Razzah
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CAROLINA GAIO
PERVERSÃO
muito além da cama
Razzah
Deus precisa sempre de seu paredro: satã
A parte do diabo – Michel Maffesoli
Sumário
PARTE 1 Paixão 7
Introdução 9
Entrevista com Julio Bessa 18
Engatinhando... na coleira 21
Entrevista com Bella Lagoeiro 30
Ficção e deleite alheio 33
PARTE 2 Pecado 38
Afinal, o que é BDSM? 41
Entrevista com Rainha Adaga 60
O flerte com a morte 63
Entrevista com Karioca Ballbuster 70
As maldições imperdoáveis 73
Entrevista com Medieval Dragon 80
Sexualidade integral 93
PARTE 3 Poder 96
Essencialização do etos 99
Entrevista com Mestre Ferreiro 112
PARTE 1 Paixão
O gosto dodemais.
couro na boca não era nada
Nem o primeiro corte
gélido das algemas, que logo esquentavam no contato
com a pele. As cordas deixando as extremidades já
frias e dormentes não saíam de um lugar-comum.
Não, nada disso era capaz de causar o mínimo tesão
em mim, era tudo como parte de um ritual, e eu esta-
va lá a mando do meu Senhor.
O olhar dele era penetrante e direto, ordenando que
eu me colocasse no meu lugar. Nessa hora eu sempre
parava de encará-lo; era sua ordem, e, a mim, só
restava acatar. As pessoas em volta, o ambiente em
meia-luz e o som de qualquer pop de uma Nicki Mi-
naj ao fundo chegavam a ser ridículos e, muitas das
vezes, nesse começo quase mecânico das sessões eu me
perguntava o que estava fazendo ali, ou se realmente
acreditava naquele tipo de liturgia.
Muitas das vezes eu duvidava se comungava daque-
la fé. Porém, quando sentia o cheiro das velas acesas,
meu corpo inteiro gritava em um arrepio contínuo.
Draco caminhava com a postura de um Lorde e,
quando puxava o chicote de três metros, eu estava
completamente entregue. Sim, sem dúvida nenhuma,
aquela era a minha fé. Aquele era o meu mundo.
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 1 Paixão
Introdução
Em meados de março de 2015, recebi uma prova do li-
vro Redenção e submissão, de Nana Pauvolih, para revisar;
nada demais até então. Mas a história que ali se apresenta-
va chamou minha atenção. À parte o padrão comercial ro-
mântico de livros do gênero, alguns elementos se destaca-
ram: o livro conta a história de um casal de protagonistas
que frequentam os meios BDSM e que se identificam com
papéis referentes a esse circuito. Ou seja, exercem papéis
que nesse universo têm significados específicos.
Eu já ouvira comentários superficiais e alguma men-
ção ou outra relacionada ao fetiche — geralmente rela-
cionada ao lado sadomasoquista do BDSM —, mas nada
que se pretendesse mais específico. Aquele era um mundo
completamente novo que se descortinava para mim.
Práticas sexuais incomuns, Dominação — em caráter
psicológico, inclusive —, subserviência, uso de títulos de
tratamento, a própria questão dos papéis exercidos no
meio e, de acordo com eles, posturas, roupas e até olhares
específicos, como, por exemplo, um submisso não elevar
os olhos para o seu Dominador: todos esses elementos
estavam no livro construindo uma cultura específica, que
fui descobrir depois se tratar do BDSM.
Fora as constantes referências a estupro, desequilíbrio
mental e um tipo de “desprezo amoroso”, possíveis psi-
copatologias — decorrentes de abuso ou não — abriram
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CAROLINA GAIO
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CAROLINA GAIO Conversa com
Julio Bessa
Como começou a fazer Nunca tinha produzido
eventos BDSM? nada sozinho, só auxiliado,
mas decidi que se era pra
Comecei a frequentar fazer ia fazer do melhor jei-
os eventos assim que fiz to possível. Juntei um gru-
18 anos, mas os desejos po de pessoas fantásticas e
fetichistas já vinham de o resultado não poderia ter
tempos. Comecei a produ- sido melhor.
zir meio que por acidente
em uma conversa de bar. “Costumo dizer que quem
Estávamos comentando chega vicia e não sai mais,
em um bar em Copacaba-
na o quanto a cena carioca experiência própria!”
BDSM estava largada ao
Não é tão simples criar
mau gosto e a reuniões fe-
círculos sociais e de
chadas. E aí veio: “Fetiches?
identidade entre prati-
Fala com o Julio Bessa! Ele
cantes BDSM. Dentro
que curte.”
dessa lógica, vemos os
No início rejeitei a ideia eventos de BDSM/fetiche
porque no meu tempo como algo a mais do que
livre, que era muito pouco, mero entretenimento. O
queria relaxar e curtir a que acha disso?
noite e não trabalhar nela.
Mas com a insistência da Não é tão simples, mas
mesa e de realmente querer quando eles se fincam,
ver o fetiche voltar a ser tão viram experiências incrí-
maravilhoso quanto quan- veis! Tenho amigo de festas
do o conheci resolvi aceitar fetichista que conheço há
o desafio. mais de 10 anos e sempre
mantemos contatos.
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PERVERSÃO
Entrevista
Por isso que costumo dizer Porém, para alguns fetiches
“família” entre os frequen- mais intensos e perigosos,
tadores da Fetish Lab (ou e que exigem cuidado e
Fetlab). É muito legal ter pessoas experientes, a gente
um círculo social com pede pra entrar em contato
pessoas que te entendem com a produção antes.
e não te julgam.
“Uma das coisas mais gos-
Organizar eventos de tosas da vida é você se
BDSM é mais complexo
que eventos baunilha? assumir, então vivencie.”
Tem cuidados/
problemas específicos? Para eventos de fetiche
os protocolos são tão rí-
gidos quanto em eventos
Muito mais, porém já foi mais litúrgicos? Como o
bem mais HARD. Graças novato se insere não só
a algumas regras e códigos nos eventos mas tam-
de conduta que implemen- bém nos círculos sociais
tei no evento, as pessoas decorrentes?
estão se conscientizando
que festa BDSM não é festa
de suingue e não rola sexo. Costumo dizer que quem
Como a frequência cresce chega vicia e não sai mais,
vira e mexe algum mal- experiência própria! Desde
-educado aparece, mas é que a pessoa esteja disposta
limado imediatamente. a entender que tudo é um
CONSENSO e que ninguém
Hoje em dia esse tipo de está ali para servi-la (a não
ocorrência é bem mais rara ser que seja acordado previa-
do que em eventos “bauni- mente), a inserção no ciclo
lha” (risos). social é questão de tempo.
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CAROLINA GAIO
Engatinhando... na coleira
Era um domingo e a estreia do evento quinzenal de fe-
tiche na Corleone [nome fictício], com a promessa de que
se tornasse semanal. O prédio tinha acabado de passar por
diversas obras em todos os cinco andares, além do terraço.
Ainda era bem cedo quando cheguei, e não havia
muitas pessoas, então aproveitei para conversar com os
produtores. Foi o primeiro evento relacionado ao gênero
que fui e, mais tarde, entendi porque naquela configu-
ração como um evento fixo para o público BDSM não
vingou. Durou cerca de dois meses e sucumbiu a festas
mensais ou ainda mais esporádicas, geralmente patroci-
nadas pelos próprios praticantes. Claro que é muito sutil
precisar causas para algo vingar ou não, mas, conhecendo
mais o circuito liberal carioca, a miscelânea dificilmente
teria apelo.
Era um evento de fetiche em uma casa de suingue
para público de suingue e não de BDSM, o que, nesse
contexto, atraía um público muito amplo e disperso, não
familiarizado com o BDSM. Para os praticantes de BDSM,
era como colocar os pés na água sem querer mergulhar,
aquele meio do caminho do “pode ser” do BDSM, que,
nesse caso, é melhor não.
Embora cada circuito de eventos possua sua autono-
mia, segregados conforme as opções sexuais, não há uma
separação nítida, e na cena liberal carioca se incluem os
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 1 Paixão
tram aceitação ainda resultam em certo choque para os
ouvidos mais sensíveis. Um praticante de BDSM tendo
a oportunidade de viver alguma prática marginalizada,
tende a preferir práticas desse universo e não do bauni-
lha — sim, suingue, em sua configuração prototípica, é
completamente baunilha.
Ainda que atrelado à cena ou à ideia de balada liberal,
pelo menos para o público menos informado, no circuito
de BDSM mais fechado há clubes que sequer admitem que
uma pessoa alheia ao meio entre, eles tendem a evitar a
presença de curiosos, restringindo os eventos a entradas
com convite ou a um mínimo conhecimento da vida da
pessoa (embora isso não seja tão comum no Rio).
A maioria dos eventos cariocas — obviamente não falo
de eventos particulares, mas de clubes e bares —, mesmo
os exclusivos de BDSM, são abertos ao público em geral.
Ainda que uma pessoa se autointitule um mero curioso,
não é comum que isso restrinja sua entrada e participação
nos eventos; os principais eventos, inclusive, contam com
monitores para passar regras e orientar os que desejarem
entender e conhecer mais, além de pessoas mais antigas
no meio dispostas a mentorar novos praticantes, sendo,
por isso, chamadas de mestres ou mentores.
Há, de fato, um certo fechamento no círculo de convi-
vência BDSM carioca, o que no começo me levou a pensar
(de tanto ouvir exatamente isso) que não havia uma cena
constituída no Rio. Mas não é um fechamento quanto à
inclusão de novas pessoas no meio; afinal, eu mesma, até
então “baunilha”, entrei. A cena é fechada no sentido de
que os praticantes se conhecem e tendem a ir a eventos
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PERVERSÃO
Parte 1 Paixão
Pisando em ovos: esteroides e patriarcado
Steele [nome fictício], uma das produtoras do even-
to, pegou o microfone e anunciou a primeira atração da
noite. No ambiente da boate, as luzes estavam baixas e
uma música de batida forte começou a tocar. A performer
entrou dançando enquanto tirava lentamente as poucas
peças de roupa. Suas coxas, esculpidas por musculação e
esteroides — mais esteroides do que musculação —, no
doce reduto da santa testosterona, eram extremamente
grossas, desproporcionais aos seus aproximados 1,50m de
altura.
Ainda de calcinha, em cima dos saltos enormes — ah,
os saltos — e com uma cruz de adesivo negro em cada
seio para tapar os mamilos, no melhor estilo P!nk em Just
like a pill, a performer pegou um isqueiro e uma vela, a
acendeu e começou a pingar cera derretida no próprio
corpo. Se por acaso ainda houvesse algum desavisado
no ambiente, nessa hora ficou claro que algo de diferente
acontecia ali. O wax play evocava a cultura BDSM.
A performer deixou o isqueiro e a vela em uma das
mesas e, finalmente, tirou a calcinha. Sentou em um
banquinho que integrava o cenário e puxou nova vela,
dessa vez uma vermelha e um pouco maior, que usou para
simular uma rápida masturbação. Após roçar a vela em
suas partes íntimas, a performer andava pelo ambiente a
colocando na boca dos rapazes e a esfregando neles, sus-
tentando a determinação da postura de uma Domme.
Em outro dia desse mesmo evento, sob a mesma
configuração, presenciei uma sessão de trampling, co-
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CAROLINA GAIO
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CAROLINA GAIO Conversa com
Bella Lagoeiro
Como você chegou ao Falar sobre uma realidade
BDSM? Você escreve so- que existe e que possui seus
bre outros temas e esse mistérios e encantos é o
é só mais um? que tenho em mente quan-
do introduzo a temática na
minha escrita. Além disso,
Através da própria litera-
o BDSM abre margem para
tura. Foi ela que me intro-
muitas discussões que vão
duziu ao assunto, e depois
além do plano físico.
busquei por outras fontes,
como filmes e séries.
Escrevo sobre outros “Escrever sobre esse
temas, mas o BDSM tema é justamente dar voz
acaba os comple- àqueles que têm sido por
mentando de uma
forma ou de outra. tanto tempo emudecidos.”
Escrever é combate e
O BDSM vive à uma forma de nos posi-
margem, mas já foi cionar frente ao mundo.
muito mais escondido, Mas quando falamos de
especialmente nos tem- sexo (ou assuntos análo-
pos pré-internet. Nesse gos) as pessoas tendem
sentido, o que represen- a só olhar a superfície
ta escrever sobre BDSM? das coisas. Qual é a re-
cepção que você tem do
Escrever sobre esse tema é público com esse tema?
justamente dar voz àque-
les que têm sido por tanto Já ouvi dizerem que meu
tempo emudecidos. livro era pornográfico, por
tratar do sexo.
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PERVERSÃO
Entrevista
Muitas pessoas leem e, de O interesse e a boa vontade
fato, interpretam superfi- para aprender é que são
cialmente e só veem o que essenciais.
querem ver. Acredito que
a maior parte do público “É claro que existem muitas
ainda enxergue o sexo
com extremo recato e características nossas na
pudor, mas aos poucos trama e nos personagens,
isso vai mudando na mas a relação não é tão
mentalidade da
sociedade em geral. direta quanto os leitores
querem acreditar. ”
Você precisa/precisou
pesquisar pra escrever? Muitos dos leitores con-
Acha que a vivência no fundem autor e persona-
meio faz diferença pra gem, até porque às vezes
escrever ou que um é irresistível referenciar
autor consegue se aven- amigos neles, ou não?
turar no tema só pelo Esse desencontro entre
interesse? ficção e realidade por
parte do público aconte-
Fiz algumas pesquisas, ce mais pelo tema que
embora superficialmente. você escreve?
Acredito que pesquisar é Conta pra gente!
sempre sábio, especialmen-
te quando se dispõe a falar É muito comum os leitores
de um tema tão polêmico. tentarem buscar algo de au-
A experiência conta, mas tobiográfico em tudo o que
não é imprescindível para escrevemos, independente
se escrever sobre o assunto. do tema.
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Parte 1 Paixão
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Parte 1 Paixão
bem. Sabe aquela história de “até quando é bom é ruim”?
Então.
O próprio título do romance reforça a ideia de distor-
ção. Tons de cinza. As sombras daquilo que é escondido,
restritos aos “quartinhos” e “gostos peculiares” que nem
todos entendem.
No final de 2014, o site Catraca Livre publicou uma re-
portagem sobre o trabalho do fotógrafo Florest McMullin
sobre o cotidiano “escondido” de BDSMers; segundo o
site, seu projeto objetiva “revelar as verdadeiras identida-
des dos adeptos ao sadomasoquismo”.
Na verdade, trata-se de adeptos do BDSM. As ima-
gens mostram diferentes situações de práticas genéricas
de BDSM e poucas se referem a S/m, em específico, erro
ou insipiência do site, vai saber. Essa ideia de “verdadeira
identidade” mostra bem o que falo.
A sexualidade ainda é mesmo capaz de dizer algo so-
bre “a essência” das pessoas. O “verdadeiro” é o que ocorre
nas sombras? O sexo ocorre nas sombras. Os aspectos de
convívio social de um indivíduo podem ser jogados fora,
não servem para nada mesmo... É só a ponta do iceberg;
no escuro do quarto, é onde as pessoas se “revelam”. Con-
troverso. Isso que devia ser considerado perverso... Bem
disse Bozon que a sexualidade gera representações sociais,
e, quando ela não segue padrões, isso parece se mostrar
com ainda mais força.
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PARTE 2 Pecado
Para mim era um dia normal,
eu estava saindo do
trabalho um pouco mais tarde e não veria Severo,
de novo. Fazia quase uma semana que eu não o via,
parecia que ele estava me evitando e isso estava me
deixando nervoso e inseguro. Eu passei a mão no
anel de dominação que usava, ele me dera em uma
cerimônia bastante calcada nos rituais litúrgicos e eu
pensava que aquilo tinha algum valor. Tinha que ter.
Ele estava há tanto tempo no meio. Era meu Dono
e toda essa ausência tinha que ter alguma explicação.
Não havia acontecido nada de especial naquele dia,
mas eu estava especialmente tenso, minha garganta
seca, talvez eu antecipasse o que estava por vir. Caía
uma chuva bem rala, mas mesmo assim abri um
guarda-chuva. A rua estava deserta e eu comecei a
ouvir passos. Tive medo e não quis olhar para trás.
Olhei o celular, estava sem sinal e os passos se apro-
ximando. Vertiginosamente. Ventava e eu comecei
a pensar que o guarda-chuva frágil talvez não fosse
boa opção. Eu senti a pessoa se aproximar. Era um
homem, ele segurou minha garganta com força e eu
senti meu corpo inteiro arrepiar. Ele era da altura de
Severo e me virei buscando seus olhos, mas não os
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PERVERSÃO
encontrei. Ele estava encapuzado e descobrir que seu
cheiro era totalmente desconhecido me fez vacilar.
Eu sentia minha garganta se fechando e o ar entra-
va pesado. Tropecei nas minhas pernas, mas ele me
sustentou, ele me arrastou por mais de uma quadra,
e me jogou em cima do capô de um carro. Eu me
choquei contra ele e caí no chão. Eu estava em pânico,
não sabia nem por onde começar a reagir. Eu conse-
guiria reagir? Tinha lama no meu rosto. Ele vestia um
casaco longo escuro e puxou cordas dele, com as quais
amarrou minhas mãos, depois de me jogar contra um
poste de luz e me virar de costas para ele.
“Severo?” eu queria acreditar que era ele, mas
quando ele puxou o capuz e seu olhar penetrante
finalmente cruzou o meu eu vi que estava enganado.
Isso me fez calar e irrompi em lágrimas, soluçando.
Ele começou a rasgar toda minha roupa. Estava frio.
Estávamos na rua. A chuva tinha aumentado e sentir
os pingos me causava dor, ou era o estado em que
meu corpo se encontrava.
Ele tapou minha boca por trás e mandou que eu pa-
rasse de chorar. Sua voz. Definitivamente, não era Se-
vero e eu não conseguia me conter, então tentei lutar,
mas estava amarrado e não tinha forças, meu corpo
convulsionava e, quando dei por mim, o homem já
estava me penetrando com força. Eu sentia o meu reto
se rasgando inteiro.
Eu mal podia dar conta do que estava sentindo,
parecia que eu não juntava os pensamentos, quando
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
Apesar das controvérsias, devido à sua extensão e
detalhamento — e, obviamente, às visões que há muito
já foram derrubadas —, Psychopathia sexualis ainda é o
principal estudo sobre o tema e, consequentemente, sobre
o BDSM, já que, ainda hoje, a maioria de suas práticas está
submetida a este rótulo: perversão.
A intenção de Krafft-Ebing era que a obra se tornasse
uma referência para médicos e legistas, pois, sob sua ótica,
tais comportamentos sexuais desviantes eram doentios
e ilegais, e, portanto, passíveis de sanções em ambas as
esferas.
Ele dividiu os desvios sexuais em quatro categorias,
o paradoxo, que é o desejo sexual em etapas da vida em
que ele não deveria estar presente, como na velhice ou na
infância; a anestesia, que é a ausência de desejo sexual; a
hiperestesia, seu excesso, e a paraestesia, ou o desejo sexual
sobre objetos equivocados, sendo a definição que ainda
hoje — apesar das modificações quanto ao caráter patoló-
gico — acompanha o conceito de parafilia.
No conceito de paraesteria, Krafft-Ebing incluiu, entre
outros, a homossexualidade, o fetichismo, o sadismo e o
masoquismo. Para ele, o sexo só poderia ser considerado
não desviante se se relacionasse à procriação. Dessa for-
ma, embora ele julgasse o estupro bizarro, não o conside-
rava como uma perversão, já que dele poderia se originar
a gravidez. Sei que é difícil, mas é isso mesmo que você
leu: estuprar não é doença, mas dar aquele tapinha maroto
é. Só que isso foi escrito há bastante tempo, né? O pior é
constatar que esse tipo de pensamento ainda está serelepe
e saltitante por aí.
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Parte 2 Pecado
sexual que envolva pessoas que não querem ou que sejam
incapazes de dar o seu consentimento legal”, seus desejos
refletem um caso de patologia, segundo as últimas versões
do DSM.
Atualmente, a lista oficial dos transtornos parafílicos
conta com os seguintes elementos e suas respectivas defi-
nições resumidas: “Transtorno de exibicionismo — expor
órgãos genitais a uma pessoa desavisada ou prática de
atos sexuais com a intenção de que outras pessoas vejam;
transtorno de Frotteurismo — tocar ou esfregar-se em
uma pessoa [vestida] sem seu consentimento; transtorno
de voyeurismo — observar pessoa desavisada em momen-
to íntimo, de nudez ou em práticas sexuais; transtorno de
fetichismo — uso de objetos inanimados para obtenção
de excitação sexual; transtorno de pedofilia — preferência
sexual por crianças pré-púberes; transtorno de masoquis-
mo sexual — necessidade de ser humilhado, espancado,
amarrado ou qualquer outra forma de sofrer para obter
prazer sexual; transtorno de sadismo sexual — a dor ou a
humilhação de uma outra pessoa é sexualmente excitante;
transtorno de travestismo fetichista — excitação sexual ao
vestir roupas ou utilizar objetos do sexo oposto; transtor-
no parafílico não especificado — inclui uma variedade de
outros comportamentos parafílicos, tais como: zoofilia,
necrofilia, coprofilia, urofilia, infantilismo, escatologia
telefônica etc.”
A mudança dada pelo DSM-V entre interesse sexual
atípico e patologia veio com sua versão de 2013, o que
é bastante recente. Ainda assim, mesmo que o caráter
patológico de algumas práticas sexuais tenha sido extirpa-
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Protocolos e consenso
Em 2007, Bruno Zilli defendeu um dos primeiros tra-
balhos acadêmicos sobre o BDSM, enxergando-o enquan-
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
to tal e não o reduzindo a práticas específicas ou à questão
parafílica. Sua tese principal gira em torno da legitimação
do BDSM com base nos variados protocolos de segurança
que existem no meio.
Zilli utiliza uma das famosas siglas comuns no meio
relativas à segurança, o SSC — ou São/Sadio, Seguro e
Consentido/Consensual — para habilitá-lo no seio social
combatendo sua colocação como patologia. Trocando em
miúdos, surge o batido e falacioso discurso de “o BDSM é
seguro, então é legítimo”. Mas a noção de segurança não é
capaz de o autorizar, primeiro porque ela é frágil e relati-
va — atravessar a rua é seguro? — e depois porque não é
estável para poder autorizar o que quer que seja. A própria
ideia de segurança é instável.
Além disso, por um lado, práticas sexuais não parafí-
licas (baunilha) não são necessariamente seguras só por
serem consideradas aceitáveis ou comuns, e, por outro,
não necessariamente alguém que busque realizar uma pa-
rafilia — ou qualquer atividade que seja, sexual ou não —
busca fazê-la com segurança ou a cogita, é mais honesto
aceitar isso. Moralizar algo no reduto da segurança é uma
visão bastante preconceituosa de quem está assustado com
aquilo a que assiste e precisa encontrar um lugar que lhe
dê paz, que o tranquilize.
Antes de moralizar o BDSM com conceitos que não
são atinentes a ele, é preciso compreender que sua confi-
guração não pode ser validada pela moral baunilha; seus
discursos não circulam da mesma forma que no universo
baunilha; seus processos são completamente diferentes, e
é preciso pensá-los em seu contexto.
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
É comum no meio, por padrão, o uso de palavras
como “verde”, “amarelo” e “vermelho”, como a sinalização
de um semáforo. Assim, o “verde” indica que o sub de-
seja que a prática seja intensificada, o “amarelo”, que ele
está perto de seus limites, e o Top deve manter o que está
fazendo ou atenuar levemente. Já o “vermelho” representa
que o sub esgotou os seus limites e o Top deve parar ime-
diatamente e observar se está tudo bem.
Obviamente, não é somente responsabilidade do sub
fazer a sinalização, o Top deve observá-lo, pois ele pode
estar tão extenuado a ponto de não conseguir se manifes-
tar pedindo a interrupção da prática. O Top precisa agir
com sabedoria, cuidado e consciência, atento o tempo
todo para as reações do sub. O Top não pode delegar toda
essa responsabilidade a ele, principalmente em práticas
extremas, como as de edge play, práticas que testam limia-
res, que discutirei ainda na Parte 2.
O objetivo da safeword não é levar a sessão até seus
limites (a menos que se esteja fazendo uma prática — pre-
viamente combinada entre as partes — específica desse
tipo), como se tudo fosse permitido enquanto ela não
for usada, ou como se o “ideal” fosse chegar ao limite de
usá-la. A existência da safe (abreviação comum usada no
meio) é apenas um calço a mais para ambos os envolvidos.
Aqui falamos da sinalização genérica do semáforo, que
é amplamente usada, especialmente em sessões públicas, e
funciona como uma indicação padrão entre novos par-
ceiros, mas é importante também, além dela, existirem as
safes específicas, combinadas entre o Top e o bottom. Um
casal que entrevistei, por exemplo, usava as safes “coelho”
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
Em paralelo às siglas que colocam a controversa ques-
tão da segurança ou da responsabilidade do risco como
um fator crucial na execução das práticas de BDSM, há
também as que dizem respeito à cessão de poder. Enquan-
to aquelas aparecem de maneira limítrofe entre as res-
ponsabilidades em uma relação BDSMer e a legitimação
baunilha, essas atuam nos acordos dentro dos relaciona-
mentos.
As relações S/m são pautadas pela assimetria de poder
— ainda que a assimetria seja cambiável e negociável entre
os envolvidos na relação, como em um relacionamen-
to entre dois SW (switcher, alguém pode assumir tanto
papéis de Dominação quanto de submissão) —, mas como
funcionam seus limites?
Delegação de poder
A questão da confiança e dos limites costuma ser ne-
gociada em uma conversa informal, quando os praticantes
vão realizar uma sessão, e em um relacionamento pode ser
formalizada por meio de rituais específicos, de contrato
ou do acordo (formalizado em contrato ou não) a respeito
da cessão de poder, por meio de EPE, PPE ou TPE.
O EPE — Erotic Power Exchange, ou troca erótica de
poder — diz respeito à assimetria de poder exclusivamen-
te durante uma prática específica e é o único protocolo
que pode ser usado em sessões avulsas, pois os outros
precisam de um relacionamento estável para ser estabele-
cidos. Assim, os play partners combinam previamente a
cessão de poder e seus limites, e isso engloba desde quem
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
confiança integral tão complexa que, a partir disso, nada
mais deve ser discutido ou questionado. (A menos que
uma das partes queira romper o relacionamento, é claro.)
O TPE diz respeito a controlar todos os aspectos da
relação e da vida do bottom e também é o responsável por
arrepiar os cabelos das pessoas que têm o estômago mais
fraco. É o responsável pela entrega total, por dar ao Top a
opção de fazer absolutamente o que quiser com o bottom.
Esse tipo de relação representa uma entrega completa,
e muitos casos trágicos que vão a público, criando uma
má imagem do BDSM, são decorrentes de relações que se
baseiam no TPE. Por não necessariamente haver sinaliza-
ção por parte do bottom para que o Top pare ou o auxilie
em práticas mais arriscadas, já que o uso de safe e outros
mecanismos de controle são dispensados, relações basea-
das em TPE podem acabar sendo responsáveis por casos
de mortes e homicídios culposos (em que não há dolo, ou
seja, intenção de matar, mas se mata por negligência).
Assim, enquanto as práticas de edge play colocam a
questão da fronteira de maneira material, o TPE, de ma-
neira simbólica, é uma das vivências de cessão de controle
que colocam o BDSM no campo limítrofe em que se joga
com a vida e a morte. Por isso, esse protocolo de relacio-
namento se tornou um tabu mesmo no meio, e muitos
Tops além de o acharem arriscado o acham chato, por ter
que definir o tempo todo tudo a respeito da vida de outra
pessoa. Assim, o TPE é um desses limiares que coloca o
BDSM na interseção entre Eros e Tânatos.
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CAROLINA GAIO Conversa com
Rainha Adaga
A Dominação sempre es- Porém não vejo em todas
teve presente na sua vida? as vertentes do feminismo
uma visão muito esclareci-
da sobre o que de fato é o
Acho que sempre esteve na jogo de Dominação femini-
minha vida. Sempre aca- na dentro do BDSM. Vejo
bo assumindo posições de que a discussão existe, mas
controle em diversas situa- penso que ainda é bastante
ções; de uma forma natural cercado de preconceitos e
e muito inconsciente várias visões estereotipadas. Só
pessoas à minha volta, inclu- de existir a discussão já vejo
sive familiares, me colocam como algo positivo, mas
em posições de comando. está longe de ser o ideal.
Tenho algumas boas
histórias, inclusive da “BDSM é uma brincadeira mui-
minha infância,
com relação a isso.
to divertida, mas é
brincadeira de gente grande.”
Dommes são associadas Ouvimos várias opiniões
ao feminismo e à inver- sobre os tipos de sub,
são dos papéis clássicos geralmente mulheres.
atribuídos a homens e Há dificuldades em lidar
mulheres. Como isso com sub brat, por exem-
funciona no BDSM? plo? É diferente por ser
homem e socialmente
ter um papel diferente
Acho que existe, sim, este do de submisso?
link, entre mulheres Domi-
nantes e feminismo.
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PERVERSÃO
Entrevista
Acho que a dificuldade de Dizer que não há uma difi-
lidar com as brats começa culdade em fazer a separa-
pelo fato de que brats não ção dos papéis assumidos
são submissas. São, sim, dentro de um jogo BDSM
bottoms, mas em um jogo e os papéis na vida cotidia-
com regras próprias, e isso na seria mentir. Mas não é
não faz delas melhores nem impossível. A relação acaba
piores que submissas. O necessitando de muito diá-
engano pode morar aí. logo, muita força de von-
Qualquer Dominante que tade e um pouco mais de
não entenda bem essa atenção para que nenhuma
diferença certamente en- das partes se sinta insatisfei-
contrará uma maior difi- ta ou enfadada dom relação
culdade. Quanto ao papel ao relacionamento. Mas
de submissão masculina, na é perfeitamente possível.
minha opinião existe, sim, Algumas concessões cer-
uma visão bastante ma- tamente serão necessárias.
chista construída em cima Eu, particularmente, acho o
do papel que os homens desafio bem interessante.
“deveriam” assumir.
“existe uma visão bastan-
te machista construída em
Dizem que “dois
bicudos” não se cima do papel que os homens
beijam e que ‘deveriam’ assumir.”
relacionamentos
entre dois submissos Já passou por uma
ou Dominadores situação surpresa em
é difícil. Mas você alguma sessão,
contesta isso. não combinada ou
Conta pra gente! inesperada?
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
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CAROLINA GAIO
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
Associadas ao milking pode haver práticas de controle
de orgasmo — pelos métodos de estímulo e pausa ou pela
privação ou castidade, geralmente por meio do uso de
cintas e cuecas específicas.
Essas são as principais práticas associadas à humilha-
ção, note-se que se direcionam majoritariamente a bottons
do sexo masculino, colocando-os em situações convencio-
nadas como próprias do feminino. Ainda que possam ser
exercidas por outro homem, geralmente são aplicadas por
uma Domme, sob risco de perder a catadura de humi-
lhante. Um reflexo da autoerotização dada por meio da
perda ou da supressão da individualidade.
De maneira simbólica, a perda da individualidade
surge associada ao controle da morte. Ao mesmo tempo
em que massacrar a subjetividade se aproxima da morte,
também se aproxima dela controlá-la, ainda que por meio
de outra pessoa, do Top, no caso.
De maneira material, dentre as várias práticas parafí-
licas catalogadas, talvez a que mais se aproxime da linha
limítrofe entre Eros e Tânatos seja a de asfixiofilia, ou scar-
fing. Pode causar perda de consciência, desmaios, danos
cerebrais a médio e longo prazo e até a morte. Consiste na
privação de ar, podendo ser feita por um Top ou pelo pró-
prio, sendo, neste caso, denominada asfixia autoerótica.
Ela se relaciona com a mumificação, em que a asfixio-
filia costuma ser bem-vinda, porém não obrigatória. Fisio-
logicamente, a asfixia erótica possui uma atuação intensi-
ficadora do orgasmo pela redução no fluxo sanguíneo do
cérebro, a falta de oxigênio e a elevação da taxa de dióxido
de carbono geram uma sensação de tontura que tornam o
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CAROLINA GAIO
69
CAROLINA GAIO Conversa com
Karioca Ballbuster
A submissão estava Eu divido muito bem as
presente na sua vida coisas, jamais aceitaria
antes do BDSM? relações abusivas na minha
vida profissional. Mas na
amorosa é mais complicado
A submissão foi algo que porque entram tantas coisas
desenvolvi ao longo do subjetivas, e como sou um
processo. Antes só sentia cara muito intenso, na vida
prazer em apanhar. E o gos- amorosa seria complicado
to pela dor? Desde garoto, sair de uma relação
minhas primeiras lembran- abusiva. Já na vida social,
ças remontam aos meus 8 depende do contexto.
anos. Sentia uma sensação
estranha quando via nas
“Não é fácil contar
novelas e filmes as mulhe-
res batendo nos caras. Eu que sou submisso e ma-
sempre provoquei soquista. Vivemos numa
as meninas a fim de apa-
sociedade machista,
nhar delas. Mesmo que
não compreendesse o conservadora
porquê, queria apanhar. e hipócrita.”
Alguma coisa já passou
Relações de humilha- do ponto, física ou sim-
ção acontecem fora do bolicamente?
contexto sexual e restrito
das seções. No BDSM,
tudo parte do consenso. Algumas sessões já
Mas como um BDSMer passaram do ponto
administra relações abu- fisicamente. Até porque
sivas no trabalho ou na o grau de confiança
vida social, por exemplo? na pessoa era enorme.
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PERVERSÃO
Entrevista
Sendo assim, os dois esta-
vam tão numa sintonia e “O BD/SM são apenas 4
num transe tão grande que
somente no final que fomos letras, mas dezenas de
perceber que eu estava ma- possibilidades de explorar
chucado além da conta. o prazer e a dor..”
Uma vez, recebi uma mordi-
da no pênis em público que Sem dúvidas, durante mui-
doeu muito na hora, quando to tempo duvidei da minha
fui ao banheiro horas depois, masculinidade, afinal, to-
estava muito ensanguentado. dos meus amigos e colegas
Outra vez, eu levei tantos contavam histórias que
chutes no saco e na cabe- humilhavam as mulheres
ça, e estava num transe tão na cama, como dominavam
grande, que só parei quando e batiam nelas.
desacordei.
Bem como as mulheres
Simbolicamente, depois de cobravam de mim uma
5 anos de relação com uma postura dominante, além
Dominadora, senti-me abu- da expectativas delas resi-
sado por ela durante um tem- direm em mim enquanto
po, afinal, ela sabia da minha Dominador.
dependência e fraqueza, que
sentia por ela. Me livrar disso No meu caso tem um agra-
foi muito difícil. vante, tenho 2,02m de al-
tura e uma voz imponente.
Não é fácil, até hoje, contar
Você acha que é mais para minhas parceiras (fora
difícil para os homens do BDSM) que sou submis-
novatos administrarem so e masoquista. Vivemos
que são masocas e/ou numa sociedade machista,
gostam de submissão? conservadora e hipócrita.
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
As maldições imperdoáveis
Por que se pode definir, delimitar e pesquisar, em
suma, cutucar a sexualidade alheia? Quem está autori-
zado a gozar, como e por quê? Como se constroem as
imagens da normatividade sexual? Das ditas parafilias já
havia relatos da ocorrência na Grécia Antiga; tanto tempo
decorrido já deveria tê-las autorizado, porém o sexo oral,
por exemplo, que você que critica S/m acha normalzão, só
deixou o rol do DSM há pouco mais de quarenta anos.
Por que é permitido discorrer sobre o sexo que sai do
padrão e por que o sexo bizarro é tão atraente e logo mexe
nos estômagos mais sensíveis pensar que tem gente que
atinge o orgasmo apanhando com ralador de queijo, sen-
do suspenso por cordas, ingerindo fezes de seu parceiro
ou proferindo difamações contra ele?
Nada disso é estritamente sexual, são elementos ex-
ternos, um tipo de fetichização, mas e a palmadinha que
“não dói”, as palavras chulas e afins, as lingeries, as danças
sensuais? Tudo isso é bem normativos e também não é
estritamente sexual, são elementos externos e totalmente
aceitáveis, como constam no pornô convencional.
Na lacuna que o sexo oral deixou, no campo de “outros
transtornos” hoje figuram necrofilia e zoofilia. As três prá-
ticas parecem bem niveladas? Hoje, praticar uma das duas
é análogo à prática de sexo oral outrora para os manuais
que nos categorizam como doentes ou sãos. O que acha?
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
de cientificismo da figura do Diabo. Por que tal coisa se
identifica com o mal? E por que o “mal” é necessariamen-
te algo ruim?
De Simmel (2006) a Maffesoli (2004), o mal pôde
ser travestido de bem. Em Simmel (2006), é por meio da
teoria do conflito; o mal é algo intrínseco da sociedade, o
conflito gera união — domestica o mal. Se tem algo que o
ser humano sabe fazer muito bem é domesticar. Por que
o mal precisa ser revestido de “bem maior social” para ser
aceito? E por que o conflito ou outras instâncias podem
usar essa roupagem, mas a sexualidade não? Ela ainda é
má “por natureza”, talvez o jeito no passado de transmu-
tá-la em bem, com a procriação, hoje encontre lugar na
normatividade ou, quando foge dela, na toda forma de
amor, mas por si só, seu exercício ainda é a figura do mal:
ele ainda não está autorizado.
Segundo Vainfas (1986), dentro da moral cristã,
outrora nem o casamento era considerado autorizado,
ele era mais visto como um mal necessário, ou o remédio
para a inevitabilidade das relações sexuais entre homens e
mulheres, que não podiam se conter.
O casamento era visto como um tipo de escravidão e
submissão carnal a outrem, porém “legalizava” o pecado
da não castidade — o único meio de se atingir a verdade e
elevação da alma —, e a única forma de amenizar sua au-
sência era viabilizar a vivência da sexualidade, ao menos,
pelos meios morais (a religião) e legais.
Disse Rodrigues (2014) que uma “das tarefas mais
interessantes — e perversas — da sociologia é sua capaci-
dade em desmascarar a naturalização das relações sociais”,
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
A prática de age play em nada se relaciona com a
pedofilia, a prática é realizada com adultos que se vestem
e agem como se tivessem outras idades, como idosos,
crianças ou adolescentes. Muitos vão gritar que é cultura
do estupro, mas quem nunca fantasiou com a colegial de
maria-chiquinha que atire a primeira pedra.
Há acusações errôneas de pedofilia pela infantiliza-
ção que alguns praticantes fazem nos trejeitos, jeito de
se vestir e falar em sessões envolvendo age play, muitas
vezes envolvendo cenas incestuosas nas simulações, mas
são adultos que estão ali. Não é o ser, é o parecer, simular
relações de parentesco e altas diferenças de idade, por que
essa máscara socialmente se constrói como um uso do
real? Fingir ser se associa como um gosto real por crianças
por quê?
O pet play, erroneamente acusado de gostos reprimi-
dos por zoofilia acontece quando o submisso ou escravo
simula ser um animal de estimação, com uso de coleira,
comendo em potes, agindo como se fosse adestrado,
urinando em lugares previamente impensáveis. Para os
praticantes, eles colocam como se a prática envolvesse
mais a questão do cuidado — “cuidar como se cuida de
um animal indefeso” — e menos uma associação com a
sexualização ou o uso de animais para fins sexuais.
Dentro do pet play há uma forma mais específica que é
o pony play, ou simulação de “pôneis”, em que o submisso
além de tratado como um “cavalinho” pode ser submetido
a corrida de pôneis humanos que alguns grupos realizam.
A mumificação, finalmente, é prática erroneamente
associada à necrofilia. Até existem práticas que simulam
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
grande talvez reflita a imagem do sexo, totalmente enrai-
zada em uma visão fálica, como de uma violação, “o amor
tem jardim, cerca, projeto. O sexo invade tudo isso [...]
sexo é invasão de domicílio”... Até quando se tenta “falar
bem”, a imagem de violação se faz presente. Se o sexo é
inevitavelmente violador, invasivo e opressor, o mínimo
que se pode exigir para isso é o consentimento.
Fora a questão da autorização, a fêmea está prepara-
da para o sexo após a menarca, a cópula entre espécies
diferentes é verificada no meio animal — e em ambas as
situações pode haver desejo sexual — e o apego à matéria
retratado na criminalização da necrofilia vem de um cons-
truto religioso, um cuidado com o corpo que é templo e
deve ser preservado para o próximo plano, seja ele qual
for. Onde mesmo está o mal natural associado a essas
práticas?
Talvez seja só o mesmo choque que já reparara Levi-
-Strauss (2009) sobre a proibição do incesto vir de um
costume primitivo de que se deveria compartilhar o seu
com o outro e não utilizar o próprio. Moralmente, não pa-
rece haver grande problema neste caso, desde Adão e Eva,
somos todos filhos de incesto, e isso é inclusive religiosa-
mente aceito, onde reside toda a base de nossa moral. Não
há necessidade de alarde.
79
CAROLINA GAIO Conversa com
Medieval Dragon
Falar de BDSM ainda vários tipos de discrimi-
é falar de sexualidade nação e de outras sanções
“desviante” para o sen- sociais (desde bullying até
so comum, e poliamor agressão física).
ainda parece seguir A analogia entre BDSM
o mesmo caminho. É e violência, a conotação
possível viver determi- pejorativa do sexo casual,
nadas realidades “nas a generalização do sado-
sombras” (aquela típica masoquismo como prática
imagem preconceituosa homossexual e a confusão
enrustida do “seja o que do poliamorismo com pro-
você quiser, mas seja miscuidade são exemplos
discreto”), mas a gente claros da falta de conheci-
só consegue transpor mento e do preconceito que
os estigmas – para nós permeiam o meio baunilha
mesmos e como um tipo e que podem ter um efeito
de legado para os outros devastador no estilo de vida
– dando a cara a tapa. de um indivíduo.
Você já teve a
visão da pessoa
que “se esconde”? “Quando começamos a taxar
Fala um pouco de doente aquele que é dife-
disso pra gente. rente de nós, é porque nós
mesmos já estamos doentes. ”
Na sociedade atual, o
sexo ou qualquer assunto Portanto, a criação de um
relacionado ao prazer sexu- nick (abreviatura do inglês
al é ainda um tabu, cercado nickname: apelido) não
de má interpretação e que é de caráter obrigatório,
pode trazer à tona porém é altamente
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PERVERSÃO
Entrevista
recomendável, para se pro- sobre “se esconder”, po-
teger e evitar que seu estilo rém em outro sentido.
de vida seja prejudicado “Se esconder”, nesse caso,
de qualquer maneira por significa mais “se proteger”
ser adepto do BDSM e ter que qualquer outra coisa. A
um comportamento sexual maioria não está disposta a
“inadequado” aos padrões enfrentar pessoas próximas
aceitáveis socialmente. ou perder familiares pela
O nick é uma alcunha simples exposição de suas
ou pseudônimo que preferências sexuais.
visa proteger a
identidade real ou “Veja um clássico exemplo
o nome verdadeiro disso: o homem que diz que
de um BDSMer.
gosta de foder é um homem
O meio BDSM normal; afinal, qual homem
também é formado
por pessoas comuns e, não gosta, né? Mas uma mu-
portanto, há também lher que diga que gosta de
preconceito, hipocrisia, foder é o quê? Normal, oras.
inveja, beligerância,
vingança, e todos essas Mas para a sociedade, ela
características nocivas será uma puta.”
a nós mesmos e à
sociedade em geral. Tampouco pode se dar ao
Exposição da sua identi- luxo de arcar com possível
dade junto a preferências demissão, por preconceito
sexuais é, portanto, um de chefia ou por danos cau-
risco bastante possível. sados à sua imagem. Sim,
atualmente o preconceito
Acho que esse ponto se
que envolve o sexo ainda
encaixa bem na questão
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Entrevista
Acabei por confirmar isso Afinal, qual homem não
na prática; afinal, apenas gosta, né? Mas uma mulher
sofri com a perda de alguns que diga que gosta de foder
poucos amigos e afasta- é o quê? Normal, oras. Mas
mento de alguns familiares. para a sociedade, ela será
Mas isso não é verdade. uma puta, uma vadia, uma
Aprendi, com o tempo e piranha. Na melhor das hi-
conhecendo pessoas, que póteses, uma “mulher sem
são meus privilégios (ser classe”, “que se expõe” etc.
homem, ter um trabalho Se misturar BDSM aí, piora
indiferente a isso etc.) quemais ainda. Por isso, reco-
minimizaram os efeitos do nheço que não é fácil “dar a
preconceito na minha vida. cara a tapa” e que
são poucas pessoas que
podem e conseguem
“Não me considero ativis- isso. Assim sendo,
ta ou militante, mas sem- eu, como uma das
pre que posso tento fazer poucas pessoas que
podem, aproveito e
o máximo para divulgar “ligo o foda-se”. Não me
informações sobre esses considero ativista ou
assuntos, para tentar militante, mas sempre
que posso tento fazer
mitigar a ignorância e o máximo para divulgar
esclarecer mitos. ” informações sobre esses
assuntos, para tentar
mitigar a ignorância
Veja um clássico exemplo e esclarecer mitos.
disso: o homem que diz que Afinal, ninguém paga mi-
gosta de foder é um homem nhas contas mesmo.
normal.
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PERVERSÃO
“Mesmo que seja des- Entrevista
vinculado de qualquer relacionamento de um(a)
cunho político (pois é, parceiro(a), houve traição,
independentemente
essencialmente, um movi-
do que diga ou das
mento social), é um meio desculpas que dê.
esquerdista, no sentido Há vários motivos para
revolucionário do con- que ocorra uma traição.
ceito, ao tentar romper No entanto, a grande
maioria dos casos é
com padrões e normas devido ao mesmo
impostos e já consolida- motivo: egoísmo.
dos pela sociedade hete- Ela acontece porque
você quer tanto aquilo
ronormativa dominante.” que acaba nem ligando
para o consentimento
sempre traía meus/minhas da outra parte. Você vai,
ex...” Isso é hipocrisia. É a faz e foda-se. Debater a
mesma coisa que dizer que traição não é uma
“traí porque ele(a) não me questão de “julgamentos”
compreende”. ou “moralismo”.
É apenas uma das trocentas Que fique claro que não
justificativas que podem estou julgando o ato da
ser criadas para legitimar traição como “certo” ou
a traição, para que o ato de “errado”, apenas caracteri-
trair se torne mais palatável zando-o como uma
e você se aceite melhor. atitude onde o egoísmo
Existe algo chamado cons- sobrepõe-se a qualquer
ciência, e ela causa incômo- outra coisa, seja o amor ao
dos. Mas, se alguém “escon- parceiro ou o conforto do
de” outro estilo de vida atual.
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PERVERSÃO
Entrevista
até festas, sempre em Uma vez estávamos andan-
lugares públicos e seguros. do no shopping de mãos-
Aqui na cidade do Rio de dadas e um cara não se
Janeiro, por exemplo, temos conteve e gritou apontando:
a Pratique Poliamor, que é “Olha lá! Um cara com
bem receptiva, tem página duas mulheres!” Os amigos
e grupo no Facebook. dele ficaram meio cons-
Em relação a já ser BDS- trangidos. Na hora a gente
Mer, acredito que, já tendo começou a rir, porque foi
algum conhecimento, a sua engraçado, mas isso mostra
mente já esteja um pouco o quanto a nossa sociedade
mais aberta a novas experi- é problemática ainda em
ências, assim como supera- respeitar quem vive fora do
do alguns tabus sexuais. Em padrão.
suma: já tido algum contato Em outra ocasião, recebi
com um meio sexual mais meu pai em casa e a Kali
libertário, creio que fique (nossa namorada) também
mais fácil sim. Mas, fora estava (Nammu, minha es-
isso, não vejo muito mais posa, tinha ido ao dentista).
vantagem não.
“É um processo lento, de
Já passou por alguma desconstrução interna de
situação engraçada?
Tipo: “Oi, vó, essa é
valores. Porque tudo que
minha namorada. aprendemos nesse campo
Essa também. E nos foi imposto. ”
também tem essa
aqui.” Conta pra gente! Quando ele e eu fomos
à cozinha, ele perguntou
baixinho para mim:
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PERVERSÃO
Parte 2 Pecado
Sexualidade integral
Quando restringi minha pesquisa sobre sexualidade
para as perversões, senti falta de uma teoria sobre a se-
xualidade que desse conta do BDSM ou, pelo menos, das
parafilias, de forma específica e “amarrada”, sem a sensa-
ção de “catar milho” tão comum para qualquer mínima
pesquisa que fazemos sobre BDSM. Esta seção é o meu
esboço simplificado de uma teoria para começar a suprir
essa lacuna.
Falar em sexualidade não necessariamente suscita falar
sobre o ato sexual, e isso o BDSM reflete muito bem, seja
por suas práticas que não incluem contato sexual, seja pela
assimetria das relações de poder se debruçar nos mais
diversos âmbitos da vida de um sujeito. Porém, sexuali-
dade fala de sexo, ou pelo menos, de como lidamos e nos
relacionamos com ele.
A partir da observação do sexo e da sexualidade no
contexto BDSM, duas possíveis hipóteses se colocam e
elas são complementares; ambas se imbricam, talvez refle-
tindo perspectivas diferentes do mesmo. A primeira é que
a sexualidade vai além do sexo se manifestando em diver-
sas — arrisco dizer todas as — outras áreas, e a segunda é
que, no final das contas, tudo é de alguma maneira sexual,
ainda que esse sexual seja sublimado e/ou sob a forma de
uma pulsão, a gosto de Freud.
Não é que o sexo esteja excluído ou não seja o mote
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CAROLINA GAIO
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CAROLINA GAIO
PARTE 3 Poder
Eu só queria ficar sozinha quando
ela apareceu. Trazia
um homem por uma coleira e aquilo parecia um jogo
de forças. Talvez ele fosse brat ou um SW que perdeu
algum tipo de aposta; mas sub com certeza não era.
Eu brincava com uma das velas que decoravam a
festa, na área de fumantes, que, provavelmente devido
à apresentação de shibari lá dentro, estava vazia. Era
o quintal dos fundos da casa em que sempre faziam
esses eventos. Eu gostava de observar. E ficar comigo
mesma como alguém que só observa. Os mais refina-
dos associam esses comportamentos ao flâneur. Eu
chamo de, bem, eu chamo mesmo de ficar sozinha
fazendo conexões mentais com pouco sentido.
Eu tinha acabado de fazer uma linha de cera no
meu braço inteiro. A cera já estava líquida de tão
quente, o que fez minha pele ficar vermelha no
mesmo instante. A dor é algo curioso. Você só a sente
quando de alguma forma já a conhece ou tem o mí-
nimo de consciência. Uma lacuna psicológica interes-
sante da nossa fisiologia.
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PERVERSÃO
Ela fechou a expressão quando me viu. Aquele jogo
não permitia plateia. Mas os meus devaneios também
não. Seu desagrado se traduziu em falar qualquer coi-
sa para o “encoleirado”, que logo saiu. E a deixou em
pé ali. Saia curta de látex preto e botas. Tão clichê.
Meu descuido involuntário de revirar os olhos fez com
que ela se aproximasse sem que eu percebesse.
“Você é uma submissa intrigante”, falou com cer-
ta superioridade. “Não sou submissa”, devolvi, me
levantando para encará-la. Éramos da mesma altura.
Ela deu um meio sorriso e se apresentou. Eu queria
dar um corte naquela interação, mas meu senso de
sociabilidade não permitia. Não era só isso, é claro.
Eram seus cabelos escuros ondulados caindo no om-
bro. Seu nariz afilado e suas sobrancelhas sem fazer.
E suas sardas e seus óculos.
Não demorou para que eu ignorasse os clichês. As
vozes distantes e sua pretensa Dominação, que ela
pareceu ignorar também. Eu a beijei puxando seus
braços para trás. Foi um teste. Ela resistiu, mas cedeu.
“Eu sou Domme, moça”, disse ao se soltar de rom-
pante e dar um tapa estalado na minha cara. Sua
mão latejando ainda segurando meu rosto. Peguei
em seu braço de impulso, mas a verdade é que gostei.
Senti aquele típico calor me invadir. Irradiava. Ela
gostava do embate. Eu sempre fui dada a guerras.
Minhas mãos foram involuntariamente pra sua
bunda assim que ela me beijou, apertei com força. Ela
mordeu minha boca. Era a deixa. Eu a virei contra
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PERVERSÃO
Parte 3 Poder
Essencialização do etos
Compreendido aqui como relações com assimetria
de poder, o BDSM é um hole playing. Com a palavra play
em sua definição, o BDSM é um jogo e, dessa forma, uma
simulação do real. Não só na definição, mas também na
vasta quantidade de práticas que levam o título de plays: pet
play, age play, needle play etc. Assim, na própria definição,
com a ideia da simulação embutida, uma sessão de BDSM
também pode ser chamada de cena, que, segundo Bechara
(2009), “é cada situação ou passagem de peça, telenovela,
filme, romance etc.”, ou seja algo relacionado ao ficcional.
Essa definição na seara do ficcional significa, também,
que no BDSM seus participantes interpretam papéis. As
posições ou papéis no BDSM, como dito, são de Top, bot-
tom e SW, o último, a essencialização da ideia de papéis.
Top é aquele que domina e, a princípio, comanda uma
cena, enquanto o bottom é o submisso que segue suas or-
dens, submetido a seus desmandos. O SW, ou switcher, é
aquele que oscila, ora pode assumir o papel de Top, ora de
sub, inclusive dentro de uma mesma cena, desde que seu
parceiro de cena seja também SW ou haja pelo menos um
Top e um sub participando da sessão.
Conforme discutido até aqui, é muito tênue a linha
que define quem tem o controle de uma cena, há diver-
gências entre vários praticantes e linhas de pensamento.
Assim, penso para fins deste estudo nas autodefinições
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PERVERSÃO
Parte 3 Poder
Considerando que todo discurso é interação, ele carre-
ga também as marcas do coenunciador, que, além de inte-
ragir na situação discursiva, é responsável por essa mo-
dulação do enunciador, que adapta seu tom e vocabulário
conforme o contexto e seu parceiro de cena comunicativa,
para usar uma terminologia do BDSM. Simplificando,
você modula o que fala, em todos os aspectos — tom de
voz, gestos, expressões faciais, escolha de palavras —, con-
forme a pessoa para quem você fala.
Dessa forma, vemos que o etos não é elemento in-
tegrante do enunciado (grosso modo, do texto), mas da
enunciação (do ato de falar/escrever); ou seja, ele é do
sujeito construído e posicionado no discurso, e, portanto,
uma imagem, sendo, assim, uma espécie de autor discur-
sivo. São essas construções, ainda que variáveis pelo seu
caráter situacional, que marcam, em suas interações, as
subjetividades do ser social.
Considerando o etos como essa característica situacio-
nal, há aqui uma relação possível com a ideia do enuncia-
do performativo, no sentido dos atos de fala preconizados
por Austin (1965). Segundo o autor, os atos performativos
são aqueles que, por meio da enunciação, criam realida-
des. Além da própria construção do etos, um exemplo
mais palpável é a adição de pessoas como amigas no Face-
book, o que passa a configurar uma rede social de intera-
ção, ainda que não tenha materialidade no mundo físico.
Ao formar essa rede, adicionando praticantes de
BDSM no Facebook ou no aplicativo WhatsApp, havia
uma constante: fotos cortadas. Apenas uma pequena parte
do rosto à mostra, fotos de corpos com a cabeça cortada,
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CAROLINA GAIO
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PERVERSÃO
Parte 3 Poder
ela me humilha. Essas trocas eu faço com as
que não necessariamente curtem humilhar.
Mas há quem curta pura e simplesmente
humilhar homens e eu me encontro com essas
também. Meu problema maior é que eu sou um
sub incompleto, porque eu não sou masoca e
elas curtem bater também. Dommes preferem
mais bater do que humilhar. Já fui obrigado a
ficar com homens... E eu sou hétero. Mas se a
Domme quiser, eu faço coisas com homens...
Mas ela de intermediária. Não fico com Dom.
Geralmente o outro é sempre um outro sub
também.
Conheci o Jiu [nome fictício] pelo Facebook, ele me
adicionou por ver amigos em comum do meio BDSM e
sua abordagem foi direta, me perguntando se eu era uma
Domme. Expliquei que tinha amigos em comum em
função da pesquisa que estava fazendo, mas que não era
praticante. Ele se interessou pelo trabalho e se dispôs a me
ajudar, apresentando pessoas, conversando comigo sobre
suas experiências no meio e se dispondo, inclusive, a fazer
uma sessão pública com alguma Domme para que eu
pudesse assistir.
O trecho acima foi transcrito integralmente a partir de
uma das conversas que tivemos e ilustra uma parte de sua
experiência de mais de dez anos levando vida dupla, no
mundo baunilha e como sub. O sonho dele é ser cuckold
(é isso mesmo que você mais teme... levar aquele belo par
de chifres!), porém, até o momento em que conversamos,
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Parte 3 Poder
Além disso, a noção de vida dupla aparece relacionada
à convivência com pessoas as quais não têm um conheci-
mento “integral” sobre a vida de alguém. Não expor cada
recôndito de si em todos os lugares, ou pelo menos nos
lugares ou instituições valorados como importantes —
como a família —, se mostra uma espécie de duplificador
da existência, sugerindo uma falaciosa e reducionista ideia
de unicidade e, portanto, de essência, que busca uma “co-
erência normativa” nos modos de ser experienciados por
um indivíduo.
É um pensamento bastante estanque e fragmentado
da subjetividade — o diferente não pode promover “in-
tegralidade”? — e bastante localizado, também, no outro,
no conhecimento que o outro possui acerca do eu para
legitimá-lo enquanto sujeito.
Na fala de Jiu há ainda mais um ponto que nos remete
ao etos: o estereótipo, problemático pelo seu caráter ta-
xativo e excludente; reducionista, inclusive, quando o ser
humano é um mar de complexidades.
Ele fala sobre se relacionar com homens e ser hétero,
um modo de ser aparentemente contraditório... Os este-
reótipos são a base do esquema de representação do etos,
a partir dele o coenunciador faz uso das representações
culturais fixas, ou seja, de um arcabouço já previamente
construído que permite a atribuição de características ao
enunciador (você fala comigo já prevendo como sou com
base em rótulos, e vice-versa). É aquilo que faz Jiu, pre-
vendo os estereótipos que trago, se dizer hétero, apesar de
se envolver também com homens.
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Parte 3 Poder
Associando o etos a esse caráter dialógico, tudo o que
é dito é performance: resposta à fala de um personagem
que não necessariamente está fisicamente presente na situ-
ação comunicacional, mas que, por meio dos discursos, se
presentifica.
Ao assumir um lugar de fala, o enunciador se inscreve
nessa posição de resposta e sua atitude, dessa forma, se
torna uma performance, já que, independentemente do
quanto aquela fala e aquela imagem construída se liguem
ao mundo físico, sua enunciação visa, por meio do etos,
convencer o coenunciador de sua autoridade no que fala,
através de seu caráter performático, ou seja, da criação de
cenas.
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CAROLINA GAIO Conversa com
Mestre Ferreiro
O que veio primeiro pra atualmente tenho feito pes-
você, o BDSM ou o gosto quisas para fazer mobiliário
por acessórios? para BDSM). Já havia feito
curso de velas artesanais e
comecei a fazer velas para
BDSM. Na verdade come- wax play.
cei a fazer acessórios por
acidente. Comprei um ma- Daí para pesquisar novos
terial, uma coleira, numa materiais foi um pulo. Atu-
sex shop e no primeiro almente faço cane de fibra
tranco ela arrebentou... de carbono, floggers cujas
tiras são de cabo de aço,
palmatórias em
“Homens em geral madeiras nobres etc.
improvisam bastante, a Pretendo em breve
não ser quando querem adquirir um torno
de madeira para poder
impressionar alguém.” tornear em madeiras
nobres os cabos de
Convenci um cara que floggers, whipps,
faz cintos artesanais a me canes etc.
ensinar a fazer cinto, pois
uma coleira básica não pas-
sa de um cinto pequeno... Como funciona o con-
conforme fui aprendendo sumo de acessórios em
a trabalhar com couro fui relação ao público?
tendo vontade de fazer ou-
tras coisas. Daí passei para
as madeiras, pois minha
paixão são as palmatórias. 80% das compras de aces-
sórios são feitas por mulhe-
Montei uma oficina de res, pelo menos das minhas
marcenaria (onde vendas. Em geral Dommes
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PERVERSÃO
Entrevista
que querem algo bonito e
eficiente para usar em seus/ “Cada um de nós é o
suas submissas ou submis-
sas que querem um pre- principal responsável
sente bonito para seus/suas por nossa felicidade.”
donos(as). Homens em
geral improvisam bastante, O que você indica pra
a não ser quando querem quem está começando
impressionar alguém. a se aventurar nesse
universo?
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Considerações finais
Dialogando com as teorias acerca da patologização das
parafilias e de sua própria construção discursiva enquanto
sexualidade desviante, este livrou buscou esboçar uma
teoria sobre sexualidade no BDSM unificado, ou seja, para
além de uma prática ou outra, além de uma tentativa de
desconstruir as ideias do que é parafílico e dos muitos
estigmas atinentes às flutuações da sexualidade humana.
Essa discussão também se baseou nos muitos pro-
tocolos de segurança do BDSM que servem a um duplo
propósito: sua legitimação — externa — e sua organiza-
ção — interna. Foi baseada ainda em suas possibilidades
de cessão de poder, que definem o como do BDSM e sua
principal característica aqui tão reforçada: a assimetria de
poder.
Ao lado dos estudos da parafilia, a discussão teórica
gira, também, em torno da construção da sexualidade
desviante como uma atualização da imagem do mal social,
a demonização da sexualidade e os meios que se tornam
condição sine qua non para legitimá-la, o que vai desde a
questão da normatividade até a discussão sensível da auto-
rização, tematizada pela sexualidade da criança, do morto
e dos animais.
Com base na pesquisa exposta no livro, que compre-
ende desde um panorama da formação do BDSM en-
quanto tal até as principais teorias, trago as questões mais
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PERVERSÃO
Carolina Gaio
É mestre em linguística pela UERJ com a dissertação
Perversão sexual e patologização: uma abordagem
discursiva, da qual se originou este livro. Suas pesquisas
acadêmicas se debruçam sobre as sexualidades ditas
“desviantes”, com foco nas perversões sexuais, ou
parafilias. É editora-chefe da Razzah, tradutora,
redatora, revisora e escritora. Dentre seus livros
publicados estão O (não) lugar do amor (Multifoco) e a
série Todos os videntes têm razão (Razzah). Seu trabalho
como escritora é encontrado em:
www.confissoesdevalentina.com
Dedicatória
Este livro é dedicado a todos os profissionais da cena
liberal carioca, que a fazem acontecer. E aos praticantes
de BDSM de todas as épocas e lugares, que, diariamen-
te, empreendem uma luta tácita e contínua contra inú-
meros estigmas e barreiras sociais.
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Glossário
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Antes de elencar um glossário básico de BDSM, preci-
samos lembrar que ele não diz respeito a uma prática ou
outra específica, tampouco ao conjunto delas, embora ele
seja uma maneira de manter certas práticas unificadas. O
BDSM, antes de mais nada, se refere a relacionamentos
com assimetria de poder, consensual e delegada de forma
acordada entre o casal.
Dentro dessa assimetria, muita coisa se desenrola,
desde o simples ato do parceiro escolher a roupa para seu
cônjuge ir ao trabalho — como nas relações permeadas
pelo TPE, por exemplo — até a realização de práticas em
que alguém é imobilizado.
Quando falamos em termos de práticas de BDSM,
escolher o que seu parceiro vai comer ou como deve se
comportar não está em jogo; na verdade, comumente nos
referimos àquelas práticas passíveis de se desenrolarem
em sessões ou em uma cena; ou seja, nos referimos àque-
las atividades que, na literatura, são descritas como para-
filias.
Longe de esgotar as possibilidades de práticas, acessó-
rios e afins — afinal, com confiança e consentimento tudo
é permitido entre quatro paredes, não é mesmo? — aqui
listo e descrevo brevemente algumas das práticas e termos
mais comuns/conhecidos no meio BDSM.
É complicado fazer uma divisão de práticas, na ver-
dade, pois muitas estão atreladas e algumas categorias,
como a humilhação, por exemplo, englobam práticas que
nem sempre podem ser assim consideradas. Partindo do
princípio que a sexualidade é psicológica, tudo que a ela
se relaciona se torna bastante relativo.
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da real, feita por meio de roupas, maquiagem, trejeitos,
vocabulário e análogos, com o submisso se transformando
em uma criança — também chamada de infantilização,
nesse caso —, adolescente ou idoso. Vale lembrar que
a infantilização nada tem a ver com a pedofilia, que é o
abuso de crianças. No age play os envolvidos são adultos,
criando cenas e representações.
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brat – denominação utilizada para o submisso que mede
forças com o Dominador, o submisso estilo brat não aceita
a Dominação de início, tende a travar algum tipo de luta
— simbólica ou material – com o Top para que ele o do-
mine, no fim das contas. Ele essencializa o jogo de poder
do BDSM. Brat, do inglês, significa pirralho.
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Chuva de prata – engloba três práticas diferentes. O
spitting, ou o ato de cuspir ou ser cuspido pelo parceiro,
principalmente no rosto. A salirofilia (na verdade o termo
também se aplica para cuspir), que é o prazer pelo suor
próprio ou do outro. E, por fim, a ejaculação masculina
e feminina como fonte de prazer. O bukkake é um tipo
de chuva de prata, quando uma pessoa recebe o sêmen,
geralmente no rosto, de mais de uma pessoa simultanea-
mente.
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Correntes e cadeados – têm como finalidade prender o
sub, não deixando que se movimente livremente.
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Ela está presente, na realidade, ainda que de forma sutil,
em todas as relações humanas, seja por meio da manipu-
lação ou chantagem, ou por meio da simples tentativa de
convencimento de uma outra pessoa a fazer o que você
quer.
Obviamente, quando falamos de Dominação psico-
lógica circunscrita ao contexto BDSM, nos referimos a
algumas maneiras de realizá-la, mais explícitas. Exemplos
de Dominação psicológica material são a escolha por par-
te do Top da rotina do sub, sua alimentação, seus horários,
suas roupas, até suas relações sociais e de trabalho.
No campo simbólico, a Dominação psicológica é mais
complicada, e se associa à manipulação, às maneiras sutis
como o Top faz com que o bottom realize seus desejos.
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Erotic Power Exchange (EPE) – ou troca erótica de
poder, diz respeito à assimetria de poder exclusivamente
durante uma prática específica, e/ou nos atos sensuais e
sexuais. É o único protocolo de delegação de poder que
pode ser usado em sessões avulsas, pois os outros preci-
sam de um relacionamento estável para ser estabelecidos.
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Frotteurismo – roçar em outra pessoa por cima da roupa;
obviamente, com consenso.
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Inversão – em inglês, a inversão se chama pegging, algo
como “empalamento”. É a troca dos papéis sexuais tradi-
cionalmente designados ao homem e à mulher em um
ato sexual; assim, inversão só acontece com casais hétero.
Comumente, o homem penetra a mulher. Na inversão,
como o nome sugere, os papéis se invertem, e somente o
homem é penetrado pela mulher por meio de um acessó-
rio. O destaque da palavra acessório aqui não é por acaso,
a inversão precisa de um penetrante sintético (como um
vibrador, por exemplo) para se configurar como tal.
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Mobiliário humano – o sub funciona como um móvel e o
limite é a imaginação do Top, ele pode ser uma mesa, uma
estante, um candelabro, um varal humano ou até uma
peça decorativa. Também conhecido como objetificação.
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Parafilia – comportamento sexual atípico.
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dida para uma adoração aos saltos altos, de preferência
sujos, bem como a outras atividades, como comer comida
que foi pisada. A masturbação com os pés é chamada de
footjob.
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tom para impedi-lo de tocar o Top, bem como estimular
sua pele por meio de cera de vela e gelo são práticas de
privação/intensificação de tato.
Reduzir o olfato ou estimulá-lo por meio de cheiros
afrodisíacos, restringir a audição com protetores ou usar
uma música ambiente, estimular o paladar são práticas
sensoriais. Privar a visão, ou o blind fold, é uma privação
de sentido específica.
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Resistance play – ou impact play, é a prática de algum
tipo de spanking ou flagelo até a exaustão. Como um edge
play, objetiva testar os limites do corpo, tanto do submisso
em apanhar quanto do Top em bater.
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Dentro do BDSM, embora o sadismo não seja estri-
tamente sexual — não precisa do ato sexual em si para
acontecer, ele tem um componente erótico, e a excitação
sexual, ainda que não culmine no ato sexual, é provenien-
te de atividades que gerem algum tipo de degradação no
outro, tanto psicológica quanto por meio da dor física.
Assim, um Top sádico pode ser alguém que goste de
spanking e agressões físicas (mais comum), mas também
que goste de humilhar o seu bottom, geralmente de ma-
neira associada.
O masoquismo no BDSM é um pouco diferente (ele é
mais complexo, porque também compreende certo nível
de “autossadismo”) . Embora também esteja presente nas
humilhações e práticas de caráter psicológico, comumen-
te, quando se diz no meio que uma pessoa é masoquista
ou masoca (termo mais usado, uma gíria para masoquis-
ta), ela gosta de sentir dor, e obtém prazer sexual por
meios que a proporcionem.
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Sonda uretral – objeto para ser introduzido na uretra.
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Top – do inglês, algo como “topo”. É uma denominação
genérica para Dominador, visto que há tipos diferentes.
Top engloba qualquer um que esteja em posição de co-
mando.
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Referências
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Digitais
http://dilemasdeumdominiciante.blogspot.com.br/ — blo-
gue do Rasputin.
Bibliográficas
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tais – o DSM-5 – The new north american classification of
Mental Disorders – DSM-5. Revista Brasileira de Terapia
Comportamental e Cognitiva, São Paulo, v. 16, n. 1, 67 -
82, 2014. ISSN 1982-3541.
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______. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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