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Para uma definição da "Utopia'"

Luigi Firpo
Tradução de Carfos Eduardo o. Berriel

~
Luigi Firpo (Turim 1915 - Turim 1989) foi um finíssimo estudioso
de Bruno, de Campanella, dos utopistas e do pensamento político e
religioso dos séculos dezesseis e dezessete. Formou-se em direito em
1937 com uma tese sobre Tommaso Campanella e seu pensamento
político, filósofico e religioso, escrita sob a orientação de Solari, que deu
início a uma intermitente atividade de pesquisa sobre a obra do monge
calabrês - que incluiu também a Bibliografia degli scritti di Tommaso
Campanella (1940) editada pela Academia das Ciências de Turim no Hl
aniversário de sua morte - e que se estendeu a toda a história da utopia.
Em Turim, a partir de 1957, lecionou História das doutrinas políticas
1 Discurso de encerramento
primeiramente no curso de ciências políticas da Faculdade de Direito,
do Primo Convegno
em seguida na Faculdade de Siênci\ls l;>olíticas.Dedicou seus estudos Internazionale di Studi Sulle
à história das doutrinas poVticâs, com particular atenção ao período Utopie, ocorrido em Reggio
Calábria em maio de 1983,
entre Renascimento e Contra-Reforma (com estudos sobre Maquiavel, organizado pela Università
Morus, Erasmo, Botero, Boccalini e tantos outros) e aos clássicos do degli Studi di Reggio Calábria
em colaboração com a Society
pensamento político italiano, inclusive de épocas posteriores (Beccaria, for Utopian Studies (USA e
Pagano, Nitti, Croce, Einaudi). Coordenou, para a editora Utet, a mais Canadá). Publicado no volume
Utopie per gii anni ottanta
importante coleção de «Clássicos do pensamento político» no período - Studi interdisciplinari sui
do pós-guerra e a História das idéias políticas, econômicas e sociais. (Nota temi, ia storia, i ptoietí. A cura
di Giuseppa Saccaro Dei Buffa
~iográfic~ de P. P. P~~ti~ro, ~traída de ht~p:!!www.~orinoscienza.it! s Arthur O. Lewis. Gangemi
accademlalpersónaggtlãpn?obJ_iél=5M' ~ Editore, Roma, 1986.
uncr FIRPO

Coube a mim uma obrigação particularmente honrosa e


particularmente árdua, inclusive porque a hora é tardia e as mordidas
da fome começam a lacerar os vossos estômagos, motivo pelo qual a
vossa atenção, se existir, será seguramente uma vitória do espírito sobre
a carne.
Acompanhei com muito interesse este congresso, que me parece
ter conseguido ser extremamente estimulante, pela grande variedade de
temas, de posições, de aproximações, que revelou. De modo particular,
a conjunção institucional entre utopismo, isto é, entre projeto político-
social, e arquitetura, urbanística, cidade ideal, é um nexo fundamental,
destinado a perdurar em todas as nossas futuras reuniões e discussões,
porque nenhum utopista radical renuncia a delinear também o projeto
da cidade, e todo projeto global de cidade implica uma mudança da
sociedade, ou a presume e a prepara. Encontramos neste assunto,
portanto, um ponto de encontro realmente significativo.
Creio, porém, ser necessário evitar que o grande interesse
~--------~
hoje despertado pelo, utopismo - quase direi uma moda, porém uma
moda benéfica, que significa atenção concentrada, sentido da grande
atualidade permanente e da importância daquela projetividade
temerária que é a utopia - nos leve a dilatar excessivamente seus confins
até transforrná-lo em tudologia. É certo que qualquer assunto, seja de
caráter urbanístico, seja de caráter político, ou ainda de reforma apenas
parcial das estruturas sociaisç não deixa de interessar à utopia; e creio
ser nosso dever - pelo menos sinto em mim este dever - começar um
trabalho de classificação e de actiojinium regundorum, como diria um
jurista romano, para estabelecer quais são exatamente os limites que
devem separar os nossos campos de investigação, principalmente para
poderem falar todos da mesma coisa, seja simplesmente de angulação e
com competências específicas.
Estou convencido que uma utopia, para poder ser definida
como tal, para poder ingressar neste "gênero", deva ser global, radical
e prematura. São palavras pouco sintéticas, ditas deste modo, de modo
que devo tentar esclarecer uma a uma.
-A utopia deve ser global porque o projeto de reforma, sendo
substancial, sendo perturbador, mas limitado a uma pequena instituição, a
um aspecto singular da nossa vida em comum, não pode, penso eu, aspirar
ao nome de utopia. Acabo de voltar de um outro grande congresso sobre
utopismo (prova ulterior da fortuna atual deste tema), que ocorreu no
final da semana passada, às margens de Garda. O tema do congresso era:
"Utopia e Literatura". Bem, um dos relatores ilustrou minuciosamente,
até com o auxilio de projeções, um projeto do grande filósofo inglês
Bentham, que por trinta anos da sua vida elaborou, ruminou e alterou
levemente um projeto seu de cárcere modelo: uma grande torre circular,
'.: 'Jvazio.~ centro, cem muitíssimos andare~,'e sem paredes externas nem

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PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA"

internas, apenas com paredes radiais, ficando portanto no interior,


penso, os acorrentados, de modo que de uma outra pequena torre de
controle, uma espécie de chaminé colocada no centro do pátio interno,
uns poucos observadores pudessem escrutar tudo aquilo que faziam os
encarcerados nas suas celas, simplificando muitíssimo o controle. Pois
bem, este é um projeto bastante bizarro, certamente perturbador com
relação ao que se faz atualmente, não falemos daqueles da Itália, onde as
prisões são habitualmente velhos conventos ou velhas fortalezas. Mas a
sua finalidade é fortemente racionalista: trata-se de cárceres facilmente
vigiáveis, com pouco pessoal. Não há nada de utópico em um projeto
como este. Trata-se simplesmente de um projeto técnico, audacioso,
inovador, como são elaborados todos os dias, quando se desenha, por
exemplo, um hospital, uma nova escola, ou um edifício deste gênero,
menos triste que uma prisão. Ao contrário, um projeto "global" deve ser
de tal forma que envolva na sua totalidade o modo de viver dos homens
em sociedade, isto é, um projeto que não seja voltado para um único fim,
mas que seja porém importante e significativo, um pormenor que seja,
mas que ao contrário envolva a sociedade no seu complexo.
Em segundo lugar a utopia deve ser radical, porque um projeto
que implique leves variantes, pequenos retoques, um deslocamento
quase imperceptível das estruturas da sociedade em um ou outro
sentido, é assunto de todos os dias. Todos os dias os políticos, os
partidos, discutem modificações, retoques, sem pretender colocar em
movimento viradas radicais, perturbações, revoluções. Existem também
aqueles que devaneiam, mas normalmente os políticos discutem sobre
os detalhes, em torno de aspectos menores. Portanto, se um projeto não
é global, isto é, não envolve uma mudança substancial das estruturas
sociais, não considero que possa aspirar ao nome de utopia.
Enfim a característica mais importante de todas, aquela que
realmente, na minha opinião, distingue o "gênero" utópico dos
programas de reforma e do reformismo em geral, é a lúcida consciência
do seu caráter prematuro. A utopia é historicamente uma mensagem
na garrafa, a mensagem de um náufrago. Nós comum ente definimos
o utopista, na linguagem corrente, familiar, como aquele cientista e
historiador, um sonhador, alguém que não tem os pés no chão, alguém
que fantasia, que perdeu o cont~9 com a-realidade. Quero inverter esta
acepção, sublinhando o fato que o utopista, entendido como aquele que
escreve uma utopia, é normalmente um grande realista. Trata-se de
uma pessoa que possui uma tão lúcida consciência da imaturidade da
própria proposta, do fato de que ela não encontraria nenhum sucesso
prático, e que certamente o poderia arrastar para a reação violenta da
parte daqueles que não desejam ouvir falar de seu projeto, uma reação
que o reduziria ao silêncio ou indu?itavelmente colocaria em risco a s]la
integridade física. E enf~1vist~e os ~us .contemporâneos não estão

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LUIGI FIRPO

ainda em condições de compreendê-lo, ele fala aos pósteros, salta sobre


um longo arco de tempo e de gerações, e lança de fato uma mensagem,
que será então decifrada, utilizada, revista apenas mais tarde. Esta é a
motivação pela qual alguém se põe a escrever um texto utópico, e não,
ao invés, um programa, uma proclamação às multidões, o manual de
uma revolução, em suma, uma: das tantas expressões e formulações
simplesmente literárias que acompanham ou materializam uma ação
política: o comício na praça, o discurso aos eleitores, o libelo polêmico,
talvez um tratado científico, mas sempre tendo em vista uma ação
imediata, alguma coisa de praticável aqui e agora.
Em outras palavras, o utopista sabe que é um profeta desarmado.
Existiram na História muitos profetas desarmados que, entretanto, não
sabiam que eram, que acreditavam ser reformadores e que acabaram
como acabam os profetas desarmados: na fogueira, enforcados,
destroçados pela multidão, ou nas tantas outras maneiras com que,
realmente, as massas inertes, a opinião pública não ainda convencida,
rejeitam aqueles que desejam incornodá-los, fustigá-Ios, incitá-los a
fazer coisas que sentem como completamente incompreensíveis ou
prematuras. Portanto, a mensagem radical deve apresentar-se mascarada
e fantasiada, não deve ser proposta com um discurso direto e praticável,
pqrque, se fosse assim, não seria projetado em direção ao futuro, mas
voltado para um êxito imediato, que é na verdade aquele que o utopista
'::_J
pretende excluir ou elidir.
Partamos da utopia epônima ou topos, "nenhum lugar"; "nusquama"
era o primeiro nome latino, mantido por um erro de imprensa, quase
achado arqueológico, em uma passagem da Utopia de Morus; um nome
que ao ouvido do autor soava portanto como nowhere, mais uma prova,
se nos faltassem outras, de que a interpretação já insinuada no primeiro
Cinquecento, de Utopia como "eutopia", "lugar onde se está bem", ao invés
de "lugar que não existe", é uma interpretação elegante, humanista, mas
que não corresponde à verdade. A utopia se apresenta portanto, desde
o início, como meta-geográfica e meta-histórica; deve sair fora tanto
da geografia quanto da História. Comecemos pela geografia. Morus
coloca a Utopia no Oceano Atlântico meridional. Começavam as
descobertas geográficas do Novo Mundo; o livro de Américo Vespúcio,
ou pelo menos o livro elaborado com materiais de Américo Vespúcio,
saíra em 1507; eraIrl transcorridos poucos anos e já a aventura atlântica,
a descoberta da América, havia ocupado largo espaço na consciência
comum. As pessoas tornam-se curiosas com relação aos relatos
geográficos, consideram-nos fascinantes e críveis, mesmo estando todos
eles encharcados de notícias lendárias, de fantasias irreais, de acréscimos
que o narrador inseriu para aumentar a aventura da viagem, ou a própria
y
~t·.•
coragem pess,9~al,ou a novidade de uma descoberta que vem se somar a
tantas outras: i ":} o: ~.j. -- ,. . ••

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PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA'

Mas já veremos que Campanella, menos de um século depois,


coloca a sua cidade ideal no Oceano Índico, muito mais longe e
misterioso que o Oceano Atlântico. Vinte anos depois, Francis Bacon
precisará imaginar a sua Nova Atlântida no Oceano Pacífico, porque
precisa referir-se a um mar ainda não muito conhecido, dado que agora
o Atlântico era percorrido em todos os sentidos, e há tempos o Oceano
Índico é freqüentado por portugueses e espanhóis. Ao contrário, o
Pacífico é um mar tão vasto que se pode considerá-lo ainda virgem;
a experiência dos séculos sucessivos havia demonstrado que ilhas
desconhecidas e misteriosas existiam de verdade. Poderia continuar:
existem duas utopias do Seicento, da metade e do Seicento avançado, que
foram colocadas na Austrália, em um continente ainda não descoberto.
Mas então se falava de uma "Terra Australis" no extremo sul asiático,
através de notícias vagas de viajantes que talvez tivessem vislumbrado a
costa ocidental da Nova Guiné. A Nova Guiné tem um comprimento
que se prolonga de leste a oeste, e foi por muito tempo acreditada como
um grande continente, que parecia ocupar toda a parte austral do globo
terrestre. E então eis que nesta Austrália (este o nome que será dado
ao- continente quando for descoberto de verdade) são colocados outros
pJl:&s utópicos. O Settecento desembarca em um outro tipo de meta-
geografia, inventando pelo menos duas utopias subterrâneas. Estando
então a Terra toda bastante explorada e conhecida, Holberg inventa
para o seu Nicola Klim o Iter subterraneum, sobre uma civilização
localizada debaixo da terra. Massé visita pessoalmente um mundo
muito complexo nas vísceras profundas da Groenlândia, de modo a
somar a dificuldade de acesso a uma ilha gelada com aquela que impõe
um mundo subterrâneo. Essa passagem deixa claro que a utopia é hoje
a ficção científica: hoje podemos realmente inventar planetas exteriores
ao infinito nos cem milhões de hipotéticos mundos habitáveis. Na nossa
galáxia existe espaço suficiente para todas as utopias possíveis.
Por que esta necessidade de evasão pela geografia? Porque,
evidentemente, em um mundo conhecido surgiria instantaneamente o
desmentido. Logo alguém diria: "Não é verdade que exista esta cidade
ou esta ilha da qual você fala; eu estive lá, e não a vi, não existe; você é
um mentiroso". O realismo da informação é um elemento fundamental
do utopismo, porque é aquilo. que .ass,egura credibilidade enquanto,
aos olhos de um leitor não particularmente astuto, dissocia o discurso
político-utópico do puro e simples romance de aventura. A minúcia das
descrições é um fator decisivo em vista da credibilidade. Para ficar no
primário modelo da Utopia de Morus, vejamos como a um certo ponto
o narrador se põe a reconstruir na própria memória o comprimento
preciso da ponte que atravessa aquele rio Anidro, que lambe a capital
Amaurota. É evidente que o comprimento da ponte não tem nenhuma
importância, não intere:>Sã a ~éIJl,~ãQJlluda certamente ne~'a ~

»>:

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LUIGI FIRPO

estrutura comunitária, nem as relações familiares, nem os modos da


produção: é um dado aparentemente insignificante. Ao contrário, a
atitude do autor, com falsa e habilíssima meticulosidade, para se referir
com precisão a este comprimento, introduz na mente do ouvinte uma
espécie de admiração pela exatidão escrupulosa com a qual o relato r
constrói o próprio relato. Esta minúcia insignificante torna-se garantia
de credibilidade de todo o relato.
O ter estado em carne e osso nesse lugar inexistente, ou melhor,
o contar ter estado, fornece a resposta factual, concreta, a qualquer
objeção possível. Se apresento um projeto audacioso, perturbador, de
nova sociedade, sou exposto a todas as críticas daqueles que podem me
dizer: - Não pode funcionar, é impossível, você disse um absurdo, os
homens não aceitarão nunca um regime deste'gênero - ; se, ao invés,
relato que estive lá, que vivi por meses ou anos, e que tudo funcionava
à perfeição, terei superado a priori todas as possíveis objeções de não
factibilidade através do testemunho (naturalmente imaginário, mas isto
não conta) de uma atuação efetiva, de uma concreta realidade da qual eu
experimentei a eficácia e a funcionalidade dia após dia.
Mas isso não é tudo: vai-se para fora da geografia para poder-se
sair da História. É necessário que seja um lugar que ninguém jamais
tenha visto, não apenas para evitar o desmentido, mas para fugir ao
confronto. Não esqueçamos que a utopia nasce como gênero literário
....-' ..)
em século de severa opressão religiosa. Descrever paises imaginários
com regimes de vida inusitados, extraordinariamente diversos dos
nossos, ainda pode ser tolerado. Mas aquilo que pareceria intolerável
à consciência contemporânea, tanto em países mediterrânicos católicos
quanto na própria Inglaterra anglicana, seria a inexistência de contato
com o cristianismo. Não é aceitável a proposta de um modelo que não
seja cristão. Mas o utopista não pode oferecer um modelo cristão, senão
muitos problemas da vida associada estariam já resolvidos, porque
teriam encontrado uma solução dogmática, vinda do alto, de qualquer
modo implícita no Sermão da Montanha, ou na opinião de um teólogo,
ou de um decreto pontifício. Emergiria em tal caso toda uma série de
condicionamentos ou de vínculos, que paralisaria a grande liberdade
inventiva ou de proposta que o utopista reivindica para si. É necessário,
portanto, çolocar a, cidade feliz em países nos quais a mensagem do
cristianismo não tenha ainda chegado, e que por isso devem estar fora
da História e fora da geografia. Existe toda uma tradição relevante,
mesmo se hoje em boa parte esquecida, sobre o tema do homem, como
se dizia então, "constitutus in puris naturalibus", isto é, uma hipótese
analítica de como seria o homem, e como se comportaria e raciocinaria,
se não tivesse jamais recebido a Revelação. Esposar o modelo de Estado
perfeito com a racionalidade humana, recuperada na sua dignidade pelo
y
.I{. •.••
hutp~srn(),.t deJ~o agrande tentativa dos utopistas do século de ouro,

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PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA"

os mais criativos. A idéia-guia é construir mundos nos quais o homem


possa resolver os próprios problemas, sempre novos e diversos, assim
como de ora em diante toda geração possa governar-se segundo cânones
definidos apenas pela razão, isto é, com as forças exclusivas do homem,
com sua própria capacidade de análise, de proposta, de debate, de
conciliação dos interesses e das tendências, com o objetivo de criar uma
comunidade terrena governada pelas leis humanas, isto é, rigorosamente
racionais. Isto pressupõe um mundo isolado, quase sob uma redoma
de vidro, e segregado de tudo aquilo que constitui a civilização do
Ocidente: uma civilização substancialmente cristianizada. Ao contrário,
este é um mundo secondo natura, no qual o homem se utiliza apenas das
próprias naturais deduções, mas segundo o modelo de uma natureza não
corrompida nem egoísta, que descobriu o altruísmo, a responsabilidade
com relação aos outros, o dever de viverem juntos como bons irmãos, e
daí por diante. _
No caso da Cidade do Sol, de Campanella, é colocado sob plena
luz um aparente conflito de extraordinária sutileza, porque no museu a
céu aberto dos homens ilustres, pintados na parede de um dos círculos
citadinos, ele expõe os benfeitores da humanidade, os legisladores
eminentes no decorrer dos séculos, e coloca Osíris como homem
divinizado pelos egípcios, coloca Moisés como chefe, guia e legislador
do povo hebreu, e a um certo ponto vemos comparecer também Jesus
Cristo com os doze apóstolos, amontoados um tanto desordenadamente
com todos os outros. Isto não pode aparecer senão como uma negação
da divindade de Cristo; coisa não de pouca monta, dado que este
texto foi escrito em Nápoles, em 1602, por um encarcerado também
por heresia; mas poucas páginas adiante, falando do caráter de seus
Solares, Campanella afirma que se tratam de pessoas delicadíssimas,
extremamente razoáveis, que seguramente se converterão "porque são
dulcíssimos" (isto é, não obstinados), tão logo conheçam "as razões
vivas do cristianismo". Dado que esta passagem resulta anexado ao
texto depois de 1611, foi imputado a Campanella ser um oportunista
que teria querido atenuar e corrigir o próprio pensamento, por temor
de represália, e que teria esquecido de apagar em tempo hábil aquela
temerária afirmação sobre a simples humanidade de Cristo. Trata-se
de críticos que possuem um~~mp()rfeito conhecimento da teologia,
porque a frase que convoca' as .razões vivas do cristianismo, significa
de fato que esses conhecem apenas as razões mortas, isto é, possuem
conhecimento do cristianismo como fato histórico, puro acontecimento,
mas não o conhecem como evento espiritual de evangelização. Todos
sabemos que existe o budismo, e talvez tenhamos lido até algum dos
Discursos Longos de Buda ou uma biografia sua, mas a ninguém creio
ter vindo à mente converter-se ao budismo apenas por efeito destas
superficiais cognições ~p1eitur&;coi§íl ~ue talvez poderia acontecerem

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um particular ambiente e através de uma particular tensão espiritual
predisposta à predicação budista. Portanto, entre as duas expressões
campanellianas não existe contradição, porque a razão histórica não é
jamais obrigatoriamente também uma razão religiosa. Quis recordar
esta sutileza não para entrar nos detalhes, mas para fazer ver como o
isolamento religioso é para o utopismo racionalista do Renascimento
uma condição essencial. É um dado que naturalmente se atenua, mais
tarde, com o Iluminismo, quando a dissociação da sociedade civil do
pressuposto do controle religioso passa a ser celebrada em largos círculos
intelectuais, aos quais não importa nada além de construir modelos que _~
prescindam do cristianismo, porque no Iluminismo a virtus da razão
pura celebrou então os seus triunfos, talvez passageiros, mas que de
qualquer forma se projetaram em uma outra idade e em direção a um
mundo profundamente mudado.
Eis então que começamos a entrever os limites precisos do discurso
utópico: é uma mensagem projetada no futuro, um discurso imaturo.
Voltemos ao exemplo de Morus. Ele escreve no outono de 1515 um dos
livros da Utopia, o atual livro segundo, que contém a descrição da ilha e
do Estado ideal. O faz com uma tal habilidade de mascaramento, com
uma tal atitude romanceada, que a um certo ponto, de volta à pátria,
tendo mostrado seu livro a um amigo, deve ter se persuadido de que
ninguém se daria conta de que se tratava de um discurso político e que
~...,j todos o teriam entendido como um elegante romance. Ele mesmo o
sublinha, com as finíssimas alusões de que é capaz, dizendo que um
seu amigo eclesiástico se ofereceu imediatamente para ser o bispo em
Utopia, descuidado do ignoto e dos seus riscos na busca da promoção
àquela dignidade eclesiástica. Que fazer, então, para remediar este
excesso de bravura? Morus recorre a um expediente quase absurdo
nesta linha de desenvolvimento que procurei delinear. Escreve o atual
primeiro livro, que é, para todos os efeitos, um tratado de sociologia
sobre a situação inglesa, para esclarecer que, uma a uma, as soluções
sociais propostas no livro segundo são as respostas saneadoras dos males
que laceram a Inglaterra contemporânea. O primeiro livro não tem nada
de utópico: é uma série de análises dos desequilíbrios e das insânias de
um ordenamento absurdo, dos pobres camponeses expulsos da terra
para que se possa criar ovelhaslOquerendem mais, dos 73.000 enforcados
de Henrique VIII (eram ladrões, mas seu número equivaleria na Itália a
mais de um milhão de cidadãos, dada a população relativa, que somava
então três milhões e meio de habitantes). Aqui temos claramente um
utopista puro, o inventor do mais marcante e radical desenho utópico,
que sente a necessidade de descobrir-se pelo menos aos olhos dos mais
argutos, porque se mascarou muito bem, dissimulou com um excesso
y
de qualidade a própria mensagem, não quer correr o risco de que
'fique indecifrável, e~é.lFece libÍa cha,s-e imerpretativa a quem quiser
~,,>~

234
PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA'

compreendê-lo,
Eis então que o futuro nos reserva outros discursos aparentemente
utópicos, que atravessam, ou pelo menos tocam de leve, este nó central,
duro, preciso, inequívoco: a utopia como mensagem cifrada de um
projeto imaturo, radical e global. Imaturo não na elaboração, porque
na mente de Morus e de Campanella o projeto é definido nos menores
detalhes, mas dissimulado ao ponto que ninguém o perceberia. Para
Campanella isso é uma complicação a mais, porque se materializa
imediatamente depois de convalescer das lesões que a tortura atroz
lhe infligiu, depois de seis meses passados no cárcere entre a vida e a .>:
morte. A Cidade do Sol é a primeira coisa que escreve, e não por acaso,
porque os conjurados calabreses haviam deformado completamente
e subentendido a sua mensagem, isto é, o tinham, como muitas
vezes acontece nos movimentos de insurreição popular, de qualquer
jeito matérializado e brutalizado. Campanella prevê na sua Cidade o
comunismo sexual com o fim de seleção da raça e de "expropriação", de
modo que quem não pode conhecer filhos próprios afinal se torna pai
de todos, e portanto desinteressado; mas os conjurados se aventuram
a saquear as casas dos ricos, repartindo assim as riquezas ao invés de
colocá-Ias em uso comum. E daí por diante. Publiquei há anos um
fragmento de uma carta que Campanella escreve ao seu lugar-tenente,
Frei Dionísio Ponzio, um outro dominicano como ele, o "número dois"
do grupo dirigente da conjura: a este frade o Filósofo escreve: "loquebaris
quae minus intelligebas", falavas de coisas que não havias compreendido
de fato, isto é, havias degenerado e aviltado um sonho gigantesco, nobre,
de regeneração e de libertação. Eis então que a Cidade do Sol foi escrita
como uma enérgica resposta, não sem uma certa tendência à idealização,
e como reivindicação de um ideal traído.
Qpe dizer então de todas as outras inumeráveis propostas utópicas,
com os seus motivos tão sugestivos e provocantes? A mim parece que
sejam todas legítimas e utilíssimas, mesmo se as três características que
listei, e que me parecem ser aquelas que realmente definem o gênero
utópico, não se realizam nunca com intacta pureza. São poucos os livros.
nos quais estes três fatores constitutivos se apresentam de uma forma
absoluta, sem excrescências, porque são projetos limitados e não globais,
mas que pelo seu caráter avançado tem em si alguma coisa de utópico,
enquanto se desligam com urri salto tão longo da realidade vigente, que
se torna legítimo extrair deles uma radical projeção no futuro. Trata-se
de projetos talvez elaborados minuciosamente, mas dos quais o autor
bem conhece a imediata irrealizabilidade, sem que por isto deva temer
vir a ser linchado em praça pública. Um arquiteto que expõe um projeto
muito audacioso corre apenas o risco de não encontrar um cliente
disposto a traduzi-lo em~ate: Masse mantivermos firme a,atenção sobre
os 'três fatores indicados, t fua pPeSénç~ p'éIo-rtienos parcial, deve servir

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como diferença específica para fazer-nos entender que coisa seja um
discurso utópico, e ajudar-nos assim a distingui-lo da pura e simples
projeção. Dizia nesta manhã, brincando, que a urbanística é quase
sempre utópica, mas simplesmente porque a situação efetiva, o fato de
que uma cidade se componha de estratificações milenares de interesses
e de vontades singulares, de gostos, de necessidades, de caprichos, de
opressões, de desencontros entre forças políticas e sociais, etc., faz
com que este imenso agregado seja dificílimo de manipular. Anos
atrás me pus a escrever um artigo intitulado: Urbanistas, profetas tristes.
Tristes, porque não conseguem jamais traduzir plenamente em ato um
projeto seu. Devo acrescentar que, quando alguma vez parcialmente o
conseguem, devem apoiar-se no arbítrio de um tirano - coisa não bela
-: porque apenas o despotismo pode abater qualquer resistência e impor
soluções radicais. Pense-se nas grandes artérias retilíneas da Roma de
Sixto V, este papa de ferro, velho guardião de porcos, que impôs a sua
vontade dura e sem compromissos à Cúria Romana e dividiu a cidade
com desventramentos retilíneos, coligando as basílicas com avenidas
para os peregrinos, que deviam despachadamente visitar as "sete igrejas"
sem perder-se no labirinto dos becos medievais. Não creio que se possa
falar, neste caso, de um grande projeto de urbanística moderna, mas era
sempre uma resposta aos problemas da circulação em massa de pessoas
que vinham a Roma para pagar promessas ou ganhar o jubileu. Plantou
'::_J prontamente na cabeceira destas grandes avenidas obeliscos antes
derrubados, quase como faróis de aviso para as turbas de fiéis: pense-se
na via Merulana, que liga Santa Maria Maior com São João Latrão, e daí
por diante. Também estes projetos têm um conteúdo de radicalismo, um
momento de inovação sem retardo, que representa um salto em direção
ao futuro (tanto é que as cidades efetivamente realizadas por urbanistas
são todas cidades de fundação).
Existe um outro exemplo grandioso de fracasso urbanístico que
é o "addizione Erculea" de Ferrara, uma típica cidade fluvial. As cidades
fluviais crescem, como dizem os especialistas, em forma de fuso, porque
o interesse em localizar-se sobre as margens do curso de água é maior
com relação ao inconveniente do distanciamento do centro: ou seja, é
melhor estar um pouco mais longe do centro, mas junto da corrente de
água, do que estar mais próximo ao centro, mas dentro da terra. Então
a água servia para beber, mesmo sendo água de rio. Além do mais,
Ferrara era de fato uma cidade fluvial, portanto a fuso-mas sobre uma
única margem do rio, que naquele ponto tem mais de dois quilômetros
de largura, de modo que se tratava de um meio fuso, forma não muito
estética para uma capital. Então o Duque decide dobrá-Ia de tamanho
em direção ao interior, fez construir a muralha, traçar as avenidas
y
principais, levantar algo como como 35 torres, e colocou no ângulo das
~.." duas diretrizes fund~Senta~~ad~~enoJi,.que o Palácio dos Diamantes.-

236
PARA UMA DEFINIÇÃO DE "UTOPIA"

Mas até hoje aquela parte de Ferrara é uma cidade semipovoada,


disseminada de hortos e jardins em abundância, porque a vontade
política não foi suficiente para impor a realização de um aglomerado
urbano, que mais uma vez se apresentou como uma criatura espontânea,
rebelde, intolerante, ignara de regras, que cresce do modo como cada
um dos interessados quer fazê-Ia crescer, através de um longo curso de
acontecimentos e de anos.
Faço votos que estas ocasiões de encontro se repitam no futuro
e possam se articular em seções nas quais distribuir as intervenções
específicas sobre o autêntico romance político utópico, qual modelo
audacioso projetado no futuro, ou, ao invés, em secções, contribuições,
etc., no qual germes de utopismo, isto é, de radicalismo inovador,
possam constituir uma espécie de constelação em torno do assunto
principal. "Utopia e Literatura" era o tema do Congresso ocorrido há
pouco tempo em Garda: bem, a utopia é inseparável da literatura. Não
se pode delinear um projeto romanceado de cidade ou de prisão sem
literatura. Até o cartaz "Proibido fumar" é literatura, tanto é verdade
que poderia substituí-lo por outro que dissesse: "Sois cortesmente
solicitados a não fumár", ou por um outro que ameaçasse: "O primeiro
que fumar será fuzilado". São modos diferentes de comunicar decisões
da autoridade, e são formas literárias. Mas no utopismo a componente
literária é fundamental exatamente porque deve recorrer à mensagem
cifrada, a este disfarce de grande habilidade, para tornar aceitável as
sugestões através de uma leitura não atenta. Pronto, talvez o segredo
seja realmente este: alguém pode ler um romance utópico sem se sentir
envolvido, sem o medo que aquela instituição lhe caia sobre as costas no
dia seguinte através de uma revolução social. O lê como um capricho,
uma estranheza, mas no entanto se habitua com a idéia, entra naquela
ordem, primeiro com a fantasia, depois devagarzinho pensa sobre ela.
Quando parar para analisar os males e desigualdades do mundo em
que vive, lhe poderá voltar à mente que, veja só, em um livro que havia
lido quando era jovem com ânimo leve, só por divertimento, aquele
problema parecia ter encontrado uma solução. A utopia não é mais que
uma pequena semente sepulta na terra, mas destinada a germinar em
um futuro melhor.
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