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Luigi Firpo
Tradução de Carfos Eduardo o. Berriel
~
Luigi Firpo (Turim 1915 - Turim 1989) foi um finíssimo estudioso
de Bruno, de Campanella, dos utopistas e do pensamento político e
religioso dos séculos dezesseis e dezessete. Formou-se em direito em
1937 com uma tese sobre Tommaso Campanella e seu pensamento
político, filósofico e religioso, escrita sob a orientação de Solari, que deu
início a uma intermitente atividade de pesquisa sobre a obra do monge
calabrês - que incluiu também a Bibliografia degli scritti di Tommaso
Campanella (1940) editada pela Academia das Ciências de Turim no Hl
aniversário de sua morte - e que se estendeu a toda a história da utopia.
Em Turim, a partir de 1957, lecionou História das doutrinas políticas
1 Discurso de encerramento
primeiramente no curso de ciências políticas da Faculdade de Direito,
do Primo Convegno
em seguida na Faculdade de Siênci\ls l;>olíticas.Dedicou seus estudos Internazionale di Studi Sulle
à história das doutrinas poVticâs, com particular atenção ao período Utopie, ocorrido em Reggio
Calábria em maio de 1983,
entre Renascimento e Contra-Reforma (com estudos sobre Maquiavel, organizado pela Università
Morus, Erasmo, Botero, Boccalini e tantos outros) e aos clássicos do degli Studi di Reggio Calábria
em colaboração com a Society
pensamento político italiano, inclusive de épocas posteriores (Beccaria, for Utopian Studies (USA e
Pagano, Nitti, Croce, Einaudi). Coordenou, para a editora Utet, a mais Canadá). Publicado no volume
Utopie per gii anni ottanta
importante coleção de «Clássicos do pensamento político» no período - Studi interdisciplinari sui
do pós-guerra e a História das idéias políticas, econômicas e sociais. (Nota temi, ia storia, i ptoietí. A cura
di Giuseppa Saccaro Dei Buffa
~iográfic~ de P. P. P~~ti~ro, ~traída de ht~p:!!www.~orinoscienza.it! s Arthur O. Lewis. Gangemi
accademlalpersónaggtlãpn?obJ_iél=5M' ~ Editore, Roma, 1986.
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PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA"
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PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA'
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PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA"
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um particular ambiente e através de uma particular tensão espiritual
predisposta à predicação budista. Portanto, entre as duas expressões
campanellianas não existe contradição, porque a razão histórica não é
jamais obrigatoriamente também uma razão religiosa. Quis recordar
esta sutileza não para entrar nos detalhes, mas para fazer ver como o
isolamento religioso é para o utopismo racionalista do Renascimento
uma condição essencial. É um dado que naturalmente se atenua, mais
tarde, com o Iluminismo, quando a dissociação da sociedade civil do
pressuposto do controle religioso passa a ser celebrada em largos círculos
intelectuais, aos quais não importa nada além de construir modelos que _~
prescindam do cristianismo, porque no Iluminismo a virtus da razão
pura celebrou então os seus triunfos, talvez passageiros, mas que de
qualquer forma se projetaram em uma outra idade e em direção a um
mundo profundamente mudado.
Eis então que começamos a entrever os limites precisos do discurso
utópico: é uma mensagem projetada no futuro, um discurso imaturo.
Voltemos ao exemplo de Morus. Ele escreve no outono de 1515 um dos
livros da Utopia, o atual livro segundo, que contém a descrição da ilha e
do Estado ideal. O faz com uma tal habilidade de mascaramento, com
uma tal atitude romanceada, que a um certo ponto, de volta à pátria,
tendo mostrado seu livro a um amigo, deve ter se persuadido de que
ninguém se daria conta de que se tratava de um discurso político e que
~...,j todos o teriam entendido como um elegante romance. Ele mesmo o
sublinha, com as finíssimas alusões de que é capaz, dizendo que um
seu amigo eclesiástico se ofereceu imediatamente para ser o bispo em
Utopia, descuidado do ignoto e dos seus riscos na busca da promoção
àquela dignidade eclesiástica. Que fazer, então, para remediar este
excesso de bravura? Morus recorre a um expediente quase absurdo
nesta linha de desenvolvimento que procurei delinear. Escreve o atual
primeiro livro, que é, para todos os efeitos, um tratado de sociologia
sobre a situação inglesa, para esclarecer que, uma a uma, as soluções
sociais propostas no livro segundo são as respostas saneadoras dos males
que laceram a Inglaterra contemporânea. O primeiro livro não tem nada
de utópico: é uma série de análises dos desequilíbrios e das insânias de
um ordenamento absurdo, dos pobres camponeses expulsos da terra
para que se possa criar ovelhaslOquerendem mais, dos 73.000 enforcados
de Henrique VIII (eram ladrões, mas seu número equivaleria na Itália a
mais de um milhão de cidadãos, dada a população relativa, que somava
então três milhões e meio de habitantes). Aqui temos claramente um
utopista puro, o inventor do mais marcante e radical desenho utópico,
que sente a necessidade de descobrir-se pelo menos aos olhos dos mais
argutos, porque se mascarou muito bem, dissimulou com um excesso
y
de qualidade a própria mensagem, não quer correr o risco de que
'fique indecifrável, e~é.lFece libÍa cha,s-e imerpretativa a quem quiser
~,,>~
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PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA'
compreendê-lo,
Eis então que o futuro nos reserva outros discursos aparentemente
utópicos, que atravessam, ou pelo menos tocam de leve, este nó central,
duro, preciso, inequívoco: a utopia como mensagem cifrada de um
projeto imaturo, radical e global. Imaturo não na elaboração, porque
na mente de Morus e de Campanella o projeto é definido nos menores
detalhes, mas dissimulado ao ponto que ninguém o perceberia. Para
Campanella isso é uma complicação a mais, porque se materializa
imediatamente depois de convalescer das lesões que a tortura atroz
lhe infligiu, depois de seis meses passados no cárcere entre a vida e a .>:
morte. A Cidade do Sol é a primeira coisa que escreve, e não por acaso,
porque os conjurados calabreses haviam deformado completamente
e subentendido a sua mensagem, isto é, o tinham, como muitas
vezes acontece nos movimentos de insurreição popular, de qualquer
jeito matérializado e brutalizado. Campanella prevê na sua Cidade o
comunismo sexual com o fim de seleção da raça e de "expropriação", de
modo que quem não pode conhecer filhos próprios afinal se torna pai
de todos, e portanto desinteressado; mas os conjurados se aventuram
a saquear as casas dos ricos, repartindo assim as riquezas ao invés de
colocá-Ias em uso comum. E daí por diante. Publiquei há anos um
fragmento de uma carta que Campanella escreve ao seu lugar-tenente,
Frei Dionísio Ponzio, um outro dominicano como ele, o "número dois"
do grupo dirigente da conjura: a este frade o Filósofo escreve: "loquebaris
quae minus intelligebas", falavas de coisas que não havias compreendido
de fato, isto é, havias degenerado e aviltado um sonho gigantesco, nobre,
de regeneração e de libertação. Eis então que a Cidade do Sol foi escrita
como uma enérgica resposta, não sem uma certa tendência à idealização,
e como reivindicação de um ideal traído.
Qpe dizer então de todas as outras inumeráveis propostas utópicas,
com os seus motivos tão sugestivos e provocantes? A mim parece que
sejam todas legítimas e utilíssimas, mesmo se as três características que
listei, e que me parecem ser aquelas que realmente definem o gênero
utópico, não se realizam nunca com intacta pureza. São poucos os livros.
nos quais estes três fatores constitutivos se apresentam de uma forma
absoluta, sem excrescências, porque são projetos limitados e não globais,
mas que pelo seu caráter avançado tem em si alguma coisa de utópico,
enquanto se desligam com urri salto tão longo da realidade vigente, que
se torna legítimo extrair deles uma radical projeção no futuro. Trata-se
de projetos talvez elaborados minuciosamente, mas dos quais o autor
bem conhece a imediata irrealizabilidade, sem que por isto deva temer
vir a ser linchado em praça pública. Um arquiteto que expõe um projeto
muito audacioso corre apenas o risco de não encontrar um cliente
disposto a traduzi-lo em~ate: Masse mantivermos firme a,atenção sobre
os 'três fatores indicados, t fua pPeSénç~ p'éIo-rtienos parcial, deve servir
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como diferença específica para fazer-nos entender que coisa seja um
discurso utópico, e ajudar-nos assim a distingui-lo da pura e simples
projeção. Dizia nesta manhã, brincando, que a urbanística é quase
sempre utópica, mas simplesmente porque a situação efetiva, o fato de
que uma cidade se componha de estratificações milenares de interesses
e de vontades singulares, de gostos, de necessidades, de caprichos, de
opressões, de desencontros entre forças políticas e sociais, etc., faz
com que este imenso agregado seja dificílimo de manipular. Anos
atrás me pus a escrever um artigo intitulado: Urbanistas, profetas tristes.
Tristes, porque não conseguem jamais traduzir plenamente em ato um
projeto seu. Devo acrescentar que, quando alguma vez parcialmente o
conseguem, devem apoiar-se no arbítrio de um tirano - coisa não bela
-: porque apenas o despotismo pode abater qualquer resistência e impor
soluções radicais. Pense-se nas grandes artérias retilíneas da Roma de
Sixto V, este papa de ferro, velho guardião de porcos, que impôs a sua
vontade dura e sem compromissos à Cúria Romana e dividiu a cidade
com desventramentos retilíneos, coligando as basílicas com avenidas
para os peregrinos, que deviam despachadamente visitar as "sete igrejas"
sem perder-se no labirinto dos becos medievais. Não creio que se possa
falar, neste caso, de um grande projeto de urbanística moderna, mas era
sempre uma resposta aos problemas da circulação em massa de pessoas
que vinham a Roma para pagar promessas ou ganhar o jubileu. Plantou
'::_J prontamente na cabeceira destas grandes avenidas obeliscos antes
derrubados, quase como faróis de aviso para as turbas de fiéis: pense-se
na via Merulana, que liga Santa Maria Maior com São João Latrão, e daí
por diante. Também estes projetos têm um conteúdo de radicalismo, um
momento de inovação sem retardo, que representa um salto em direção
ao futuro (tanto é que as cidades efetivamente realizadas por urbanistas
são todas cidades de fundação).
Existe um outro exemplo grandioso de fracasso urbanístico que
é o "addizione Erculea" de Ferrara, uma típica cidade fluvial. As cidades
fluviais crescem, como dizem os especialistas, em forma de fuso, porque
o interesse em localizar-se sobre as margens do curso de água é maior
com relação ao inconveniente do distanciamento do centro: ou seja, é
melhor estar um pouco mais longe do centro, mas junto da corrente de
água, do que estar mais próximo ao centro, mas dentro da terra. Então
a água servia para beber, mesmo sendo água de rio. Além do mais,
Ferrara era de fato uma cidade fluvial, portanto a fuso-mas sobre uma
única margem do rio, que naquele ponto tem mais de dois quilômetros
de largura, de modo que se tratava de um meio fuso, forma não muito
estética para uma capital. Então o Duque decide dobrá-Ia de tamanho
em direção ao interior, fez construir a muralha, traçar as avenidas
y
principais, levantar algo como como 35 torres, e colocou no ângulo das
~.." duas diretrizes fund~Senta~~ad~~enoJi,.que o Palácio dos Diamantes.-
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