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Revisitando Meus Clássicos: Jards Macalé (1972)

Isolado na serra fluminense, o lendário músico destrincha seu clássico (“misto de João Gilberto
com Jimi Hendrix”) quase 50 anos depois, na estreia do novo quadro do Monkeybuzz

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes


álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

Jards Macalé era um músico em ascensão no início dos anos 1970. Após o compacto Só Morto e
em meio a colaborações com nomes como Nara Leão, Maria Bethânia e Caetano Veloso –
inclusive, eternizado no famoso “Bora, Macal!, dito por Caetano antes do solo em “Nine Out Of
Ten”, de Transa (1972) –, o compositor carioca queria mesmo era gravar o próprio álbum.

A aguardada estreia se dá em 1972, com um álbum homônimo, que trouxe os êxitos “Mal
Secreto” e “Vapor Barato”, consagrados na voz de Gal Costa, além de algumas das
composições mais marcantes de sua obra, como “Revendo Amigos” e “Farinha do Desprezo”.
Mesmo sem guitarras, o disco – agressivo, original, com livres quebras de andamento e dando
voz à subversão dos poetas Torquato Neto, Waly Salomão e José Carlos Capinam – antecipou,
sem querer, a ideia de um Rock genuinamente brasileiro.

Quase cinco décadas depois, em uma entrevista por telefone direto “do meio do mato”, na serra
fluminense, onde faz sua quarentena, o tijucano (e um dos músicos brasileiros mais “fora da
curva” de todos os tempos) ajuda a esmiuçar seu clássico. Um “misto de João Gilberto com Jimi
Hendrix” gravado durante os anos de chumbo da ditadura militar.

Você gravou este disco no período mais duro da ditadura. Ele escancara uma mensagem
forte nas letras e melodias. É um álbum duro, pesado. O que você conta do Jards Macalé
de 1972? Qual é o contexto do álbum?

Em 1972, eu só tinha gravado um compacto duplo [Só Morto], em 1969, e estava tentando
gravar um disco. Fiquei a ver navios, né? Então, no final de 1970, o Caetano me convida para ir
para Londres trabalhar com ele no álbum Transa, para fazer direção musical, elaborar os
arranjos e tocar violão. Quando eu fui, o empresário de Caetano e de nós todos – eu, Gal,
[Gilberto] Gil –, o Guilherme Araújo, falou: “Você vem, ajuda o Caetano a fazer esse disco e,
quando voltar, eu produzo um disco seu no Brasil”. Lá, eu encontrei o Tutty Moreno na bateria
e, no baixo, o Moacyr Albuquerque. E fizemos o Transa. No retorno, ele cumpriu a promessa:
arrumou um contrato para mim e eu convidei o Lanny [Gordin] para a guitarra – a gente já tinha
trabalhado no LeGal [Gal Costa, 1970] – e o Tutty para a gente fazer um trio, porque a
produção também não podia gastar muita grana. Nós fomos para o porão do Teatro Opinião, no
Rio de Janeiro, onde eu já tinha trabalhado logo que Bethânia chegou no Rio e foi morar lá em
casa. [Ficamos] ensaiando ali, no depósito do teatro, com roupa velha, escada velha, aqueles
negócios de tinta, um cheiro horroroso de mofo. E aí a gente preparou um disco. Ensaiamos,
fomos gravar.

Você no vocal e no violão?

Violão meu, o Lanny no baixo e na guitarra e, na bateria, o Tutty Moreno. Foi praticamente
gravado ao vivo.
Como praticamente ao vivo?

Praticamente ao vivo. A gente passou duas tardes na gravadora e o resto no porão do Opinião,
com barata, aranha, mosca…

Fora uma faixa, todas as músicas são composições suas com diferentes poetas. Elas foram
compostas todas em 1972, para o disco? Como foi o processo?

Elas vêm desde 1969, praticamente. Aliás, 1967. Eu comecei a compor com o [José Carlos]
Capinam em 1967, tanto que “Gotham City” é de 1969. Mas a gente vinha compondo coisas.
“Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata”, “Farinha do Desprezo”… Com o
Duda [Machado], é “78 Rotações”? Não, essa é com o Capinam também… com o Duda foi…

“Hotel das Estrelas”.

É, “Hotel das Estrelas”. Bom, esse material que eu tinha entre 1969 e 1972, eu usei. Sendo que
eu cantei uma música do Gilberto Gil, “A Morte”, e uma do [Luiz] Melodia.

A faixa que abre, “Farinha do Desprezo”, é uma música quebrada, grave. É impactante
para começar um álbum. Por que ela?

Eu compus a música sobre a letra de Capinam. Ela é toda estranhamente quebrada e tal, que é
uma característica minha mesmo, fazer a coisa toda estranha. E a gente tava num momento de
“me jogue fora que, na água do balde, eu vou m’embora”, né? “Já fumei muito da farinha do
desprezo”, aquele desprezo daquele momento que a gente tava vivendo. Político, da ditadura
militar… Aí saiu isso. Capinam escreveu assim: “Já comi muito da farinha do desprezo; Não me
diga mais que é cedo”. Tratava desse assunto mesmo.

Além da mensagem política, já vi interpretações ligadas ao uso de drogas.

Não, ela não tem diretamente ligação com drogas, mas, naquela época, a gente fumava muita
maconha. Na praia, em Ipanema, era um negócio maluco. Alguma cocaína também, essas
coisas… Tava na época, né? Estávamos no meio. Principalmente maconha. Aliás, se não fosse
maconha, não existiria João Gilberto e não existiria Bossa Nova. A maconha era fundamental.
Porque é música, né? Músico geralmente – principalmente naquela época – toma drogas. A
maconha era mais liberada geral. Como também o ácido, depois. Nesse disco, não foi tomada
nenhuma droga, aliás, porque todo mundo ali era careta nesse sentido, para gravar. Porque na
hora de gravar não tem droga, se não atrapalha tudo. Então, ali a gente tá careta nesse sentido e
tocando tudo o que poderia tocar, nos divertindo como trio mesmo.

Você estava falando da mensagem política da música, era o governo [Emílio Garrastazu]
Médici, auge da repressão. Li que a faixa seguinte, “Revendo Amigos”, que você abre com
“Vapor Barato”, foi e voltou da censura.

É, porque ela falava no final “volto pra cuspir”. Eles invocaram com essa coisa de “vou e volto
para cuspir”. Aí cortaram essa frase e o Waly [Salomão] botou “curtir”. Só que essa música
também tem a ver com a ditadura. Porque o Waly foi preso em São Paulo com uma bagana no
bolso, um restinho de maconha. Por aquela roupa toda, aquele cabelão todo, o jeito que a gente
andava, já era mal visto demais, né? Aí, o Waly andando pela cidade e tal, a Rota pegou ele e
jogou no Carandiru. Ele sumiu. A gente procurou, procurou, procurou… encontrou. Quando ele
saiu, foi morar em Niterói. Ficou com medo de cidade grande, aquela coisa, paranoico, claro. E
ele escreveu, dentre outras músicas, “Revendo Amigos”. É como se tivesse entrado no
Carandiru, teve o sentimento de morte, aquela coisa horrorosa, e, quando saiu, escreveu “Eu
vou, mato, morro, e volto para curtir”.
É lindo.

O original já era “volto para curtir”, mas com a música toda cantada, no retorno ele diz “volto
para cuspir” e, aí, os caras implicaram com “cuspir”. Mas ele voltou para “curtir” e fim de papo.

“Se não fosse maconha, não existiria João Gilberto e não existiria Bossa Nova.”

”Mal Secreto” também é composta em parceria com ele, certo? Ela também carrega essa
mensagem de enfrentamento.

“Mal Secreto” é engraçado porque Waly desacatou Gilberto Gil, né? Desacatou assim… curtiu
uma brincadeira em cima do Gilberto Gil, porque o Gil escreveu aquela música… como é? “Se
oriente, rapaz, pela tantantan de tantantan…” Aí, o Waly escreveu “não preciso de gente que me
oriente”. [risos]

Nunca tinha reparado.

Pois é. “Mal Secreto” é lindo, né?

Sim, é muito forte. A melodia lembra um blues. Faz sentido?

Faz sentido. É que a gente tava naquele momento, naquela época, muito carregado com essas
coisas: indignação, emoção exacerbada à flor da pele, e aquele ambiente de loucura, Pop,
influenciado por Jimi Hendrix, Bob Dylan, aquele pessoal. Então, ficou tudo impresso também
nesse negócio.

Há uma ligação direta com “78 Rotações”, em que vocês falam do mundo, mas também
estão falando de música, da arte de vocês.

Esse disco sobreviveu esse tempo todo – tanto que a gente tá conversando sobre ele –, mas ele é
sobre aquele momento daquela época. “78 Rotações”, do Capinam: “Com as mãos frias, mas
com o coração queimando / Estou amando estou passando estou gravando / Em 78 por segundo
rotações”.

Tem metalinguagem, forma e conteúdo. Você fala “Vou sorrindo por segundo, devagar,
grave um disco devagar; grave um nome devagar” e, só depois, acelera.

É, porque foi ao vivo. A gente ensaiou o formato, a base formal e, quando chegou no estúdio,
naturalmente já estávamos entrosados, como trio. Aí a gente foi livre, né? É como jazz. E, no
fundo, no fundo, é um disco de samba e samba canção. “Farinha do Desprezo” é um samba.
“Mal Secreto” é um blues, dizendo assim.

E “Movimento dos Barcos”?

“Movimento dos Barcos” é uma canção lírica que eu fiz de uma vez só. O Capinam me deu a
letra e eu fui lendo e cantando a letra inteira. Não tem uma frase musical que se repete. Ela é
uma serpentina, assim. Você solta a serpentina e ela vai se desenrolando. Ela vai fluindo, vai
fluindo, vai fluindo…

A Bethânia gravou, não?

Muita pouca gente gravou essa música, a Bethânia cantou. Quando a gente voltou de Londres,
Caetano cantava algumas músicas que ele gostava de outros autores. E lá no [Theatro]
Municipal do Rio de Janeiro ele cantou “Movimento dos Barcos”. Só cantou uma vez também
na vida. Foi bonito ele cantando.

Gal, Caetano e Jards (Reprodução: Instagram)

“Esse disco de 1972 é um misto de Jimi Hendrix com João Gilberto, passando por Tom Jobim,
passando por Baden Powell, passando por Vinicius de Moraes, passando por Newton
Mendonça, passando… né?”

“Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata” já é diferente.

É, ela é um samba canção, digamos assim. Também daquele jeito estranho, eu gosto de fazer as
coisas estranhas. Aliás, eu não gosto, não – elas saem estranhas.

Por que “estranho”?

O Jorge Mautner falou uma coisa engraçada. “Macalé, ele vem assim, faz aquela canção bonita
e tal, mas tá sempre com aquela coisa experimental. Quando as pessoas pensam que ele vai para
um lado, ele coloca umas surpresas, um acorde ou frase musical.” [risos] Eu gosto muito disso.

Você cita muito Transa. Eu faço uma ligação – não sei se por ser poesia do Torquato
[Neto] – da sétima faixa, “Let’s Plays That”, com o álbum. Mesmo que ninguém dissesse
que foi gravada no mesmo ano, com praticamente os mesmos músicos, acho que dá para
identificar ali.

Não, na verdade não estão [ligadas], não. O Naná Vasconcellos pediu em 1967, 1968 pro
Torquato Neto fazer uma coisa pra ele, de poesia de música e tal. Aí o Torquato fez “Um anjo
louco / Um anjo solto / Um anjo torto”, citando Carlos Drummond de Andrade, e me deu para
musicar. Eu musiquei daquela forma, lembrando que eu e Naná tocávamos muito juntos. Eu
consegui quebrar daquela forma para o Naná conseguir aproveitar, ali, a percussão dele. Foi
engraçado, porque o Torquato, comentando essa música uma vez no jornal, disse assim “Pois é,
e aí Macalé colocou música clássica”. [risos] Na cabeça dele, aquilo ali era música clássica.

E na sua era o quê?

Na minha nem sei o que que era, porra. [risos]

Na sequência, tem a única faixa que não é composição sua. Você canta “Farrapo
Humano”, do Melodia, e “A Morte”, do Gil. Por que essas músicas entraram no disco e
por que juntá-las?

A do Melodia é porque conheci Melodia por meio de uma amiga do Hélio Oiticica, chamada
Rose. Ela era lá do morro do Estácio. Conheci Melodia e me apaixonei profundamente por ele.
Ele dava jus ao nome Melodia, fazia melodias incríveis. Aquela poesia, pô, era um negócio
totalmente novo para mim. Quando eu ouvi Melodia cantando, gostei muito das músicas todas,
da letra e tal, e disse “Ah, vou gravar esse negócio como Rock”. Ali é Rock mesmo, Rock
quebrado, de breque, né? Tipo Moreira da Silva gravando rock.

Você segue com o Gil.

Pois é. “A Morte” é o sentimento daquela coisa que a gente tava vivendo, aquela coisa soturna,
nebulosa, violenta, e Gil fez um elogio à morte, na realidade, né? Ele explica o que é a morte.
“A morte é rainha que reina sozinha; Não precisa de nosso chamado; Ociosas, ó sim!; As
rainhas são quase sempre prontas; Ao chamado dos súditos; Súbito colapso; Pode ser a forma da
morte chegar”. Porra, é lindo essa porra, né?

Lindo mesmo. E você encerra com “Hotel das Estrelas”, que a Gal também gravou.

É, “Hotel das Estrelas” eu só cito, né? Porque a grande gravação é da Gal mesmo. Essa aí é uma
coisa lírica, foi feita também com uma concepção bem estranha… Estranha para as pessoas, não
para mim. Ela é um blues maluco, mais para Ray Charles que para qualquer outra coisa.

Você fala muito das influências – uma mistura do samba brasileiro, Bossa Nova, com o
som de fora, a guitarra do Hendrix, jazz, blues – e isso fica muito nítido nesse disco. É
assim que você entende a sua música?

É isso aí.  É assim que eu via naquela época e vejo até hoje. Esse disco de 1972 é um misto de
Jimi Hendrix com João Gilberto, passando por Tom Jobim, passando por Baden Powell,
passando por Vinícius de Moraes, passando por Newton Mendonça, passando… né?

Muito legal. Obrigado, Jards. Não vou tomar mais do seu tempo.

Tudo bem, eu estou no meio do mato, tô tranquilo, tenho quanto tempo quiser. Esse coronavírus
deixou a gente com todo o tempo pela frente. Eu nunca trabalhei mais do que agora, só que sem
pensar em trabalhar. Se cuida.

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