simplesmente irrazoável acreditar que impedir que ficasse gravemente quei‐
mado, ou pondo misericordiosamente fim à sua vida para não sofrer intensamente
durante vários dias, abalaria de tal modo a nossa confiança na ordem da natureza que
esqueceríamos o nosso desenvolvimento moral e espiritual. Hick não parece insciente
desta limitação da sua teodiceia, pelo menos no que diz respeito aos males naturais.
No que diz respeito à dor humana devida a causas independentes do arbítrio humano,
Hick comenta:
Respondendo a isto, a teodiceia, se sabiamente conduzida, segue um caminho nega‐
tivo. Não é possível mostrar positivamente que cada item de dor humana serve o objec‐
tivo de Deus; por outro lado, parece possível mostrar que o objectivo divino […] não
podia fazer‐se cumprir num mundo concebido como um paraíso hedonista permanen‐
te.10
Vimos que a teodiceia de Hick é incapaz de nos dar um bem que justificaria a per‐
missão, por um ser omnipotente e omnisciente, do sofrimento intenso do corço ou do
sofrimento atroz da criança inocente. O melhor que Hick pode fazer é argumentar que
um mundo completamente destituído de mal natural e moral impossibilitaria a realiza‐
ção dos bens que Hick postula como justificações para a permissão do mal por um ser
omnipotente e omnisciente. Todavia, como impedir o sofrimento do corço ou da
criança inocente não destituiria completamente o nosso mundo de mal natural ou
moral, o argumento tudo‐ou‐nada de Hick não responde à nossa questão. Tão‐pouco
adiantará afirmar que se um ser omnipotente e omnisciente impedisse o sofrimento do
corço ou da criança inocente seria por isso obrigado a impedir todos os outros males.
Pois se o fizesse, como Hick argumentou, podia dar‐se o caso de pararmos de nos
empenhar consideravelmente na edificação da alma. A teodiceia de Hick deixa‐nos o
problema de ser perfeitamente razoável acreditar que alguns dos males que ocorrem
podiam ser impedidos sem diminuir o nosso desenvolvimento moral e espiritual nem
comprometer a nossa confiança no funcionamento do mundo segundo leis naturais. A
teodiceia de Hick, portanto, não consegue dar‐nos uma razão para rejeitar a premissa
1, segundo a qual existem males sem sentido, exemplos de sofrimento que um ser
omnipotente e omnisciente podia impedir sem com isso impedir a ocorrência de qual‐
quer bem superior.
131
O «desvio de G. E. Moore»
A melhor maneira que o teísta tem de rejeitar a premissa 1 é através de um proce‐
dimento indirecto. A este procedimento chamo «desvio G. E. Moore», em honra do
filósofo do século XX, G. E. Moore, que o usou eficazmente ao lidar com os argumen‐
tos dos cépticos. Filósofos cépticos como David Hume apresentaram argumentos
engenhosos para provar que ninguém pode ter conhecimento da existência de qual‐
quer objecto material. As premissas dos seus argumentos usam princípios plausíveis,
princípios que muitos filósofos tentaram rejeitar directamente, mas apenas com resul‐
tados questionáveis. Moore seguiu um procedimento completamente diferente. Em
vez de argumentar directamente contra as premissas dos argumentos dos cépticos,
observou apenas que estas premissas implicavam, por exemplo, que ele (Moore) não
tinha conhecimento da existência de um lápis. Moore argumentou então indirecta‐
mente contra as premissas dos cépticos, da seguinte maneira:
1. Sei que este lápis existe.
2. Se os princípios dos cépticos são correctos, não posso saber da existência deste lápis.
Logo,
3. Os princípios dos cépticos (pelo menos um) têm de ser incorrectos.
Moore observou então que este argumento é tão válido quanto o argumento dos
cépticos, que ambos contêm a premissa «Se os princípios dos cépticos são correctos,
Moore não pode saber da existência deste lápis», e concluiu que a única maneira de
escolher entre os dois argumentos (o do próprio Moore e o dos cépticos) é decidindo
em qual das primeiras premissas é mais racional acreditar — a premissa de Moore,
«Sei que este lápis existe», ou a premissa dos cépticos, que afirma que alguns princí‐
pios cépticos são correctos. Moore conclui que a sua primeira premissa é a mais racio‐
nal das duas.11
Antes de vermos como o teísta pode aplicar o desvio de G. E. Moore ao argumento
básico a favor do ateísmo, devemos observar a estratégia geral do desvio. Dão‐nos um
argumento: p, q, logo, r. Em vez de argumentar directamente contra p, construímos
outro argumento — não‐r, q, logo, não‐p — que começa com a negação da conclusão
do primeiro argumento, mantém a sua segunda premissa e conclui com a negação da
primeira premissa. Comparemos estes dois:
[INSERIR TABELA DA PÁGINA 129]
I. p, q, r
II. não‐r, q, não‐p
132
É uma verdade da lógica que se I é válido II tem de ser igualmente válido. Uma vez
que os argumentos são iguais no que diz respeito à segunda premissa, qualquer opção
entre eles tem de dizer respeito às respectivas primeiras premissas. Argumentar contra
a primeira premissa p construindo o contra‐argumento II é usar o desvio de G. E. Moo‐
re.
Aplicando uma forma convenientemente adaptada do desvio de G. E. Moore contra
o argumento indiciário a favor do ateísmo, o teísta pode argumentar do seguinte
modo:
3.* Provavelmente, Deus existe.
2. Se Deus existe, não há males sem sentido.
Logo,
1.* Provavelmente, não há males sem sentido.
Temos agora dois argumentos: o argumento básico a favor do ateísmo, partindo de 1
e 2 para concluir 3, e a melhor resposta do teísta, o argumento partindo de 3* e 2 para
concluir 1*. A respeito da premissa 1, o teísta afirma ter justificação racional para acre‐
ditar na existência do Deus teísta, 3*, aceita 2 como verdadeira, e vê que 1* se segue de
3* e 2. O teísta conclui, consequentemente, ter justificação racional para rejeitar 1.
Tendo justificação racional para rejeitar 1, o teísta conclui que o argumento básico a
favor do ateísmo não é bom.
Argumento e resposta: uma avaliação
É agora tempo de avaliar os méritos relativos do argumento básico a favor do ateís‐
mo, bem como da melhor resposta que o teísta lhe dá. Suponha‐se que alguém está em
condições de não ter qualquer justificação racional para pensar que o Deus teísta exis‐
te. Ou esta pessoa não conhece os argumentos a favor da existência de Deus ou ponde‐
rou‐os mas considera‐os inteiramente inconvincentes. É possível que também não
tenha tido quaisquer visões de Deus e esteja racionalmente convencido de que as
experiências religiosas de outros não dão à crença teísta qualquer boa justificação.
Contemplando a diversidade e o âmbito do sofrimento humano e animal no nosso
mundo, todavia, este indivíduo conclui que é perfeitamente razoável aceitar a premis‐
sa 1 como verdadeira. Penso que temos de admitir que tal pessoa tem justificação
racional para aceitar o ateísmo. Suponha‐se, contudo, que outra pessoa tem experiên‐
cias religiosas que lhe dão justificação para acreditar que o Deus teísta existe. Talvez
esta pessoa tenha também examinado cuidadosamente o argumento ontológico, e
achou‐o racionalmente coercivo. Penso que temos de admitir que essa pessoa tem
alguma justificação racional para aceitar o teísmo. Mas e se este indivíduo estiver cien‐
te do argumento básico a favor do ateísmo e das considerações apresentadas a favor da
133
sua primeira premissa? Nesse caso, terá alguma justificação racional para acreditar que
o teísmo é verdadeiro e alguma justificação racional para acreditar que a premissa 1 é
verdadeira, e, portanto, que o teísmo é falso. Esta pessoa terá então de pesar a força
relativa das razões a favor do teísmo contra as razões a favor da premissa 1 e do ateís‐
mo. Se a justificação do teísmo parece racionalmente mais forte do que a justificação
da premissa 1, este indivíduo pode razoavelmente rejeitar a premissa 1, porquanto a
sua negação é pressuposta pelo teísmo e por 2. Claro que avaliar o mérito relativo de
justificações racionais rivais não é fácil, mas parece claro que se pode ter justificação
racional para aceitar o teísmo e concluir que a premissa 1 é falsa e que o argumento
básico a favor do ateísmo não é bom.
Em termos da nossa própria resposta ao argumento básico a favor do ateísmo e ao
contra‐argumento teísta à premissa 1, cada um de nós tem de ajuizar à luz da expe‐
riência e conhecimento pessoais se as justificações que temos para acreditar na pre‐
missa 1 são mais fortes ou mais fracas do que as justificações para acreditar que o Deus
teísta existe. Vimos que na medida em que a nossa experiência e conhecimento podem
diferir, é possível — aliás, é provável — que tenhamos, alguns de nós, justificação para
aceitar o teísmo e rejeitar a premissa 1.
Chegámos à conclusão de que a forma indiciária do problema do mal é uma dificul‐
dade grave mas não insuperável para o teísmo. Na medida em que tiver justificações
mais fortes para acreditar que o Deus teísta existe do que para aceitar a premissa 1, o
teísta, bem feitas as contas, pode ter mais razões para rejeitar a premissa 1 do que para
a aceitar. Contudo, na ausência de boas razões para acreditar que o Deus teísta existe,
o nosso estudo da forma indiciária do problema do mal leva‐nos à perspectiva de que
temos justificação racional para concluir que provavelmente Deus não existe.
É preciso não confundir a perspectiva de que uma pessoa pode ter justificação
racional para aceitar o teísmo enquanto outra pessoa tem justificação racional para
aceitar o ateísmo com a perspectiva incoerente de que o teísmo e o ateísmo podem ser
ambos verdadeiros. Dado que o teísmo (no sentido estrito) e o ateísmo (no sentido
estrito) exprimem afirmações contraditórias, um tem de ser verdadeiro e o outro falso.
Mas como os indícios de que se dispõe podem justificar a crença numa afirmação que,
à luz da totalidade dos indícios, é falsa, é possível pessoas diferentes terem justificação
racional para acreditar em afirmações que não podem ambas ser verdadeiras. Supo‐
nha‐se, por exemplo, que uma amiga sua embarca num avião para o Havai. Horas
depois da descolagem você descobre que o avião caiu no mar. Depois de uma busca de
vinte e quatro horas, não se encontra sobreviventes. Nestas circunstâncias é racional
que o leitor pense que a sua amiga não sobreviveu. Mas dificilmente será racional que
ela própria acredite nisso enquanto está a boiar ao sabor das ondas com um colete sal‐
va‐vidas, perguntando‐se por que razão os aviões de busca não a conseguem encon‐
trar. O teísmo e o ateísmo não podem ser ambos verdadeiros. Mas na medida em que a
experiência e o conhecimento diferem de pessoa para pessoa, uma pode ter justifica‐
134
ção racional para aceitar o teísmo ao passo que outra tem justificação racional para
aceitar o ateísmo.
Caracterizámos o teísta como alguém que pensa que o Deus teísta existe e o ateu
como alguém que pensa que o Deus teísta não existe. À luz do nosso estudo do pro‐
blema do mal, talvez devamos introduzir distinções complementares. Um ateu amigá‐
vel pensa que uma pessoa pode ter justificação racional para acreditar que o Deus teís‐
ta existe. Um ateu hostil pensa que ninguém tem justificação racional para acreditar
que o Deus teísta existe. Há que fazer distinções semelhantes a respeito do teísmo e do
agnosticismo. Um agnóstico hostil, por exemplo, é um agnóstico que pensa que nin‐
guém tem justificação racional para acreditar que o Deus teísta existe e que ninguém
tem justificação racional para acreditar que o Deus teísta não existe. Mais uma vez,
temos de observar que o ateu (ou teísta) amigável não acredita que o teísta (ou ateu)
tem uma crença verdadeira, apenas que pode perfeitamente ter justificação racional
para adoptar essa crença. Talvez a lição final a retirar do nosso estudo do problema do
mal seja que as versões amigáveis do teísmo, do agnosticismo e do ateísmo são todas
preferíveis às respectivas versões hostis.
Revisão
1. Explique a diferença entre a forma lógica do problema do mal e a forma indiciária.
2. Qual é a principal dificuldade da tese central da forma lógica do problema do mal?
3. Qual é a relevância da defesa do livre‐arbítrio para a forma lógica do problema do mal?
4. Explique o argumento indiciário fundamental a favor do ateísmo. O que poderia o teísta
responder a este argumento?
5. Explique a diferença entre o ateísmo (ou teísmo) amigável e o ateísmo (ou teísmo) hos‐
til. Por que razão poderiam as versões amigáveis ser preferíveis às versões hostis?
Estudo complementar
1. Discuta a questão central que opõe o teísta ao ateísta no que diz respeito à forma indi‐
ciária do problema do mal. Qual deles terá, na sua opinião, o melhor argumento?
Explique.
2. Discuta o seguinte argumento:
O facto do sofrimento no mundo não constitui um problema genuíno para o cristia‐
nismo porque, segundo o cristianismo, não se pode fazer qualquer comparação real
entre a angústia momentânea de que se tem experiência nesta vida e a alegria e felici‐
dade eternas prometidas pelo cristianismo na vida futura.
Notas
1. Suponha‐se, por exemplo, que há ocasiões em que o acto de perdoar a alguém uma má
acção é um bem que supera o mal cometido que se está a perdoar. Como é óbvio, nem
135
um ser omnipotente poderia causar este bem sem permitir a má acção que o bem
supera. Mais uma vez, suportar corajosamente a dor pode ser um bem que ocasional‐
mente supera o mal da dor que é corajosamente suportada. Mas é logicamente impos‐
sível que alguém suporte corajosamente uma dor atroz, sem que ocorra uma dor atroz.
2. Pode‐se encontrar uma explicação mais elaborada da defesa do livre‐arbítrio em Alvin
Plantinga, God, Freedom and Evil (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1974).
3. Ver Stephen J. Wykstra, «The Humean Obstacle to Evidential Arguments from Suffer‐
ing: On Avoiding the Evils of Appearance», International Journal for the Philosophy of
Religion 16 (1984): 73–93. Ver também William L. Rowe, «Evil and the Theistic Hypo‐
thesis: A Response to Wykstra», International Journal for the Philosophy of Religion 16
(1984): 95–100.
4. Ver J. L. Schellenberg, Divine Hiddenness and Human Reason (Ithaca e Londres: Cor‐
nell University Press, 1993).
5. Ver Hick: Evil and the God of Love (Nova Iorque: Harper and Row, 1966), em particular
o Capítulo XVII da edição revista, publicada em 1978, God and the Universe of Faiths
(Nova Iorque: St. Martin's Press, 1973) e o Capítulo 4 de Philosophy of Religion, 4.ª ed.
(Englewood Cliffs, NJ: Prentice‐Hall, 1990).
6. Hick, God and the Universe of Faiths, p. 85.
7. Ibid.
8. Ibid., p. 60.
9. Ibid.
10. Hick, Philosophy of Religion, p. 46.
11. Ver, por exemplo, os dois capítulos sobre Hume em G. E. Moore, Some Main Problems
of Philosophy (Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1953).
136
Capítulo 8
Milagres e a mundividência moderna
Em geral, as religiões teístas sublinham a ocorrência de milagres. O cristianismo,
por exemplo, funda‐se na afirmação de que Jesus foi milagrosamente ressuscitado dos
mortos. Os milagres no cristianismo estão também associados aos corpos e relíquias
dos santos e aos santuários. Anualmente, milhões de pessoas rumam a Lourdes, uma
pequena cidade em França, onde se atribuiu curas milagrosas às águas de um santuá‐
rio erguido no lugar onde se acredita que a virgem Maria apareceu repetidamente a S.
Bernardette, em 1858. Neste capítulo procuramos saber se é ou não ainda possível
acreditar em milagres, e, caso seja possível, se é ou não razoável acreditar que ocorreu
um milagre.
Milagres: incompatíveis com uma mundividência científica?
O expoente máximo da perspectiva de que já não é possível acreditar em milagres é
o historiador bíblico e teólogo alemão, Rudolf Bultmann (1884–1976). Bultmann argu‐
menta que os milagres pertencem a uma imagem pré‐científica do mundo, em que o
mundo natural é invadido por seres sobrenaturais que causam acontecimentos
extraordinários: pessoas ressuscitadas dos mortos ou a transformação da água em
vinho. A ciência e a tecnologia, contudo, deram origem à mundividência moderna,
uma perspectiva da natureza como domínio fechado, autónomo, em que se explica um
acontecimento natural através de outro acontecimento natural. Bultmann pensa que
esta mundividência moldou de tal maneira as pessoas de hoje que já não podem acre‐
ditar em histórias de acontecimentos milagrosos, como os que estão registados na
Bíblia. S. Agostinho acreditava que a doença, pelo menos num cristão, era causada por
demónios. Mas as pessoas modernas dificilmente podem manter tal crença. Atribui‐se
agora as doenças e respectivas curas a causas naturais, como germes e medicamentos.
Como Bultmann observa: «É impossível usar a luz eléctrica e a rádio, tirar partido das
modernas descobertas médicas e cirúrgicas e ao mesmo tempo acreditar no mundo de
espíritos e milagres do Novo Testamento».1
A afirmação de Bultmann é sem dúvida demasiado forte. As pessoas hoje ainda
acreditam em milagres, pelo que é evidentemente possível fazê‐lo. E à medida que
algumas consequências infelizes da tecnologia produzida pela ciência moderna se
fazem sentir, parece haver, quando muito, uma reacção contra a mundividência cientí‐
fica e uma vontade crescente de adoptar maneiras de pensar pré‐científicas. Em res‐
137
posta, Bultmann argumenta que embora haja excepções a esta tese, são relativamente
inimportantes.
Pode‐se evidentemente argumentar que há pessoas hoje em dia cuja confiança na
mundividência científica tradicional foi abalada, e outras primitivas ao ponto de se ade‐
quarem a um pensamento mítico. E há também uma grande diversidade de superstições.
Mas quando a crença em espíritos e milagres degenera em superstição, torna‐se algo
inteiramente diferente daquilo que era enquanto fé genuína. As diversas impressões e
especulações que influenciam as pessoas crédulas aqui e ali são pouco importantes e
nem importa a que ponto as palavras de ordem baratas espalharam uma atmosfera hostil
à ciência. O que importa é a mundividência que os homens absorvem no seu ambiente, e
é a ciência que determina essa mundividência através da escola, da imprensa, da rádio,
do cinema, e de todos os frutos do progresso técnico.2
Segundo Bultmann, O que importa não é ainda haver pessoas que acreditam em
milagres — pessoas que ou vivem em áreas primitivas, relativamente intocadas pela
ciência e pela tecnologia ou vivem no mundo civilizado mas conseguem de alguma
maneira rejeitar a ciência moderna ou mantêm uma existência esquizofrénica, acei‐
tando ao mesmo tempo a ciência moderna e uma crença supersticiosa no milagroso. O
que importa é que a mundividência moderna deixa pouco ou nenhum espaço para
espíritos e milagres. As pessoas de hoje, condicionadas pela ciência e pela tecnologia a
adoptar a mundividência científica, sentem‐se naturalmente inclinadas a só aceitar
uma explicação para acontecimentos na natureza se esta for dada em termos de outros
acontecimentos na natureza. Quando a televisão se avaria ou o automóvel empanca, as
pessoas que vivem numa sociedade moderna não podem levar a sério a ideia de que a
causa foi um demónio. Explica‐se tais coisas em termos de uma falha mecânica ou
eléctrica. Consequentemente, há menos espaço no mundo natural para Deus — menos
espaço, portanto, para a ocorrência de milagres.
Penso que temos de conceder a Bultmann que é mais difícil acreditar em milagres
hoje do que antigamente. Aceitar a ciência moderna é esperar que em geral os aconte‐
cimentos naturais tenham causas naturais. Consequentemente, atribuir‐se‐á menos
acontecimentos à intervenção de forças sobrenaturais no mundo natural. Até aqui
parece inegável. Bultmann, contudo, afirma muito mais. Argumenta que aceitar a
ciência moderna é de alguma maneira comprometer‐se com a rejeição de qualquer
explicação de acontecimentos no mundo natural em termos da actividade de seres ou
poderes sobrenaturais (anjos, deuses, demónios ou outros). Mas esta afirmação mais
forte parece ter pouca ou nenhuma justificação e os factos acerca daquilo em que
acreditam as pessoas civilizadas não conseguem provar a afirmação mais forte de
Bultmann.
138
Uma crença irrazoável
A definição humiana dos milagres
O segundo ataque, muito mais sério, contra os milagres afirma que embora seja
possível acreditar em milagres, nunca é razoável fazê‐lo. A formulação clássica desta
perspectiva ocorre num ensaio famoso de David Hume.3 Neste ensaio, Hume baseia o
seu principal argumento numa certa compreensão do que é um milagre. Contudo,
antes de considerarmos a explicação de Hume sobre o que é um milagre, será útil
observar que a palavra milagre tem pelo menos dois sentidos diferentes. No primeiro
sentido, o seu significado popular, um milagre é um acontecimento benéfico inespera‐
do. Assim, um aluno que não se tenha preparado adequadamente para um exame, ao
receber uma nota suficiente para passar de ano, poderá exclamar: «É um milagre ter
passado no exame!» (Por muito mal preparado que esteja, um aluno que reprova num
exame não diz: «É um milagre ter reprovado no exame!» Porquanto, no sentido popu‐
lar, um acontecimento tem de ser visto como benéfico para que o consideremos um
milagre.) A palavra milagre tem também um significado estrito, e é neste sentido que
Hume usa o termo. Em sentido estrito, um milagre é um acontecimento que satisfaz
duas condições distintas. Em primeiro lugar, é um acontecimento que não teria ocor‐
rido se apenas se devesse a causas naturais; a ordem natural não teria produzido esse
acontecimento. Temos a certeza, por exemplo, de que quem estiver morto durante um
período de tempo considerável, e cujo corpo se encontre em decomposição, não
regressará subitamente à vida. Pois sabemos o suficiente acerca do funcionamento das
causas naturais para saber que se o que acontecer for apenas o resultado causal de for‐
ças naturais, um cadáver permanecerá morto e continuará a decompor‐se. Pelo que
um milagre, em sentido estrito, é, em parte, um acontecimento que não teria ocorrido
apenas pela acção de causas naturais.
A segunda condição exigida para que um acontecimento seja um milagre em senti‐
do estrito é resultar da intervenção directa de Deus ou de algum agente sobrenatural.
Se um acontecimento ocorresse sem qualquer causa natural, se apenas acontecesse
inesperadamente mas sem se se dever à actividade causal de Deus ou de algum agente
sobrenatural, não seria um milagre no sentido que consideramos — embora satisfaça a
condição de ser um acontecimento que não teria ocorrido se se devesse apenas a cau‐
sas naturais. Assim, no sentido estrito, um milagre é um acontecimento que 1) ocorre
mas não ocorreria se se devesse apenas a causas naturais, e 2) ocorre porque foi causa‐
do por Deus ou por qualquer outro agente sobrenatural. Esta é basicamente a explica‐
ção humiana. A própria definição que Hume dá de milagre é: «a transgressão de uma
lei da natureza por uma volição particular da divindade, ou pela intervenção de um
agente invisível».4
139
Objecções à definição de Hume
Será que a caracterização humiana de «milagre» é adequada? As objecções subsu‐
mem‐se em duas classes: as que afirmam que as duas condições de Hume não são sufi‐
cientes para que algo seja um milagre, e as que afirmam que uma ou outra destas con‐
dições não é necessária para que algo seja um milagre. Será instrutivo considerar um
ou dois exemplos de cada género de objecção.
Duas características que frequentemente se associa à ideia de milagre, além das
duas apontadas por Hume, são as seguintes: 3) que um milagre é um acontecimento
surpreendente e impressionante e 4) que um milagre serve uma finalidade importante
e benéfica. As narrativas bíblicas de milagres exibem em geral as características 3 e 4.
A ressurreição de Lázaro (João: 11) é claramente um acontecimento impressionante e
benéfico — pelo menos para Lázaro e suas irmãs. A cura dos dois cegos (Mateus: 9:27‐
31) e a alimentação dos cinco mil a partir de cinco pães e dois peixes (Marcos: 6:35‐44)
também exibem estas duas características. Talvez, portanto, as duas características
básicas de Hume sejam inadequadas. Para que um acontecimento seja um milagre
genuíno tem também de ser impressionante e benéfico. Dado que não serve, tanto
quanto possamos ver, qualquer finalidade benéfica, não chamaríamos seguramente
«milagre» à morte súbita de alguém que corre para impedir uma criança de ser atingi‐
da por um comboio que se aproxima, acabando a criança por ser atingida. E ninguém
chama «milagre» a uma folha se agita muito delicadamente no chão, dado que não ser
de modo algum um acontecimento impressionante ou surpreendente.
À objecção de que um milagre tem de ser impressionante ou surpreendente, Hume
responde:
Um milagre pode ser ou não descobrível pelo homem. Isto não altera a sua natureza
e essência. A ascensão de uma casa ou navio em pleno ar é um milagre visível. A subida
de uma pena, quando o vento carece da mínima força que tal efeito exige, é de um mila‐
gre real, embora não tão perceptível relativamente a nós.5
Suponha‐se que a brisa é suficiente para deslocar uma folha no chão, não mais do
que meio centímetro, que nenhuma outra força natural causa o movimento da folha,
mas que Deus intervém directamente para que a folha percorra de facto a distância de
todo um centímetro. Dificilmente se consideraria este acontecimento, a deslocação de
todo um centímetro pela folha, surpreendente ou impressionante. Contudo, se soubés‐
semos que nenhuma força natural era suficiente para causar o acontecimento, talvez o
considerássemos muito impressionante. Mas se por «acontecimento impressionante
ou surpreendente» entendemos um acontecimento tal que um observador normal
prontamente o reconhece como tal, então a ligeira deslocação da folha não seria mini‐
mamente impressionante ou surpreendente. Analogamente, é isto que acontece com o
140
exemplo humiano da pena que sobe. Um edifício que se erguesse por outros meios que
não os naturais, contudo, seria um acontecimento impressionante e surpreendente.
Pode‐se compreender do seguinte modo a resposta de Hume. Algo pode ser um
milagre mesmo que sejamos incapazes de o reconhecer como tal. Ser impressionante
ou surpreendente pode ser uma condição que um acontecimento tem de satisfazer
para que acreditemos tratar‐se de um milagre, mas não é uma condição que um acon‐
tecimento tem de satisfazer para ser um milagre. Não devemos confundir as condições
que têm de se verificar para que possamos determinar que ocorreu um milagre, com as
condições que têm de se verificar para que seja verdade que ocorreu um milagre.
Hume argumentaria que as condições 3 e 4 são talvez necessárias para que possamos
determinar que ocorreu um milagre, mas, ao contrário de 1 e 2, não têm de se verificar
para que um milagre ocorra. Por outras palavras, podemos distinguir entre milagres
visíveis e invisíveis. Hume dá‐nos as condições suficientes para a ocorrência de um
milagre. As condições 3 e 4 são talvez necessárias para que ocorra um milagre visível,
algo que as pessoas comuns possam considerar um milagre, mas 3 e 4 não são necessá‐
rias para que um acontecimento seja um milagre, dado que não se verificam num
acontecimento que seja um milagre invisível.
Considerámos um exemplo de objecção segundo a qual Hume não apresenta condi‐
ções suficientes para algo ser um milagre. O segundo género de objecção afirma que a
condição humiana segundo a qual um acontecimento tem de ser uma violação de uma
lei da natureza não é uma condição necessária para que algo seja um milagre. R. F.
Holland, por exemplo, sugere o exemplo de uma criança que deambulou para uma
linha ferroviária sem saber que um comboio se aproxima a grande velocidade. O com‐
boio faz uma curva, o que impede o maquinista de ver a criança. Precisamente no
momento certo, o maquinista desmaia, devido a alguma causa natural que nada tem a
ver com a presença da criança nos carris. Ao desmaiar, a sua mão deixa de exercer
pressão na alavanca de controlo, fazendo o comboio parar a alguns metros da criança.
A mãe da criança, observando à distância e incapaz de ajudar, «agradece a Deus o
milagre; que nunca deixa de considerar como tal, embora, como a seu tempo vem a
saber, nada haja de sobrenatural na maneira como os travões do comboio foram
accionados».6
Temos de supor neste exemplo que o acontecimento extraordinário — a paragem
do comboio a apenas alguns metros da criança — se deve inteiramente a causas natu‐
rais. Se a criança não estivesse nos carris, o comboio teria parado exactamente no
mesmo local. Se a criança estivesse nos carris apenas alguns metros mais perto do
comboio, então, sem intervenção divina, teria morrido. Onde está então o milagre?
Onde está a mão de Deus neste acontecimento espectacular? Concedamos que uma
causa natural provocou o desmaio do maquinista. Talvez a mãe acredite que embora o
desmaio se deva a uma causa natural, o facto de o desmaio ter sido tão oportuno, de
não ter ocorrido alguns momentos depois, se deve de alguma maneira à intervenção de
Deus. Tem de se fazer uma certa distinção, parece, entre uma feliz coincidência e um
141
milagre genuíno. E mal tentamos fazer esta distinção, é provável que acabemos nas
duas condições de Hume. Consequentemente, embora possa haver dúvidas acerca da
adequação da caracterização humiana de «milagre», não é claro que qualquer outra
caracterização seja mais adequada.
O argumento contra os milagres
É tempo de considerar o argumento central de Hume contra os milagres. Como
vimos, Hume pensa que nunca é razoável acreditar que ocorreu um milagre. O seu
argumento deriva da primeira das duas condições que um acontecimento tem de satis‐
fazer para ser um milagre:
Um milagre é uma violação das leis natureza; e na medida em que uma experiência
firme e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra um milagre, pela própria natu‐
reza do caso, é tão completa como qualquer argumento baseado na experiência que
imaginar se possa. Porquê pensar que é mais do que provável que todos os homens têm
de morrer; que o chumbo não pode, por si, ficar suspenso no ar; que o fogo consome a
madeira e se extingue com a água; senão porque se considera que estes acontecimentos
concordam com as leis da natureza, sendo preciso uma violação destas leis, ou, por
outras palavras, um milagre, para os impedir […] Mas é um milagre que um morto res‐
suscite; porque isso nunca foi observado, em qualquer época ou país. É forçoso que haja,
portanto, uma experiência uniforme contra cada acontecimento milagroso, de contrário
o acontecimento não seria digno do seu nome.7
A passagem anterior contém o principal argumento de Hume a favor da perspectiva
de que nunca é de facto razoável acreditar que ocorreu um milagre. O argumento, em
termos simples, é o seguinte:
1. Os indícios empíricos a favor de uma lei da natureza são extremamente fortes.
2. Um milagre é uma violação de uma lei da natureza.
Logo,
3. Os indícios empíricos contra a ocorrência de um milagre são extremamente fortes.
Por que razão são sempre extremamente fortes os indícios empíricos a favor de uma
lei da natureza? Pela simples razão de que nunca acreditaríamos que um princípio fos‐
se uma lei da natureza a menos que se observasse constantemente a ocorrência de
determinados acontecimentos na natureza sempre que outras condições na natureza
estejam presentes. O princípio da gravitação, para recorrer a um dos exemplos de
Hume, diz‐nos que o chumbo (ou qualquer corpo pesado) não pode permanecer por si
suspenso no ar. Observou‐se repetidamente a queda de corpos de peso considerável na
direcção da Terra quando largados no ar, sem sustentação. Observações deste género
142
ajudaram a confirmar a nossa crença de que o princípio da gravitação é uma lei da
natureza. Quando um objecto pesado parece ficar suspenso por si em pleno ar (como
acontece durante a actuação de um ilusionista), acreditamos geralmente que há uma
força natural, indetectada por nós, que age sobre o corpo com uma força igual à exer‐
cida pela força gravitacional da Terra. Acreditar no contrário é ir contra a experiência
constante que nos levou a acreditar no princípio da gravitação. Pois a nossa experiên‐
cia anterior diz‐nos que os objectos pesados caem, a menos que haja um objecto ou
força natural que contrarie a acção da força da gravidade sobre o objecto pesado.
Na segunda premissa, Hume afirma que um milagre é uma violação de uma lei da
natureza. E entendemos isto no sentido de que um milagre é um acontecimento que
não se deve a qualquer causa ou força natural. Na verdade, é um acontecimento que
não teria ocorrido se se devesse apenas a causas naturais — dado que a ordem natural
das coisas não teria produzido aquele acontecimento. Quando nos sentiríamos tenta‐
dos a pensar que ocorreu tal acontecimento? Só quando o acontecimento parece
entrar em conflito com a ordem comum da natureza; só quando parece não haver
qualquer causa natural que o explique — um acontecimento como a ressurreição de
um morto, ou a suspensão de um pedaço de chumbo em pleno ar sem a intervenção
de uma força natural contrária à força da gravidade. Se o acontecimento parece con‐
formar‐se ao que acreditamos serem as leis da natureza, então não nos sentiremos ten‐
tados a acreditar que é um milagre.
Hume conclui que os indícios que contribuíram para estabelecer um determinado
princípio como uma lei da natureza estão contra a hipótese de que ocorreu um acon‐
tecimento milagroso. E seguramente que tem razão nisto. Se alguém nos diz que ati‐
rou um pedaço de chumbo ao ar e que este caiu ao chão, não teremos dificuldade em
acreditar que caiu ao chão por causa da experiência constante que temos de objectos
pesados a cair ao chão quando os atiramos ao ar. Experiências constantes como esta
levam‐nos a acreditar que os acontecimentos na natureza têm causas naturais e levam‐
nos a formular princípios como o da gravitação, que especificam essas conexões na
natureza. Mas se a pessoa nos diz que o pedaço de chumbo ficou simplesmente no ar e
que nenhum vento forte ou força natural contrariava a força da gravidade, teremos
muita dificuldade em acreditar que a sua história é verdadeira. Porquanto fazê‐lo seria
acreditar ou que o princípio da gravitação é falso ou que o pedaço de chumbo de
alguma maneira não estava sequer sujeito a forças naturais. Mas como a nossa expe‐
riência favorece firmemente a verdade do princípio da gravitação e a ideia de que o
comportamento de pedaços de chumbo e outros corpos materiais se deve a causas e
forças naturais, temos logo à partida indícios consideráveis contra a história narrada
pela pessoa em causa.
Será que então nunca é razoável acreditar que ocorreu um acontecimento que viola
uma lei da natureza? Hume parece acreditar que é assim. Pois os únicos indícios que
temos a favor de um milagre são os relatos de testemunhas. E Hume pensa que é sem‐
pre mais razoável acreditar que as testemunhas se enganaram do que acreditar que o
143
milagre ocorreu. Dado que contra o relato das testemunhas está toda a nossa expe‐
riência que apoia a lei da natureza que o alegado milagre viola. Além disso, Hume
observa que as testemunhas dos chamados «milagres» são amiúde pessoas ignorantes
e primitivas, que têm uma tendência natural para acreditar em acontecimentos
extraordinários.
Hume não aceita que o testemunho humano possa ser tão abrangente e fidedigno a
ponto de tornar mais do que razoável acreditar que um acontecimento absolutamente
extraordinário ocorreu, um acontecimento que contraria «a ordem habitual da nature‐
za».
Assim, suponha‐se que todos os autores de todas as línguas concordam que, a partir
do dia 1 de Janeiro de 1600, houve uma escuridão total sobre toda a Terra durante oito
dias: suponha‐se que a tradição deste acontecimento extraordinário é ainda forte e enér‐
gica entre as pessoas: que todos os viajantes, regressando de países estrangeiros, nos tra‐
zem relatos da mesma tradição, sem a mínima variação ou contradição: é evidente que
os nossos filósofos de hoje, em vez de duvidar do facto, o deviam aceitar como certo, e
procurar as causas a partir das quais se pode derivá‐lo.8
Mas podemos ver por esta passagem que Hume pensa que a quantidade de teste‐
munhos a favor do acontecimento tem de ser incrivelmente enorme antes de poder
contrabalançar o peso dos indícios contra o acontecimento retirados da nossa expe‐
riência anterior. Só se a falsidade do testemunho for mais milagrosa do que o aconte‐
cimento testemunhado é que Hume se dispõe a acreditar que o acontecimento ocor‐
reu e não que as testemunhas se enganaram. E no que diz respeito às histórias de
milagres do cristianismo e de outras religiões, o parecer de Hume é evidentemente que
o peso dos indícios sugere que as testemunhas estão enganadas.
Uma violação da natureza
Antes de tentarmos avaliar o argumento de Hume contra os milagres, precisamos
de rever a questão de saber ao certo aquilo em que temos de estar preparados para
acreditar se acreditarmos que um acontecimento viola uma lei da natureza. Suponha‐
se que atiramos um pedaço de chumbo ao ar e o observamos atónitos, vendo‐o sus‐
penso em pleno ar durante vários minutos antes de cair lentamente no chão. Há basi‐
camente três alternativas à escolha. Em primeiro lugar, há a possibilidade de uma for‐
ça natural, talvez um vento forte, agir sobre o chumbo com uma força igual à que,
segundo o princípio da gravidade, atrai o chumbo na direcção da Terra. Em segundo
lugar, há a possibilidade de o princípio de gravidade ser falso tal como está formulado
— que uma força natural explique de facto o que acontece ao chumbo, mas seja uma
força que, se o princípio de gravidade fosse verdadeiro, seria insuficiente para manter
o chumbo em pleno ar durante esse período de tempo. Poderíamos então rever o prin‐
144
cípio de gravidade à luz deste novo conhecimento. Por fim, há a possibilidade de que
nenhuma força ou causa natural explique o que acontece ao pedaço de chumbo. Na
primeira alternativa, o que acontece está em concordância com o princípio da gravida‐
de. No segundo caso, o que acontece refuta o princípio de gravidade e mostra que este
não é, como se afirmou, uma lei da natureza. E no terceiro caso o que acontece viola
uma lei da natureza — supondo que o princípio de gravidade é realmente uma lei da
natureza. O terceiro caso não mostra que o princípio de gravidade não é uma lei da
natureza porque as leis da natureza só nos dizem o que tem de acontecer quando o
que acontece se deve inteiramente a forças naturais.
O problema é determinar qual destas três alternativas explica correctamente o facto
de o chumbo permanecer em pleno ar. Presumivelmente, não é muito difícil excluir a
primeira alternativa. Mas como decidimos se este acontecimento extraordinário é ou
não um contra‐exemplo genuíno ao princípio da gravidade (alternativa 2), ou se é ou
não uma violação genuína de uma lei da natureza (alternativa 3)? Bem, se pudéssemos
identificar as forças naturais envolvidas, rever o princípio de gravidade para dar conta
delas, e então causar acontecimentos semelhantes em circunstâncias nas quais estas
forças se verificam, teríamos talvez razões para pensar que a alternativa 2 é a explica‐
ção correcta. Mas se não conseguirmos rever o princípio de gravidade de maneira a
explicar este estranho acontecimento, se não temos como encontrar uma reformula‐
ção que nos permita prever futuras ocorrências de acontecimentos como o que está
em causa, então talvez seja razoável concluir que a permanência do chumbo em pleno
ar durante aqueles escassos minutos foi uma genuína violação de uma lei da natureza,
algo que não se deve de modo algum a qualquer força natural.9
A dificuldade de escolher entre as alternativas 2 e 3 será maior ou menor depen‐
dendo de quão inabitual e impressionante for o acontecimento. Se o corpo de uma
pessoa for desmembrado, deixando‐se as partes em decomposição ao longo de sema‐
nas, então, se ao colocar numa mesa as diversas partes, estas subitamente se reunirem
e a pessoa regressar à vida, em plena saúde, ninguém consideraria sequer provável que
se pudesse explicar tal acontecimento revendo o que consideramos serem as leis da
natureza. Assim parece que há acontecimentos imagináveis que, se ocorressem,
defender‐se‐ia, razoavelmente, tratar‐se de violações das leis da natureza.
Hume argumenta, como vimos, não que um milagre é impossível, mas que nunca é
razoável que um homem sensato acredite que ocorreu um milagre. Porquanto um
milagre é uma violação de uma lei da natureza e como os indícios da experiência a
favor de uma lei da natureza são indícios a favor da perspectiva de que os aconteci‐
mentos que são abrangidos por essa lei se devem a causas naturais, os indícios contra
qualquer milagre serão provavelmente muito fortes. Por outro lado, os únicos indícios
que sustentam um milagre são o testemunho dos que afirmam ter presenciado o acon‐
tecimento. Mas é sempre mais razoável acreditar que as testemunhas se enganaram do
que acreditar que o milagre ocorreu, sobretudo quando consideramos o temperamen‐
to, a falta de instrução e o número das testemunhas de um milagre.
145
As debilidades do argumento de Hume
Penso que há pelo menos duas grandes debilidades no argumento de Hume. A pri‐
meira é que Hume está errado ao sugerir que o único indício a favor de um milagre é o
testemunho dos que afirmam tê‐lo presenciado. Temos de distinguir entre indícios
directos e indirectos a favor da afirmação de que um determinado acontecimento teve
lugar. Se regresso ao meu acampamento e descubro que a geleira está danificada, a
comida desapareceu e o acampamento está em desordem geral, uma colega campista
poderá dizer‐me que viu um urso passar pelo acampamento. O seu testemunho é um
indício directo de que um urso esteve no meu acampamento. Mas a geleira danificada, a
comida desaparecida e a confusão geral podem também ser indícios de que esteve um
urso no meu acampamento. Pois são factos que se pode explicar melhor (e talvez até
exclusivamente) pela hipótese de que um urso passou de facto pelo meu acampamento.
Indícios deste último género são indícios indirectos e Hume não considerou a possibili‐
dade de os nossos indícios a favor de um milagre incluírem não só relatos de testemu‐
nhas (indícios directos) mas também muitos factos que se explica melhor pela hipótese
de que ocorreu um milagre. Na verdade, pode dar‐se o caso de os indícios indirectos a
favor de um milagre serem mais fortes do que os directos.
Temos um exemplo na narrativa da ressurreição na religião cristã. O testemunho
directo a favor deste acontecimento parece‐me muito frágil […] Mas os indícios indirectos
são muito mais fortes. Temos o testemunho de que os discípulos estavam extremamente
deprimidos na altura da crucifixão; que tinham muito pouca fé no futuro; e que, após
algum tempo, esta depressão desapareceu e passaram a acreditar ter provas de que o seu
senhor ressuscitara dos mortos. Ora, nenhum destes alegados factos é minimamente
bizarro ou improvável, e temos portanto pouca justificação para não os aceitar com o tes‐
temunho que nos dão. Mas tendo feito isto, enfrentamos o problema de explicar os factos
que aceitámos. O que fez os discípulos acreditarem, ao contrário da sua convicção ante‐
rior, e apesar de se sentirem deprimidos, que Cristo ressuscitara dos mortos? Evidente‐
mente, uma explicação é a de que ele efectivamente ressuscitou. E esta explicação dá tão
bem conta dos factos que podemos no mínimo afirmar que os indícios indirectos a favor
10
do milagre são muito mais fortes do que os directos.
A segunda objecção é que Hume seguramente sobrestimou o peso que se deve dar à
experiência anterior a favor de um princípio que se pensa ser uma lei da natureza. A
experiência de uma excepção a um princípio fortemente sustentado pela experiência
anterior levou frequentemente à revisão do princípio, de maneira a explicar a excepção.
Mas na esteira do argumento de Hume, parece mais razoável concluir que a excepção
não ocorreu de facto, porquanto entra em conflito com a acumulação de experiência
anterior que sustenta o princípio. Como C. D. Broad observa,
146
Evidentemente, considerou‐se que muitas proposições eram leis da natureza por causa de
uma experiência invariável a seu favor, mas então observou‐se excepções, e por fim deixou
de se ver estas proposições como leis da natureza. Mas a primeira excepção relatada esta‐
va, a quem quer que não a tivesse observado por si, exactamente na mesma posição que a
11
narrativa de um milagre, se Hume tiver razão.
A ideia geral é que na aferição que Hume faz dos indícios, é difícil compreender
como alguém poderia razoavelmente acreditar que ocorreu uma excepção a uma supos‐
ta lei da natureza, porquanto a suposta lei terá a seu favor uma experiência invariável. É
evidente, contudo, que as excepções às supostas leis ocorrem e é também evidente que
as pessoas razoáveis revêem em consonância os seus princípios científicos. É portanto
evidente que ao esforçar‐se por atacar os milagres, Hume fez pender a balança tão for‐
temente a favor da experiência invariável que sustenta uma suposta lei da natureza que
fez parecer irrazoável a prática razoável dos cientistas de rejeitar e rever supostas leis à
luz de excepções.
Juntando estas duas objecções ao argumento de Hume, é justo afirmar que excluiu da
sua explicação um tipo importante de indícios a favor de milagres (indícios indirectos)
e, ao mesmo tempo, sobrestimou grosseiramente o peso que se deve dar à experiência
anterior na sustentação de um princípio que se pensa ser uma lei da natureza. Continua
a ser verdade, contudo, que uma pessoa razoável exigirá indícios bastante fortes antes
de acreditar que uma lei da natureza foi violada. É fácil acreditar na pessoa que afirmou
ter visto a água correr pelo outeiro abaixo, mas é bastante difícil acreditar que alguém
viu a água correr pelo outeiro acima.
Acreditar na intervenção divina
A nossa preocupação foi o argumento de Hume de que é sempre mais razoável acre‐
ditar que as testemunhas se enganaram do que acreditar na efectiva ocorrência de um
acontecimento milagroso. O seu argumento, como vimos, diz respeito apenas à primei‐
ra parte da definição de milagre — que se trata de um acontecimento que viola uma lei
da natureza. Temos de recordar, contudo, que para ser um milagre um acontecimento
tem não só de ser uma violação de uma lei da natureza, como também de se dever à
actividade de Deus. Como vimos, uma coisa é um acontecimento não se dever a qual‐
quer causa ou força natural e outra completamente diferente é dever‐se a uma causa
12
sobrenatural. Em resposta a Hume, argumentámos que em determinadas circunstân‐
cias seria razoável acreditar que ocorreu um acontecimento que não se deve a qualquer
força ou causa natural. Mas tem de se reconhecer que isto não significa que é razoável
acreditar que ocorreu um milagre. Pois há ainda a questão de o acontecimento se dever
ou não à actividade de Deus. Que razões, poder‐se‐ia perguntar, teríamos ou descobri‐
ríamos para pensar que o acontecimento em causa se deve à intervenção de Deus?
147
Se temos já boas razões para acreditar que Deus existe e que exerce uma vigília provi‐
dencial sobre a sua criação, então podemos ter boas razões para pensar que uma viola‐
ção particular de uma lei da natureza se deve a Deus. Pois o próprio acontecimento e as
circunstâncias em que ocorre podem ser exactamente o que esperaríamos no caso de
Deus existir e de exercer uma vigília providencial sobre a sua criação. Na verdade, desde
que tenhamos razões para acreditar que Deus existe e vigia providencialmente a sua
criação, a ocorrência esporádica de milagres pode ser aquilo que seria razoável esperar.
Se não temos qualquer razão para acreditar que Deus existe, será muito mais difícil
descobrir razões para pensar que uma violação particular de uma lei da natureza se deve
à actividade de Deus. Pois teríamos então de ter razões para pensar que a violação é ela
própria um indício a favor da existência de Deus. E se é o Deus teísta que nos preocupa,
13
dificilmente parece possível que isto seja assim.
Neste capítulo ocupámo‐nos de três questões: 1) Que condições um acontecimento
tem de satisfazer para ser um milagre genuíno? 2) Poderá a mundividência que resulta
do crescimento da ciência e da tecnologia tornar as pessoas de hoje incapazes de acredi‐
tar em milagres? 3) Será em circunstância alguma razoável acreditar na ocorrência de
um milagre genuíno? No que diz respeito à primeira questão, seguimos a definição de
Hume em termos de a) ser uma violação de uma lei da natureza e b) dever‐se à activida‐
de directa de Deus. Em resposta à questão 2, embora admitindo que é hoje mais difícil
atribuir algum acontecimento na natureza a uma causa sobrenatural, argumentei que a
mundividência moderna não torna impossível a crença em milagres. No que diz respei‐
to a 3, ocupámo‐nos em grande medida do argumento clássico de Hume contra a razoa‐
bilidade da crença na ocorrência de qualquer acontecimento que viole uma lei da natu‐
reza. Concluímos que o seu argumento não é inteiramente bom porque ignora a possi‐
bilidade de haver indícios indirectos fortes a favor da ocorrência de um acontecimento e
exagera a importância da uniformidade da experiência anterior como indício contra a
ocorrência de um acontecimento milagroso. Concluí que é perfeitamente possível haver
circunstâncias em que seria razoável acreditar na ocorrência de uma violação de uma lei
da natureza. Vimos, contudo, que é razoável acreditar que só é razoável acreditar na
ocorrência de um milagre genuíno se for razoável acreditar simultaneamente que ocor‐
reu uma violação de uma lei da natureza e que a violação se deve à intervenção directa
de Deus. Se temos boas razões para acreditar que Deus existe, então, em determinadas
circunstâncias poderá ser razoável acreditar que tal violação se deve à actividade de
Deus. Mas na ausência de boas razões a favor da existência de Deus, é muitíssimo
improvável que uma violação das leis da natureza, e as circunstâncias em que tal ocorre,
nos dêem justificação para inferir que o Deus teísta existe e que causou essa violação.
Revisão
1. Por que razões pensa Bultmann que as pessoas de hoje não podem acreditar em mila‐
gres? Serão as suas razões convincentes?
148
2. Explique a noção humiana de milagre e indique algumas objecções que é possível levan‐
tar‐lhe.
3. Qual é o argumento central de Hume a favor da perspectiva de que nunca é razoável
acreditar que ocorreu um milagre?
4. Que debilidades se pode encontrar no argumento de Hume?
5. Se se pode mostrar que ocorreu uma violação de uma lei da natureza, que outras razões
temos de ter antes de podermos chamar «milagre» a essa violação? Fará diferença ter‐
mos ou não à partida boas razões para acreditar que Deus existe?
Estudo complementar
1. Alguns teólogos defendem que não se devia encarar os milagres como violações das leis
da natureza; ao invés, devia‐se entendê‐los como acontecimentos em que alguém tem
experiência da acção de Deus. Discuta esta perspectiva acerca dos milagres e compare‐a
com a que se elaborou ao longo deste capítulo.
2. Suponha que Hume tem razão ao pensar que na prática nunca é razoável acreditar que
ocorreu um milagre. Que relevância teria esta perspectiva para o teísmo tradicional?
Teríamos justificação para rejeitar o teísmo ou apenas para o modificar ligeiramente?
Explique.
Notas
1. Rudolf Bultmann, Kerygma and Myth (Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 1961), p.
5. Sublinhados meus.
2. Ibid., p. 5.
3. O ensaio «Sobre os Milagres» aparece como Secção X do Enquiry Concerning Human
Understanding e está nas páginas 109‐131 da edição Selby‐Bigge dos Enquiries de Hume,
2ª ed. (Londres: Oxford University Press, 1902) [Investigação Sobre o Entendimento
Humano, trad. João Paulo Monteiro, Lisboa: INCM, 2002). A explicação que darei,
embora derivada do ensaio de Hume, não pretende abranger as questões problemáticas
que surgiram nas diversas interpretações deste ensaio. Para uma explicação de algumas
destas questões, ver Antony Flew, Hume’s Philosophy of Belief (Londres: Routledge &
Kegan Paul Lda., 1961), Capítulo VIII.
4. Hume, Enquiries, p. 115.
5. Ibid.
6. R. F. Holland, «The Miraculous», American Philosophy Quarterly (1965), pp. 43‐51.
7. Hume, Enquiries, pp. 114‐115.
8. Ibid., pp. 127‐128.
9. Para uma explicação mais detalhada segundo esta orientação, ver R. G. Swinburne,
«Miracles», The Philosophical Quarterly XVIII, n.º 73 (1968), pp. 320‐328.
10. C. D. Broad, «Hume’s Theory of the Credibility of Miracles», reimpresso em Alexander
Sesonske e Noel Fleming, orgs., Human Understanding (Belmont, CA: Wadsworth,
149
1965), pp. 91‐92. O ensaio de Broad foi publicado originalmente em Proceedings of the
Aristotelian Society XVII (Londres, 1916‐1917), pp. 77‐94.
11. Broad, «Hume’s Theory», p. 93.
12. Um acontecimento pode violar uma lei da natureza não tendo qualquer causa natural e
ainda assim não ser um milagre em virtude de não ter uma causa divina. Mas se um
acontecimento se deve apenas à actividade directa de Deus, então, se é um aconteci‐
mento abrangido por uma lei natural, violará também essa lei e será portanto um mila‐
gre.
13. R. G. Swinburne argumentou que pode ser razoável inferir a existência de algum género
de divindade se a violação ocorrer de maneiras e circunstâncias «fortemente análogas»
àquelas em que os acontecimentos ocorrem devido a agentes humanos. Ver o seu «Mila‐
gres», The Philosophical Quarterly XVIII, nº 73 (1968), pp. 320‐328.
150
Capítulo 10
Predestinação, presciência divina e
liberdade humana
Liberdade humana e predestinação divina
Enquanto jovem de dezassete anos convertido a um ramo bastante ortodoxo do
protestantismo, o primeiro problema teológico que me preocupou foi a questão da
predestinação e da liberdade humanas. Li algures a seguinte frase retirada do Credo de
Westminster: «Deus, desde toda a eternidade […] ordenou livre e imutavelmente tudo
o que acontece». Esta ideia atraía‐me em muitos sentidos. Parecia exprimir a majesta‐
de e poder de Deus sobre tudo aquilo que criara. Também me levou a adoptar uma
perspectiva optimista sobre os acontecimentos da minha vida que me pareciam maus
ou infelizes, assim como das vidas alheias. Pois via‐os como se Deus os tivesse planea‐
do antes da criação do mundo — pelo que teriam de servir um objectivo benéfico que
eu desconhecia. Pensava que também a ocorrência da minha própria conversão teria
de estar predestinada, tal como a incapacidade de outros para se converterem teria de
estar igualmente predestinada. Mas nesta fase das minhas reflexões, esbarrei numa
dificuldade, que me fez pensar mais arduamente do que antes em toda a minha vida.
Pois também acreditava ter escolhido Deus pelo meu livre‐arbítrio, e que cada um de
nós é responsável por escolher ou rejeitar o caminho de Deus. Mas como poderia eu
ser responsável por uma escolha que Deus predestinara desde a eternidade que eu
faria naquele momento particular da minha vida? Como pode dar‐se o caso de aqueles
que rejeitam o caminho de Deus o fazerem por livre‐arbítrio, se Deus, desde a eterni‐
dade, os destinou a rejeitar este caminho? O próprio credo de Westminster parece
reconhecer esta dificuldade. Pois na linha seguinte lê‐se: «No entanto […] por este
meio nenhuma violência se exerce sobre a vontade das criaturas».
Durante algum tempo aceitei simultaneamente a predestinação divina e a liberdade
e responsabilidade humanas. Ainda que não conseguisse ver como ambas podiam ser
verdadeiras, sentia que ambas podiam ser verdadeiras, pelo que as aceitei com base na
fé. Mas quanto mais pensava no assunto mais me parecia que isso não podia ser. Isto é,
cheguei à perspectiva, correcta ou incorrectamente, de que não só era incapaz de ver
como ambas podiam ser verdadeiras como conseguia ver que não podiam ambas ser
verdadeiras. Abandonei lentamente a crença de que Deus decretara desde a eternidade
tudo o que acontece. Ao invés, adoptei a perspectiva de que Deus sabe desde a eterni‐
166
dade tudo o que vem a acontecer, incluindo as nossas escolhas e acções livres, mas que
essas escolhas e acções não estavam predestinadas.
O que eu não sabia então era que os tópicos da predestinação, da presciência divina
e da liberdade humana tinham sido o centro da reflexão filosófica e teológica durante
séculos. Neste capítulo, iremos contactar com as diversas perspectivas que resultaram
destes séculos de esforço intelectual, alargando assim a nossa compreensão do concei‐
to teísta de Deus e de um dos problemas que lhe está associado.
Escolha ou arbítrio livres
Talvez seja melhor começar pela ideia de liberdade humana. Porquanto, como
veremos, esta ideia foi compreendida de duas maneiras muito diferentes, e a maneira
que adoptarmos faz muita diferença para o tópico em causa. Segundo a primeira ideia,
agir livremente consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer. Se o leitor quer sair do
quarto mas o impedem, pela força, de o fazer, certamente concordamos que ficar no
quarto não é algo que o leitor faça livremente. Não fica no quarto de livre vontade
porque isso não é o que escolheu ou quis fazer; trata‐se de algo que acontece contra a
sua vontade.
Suponha‐se que aceitamos esta primeira ideia de liberdade humana, segundo a qual
agir livremente consiste em fazer o que se quer ou escolhe fazer. O problema da pre‐
destinação divina e da liberdade humana acaba então por não ser um grande problema
sequer. Por que não? Bem, para tomar o exemplo da minha conversão juvenil: esta foi
livre se foi algo que quis fazer, que escolhi fazer e que não fiz contra a minha vontade.
Suponhamos, como creio que seja verdade, que a minha conversão foi algo que escolhi
e que quis fazer. Haverá alguma dificuldade em acreditar também que desde a eterni‐
dade Deus decretou que naquele momento particular da minha vida eu me converte‐
ria? Não parece. Porquanto Deus podia simplesmente ter predestinado também que
naquele momento particular da minha vida eu quereria escolher Cristo, quereria seguir
o caminho de Deus. Sendo assim, portanto, segundo a nossa primeira ideia de liberda‐
de humana, o meu acto de conversão foi um acto livre da minha parte e foi simulta‐
neamente predestinado por Deus desde a eternidade. Na nossa primeira ideia de
liberdade humana, portanto, não parece haver qualquer conflito real entre a doutrina
da predestinação divina e a liberdade humana.
Será correcta a primeira ideia de liberdade humana? Uma razão para pensar que
não foi dada pelo filósofo inglês John Locke (1632–1704). Locke pede que suponhamos
que se leva um homem enquanto dorme para um quarto. A porta, que é a única saída
do quarto, é então firmemente trancada a partir do exterior. O homem não sabe que a
porta está trancada, não sabe, portanto, que não pode abandonar o quarto. Acorda, dá
consigo no quarto, olha em volta, e repara que há pessoas amigáveis, com quem gosta‐
ria de conversar. Assim, decide ficar no quarto em vez de sair.1
167
O que diremos deste homem? Será que ficar no quarto é algo que fez livremente?
Bom, segundo a nossa primeira ideia de liberdade humana, parece que sim. Pois ficar
no quarto é o que ele quer fazer. Pondera a hipótese de sair, sem saber que não o pode
fazer, mas rejeita‐a porque prefere ficar no quarto e iniciar uma conversa amigável.
Mas poderemos mesmo acreditar que ficar no quarto é algo que ele faz livremente?
Afinal, é a única coisa que pode fazer. O homem fica no quarto por necessidade, dado
que não tem o poder de sair do quarto. Qual é a diferença entre este homem e um
segundo, colocado de igual modo num quarto, que quer sair mas, sendo incapaz de o
fazer, também permanece no quarto por necessidade? Estará a diferença no facto de o
primeiro homem fazer algo livremente, ao passo que o segundo não? Ou dar‐se‐á
antes o caso de o primeiro homem ter apenas mais sorte do que o segundo? Cada um
faz o que faz (ficar na sala) por necessidade, e não livremente, mas o primeiro homem
tem mais sorte na medida em que aquilo que tem de fazer é exactamente aquilo que
quer fazer. Locke conclui que o primeiro homem não é mais livre do que o segundo,
apenas que tem mais sorte. Pois a liberdade, argumenta Locke, consiste em mais do
que apenas fazer o que se quer ou escolhe; tem também de ser o poder de agir de outra
maneira. E a razão por que nenhum dos homens ficou livremente no quarto é a de não
poderem agir de outra maneira, abandonando a sala.
O poder de agir de outro modo
A segunda ideia de liberdade humana é a de que só fazemos algo livremente se, no
momento imediatamente anterior à acção, tivermos o poder de agir de outra maneira.
E penso que reflectindo um pouco podemos ver que a segunda ideia é mais adequada
do que a primeira. Considere‐se, por exemplo, o envelhecimento. Envelhecer é algo
que fazemos por necessidade e não livremente. O simples facto de alguém preferir
envelhecer, querer envelhecer, não basta para que seja verdade que a pessoa envelhece
livremente; quando muito, podemos dizer que envelhece graciosamente. Suponha‐se,
todavia, que se descobre e disponibiliza um processo pelo qual cada um de nós tem o
poder de não envelhecer no sentido da decadência física. Embora o tempo continue a
passar, o processo de envelhecimento nos nossos corpos pode agora ser enormemente
retardado. Nestas condições podia ser verdade alguém envelhecer livremente, dado
que não envelheceria por necessidade, estando em seu poder agir de outra maneira.
Tem de se abandonar a primeira ideia de liberdade a favor da segunda, pois é mais
adequada.
É a segunda ideia de liberdade que parece entrar em conflito com a ideia da predes‐
tinação divina. Porquanto se Deus decretou desde a eternidade que me converterei
num determinado momento, num dia em particular, como pode então estar em meu
poder, imediatamente antes desse momento, abster‐me de me converter? Atribuir‐me
tal poder é atribuir‐me o poder de evitar que aconteça algo que Deus decretou desde a
eternidade que iria acontecer. Seguramente, se Deus decretou desde a eternidade que
168
algo irá acontecer, não pode estar em poder de uma criatura qualquer impedir que isso
aconteça. Portanto, se Deus efectivamente decretou desde a eternidade tudo o que
acontece, então nada acontece que possamos impedir de acontecer. Assim, como tudo
o que faço foi predestinado por Deus, nunca está em meu poder agir de outra maneira.
E se nunca está em meu poder agir de outra maneira, então nada faço livremente. A
liberdade humana e a predestinação divina, ao que parece, são inconsistentes entre si.
Se o argumento anterior for bom, e inclino‐me a pensar que é, o teísta tem de
abandonar a crença na liberdade humana ou de abandonar a doutrina da predestina‐
ção divina. E parece razoável que, entre as duas, se prescinda da doutrina da predesti‐
nação. Que Deus tenha o controlo último sobre o destino da sua criação e que Deus
saiba de antemão tudo o que irá acontecer, são ideias que preservam a majestade divi‐
na e garantem um certo grau de optimismo humano, sem exigir que Deus tenha decre‐
tado a ocorrência de tudo o que efectivamente acontece. E pelo menos à primeira vista
não parece que a doutrina da presciência divina entre em conflito com a liberdade
humana. Pelo que talvez seja razoável rejeitar a doutrina da predestinação divina, pre‐
servando a crença na liberdade humana e a doutrina da presciência divina.
O conflito entre a liberdade humana e a presciência divina
Mas se Deus não decretou desde a eternidade tudo o que acontecerá, como lhe é
possível ter conhecimento, desde a eternidade, de tudo o que acontece? Será que a
doutrina da presciência divina não pressupõe a doutrina da predestinação divina?
Decretar que algo vai acontecer num determinado momento seria uma maneira de
Deus saber de antemão que isso acontecerá. Mas não é a única maneira de Deus poder
ter tido tal conhecimento. Temos telescópios, por exemplo, que nos permitem saber o
que acontece em lugares distantes, porque através do telescópio podemos vê‐los acon‐
tecer. Imagine‐se que Deus tem algo semelhante a um telescópio temporal, um teles‐
cópio que permite ver o que acontece em tempos distantes. Girando as lentes foca‐se
uma determinada época, digamos, à distância de mil anos no futuro, e vê‐se os aconte‐
cimentos que ocorrem nessa época. Com esta imagem, podemos explicar a presciência
de Deus sem supor que o seu conhecimento deriva de ter anteriormente decretado
que os acontecimentos em causa ocorrerão. Deus conhece de antemão os aconteci‐
mentos que ocorrerão antevendo‐os e não predestinando‐os. A doutrina da presciência
divina, portanto, não pressupõe a doutrina da predestinação divina. E, como vimos,
não parece haver qualquer conflito entre a presciência divina e a liberdade humana.
Pois embora a predestinação de algo por Deus imponha a ocorrência desse algo, a
presciência que Deus tem de algo não impõe a sua ocorrência. Não é por Deus saber as
coisas de antemão que elas ocorrem; ao invés, é por elas ocorrerem que Deus tem
delas presciência.
Infelizmente, as coisas não são assim tão simples. Há um problema grave acerca da
presciência divina e da liberdade humana. E embora talvez não sejamos capazes de o
169
resolver, será instrutivo tentar compreendê‐lo e ver que diversas «soluções» foram
apresentadas por importantes filósofos e teólogos. Talvez a melhor maneira de come‐
çar seja apresentar o problema na forma de um argumento — um argumento que
começa com a doutrina da presciência divina e termina com a negação da liberdade
humana. Quando compreendermos as principais premissas do argumento, bem como
as razões dadas a seu favor, teremos compreendido um dos maiores problemas com
que os teólogos se têm defrontado desde há quase dois mil anos: o problema de recon‐
ciliar a doutrina da presciência divina com a crença na liberdade humana.
1. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos.
2. Se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está em nosso
poder agir de outra maneira.
3. Se nunca está em nosso poder agir de outra maneira, então não há liberdade humana.
Logo,
4. Não há liberdade humana.
A primeira premissa do argumento exprime uma aparente consequência da doutri‐
na da presciência divina. A terceira premissa afirma apenas uma consequência da
segunda ideia de liberdade, que já considerámos. Segundo essa ideia, só fazemos algo
livremente se, no momento imediatamente antes, está em nosso poder agir de outra
maneira. Assim, concluímos que o acto de ficar no quarto só é livre se, no momento da
decisão de ficar no quarto, a pessoa tem como agir de outra maneira — isto é, pode
abandonar o quarto. Como a porta foi firmemente trancada a partir do exterior, con‐
cluímos que a pessoa não permaneceu livremente no quarto. A premissa 3 apenas reti‐
ra a conclusão lógica a partir desta segunda ideia de liberdade: se nunca está no nosso
poder (no poder de qualquer ser humano) agir de outra maneira, então não há liber‐
dade humana. Como o argumento é claramente válido, a questão pendente diz respei‐
to à premissa 2: se Deus sabe antes de nascermos tudo o que vamos fazer, então nunca
está em nosso poder agir de outra maneira. Por que devemos aceitar esta premissa? É
evidente que se colocássemos a palavra predestina em lugar da palavra sabe a afirma‐
ção seria verdadeira. Mas o propósito de abandonar a predestinação divina a favor da
presciência divina foi que embora
a) Se Deus predestinar antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está em nosso
poder agir de outra maneira.
pareça seguramente verdadeira, não parece verdade que
b) Se Deus souber antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está em nosso
poder agir de outra maneira.
170
Como a premissa 2 é a mesma que b, por que razão devemos aceitar a sua verdade?
Quais são as razões pelas quais o defensor deste argumento espera convencer‐nos de
que 2 é verdadeira?
A premissa 2 é sustentada por um raciocínio complexo, pelo que será melhor
desenvolvê‐lo através de um exemplo. Suponhamos que são 14 horas numa certa Ter‐
ça‐feira e que o leitor tem uma aula de filosofia da religião que começa às 14:30. Os
seus amigos pedem‐lhe que vá com eles ao cinema, à tarde mas, após considerar a
proposta, o leitor consegue de alguma maneira resistir à tentação e decide assistir à
aula em vez e ir ao cinema. São agora 14:45 e o professor discorre acerca da presciência
e do livre‐arbítrio. Algo aborrecido, o leitor deseja agora ter ido ver o filme em vez de
ter vindo assistir à aula. Apercebe‐se, contudo, que apesar de lamentar agora a sua
decisão, nada pode fazer. Claro que pode levantar‐se e apressar‐se para ver o resto do
filme. Mas não pode agora, às 14:45, fazer que não tivesse ido à aula às 14:30, não pode
agora fazer com que na verdade tenha ido ver o filme, ao invés. Pode lamentar o que
fez e decidir nunca cometer novamente o mesmo erro mas, quer queira quer não, está
agora a braços com o facto de ter ido à aula às 14:30, em vez de ter ido ver o filme. Está
a braços com este facto porque é um facto acerca do passado e o passado não está em
nosso poder. A nossa incapacidade de alterar o passado é captada pelo coloquialismo
«Não adianta chorar sobre o leite derramado». Até certo ponto, contudo, o futuro
parece aberto, maleável; podemos fazer que seja de uma maneira ou outra. O leitor
acredita que, por exemplo, na Quinta‐feira, quando houver outra aula, estará em seu
poder ir à aula ou, em vez disso, ir a um cinema. Mas o passado não está aberto, está
fechado, sólido como granito, e não está de modo algum em seu poder alterá‐lo. Como
Aristóteles observou,
Ninguém delibera acerca do passado mas apenas acerca do futuro e do que pode ser
de outra maneira, mas o passado não pode deixar de ter ocorrido; portanto, tem razão
Agathon ao afirmar: «Pois só isto está ausente, mesmo em Deus: tornar inocorridas as
coisas que já ocorreram».2
Há evidentemente uma grande quantidade de factos acerca do passado relativa‐
mente às 14:45 de Terça‐feira. Além do facto de que às 14:30 o leitor foi à aula, há o
facto de ter nascido, o facto de se ter tornado estudante universitário, o facto de terem
ocorrido duas guerras mundiais no século XX — na verdade, todos os factos da histó‐
ria anterior. E o leitor agora sabe que às 14:45 não está em seu poder alterar quaisquer
destes factos. Nada do que possa fazer agora é tal que, caso o fizesse, qualquer destes
factos acerca do passado deixaria de ser um facto acerca do passado. Ponderando na
sua impotência relativamente ao passado, o leitor repara que o professor escreveu no
quadro outro facto acerca do passado:
F. Antes de vocês terem nascido Deus sabia que viriam à aula às 14:30 esta Terça‐feira.
171
Se Deus existe e a doutrina da presciência divina é verdadeira, F é seguramente um
facto acerca do passado, e foi um facto acerca do passado em todos os momentos da
vida do leitor. É um facto acerca do passado agora, às 14:45 de Terça‐feira; era um facto
acerca do passado ontem; e será um facto acerca do passado amanhã. Nesse momento,
o professor volta‐se e pergunta: «Estaria em vosso poder às 14:00 terem‐se baldado à
aula de hoje?» O leitor pensa seguramente que sim — na verdade, lamenta agora não
ter exercido esse poder — pelo que o professor escreve no quadro:
A. Estava em vosso poder às 14:00 fazer outra coisa que não vir à aula às 14:30 esta Terça‐
feira.
Mas agora pensemos um pouco em F e em A. Às 14:00, F é um facto acerca do pas‐
sado. Mas de acordo com A, estava em seu poder às 14:00 fazer algo (por exemplo, ir
ao cinema) tal que se o fizesse, algo que é um facto acerca do passado (F) não seria um
facto acerca do passado. Pois, como é evidente, se o leitor tivesse exercido o seu poder
de se baldar à aula às 14:30, aquilo que Deus sabia antes de o leitor ter nascido não
seria aquilo que efectivamente sabe — que o leitor iria à aula nessa Terça‐feira — mas
algo muito diferente: que faria outra coisa. E isto por sua vez significa que se F é um
facto acerca do passado — como seguramente é, no caso de a doutrina da presciência
divina ser verdadeira — e se A é verdadeira, então estava em seu poder às 14:00 dessa
Terça‐feira alterar o passado; estava em seu poder fazer algo (ir ao cinema) tal que se o
fizesse, o que é um facto acerca do passado (F) não seria um facto acerca do passado.
Se, portanto, o passado nunca está em seu poder, não pode dar‐se o caso de F ser um
facto acerca do passado e estar também em seu poder às 14:00 baldar‐se à aula às 14:30
dessa Terça‐feira.
Acabámos de ver que, dada a doutrina da presciência divina e a afirmação de que
está em nosso poder ter feito algo que não fizemos, segue‐se que o passado está em
nosso poder. Pois dada a doutrina da presciência divina segue‐se que antes de o leitor
ter nascido Deus sabia que o leitor iria à aula às 14:30 esta Terça‐feira. E se agora afir‐
mamos que às 14:00 estava em nosso poder ter feito outra coisa, estamos a pressupor
que às 14:00 estava em seu poder agir de tal modo que antes de ter nascido Deus não
sabia que o leitor iria assistir à aula às 14:30. Mas tínhamos concluído que os factos
acerca do passado não estão em nosso poder. Se mantivermos esta convicção — como
parece que temos de fazer — então temos de concluir que se Deus não sabia antes de o
leitor nascer que iria à aula às 14:30 (esta Terça‐feira), então não estava em seu poder
às 14:00 agir de outra maneira. E, generalizando a partir deste exemplo particular,
podemos concluir que se o passado nunca está em nosso poder, então, se Deus sabe
antes de nascermos tudo o que faremos, nunca está em nosso poder agir de outra
maneira.
Abrimos caminho a custo, através do raciocínio complexo que se pode usar para
sustentar a premissa 2 do argumento concebido para defender o conflito entre a pres‐
172
ciência divina e a liberdade humana. Essa premissa, como o leitor se recorda, afirma
que se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está em nosso
poder agir de outra maneira. Na sua formulação mais simples, o raciocínio apresenta‐
do a favor da premissa 2 consiste em argumentar que se 2 não é verdadeira, então
temos poder sobre o passado. Mas como o passado não está em nosso poder, 2 tem de
ser verdadeira. De
I. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos;
e
II. Por vezes está em nosso poder agir de outra maneira,
segue‐se, de acordo com esse raciocínio, que por vezes está em nosso poder determi‐
nar o passado. Como nunca está em nosso poder determinar o passado, as premissas I
e II não podem ambas ser verdadeiras. Portanto, se I é verdadeira, então II é falsa. Mas
afirmar que I é falsa é apenas afirmar que nunca está em nosso poder agir de outra
maneira. Assim, se I é verdadeira, então nunca está em nosso poder agir de outra
maneira — e isto é exactamente o que afirma a premissa 2.
Algumas soluções para o conflito
Estivemos a ver o que talvez seja o argumento mais forte a favor da perspectiva de
que a doutrina da presciência divina, tal como a doutrina da predestinação divina,
entra fundamentalmente em conflito com a crença na liberdade humana, um argu‐
mento que perturbou os filósofos e os teólogos durante séculos. Chegou a altura de
considerar as diversas «soluções» que foram apresentadas e avaliar os seus pontos for‐
tes e fracos.
O próprio argumento limita o número de soluções possíveis às quatro seguintes:
I. Rejeição da premissa 3: nega‐se que só façamos algo livremente no caso de estar em
nosso poder agir de outra maneira.
II. Rejeição da premissa 2: nega‐se que a presciência divina implique que nunca está em
nosso poder agir de outra maneira.
III. Rejeição da premissa 1: nega‐se que Deus tenha presciência dos acontecimentos do
futuro.
IV. Aceitação da conclusão 4: nega‐se que tenhamos liberdade.
As soluções III e IV são «radicais», pois redundam na negação quer da doutrina da
presciência divina quer da liberdade humana. Nenhum teísta propõe seriamente a
solução IV, pelo que podemos pô‐la de parte tranquilamente. A solução III, contudo,
como veremos, é a solução preferida por diversos teólogos importantes, incluindo
173
Boécio e S. Tomás de Aquino. Consideremos, portanto, as primeiras três soluções para
este problema intrigante.
A definição de liberdade
A primeira solução rejeita a premissa 3 do argumento, alegando que exprime uma
ideia errada da liberdade humana. Como vimos, há duas ideias diferentes de liberdade.
Segundo a primeira, agir livremente consiste apenas em fazer aquilo que se quer ou
escolhe fazer; a liberdade não exige o poder de agir de outra maneira. Quem aceita
esta ideia de liberdade humana não vê, e com razão, qualquer conflito entre ela e a
doutrina da predestinação divina. Uma solução semelhante foi desenvolvida mais ple‐
namente pelo teólogo americano Jonathan Edwards (1703–1758). A adequação desta
solução depende inteiramente de se poder ou não defender, contra as críticas dos filó‐
sofos, a sua ideia acerca daquilo em que consiste a liberdade humana.3 Contudo, tendo
rejeitado esta ideia de liberdade em favor da segunda ideia — a ideia de que só faze‐
mos algo livremente se estiver em nosso poder agir de outra maneira — não insistire‐
mos nesta solução para o problema da presciência divina e da liberdade humana. Pois
dada a segunda ideia de liberdade humana, tem de se aceitar a verdade da premissa 3.
Poder sobre o passado
A segunda solução principal rejeita a premissa 2, negando assim que a presciência
divina implique que nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Na verdade,
esta solução, se for boa, não mostra que 2 é falsa, mas antes que o raciocínio em que se
procurou sustentá‐la não é bom. Que raciocínio é esse? Bom, em termos mais simples:
se 2 não é verdadeira, então está em nosso poder determinar o passado — factos acer‐
ca do que Deus sabia antes de termos sequer nascido. Mas, prossegue o raciocínio,
nunca se dá o caso de estar em poder de alguém determinar o passado; portanto, 2
tem de ser verdadeira. A segunda solução põe em causa a afirmação de que nunca está
em nosso poder determinar o passado, argumentando que temos de facto o poder de
determinar alguns factos acerca do passado, inclusive factos acerca do que Deus sabia
antes de termos sequer nascido. Esta solução foi sugerida pelo influente filósofo do
século XIV, Guilherme de Occam (1285–1349).
A ideia básica em que assenta a segunda solução envolve uma distinção entre dois
tipos de factos acerca do passado: factos que são apenas acerca do passado e factos que
não são apenas acerca do passado. Para ilustrar esta distinção, consideremos dois fac‐
tos acerca do passado, factos acerca do ano de 1941:
f1. Em 1941 o Japão ataca Pearl Harbor.
f2. Em 1941 inicia‐se uma guerra entre o Japão e os Estados Unidos com a duração de qua‐
tro anos.
174
Relativamente ao século XXI, f1 e f2 são ambas apenas acerca do passado. Mas supo‐
nha‐se que consideramos o ano de 1943. Relativamente a 1943, f1 é um facto que é ape‐
nas acerca do passado, mas f2 não é apenas acerca do passado. É um facto acerca do
passado relativamente a 1943, pois f2 é, em parte, um facto acerca de 1941, e 1941 está
no passado de 1943. Mas f2, ao contrário de f1, implica um determinado facto acerca de
1944 — nomeadamente,
f3. Em 1944 o Japão e os Estados Unidos estão em guerra.
Como f2 implica f3, um facto acerca do futuro relativamente a 1943, podemos afir‐
mar que, relativamente a 1943, f2 é um facto acerca do passado, mas não é apenas um
facto acerca do passado. Temos então três factos, f1, f2 e f3, acerca dos quais podemos
afirmar, relativamente ao século XXI, que são factos apenas acerca do passado. Relati‐
vamente a 1943, contudo, só f1 é apenas acerca do passado; f2 é acerca do passado mas
não apenas acerca do passado, e f3 não é sequer acerca do passado.
Tendo ilustrado a distinção entre um facto que, relativamente a um determinado
momento t, é apenas acerca do passado e um facto que relativamente a t não é apenas
acerca do passado, estamos agora em condições de ver a sua importância. Pense‐se em
1943 e nos grupos de pessoas que estavam então no poder, tanto no Japão como nos
Estados Unidos. Não estava em poder de qualquer destes grupos fazer coisa alguma a
respeito de f1. Ambos os grupos podiam lamentar as acções que tornaram f1 um facto
acerca do passado. Mas é abundantemente claro que, entre todas as coisas que em
1943 estes grupos podiam fazer, nenhuma delas é tal que, caso a tivessem feito, f1 não
seria um facto acerca do passado. Não faz qualquer sentido olhar para trás, para 1943, e
afirmar que se ao menos um destes grupos tivesse feito na altura isto e aquilo, então f1
nunca seria um facto acerca do passado. Não faz sentido precisamente porque, relati‐
vamente a 1943, f1 é um facto apenas acerca do passado. Nada que alguém pudesse ter
feito em 1943 teria alterado o facto de que em 1941 o Japão atacou Pearl Harbor.
Mas e quanto a f2, o facto de em 1941 se ter iniciado uma guerra entre o Japão e os
Estados Unidos com a duração de quatro anos, o que podemos dizer? Sabemos que em
1943 nem um nem outro grupo fez coisa alguma que alterasse este facto acerca de 1941.
A questão, contudo, é se houve ou não coisas que não se fez em 1943, coisas que, não
obstante, estavam em poder de um ou outro grupo, ou ambos, de tal maneira que, se
as fizessem, um determinado facto acerca de 1941, f2, não seria sequer um facto. Talvez
não tenha havido. Talvez o ímpeto da guerra fosse tal que nenhum dos grupos tinha o
poder de lhe pôr fim em 1943. Maioritariamente, suponho, pensamos de outra manei‐
ra. Pensamos que provavelmente houve determinadas acções que não se realizou mas
que um ou outro grupo podia ter realizado em 1943, acções que, se tivessem sido reali‐
zadas, teriam posto fim à guerra em 1943. Se aquilo que pensamos ser verdade o é de
facto, então estava em poder de um ou mais grupos, em 1943, determinar um facto
acerca do passado; estava em seu poder em 1943 fazer algo tal que, se o tivessem feito,
175
um determinado facto acerca de 1941, f2, não seria um facto acerca de 1941. A razão
fundamental por que, em 1943, f2 pode ter estado em poder destes grupos, ao passo
que f1 seguramente não estava, é que, ao contrário de f1, f2 não é apenas acerca do pas‐
sado, no que diz respeito a 1943, porquanto f2 implica um determinado facto acerca de
1944 — que em 1944, o Japão e os Estados Unidos estão em guerra (f3).
O raciocínio anterior sugere que a nossa convicção de que não podemos alterar o
passado é seguramente verdadeira, no que diz respeito a factos que são apenas acerca
do passado. Os factos que são acerca do passado, mas não apenas acerca do passado,
contudo, podem não estar além do nosso poder de afectar. E Occam viu que os factos
acerca da presciência divina em que se baseia a negação da liberdade humana são fac‐
tos acerca do passado, mas não apenas acerca do passado. Considere‐se novamente o
facto de que, antes de o leitor nascer, Deus sabia que iria estar na aula às 14:30 esta
Terça‐feira. Queremos acreditar que às 14:00 estava em seu poder agir de outra manei‐
ra, baldando‐se à aula das 14:30. Atribuir‐lhe este poder implica que estava em seu
poder às 14:00 afectar um facto acerca do passado, o facto de que antes de o leitor ter
nascido Deus sabia que o leitor ia estar na aula às 14:30. Este facto acerca do passado,
contudo, não é, relativamente às 14:00, um facto apenas acerca do passado. Pois impli‐
ca relativamente às 14:00 um facto acerca do futuro — nomeadamente, que às 14:30 o
leitor está na aula. E a solução que estamos explorando defende que estava em seu
poder alterar esse facto acerca do passado, se é que às 14:00 estava em seu poder, como
acreditamos que estava, ter ido ao cinema em vez de ir à aula. Pois o leitor tinha o
poder de fazer algo tal que, caso o fizesse, algo que até então era um facto acerca de
um momento anterior ao seu nascimento não seria sequer um facto; ao invés, seria um
facto que, antes de o leitor nascer, Deus sabia que o leitor não estaria na aula às 14:30.
Como é óbvio, haverá ainda muitos factos acerca da presciência divina que não estão
em poder do leitor: todos aqueles factos, por exemplo, que relativamente ao momento
em que se encontra, são factos apenas acerca do passado. O próprio facto que poderia
estar em seu poder às 14:00 — o facto de que, antes de ter nascido, Deus sabia que o
leitor estaria na aula às 14:30 — é, às 14:45, enquanto está sentado na aula a lamentar
não ter ido ao cinema, um facto que não pode então (às 14:45) estar em seu poder,
porque às 14:45 é um facto apenas acerca do passado. E há muitos factos envolvidos na
presciência divina, que não são apenas acerca do passado, mas que, não obstante, o
leitor não pode alterar, pois os factos que pressupõem acerca do futuro ultrapassam o
seu poder. Por exemplo, Deus sabia antes de o leitor nascer que o Sol nasceria ama‐
nhã. Este facto acerca do passado não é apenas acerca do passado porque implica um
facto acerca de amanhã, que o Sol nascerá. Não obstante, é um facto que o leitor não
pode alterar.
Estivemos a considerar a segunda solução para o problema da presciência divina e
da liberdade humana. Como vimos, esta solução consiste em negar o raciocínio que
sustenta a segunda premissa do argumento pelo qual se desenvolveu o problema, a
premissa que afirma que se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos, nunca
176
está em nosso poder agir de outra maneira. Segundo o raciocínio que sustenta esta
premissa, dada a presciência divina, só está em nosso poder agir de outra maneira se
está em nosso poder alterar algum facto acerca do passado, um facto acerca do que
Deus sabia antes de termos nascido. A solução que estivemos a considerar aceita este
ponto do raciocínio apresentado a favor da premissa 2, mas nega o seguinte: que o
passado nunca está em nosso poder. Daqui se argumenta que alguns factos acerca do
passado não são apenas acerca do passado, que alguns desses factos podem estar em
nosso poder, e que os factos acerca da presciência divina usados no raciocínio que sus‐
tenta a premissa 2 são disso exemplos. Assim, de acordo com a segunda solução prin‐
cipal, não temos boas razões para aceitar a segunda premissa do argumento que parte
da presciência divina para concluir a negação da liberdade humana. E sem tais razões,
tem ainda de se mostrar uma dificuldade real em defender simultaneamente que Deus
sabe antes de nascermos tudo o que faremos e que por vezes temos o poder de agir de
outra maneira.
A negação da presciência
A terceira e última solução que consideraremos rejeita a premissa 1 do argumento,
negando consequentemente que Deus tenha presciência dos acontecimentos do futu‐
ro. Mais atrás chamei «radical» a esta solução porquanto, ao contrário das primeiras
duas, não procura reconciliar a presciência divina com a liberdade humana, parecendo
antes negar que haja sequer presciência. Todavia, como veremos, esta foi a solução
preferida por muitos teólogos importantes na tradição religiosa ocidental.
A terceira solução tem duas formas diferentes. A primeira é que as afirmações acer‐
ca de determinados acontecimentos do futuro, que poderão ocorrer ou não, não são
verdadeiras nem falsas; tornam‐se verdadeiras (ou falsas) quando os acontecimentos a
que se referem ocorrem efectivamente (ou não ocorrem). Por exemplo, agora, a afir‐
mação «Você assistirá a uma aula numa determinada hora, num determinado dia da
próxima semana» não é, na perspectiva em causa, verdadeira nem falsa. Na próxima
semana, naquela hora daquele dia em particular, a afirmação tornar‐se‐á verdadeira se
o leitor for à aula e falsa se não for. Desta perspectiva a respeito das afirmações sobre o
futuro, normalmente atribuída a Aristóteles, resulta que Deus não sabe agora se o lei‐
tor vai ou não assistir à aula naquela hora da próxima semana, que não tem presciên‐
cia de tais acontecimentos do futuro. Porquanto só há conhecimento acerca do que é
verdade e, se as afirmações acerca do futuro não são verdadeiras nem falsas, não
podem ser objecto de conhecimento.
A forma mais amplamente aceite da terceira solução assenta na ideia de que Deus é
«eterno» no segundo dos dois sentidos que apresentámos no Capítulo 1. Aí vimos que
«ser eterno», no primeiro sentido do termo, é ter duração infinita em ambas as direc‐
ções temporais. No segundo sentido, contudo, «ser eterno» é existir fora do tempo e,
portanto, independentemente da lei fundamental do tempo, segundo a qual a existên‐
177
cia de tudo o que está no tempo, mesmo um ser perpétuo, divide‐se em partes tempo‐
rais. Como escreveu Boécio,
Pois tudo o que vive no tempo vive no presente, procedendo do passado para o futuro, e
no tempo nada é constituído de tal modo que possa abarcar de uma só vez todo o âmbi‐
to da sua vida. Não chegou ainda ao amanhã e já perdeu o ontem; mesmo a vida deste
dia é vivida em cada momento transitório, passageiro.4
Por contraste às coisas no tempo, concebe‐se que a vida infinita, interminável, de
Deus lhe é inteiramente presente, toda de uma vez. Como tal, Deus tem de estar com‐
pletamente fora do tempo. Pois, como acabámos de ver, a vida de tudo o que está no
tempo divide‐se em partes temporais, sendo que num dado momento apenas uma
destas partes temporais pode estar presente a esse ser.
A ideia de que Deus é eterno no sentido de estar fora do tempo é directamente rele‐
vante para a doutrina da presciência divina. Porquanto a noção de presciência sugere
naturalmente um ser localizado num dado momento no tempo, que sabe algo que irá
ocorrer noutro momento posterior no tempo. Assim, dizemos que Deus sabe num
momento antes de o leitor nascer o que o leitor faria às 14:30 desta Terça‐feira. Mas se
Deus está fora do tempo, então não podemos afirmar que tem presciência dos aconte‐
cimentos do futuro, se com isso pressupomos que Deus está localizado num dado
momento do tempo e que nesse momento sabe o que irá ocorrer num momento poste‐
rior. Segundo Boécio, Tomás e muitos outros teólogos que defendem a eternidade de
Deus no segundo sentido, nada acontece no tempo que Deus desconheça. Todos os
momentos no tempo estão sempre presentes a Deus no mesmo sentido em que aquilo
que acontece neste preciso momento, no nosso campo de visão, nos está presente. O
conhecimento que Deus tem do que para nós é o passado e o futuro é exactamente
como o conhecimento que podemos ter de algo que nos acontece no presente. Estan‐
do acima do tempo, Deus apreende todo o tempo num relance, tal como nós, que
estamos no tempo, podemos apreender com um relance algo que acontece no presen‐
te. Referindo‐se ao conhecimento que Deus tem do que ocorre no tempo, diz‐nos Boé‐
cio:
Abrange o leque infinito do passado e do futuro e contempla todas as coisas na sua
compreensão simples como se ocorressem agora. Assim, se se pensar na presciência pela
qual Deus distingue todas as coisas, considerar‐se‐á, correctamente, que não se trata de
presciência dos acontecimentos do futuro, mas de conhecimento de um presente imutá‐
vel. Por esta razão, chama‐se «providência» à presciência divina em vez de «previsão»,
porque está acima de todas as coisas inferiores e a todas observa a partir de cima.5
Segundo Boécio, Deus, estritamente falando, não tem presciência, pois a sua posi‐
ção não é a de quem sabe antecipadamente que algo vai acontecer. E no entanto, Deus
sabe tudo o que ocorreu, ocorre e ocorrerá. Mas sabe‐o do mesmo modo que nós
178
sabemos o que ocorre no presente. Talvez possamos tornar a situação de Deus mais
clara se distinguirmos dois sentidos de presciência: presciência1 e presciência2. Um ser
tem presciência1 de um acontecimento x, digamos, desde que exista num determinado
momento anterior à ocorrência de x e sabe, nesse momento, que x ocorrerá posterior‐
mente. Este é o género de presciência que Deus não pode ter, se for eterno no segundo
sentido, pois nesse caso Deus não existe num determinado momento no tempo,
estando antes inteiramente fora do tempo. Um ser tem presciência2 de um aconteci‐
mento x, digamos, desde que a ocorrência de x esteja presente a esse ser mas de tal
maneira que ocorra depois do momento em que nós (que estamos no tempo) existi‐
mos agora. Sendo Deus eterno no segundo sentido, não pode ter presciência1 de acon‐
tecimento algum, mas isto não o impede de ter total presciência2 de todos os aconte‐
cimentos que, do ponto de vista de quem existe no tempo, estão ainda por vir.
Podemos agora ver como Boécio e Tomás resolvem o problema da presciência divi‐
na e da liberdade humana. Como vimos, o problema é que afirmar simultaneamente as
duas proposições pressupõe que por vezes temos o poder de alterar um facto acerca do
passado, um facto acerca do que, num determinado momento antes de nascermos,
Deus já sabia. Se defendemos que nunca está em nosso poder alterar quaisquer factos
acerca do passado, parece que temos de negar ou a presciência divina ou a liberdade
humana. Boécio e Tomás chamam a atenção para que isto só é um problema genuíno
no caso de se atribuir presciência1 a Deus. Pois se Deus tem presciência1, haverá factos
acerca de um momento no passado que, se temos liberdade humana, teríamos de
poder alterar. Segundo Boécio e Tomás, não podemos atribuir presciência1 a Deus, pois
isso pressupõe que Deus existe no tempo. Deus tem presciência2 de tudo o que está
ainda por vir. Mas a presciência2 não pressupõe a existência de um facto acerca de um
momento do passado. Pois Deus não existe no tempo sequer. A presciência2 que Deus
tem de um acontecimento no tempo não difere realmente do conhecimento que o seu
professor teve às 14:30 de Terça‐feira quando viu o leitor entrar na sala de aula. Nin‐
guém pensa que o conhecimento obtido por ver o leitor entrar na sala de aula anula o
poder que o leitor tinha antes de fazer outra coisa qualquer. De igual modo, a pres‐
ciência2 de Deus, dado observar o tempo a partir de cima e apreender o que no tempo
é futuro mas que é presente do ponto de vista de Deus, não impõe qualquer necessida‐
de sobre aquilo que vê. Pois não há um facto anterior, que envolva o conhecimento
divino e que teria de estar em seu poder, se o leitor tivesse a liberdade para agir de
outra maneira.
Neste capítulo estudámos um dos problemas intemporais do teísmo, o problema da
presciência divina e da liberdade humana, e considerámos detalhadamente as princi‐
pais soluções que surgiram ao longo de séculos de reflexão acerca do problema. Das
três soluções que considerámos, só as duas últimas são defensáveis se, como sugeri, a
primeira assentar numa ideia inadequada da liberdade humana. A última solução,
dado basear‐se na ideia de que Deus existe fora do tempo, padecerá de quaisquer
imperfeições associadas a essa ideia. Alguns filósofos pensaram que a ideia em si é
179
incoerente, e outros argumentaram que embora a ideia possa ser coerente, qualquer
ser que seja eterno no sentido de existir fora do tempo nunca poderia agir no tempo, e,
portanto, não podia criar um mundo ou fazer um milagre — actividades que em geral
se atribui ao Deus teísta. Não é possível, todavia, abordar estes assuntos aqui.6
A segunda solução ajusta‐se bem à ideia de que Deus é eterno no primeiro sentido
apresentado no Capítulo 1, eterno no sentido de ser perpétuo, ter duração infinita em
ambas as direcções temporais. Nesta perspectiva, atribui‐se a presciência a Deus, mas
argumenta‐se que na medida em que agimos livremente temos o poder de alterar
alguns factos acerca do passado. Se tanto a segunda como a terceira soluções forem
boas, então, quer se afirme que Deus é eterno no primeiro sentido quer se afirme que é
eterno no segundo, o problema da predestinação divina e da liberdade humana deixa
de ser insolúvel para o teísmo.
Revisão
1. Explique as duas ideias diferentes de liberdade humana. Qual delas é mais adequada?
Porquê?
2. O que é o problema da presciência divina e da liberdade humana?
3. Explique o raciocínio básico que sustenta a afirmação de que se antes de nascermos
Deus sabe tudo o que faremos, então nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
4. Explique as diversas soluções que se deu ao problema da presciência divina e da liber‐
dade humana.
5. Como usam Boécio e Tomás a ideia de que Deus é eterno, na solução que adoptaram?
Estudo complementar
1. Discuta o seguinte argumento:
Se Deus é eterno no sentido de existir fora do tempo, então nunca poderia agir, por‐
quanto toda a acção ocorre no tempo. Mas se Deus nunca pudesse agir, nunca poderia
criar coisa alguma, perdoar fosse a quem fosse, responder a qualquer oração ou realizar
quaisquer acções que comummente se lhe atribui. Logo, se concebemos Deus como
criador, benevolente, e por aí em diante, não podemos acreditar, sob pena de inconsis‐
tência, que existe fora do tempo.
2. Das diversas soluções para o problema da presciência divina e da liberdade humana,
escolha a que pensa ser a melhor e explique as suas razões para a considerar melhor do
que as outras soluções propostas.
Notas
1. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, livro II, Cap. XXI, par. 10, org.
Peter H. Nidditch (Londres: Oxford University Press, 1975), p. 238. [Ensaio Sobre o
180
Entendimento Humano, trad. Eduardo Abranches de Soveral, Lisboa, Fundação Calous‐
te Gulbenkian, 1999.]
2. Aristóteles, Nicomachean Ethics, VII, 2, 1139b, em The Basic Works of Aristotle, org.
Richard McKeon (Nova Iorque: Random House, 1941). [Ética a Nicómaco, trad. António
C. Caeiro, Lisboa: Quetzal, 2006.]
3. Para uma defesa brilhante da primeira ideia de liberdade, bem como uma resposta às
objecções levantadas contra a mesma, ver Jonathan Edwards, Freedom of the Will, org.
A. S. Kaufman e W. K. Frankena (Indianapolis: The Bobbs‐Merrill Co., 1969).
4. Boécio, The Consolation of Philosophy, prosa VI, trad. Richard Green (Nova Iorque:
The Bobbs‐Merrill Company Inc., 1962).
5. Boécio, The Consolation of Philosophy, prosa VI.
6. Para um estudo excelente destes problemas, ver Nelson Pike, God and Timelessness
(Nova Iorque: Schocken Books Inc., 1970).
181
Glossário de conceitos e ideias importantes
281
Introdução à Filosofia da Religião
Ser impossível: Um ser que não existe e não pode logicamente existir.
Ser necessário: Um ser que existe e não pode logicamente deixar de existir.
Ser possível: Um ser que ou existe ou podia logicamente existir.
Ser que existe no entendimento: Um ser no qual pensamos.
Ser que não está em acto: Um ser que não existe.
Teísmo: Crença na existência de um Deus perfeitamente bom, criador do
mundo, distinto e independente do mundo, omnipotente, omnisciente,
eterno e auto‑existente.
Argumento a posteriori: Argumento tal que nem todas as suas premissas bási‑
cas são proposições a priori (de modo equivalente: pelo menos uma das
suas premissas básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento a priori: Argumento tal que todas as suas premissas básicas são
proposições a priori (de modo equivalente, nenhuma das suas premissas
básicas é uma proposição a posteriori).
Argumento cosmológico: tentativa de derivar a existência de Deus a partir
da existência do universo.
Princípio de não contradição: Para qualquer afirmação e respectiva negação,
P e não P, no máximo uma é verdadeira (de modo equivalente, nenhuma
afirmação pode ser simultaneamente verdadeira e falsa — nada pode,
ao mesmo tempo e no mesmo sentido, ter uma propriedade e carecer
dessa propriedade).
Princípio de razão suficiente: Para tudo o que existe, o facto de essa coisa existir
tem de ter uma explicação; e para qualquer facto positivo acerca de qual‑
quer coisa que exista tem de haver uma explicação para o facto em causa.
Proposição a posteriori: Proposição que só se pode conhecer através da expe‑
riência sensorial.
Proposição a priori: Proposição que se pode conhecer prévia ou indepen‑
dentemente da experiência sensorial.
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Glossário de conceitos e ideias importantes
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Introdução à Filosofia da Religião
284
Glossário de conceitos e ideias importantes
Princípio de credulidade: Se uma pessoa tem uma experiência que parece ser
de x, então, a menos que haja uma razão para pensar de outro modo, é
racional acreditar que x existe.
Tese da unanimidade: Os místicos de diferentes religiões têm basicamente
todos a mesma experiência.
Capítulo 6: Fé e razão
Analogia Deus‑pai: Deus é para os seres humanos como os bons pais são para
os seus filhos, a quem amam. Os bons pais, contudo, fazem o melhor que
podem para confortar e acompanhar os seus filhos quando estes sofrem
por razões que não compreendem.
Ateu amigável: Um ateu que pensa que uma pessoa pode ter justificação
racional para acreditar que o Deus teísta existe.
Ateu hostil: Um ateu que pensa que ninguém tem justificação racional para
acreditar que o Deus teísta existe.
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Introdução à Filosofia da Religião
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Glossário de conceitos e ideias importantes
287
Introdução à Filosofia da Religião
288
Glossário de conceitos e ideias importantes
289
Leitura complementar
Adams, Marilyn, Horrendous Evils and the Goodness of God, Ithaca, Nova
Iorque: Cornell University Press, 1997.
Alston, Williams P., Divine Nature and Human Language: Essays in Philo‑
sophical Theology, Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1989.
Alston, Williams P., Perceiving God: The Epistemology of Religious Expe‑
rience, Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1991.
Behe, Michael J., Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evo‑
lution, Nova Iorque: The Free Press, 1996.
Broad, C.D., Religion, Philosophy and Psychical Research, Nova Iorque:
Humanities Press, 1969.
Byrne, Peter, Prolegomena to Religious Pluralism, Nova Iorque: St. Martin’s
Press, 1995.
Craig, William Lane e Quentin Smith, Theism, Atheism and Big Bang Cos‑
mology, Oxford: Clarendon Press, 1993.
Craig, William Lane, The Kalam Cosmological Argument, Nova Iorque: Bar‑
nes & Noble Books, 1979.
Davis, Stephen T., Logic and the Nature of God, Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1983.
Dembski, W.A., No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be
Purchased Without Intelligence, Lanham, MD: Rowman & Littlefield,
2002.
290
Leitura complementar
291
Introdução à Filosofia da Religião
Pike, Nelson, Religion and Rationality, Nova Iorque: Random House, Inc., 1971.
Plantinga, Alvin, Does God Have a Nature?, Marquette, WI: Marquette
University Press, 1980.
Plantinga, Alvin, God, Freedom and Evil, Nova Iorque: Harper & Row
Publishers, 1974.
Rea, Michael, World Without Design: The Ontological Consequences of
Naturalism, Oxford: Oxford University Press, 2002.
Rowe, William L., Can God be Free?, Oxford: Oxford University Press, 2004.
Rowe, William L., The Cosmological Argument, Princeton University Press,
1975. Reimpresso (com novo prefácio) pela Fordham University Press, 1998.
Smith, Wilfred Cantwell, Towards a World Theology, Filadélfia: Westminster
Press, 1981.
Swinburne, Richard, Será Que Deus Existe?, Lisboa: Gradiva, 1998.
Taliaferro, Charles e Griffiths, Paul J., orgs., Filosofia das Religiões, Lisboa:
Piaget, 2008.
Wainwright, William J., Mysticism: A Study of Its Nature, Cognitive Value
and Moral Implications, Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1981.
Wainwright, William J., Reason and the Heart, Ithaca, Nova Iorque: Cornell
University Press, 1995.
Wainwright, William J., Religion and Morality, Aldenshot, Inglaterra: Ash‑
gate Publishing Co., 2005.
Wierenga, Edward R., The Nature of God: An Inquiry into Divine Attributes,
Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1989.
Yandell, Keith, Christianity and Philosophy, Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1984.
Yandell, Keith, The Epistemology of Religious Experience, Cambridge:
Cambridge University Press, 2004.
292