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extremas-do-planeta
DELEUZE
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Mas não é a mesma coisa que um Rosto em pessoa? O rosto é esta placa nervosa porta-órgãos
que sacrificou o essencial de sua mobilidade global, e que recolhe ou exprime ao ar livre todo
tipo de pequenos movimentos locais, que o resto do corpo mantém comumente soterrados. E
cada vez que descobrimos em algo esses dois pólos — superfície refletora e micromovimentos
intensivos — podemos afirmar: esta coisa foi tratada como um rosto, ela foi "encarada", ou
melhor, "rostificada",e por sua vez nos encara, nos olha... mesmo se ela não se parece com
um rosto. Como o primeiro plano do relógio. Quanto ao rosto propriamente, não se afirmará
que o primeiro plano o trate, faça-o sofrer um tratamento qualquer — não há primeiro plano
de rosto, o rosto é em si mesmo primeiro plano, o primeiro plano é por si mesmo rosto, e
ambos são o afeto, a imagem-afecção.
Em pintura, as técnicas do retrato habituaram-nos a esses dois pólos do rosto. Ora o pintor
apreende o rosto como um contorno, numa linha envolvente que traça o nariz, a boca, a borda
das pálpebras e até a barba e a touca — é uma superfície de rostificação. Ora, ao contrário, ele
opera por traços dispersos tomados na massa, linhas fragmentárias e quebradas que indicam
aqui o estremecimento dos lábios, ali o brilho de um olhar, e que comportam uma matéria
mais ou menos rebelde ao contorno — são traços de rosticidade.1
o que Descartes e Le Brun chamam de admiração, e que indica um mínimo de movimento para
um máximo de unidade refletora e refletida sobre o rosto; e o que chamamos desejo,
inseparável de pequenas solicitações ou impulsões que compõem uma série intensiva expressa
pelo rosto.
De acordo com as circunstâncias, pode-se fazer dois tipos de perguntas a um rosto: em que
você pensa? Ou então: o que há com você, que você tem, o que você sente ou ressente? Ora o
rosto pensa em algo, se fixa em um objeto, e este é o sentido da admiração ou do espanto,
que o wonder inglês conservou. Na medida que pensa em algo, o rosto vale sobretudo por seu
contorno envolvente, sua unidade refletora que eleva a si todas as partes. Ora, ao contrário,
ele prova ou ressente algo, e então vale pela série intensiva que suas partes atravessam
sucessivamente até um paroxismo, cada parte assumindo uma espécie de independência
momentânea.
Na verdade, encontramo-nos diante de um rosto intensivo cada vez que os traços escapam do
contorno, põem-se a trabalhar por sua própria conta e formam uma série autônoma que tende
para um limite ou transpõe um limiar:
L e s P a s sio n s d e l´ A m e , §
encarna-se melhor através de vários rostos simultâneos ou sucessivos, embora baste um único
rosto se ele seriar seus diversos órgãos ou traços. A série intensiva desvenda aqui sua função,
que é passar de uma qualidade à outra, desembocar numa nova qualidade. PAG 105
No entanto, ainda assim não atingimos o âmago do rosto-reflexão. Sem dúvida, a reflexão
mental é o processo pelo qual se pensa em alguma coisa. Mas ela é acompanhada
cinematograficamente por uma reflexão mais radical, que exprime uma qualidade pura,
comum a várias coisas muito diferentes (objeto que a conduz, corpo que a sofre, idéia que a
representa, rosto que tem essa idéia...). Em Griffith os rostos refletores das jovens podem
exprimir o Branco, mas é tanto o branco de um floco de neve retido por um cílio como o
branco espiritual de uma inocência interior, o branco dissolvido de uma degradação moral, o
branco hostil e cortante da banquisa onde a heroína vai vagar (Órfãos da Tempestade). Em
Mulheres Apaixonadas, Ken Russell soube jogar com a qualídade comum entre um rosto
endurecido, uma frigidez interior e uma geleira mortuária. Em suma, o rosto refletor não se
contenta em pensar em algo. Assim como o rosto intensivo exprime uma Potência pura, isto é,
define
se por uma série que nos faz passar de uma qualidade a outra, o rosto reflexivo exprime uma
Qualidade pura, isto é, um "algo" comum a vários objetos de natureza diferente. Em função
disso podemos fazer o quadro dos dois pólos: PÁG 106
Jack aceita seu destino e agora reflete a morte como qualidade comum a sua máscara de
assassino, a disponibilidade da vítima e ao apelo irresistível do instrumento ("the knife blade
gleams..." ). PÁG 107
le afirma que o primeiro plano de Griffith é apenas subjetivo, isto é, diz respeito às condições
da visão do espectador, que permanece separado, e se limita a um papel associativo ou
antecipador. PÁG 107
Consistiria em ter feito séries lntensivas compactas e contínuas, que extravasam qualquer
estrutura binária e ultrapassam a dualidade do coletivo e do individual.
Fica claro que um autor sempre privilegia um dos dois pólos, rosto refletor ou rosto intensivo,
mas se atribui também os meios para alcançar o outro pólo. PÁG 108
Assim, o rosto participa da vida não orgânica das coisas como primeiro pólo do
expressionismo. Rosto estriado, listrado, preso numa rede mais ou menos apertada,
recolhendo os efeitos de uma persiana, de um fogo, de uma folhagem, de um sol através do
bosque. Rosto vaporoso, nebuloso, fumoso, envolto num véu mais ou menos denso. PÁG 109
O afeto é feito desses dois elementos: a firme qualificação de um espaço branco, mas também
a intensa potencialização do que nele vai ocorrer. PÁG 110
O rosto que se posta nesse espaço reflete, portanto, uma parte da luz, mas refrata uma outra
parte. De reflexivo, torna-se intensivo. Temos aí algo único na história do primeiro plano. O
primeiro plano clássico garante uma reflexão parcial na medida em que o rosto olha em
direção diferente da câmera, forçando assim o espectador a relançar-se sobre a superfície da
tela. PÁG 110
Proust falava dos véus brancos, "cuja superposição limita-se a refratar mais ricamente o raio
central e prisioneiro que os atravessa". Ao mesmo tempo que os raios luminosos manifestam
um desvio no espaço, o rosto, isto é, a imagemafecção, sofre deslocamentos, realces na
profundidade rasa, sombreados nas bordas, e entra numa série intensiva se a figura deslizar
rumo a borda escura, ou, inversamente, se a borda deslizar rumo à figura clara. PÁG 110
Vimos os dois pólos do afeto, potência e qualidade, e como o rosto passa necessariamente de
um a outro, dependendo do caso. A esse respeito, o que compromete a integridade do
primeiro plano é a idéia de que ele nos apresenta um objeto parcial, destacado de um
conjunto, ou arrancado a um conjunto do qual faria parte. PAG´112
Quando os críticos aceitam a idéia do objeto parcial, vêem no primeiro plano a marca de um
desmembramento ou de um corte, nos dizendo uns que é preciso reconciliá-lo com a
continuidade do filme, e os outros que ele testemunha, ao contrário, uma continuidade fílmica
essencial. Mas na verdade o primeiro plano, o rosto-primeiro plano não tem nada a ver com
um objeto parcial (exceto num caso que veremos posteriormente). 112
Fugindo, assim que o vemos em primeiro plano, vemos a covardia em pessoa, vemos o
"sentimento-coisa", a entidade. PÁG 113
Em primeiro lugar, há uma grande variedade de primeiros planos-rostos. Ora contorno, ora
traço; ora rosto único, ora vários; ora sucessivamente, ora simultaneamente. PÁG 113
o primeiro plano conserva o mesmo poder, o poder de arrancar a imagem das coordenadas
espácio-temporais para fazer surgir o afeto puro enquanto expresso. PÁG 113
também não cabe distinguir entre planos próximos, americanos e primeiros planos. E por que
uma parte do corpo, queixo, estômago ou ventre seria mais parcial, mais espácio-temporal e
menos expressiva que um traço de rosticidade intensivo ou um rosto inteiro reflexivo? 113
Há afetos de coisas. O "lacerante", o "cortante", ou melhor, o "transpassante" da faca de Jack,
o estripador, é um afeto tanto quanto o pavor que varre seus traços e a resignação que
finalmente se apodera de todo o seu rosto. 113
A segundidade, era onde havia dois por si mesmos. O que é, tal como é, em relação a um
segundo. . PÁG 114
É aí que nasce e se desenvolve a imagem-ação. Mas, por mais íntimas que sejam as misturas
concretas, a primeiridade é uma categoria inteiramente diferente, que remete a um outro tipo
de imagem, com outros signos. Peirce não esconde que a primeiridade seja difícil de definir,
pois é mais sentida do que concebida — ela diz respeito ao novo na experiência, o fresco, o
fugaz e no entanto o eterno. PÁG 115
O afeto é lmpessoal, e se distingue de todo estado de coisas individuado: nem por isto deixa
de ser singular, e pode entrar em combinações ou conjunções singulares com outros afetos. O
afeto é indivisível e sem partes; mas as combinações singulares que forma com outros afetos
constituem por sua vez uma qualidade indivisível, que só se dividirá mudando de natureza (o
"dividual"). O afeto é independente de qualquer espaço-tempo determinado; nem por isso
deixa de ser criado numa história que o produz como o expressado e a expressão de um
espaço ou de um tempo, de uma época ou de um meio (por isto o afeto é o "novo", e novos
afetos estão sempre sendo criados, principalmente pela obra de arte). PÁG 115
Habitualmente são reconhecidas no rosto três funções: ele é individuante (ele distingue ou
caracteriza cada um), é socializante (manifesta um papel social) e é :relacional ou comunicante
(assegura não só a comunicação entre duas pessoas mas também, numa mesma pessoa, o
acordo interior entre seu caráter e seu papel). . PÁG 116
Com efeito, tais funções do rosto supõem a atualidade de um estado de coisas em que pessoas
agem e percebem. A imagem-afecção vai fazê-las derreter, desaparecer. PÁG 116
Não há primeiro plano de rosto. O primeiro plano é o rosto, mas precisamente o rosto
enquanto tendo desfeito sua tripla função. PÁG 116
Assim é a imagemafecção: ela tem por limite o afeto simples do medo, e o apagar dos rostos
no nada. Mas tem por substância o afeto composto pelo desejo e pelo espanto que lhe dá
vida, e o afastar-se dos rostos no aberto, no vivo. PÁG 118