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CAROLINA GAIO

O (não) lugar do amor


Copyright© Razzah
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou utilizada no
todo ou em parte sob quaisquer meios existentes sem autorização
por escrito de editora e autora.

O (não) lugar do amor é uma obra de ficção baseada no


romance-tese homônimo da autora sobre a fragmentação do
amor contemporâneo. Quaisquer referências a pessoas, locais e
eventos, fictícios ou não, foram feitas de maneira ficcional e não
correspondem a fatos reais.

Edição e produção Razzah Publishers


Revisão Christian Danniel

O (não) lugar do amor


Carolina Gaio
2ª Edição
Maio de 2020
ISBN: 978-65-86980-03-5

RAZZAH Publishers
Av. Mem de Sá, 126 – Lapa
20230-152 – Rio de Janeiro/RJ
www.razzapublishers.com
Para Gustavo.
E para todos aqueles que sabem
nos tirar do lugar.
Nietzsche
tinha razão.
Não há ceticismo perante o
amor. Mas há um emaranhado
louco, que no transcurso de uma
vida – ainda que consigamos a
tão afamada descoberta de seu
sentido – não é possível
desenrolar; há o amor.

Em suas formas e expressões


variadas. Há o amor nos
conclamando para a dopamina,
para a serotonina, para a
insônia e para os domingos
inteiros chorando no quarto.

Talvez seja esse o sentido.


Ou talvez a nós, reles mortais
que lidam todo o tempo com o
sentimento de “não entendo
porra nenhuma desta merda de
vida”, só reste mesmo escrever.
Capítulo 1 | janeiro

-A Gisela vai me deixar maluco!


- Você que escolheu, e eu avisei, nem vem reclamar
agora.
- Porra! Tive opção? Era a única com uma pesquisa
mais ou menos parecida com a minha. Ela inventou que
eu tenho que ler em alemão. Alemão, Júlio!
- E você sabe alemão? – Júlio perguntou com aquele
deboche peculiar.
- Sei ler mão, serve? Fiz um curso de quiromancia on-
line, tenho até certificado.
- O pior é que eu sei que isso é sério.
- Muito.
- Mas devo adverti-lo de que suas previsões não se
realizaram nem de longe. A Manuela confirma. – Júlio
forjava um tom pomposo.
- O que achou da primeira reunião?
- O Fabrício me avisou pra não esperar muito do gru-
po, no começo a empolgação faz o ego falar mais alto do
que a pesquisa.
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- Antes fosse só no começo.


- Mas me surpreendeu. Gostei de algumas coisas que
a Artêmis e a Barbarella falaram. O Rogozov é estilo Niet-
zsche, além do bem e do mal – Leonardo riu concordan-
do. – O cara é fera. E o Villa gosta de instigar, acho que faz
de propósito, eu vejo ele gritando “sangue” nas próximas
reuniões. Ele deve conhecer bem cada um dali.
- Conhece, aposto que fez um levantamento da vida
pregressa. Acha que conseguimos descobrir quem é
quem?
- Elementar, meu caro Leozão! É só levantar as linhas
de pesquisa da galera do programa, dar uma lida em um
artigo ou outro... Nada demais.
- Eu achava que seria tudo mais fácil e interessante,
é tão diferente estar desse lado. Não sabia o que me es-
perava quando você me acordou naquela quarta-feira em
outubro. Semana seguinte ao meu aniversário, e o meu
presente se tornando um cavalo de Troia. – Júlio riu do
drama forjado com que Leonardo dissera aquilo.

L eonardo levantou da cama se arrastando para ir correr.


Cinco da manhã. Acordar tão cedo chegava a ser heresia. Já
tinha quatro chamadas perdidas de Júlio. Que ânimo. Como

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ele não ouvira tocar? Olhou-se no espelho e viu alguns fios


de cabelo branco, no cabelo e na barba. Vinte e seis anos
não era idade de se aparecer cabelo branco. Muito menos na
barba! Mas até que no contraste com seus cabelos escuros e
a pele clara dava um certo charme. Ou ele estava virando o
que Júlio chamava de autoviado. O telefone tocou de novo.
Estava só para vibrar, o mistério de tantas ligações não aten-
didas solucionado.
- Júlio?! Você não ia passar aqui às 7h?
- Fala, Leozão! Abre seu e-mail agora!
- Gisela morreu? – Gisela era a coordenadora da pós-gra-
duação que, por ironia, se tornaria a orientadora de Leonar-
do. Uma mulher linha-dura de uns 40 e poucos anos, com
energia de 20. Fazia o possível para estragar a vida dos alu-
nos dia após dia, lenta e dolorosamente, segundo análise do
próprio Leonardo.
- Melhor que isso, meu chapa!
- Nada pode ser melhor que isso – os dois riam.
- Tá abrindo o e-mail?
- Estou – mentiu Leo, estava ainda procurando o carrega-
dor do notebook.
- Fomos escolhidos pro grupo de discussão do Villa.
- O quê?! – Aquela informação fez Leonardo achar o
carregador no ato. – Não é possível, cara, colei grau semana
passada, até agora só fiz a primeira prova do mestrado.
- Leozão, você foi bolsista do cara até dizer chega na gra-
duação, era só se formar que já estava dentro.

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- Não é bem assim.


- Claro que é. Publicou vários artigos com o cara.
- Disse bem, com o cara. Sozinho não consegui nem uma
linha. Puta que pariu, é verdade! – Leonardo despertou com o
e-mail do Villa mais eficaz do que café.
- Eu te disse.
- Júlio, esse grupo não era secreto? Como descobriu que
eu também fui chamado?
- É secreto. Não pode abrir o bico pra ninguém, meu cha-
pa. Digamos que eu tenha minhas fontes.
- A Luíza te contou?
- E eu lá preciso da Luíza pra saber de alguma coisa? Sim,
contou.
- Quem mais está nesse grupo? Vai falando.
- Não sei. Ela só me disse que você e eu tínhamos muitas
chances de entrar. Abri meu e-mail hoje e vi o convite, deduzi
que você também tinha sido chamado.
- Por quê?
- Você é um merdinha de um puxa-saco – Júlio ria do ou-
tro lado da linha.
- Não sei se isso é bom, quando você quebrar o coração
da garota ela vai correr pra contar pro pai que temos essa
informação.
- Isso não vai acontecer.
- Sabemos que vai.

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- Não vai. Ela já quebrou o meu. Acho que me deu a infor-


mação até como uma compensação pelo jeito que terminou
comigo.
- E como foi?
- Durante o ato. – Leonardo riu de ficar sem ar, Júlio mudo
do outro lado da linha.
- Passa aqui logo, cara, já acordei mesmo.

***

Leonardo aproveitou para ler o e-mail com calma. Ele sempre


esperou concluir a graduação pra ter a chance de participar
do Falo de Príapo, o seleto grupo era disputadíssimo, tinha
um peso muito grande pra vida acadêmica. Rolava um boa-
to de que uma mulher assassinou uma colega de quarto por
uma vaga. Era um boato mesmo, Júlio inventou e Leo espa-
lhava para os calouros. O grupo estava sob o comando de
Sebastião Villa, um catedrático linha-dura e meio excêntrico.
As meninas se derretiam por ele, dizendo que se parecia com
o Sean Connery, mas Leo sempre achou que ele estava mais
pra Costinha. Pós-pneumonia. O cara era um monstro, tinha
seis PhD’s. Seis. Comeu o fígado de Leonardo durante os anos
em que foi bolsista dele na graduação, não seria diferente
agora. Mas ele gostava.
“Prezado aluno, você foi convidado para participar do
Grupo de Discussão Falo de Príapo, sob a orientação do Prof.
PhD. Sebastião Villa. O grupo funcionará durante um ano
letivo, findo o qual os dez integrantes produzirão artigos, a
partir das discussões mensais, para o livro que será publicado

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sobre a temática escolhida do ano. Caso aceite participar, cli-


que em ‘aceito’ abaixo e você será redirecionado para nossa
página com procedimentos e regras.”
- Já leu as regras? Esse ano estão mais rígidas, pelo que
falaram dos outros anos.
- Júlio?! Que susto, cara! Como entrou aqui?
- Claudio estava saindo quando cheguei.
- Nem sabia que ele estava em casa.
- E como estava! Saiu com uma loirona – Júlio gesticulava
dando a entender que a mulher tinha seios fartos – quase da
minha altura.
- Quase da sua altura só se for traveco. – Leonardo era
alto, com 1,87m, mas Júlio era ainda maior, devia ter uns
1,95m, por aí. – O que tem de diferente esse ano? Já leu tudo?
Qual o tema?
- Essa é a melhor parte, o amor contemporâneo.
- Melhor? Tanto tema interessante foi sugerido na reu-
nião do ano passado e o Villa escolhe logo isso.
- Ele deve saber que você é frutinha e quis te agradar –
provocou Júlio. – Eu gostei do tema. Me identifiquei. Mas isso
é o de menos, o mais importante é que entramos pro FDP,
cara! E juntos!
- FDP? – Leonardo ficou pensativo – Putz, nunca tinha
pensado nisso!
- Você é muito fraco, Leozão! Aposto que foi de propósito,
isso é a cara do Tião.

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O (não) lugar do amor

- Mas é piada em cima da piada, né?! Olha o nome do


grupo...
- Você não sabe a história do nome do grupo? – Leonardo
balançou a cabeça em negação – O Villa queria chamar de
O Calcanhar de Aquiles, com a ideia de que o grupo era tão
bom que “descobria e conquistava qualquer um pelo ponto
fraco”, mas sabe como acadêmico é, parece que o pessoal
reclamou que soava mal, no sentido oposto, de que o grupo
reunia os piores alunos do curso e tal. Então, em uma noite
lúgubre, nosso prezado Tião teve uma ideia para provocar os
opositores! – Júlio parecia encenar a sua fala – Meu falo para
eles! Falo, símbolo de poder desde que o mundo é mundo. Taí.
O Falo de Príapo.
- Se era pra fazer trocadilho infame, O Fígado de Prome-
teu não seria mais interessante?
- Fígado? E desde quando fígado de intelectual preserva
a integridade?
- Costuma ser prejudicado pela boemia. Como você sou-
be dessa história pitoresca? Luíza também?
- Acabei de inventar.
- Como não percebi a catadura de David Friedman mistu-
rada com seu requinte peculiar?
- David Friedman não, sou quase um Homero da contem-
poraneidade!
- Ô! Vai ver é reencarnação dele – debochou Leo.
- Olha isso – disse Júlio mostrando a tela do computador.

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- “Prezado aluno, siga as instruções abaixo para comple-


tar seu cadastro”?
- Isso não, energúmeno! Olha isso aqui.
“Os alunos participantes só se comunicarão usando o
pseudônimo escolhido – que não deve permitir identificação.
Caso seja descoberta a identidade de qualquer membro por
outro, os membros em questão serão imediatamente afasta-
dos do grupo, entrando novos integrantes em seu lugar.
O Prof. PhD. Villa conhece as identidades dos alunos, en-
tretanto, isso não permite que haja comentários acerca do
grupo nos corredores da universidade nem mesmo com ele.
Preservem suas identidades durante este ano letivo para o
bom funcionamento e sucesso do Falo de Príapo.”
- Putz!
- É melhor você tirar o nome dele como possível orienta-
dor antes de entregar o projeto.
- Acabei de pensar nisso. Vou dar uma olhada nas pes-
quisas dos professores e mudar. – disse Leo. – Mas você já
pensou que a Luíza pode usar isso pra nos chantagear? Ela te
deu uma informação privilegiada.
- Ela já usa outra coisa pra me chantagear. E é bastante
eficaz.
- Não tenho a menor dúvida, mas ela pode acabar com
a gente.
- Não acho. Como pode provar que me falou? – Leonardo
deu de ombros. – Só pode provar que sabe e ter essa informa-
ção acabaria com o Villa. Ela não faria isso.

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- Acho que ela faria, mas ele a mataria sem pestanejar


– Leonardo falou como se estivesse declamando e Júlio riu.
- Então não faria. – Os dois riram.
- Vamos logo.

***

- Quanto já corremos, Júlio?


- Três minutos.
- Vamos dar uma pausa, maromba. – Júlio olhou fingindo
desprezo.
- Muito fraco!
Os dois se aproximaram de uns bancos que havia no cal-
çadão, perto do quiosque. Leonardo se sentou enquanto Júlio
foi comprar água de coco. Mal começara a correr e já se sentia
acabado, era assim em todas as vezes – umas três ou quatro
– em que tentava acompanhar Júlio nas suas corridas diárias.
Leonardo percebeu uma mulher se aproximar. Era uma ruiva
falsa com cabelo bem curto e enrolado, de corpo escultural e
um bronzeado de acabar com o coração de qualquer mortal.
Ele tentou disfarçar a respiração ofegante para impressionar.
Imediatamente levantou do banco, estufou o peito e lançou
um olhar ao longe com que ele julgava conquistar qualquer
mulher, embora Júlio dissesse que ele parecia o Zé Bonitinho
quando fazia aquilo.
Apoiou o pé no banco para simular um alongamento na
perna, como se estivesse distraído. A ideia não foi boa, Leo

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era meio enferrujado e sentiu doer, se contorcendo, a expres-


são no seu rosto deve ter acompanhado a sensação.
- Leonardo Vilarez! Quer ajuda aí? – perguntou a mulher,
disfarçando um risinho cínico pela situação.
- Não, estou acostumado! – Leo gesticulou como se não
fosse nada, mas ainda doía um pouco e não tinha recuperado
totalmente a postura. – Faço isso todos os dias!
- Pude notar. – A mulher continha o riso. Olhava Leonardo
de cima a baixo.
- Como sabe meu nome? Perdão, nos conhecemos? –
Leonardo estendeu a mão em um cumprimento, reparando
o quão fino era o sutiã do biquíni da mulher, parecia nem ter
forro. Aquela ruiva começou a despertar uma sensação in-
digna nele. – Certamente eu me lembraria de você!
- Reconheci pela foto do lattes! Se me permite dizer, você
é bem melhor ao vivo. – Ele se sentiu o máximo com aquele
comentário de uma mulher daquelas, ainda mais consideran-
do que demorou duas semanas para escolher a foto e depois
fez um bom tratamento no Photoshop.
- Já disse! – respondeu Leonardo galante.
- Sou uma grande admiradora do seu trabalho! Autênti-
co, revolucionário... Sinto um quê de Latour misturado com
Debord. – Aquele comentário impressionou Leonardo de uma
maneira curiosamente estranha.
- Eu sempre falo isso dos meus trabalhos! – “Que mu-
lher!”, era o que pensava.

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- Me desculpe a honestidade, mas sempre que leio seus


trabalhos, sinto que você carrega nas costas o outro cara que
assina contigo.
- É, faço esse favor a ele. – O Villa era bem famoso até,
mas, pelo jeito e por sorte, ela não o conhecia. – Eu tenho um
lado altruísta pouco divulgado.
- Dá pra notar! E ainda é atleta! – A mulher deu uma pis-
cadinha para Leo que ratificou aquela sensação indigna.
Leonardo percebeu Júlio voltando, ele agarrou a mulher
por trás, puxando pela cintura, e enfiou a cara na nuca dela,
dando um beijo. Leonardo olhou meio assustado e surpreso,
sem entender. Pegou um coco que Júlio estendeu na direção
dele.
- Gostou da Amandinha, Leozão?
- Amandinha? Essa é – Leonardo gaguejou.
- Eu tô pegando, Leozão! – disse Amanda imitando o jeito
de Júlio falar e fazendo aquela sensação indigna ir embora
no ato.
- Essa mulher é demais, combinamos de te sacanear as-
sim que ela te encontrasse! – Amanda e Júlio fizeram um hi-
-five, se olhando com cumplicidade. – Sabia que ficaria per-
turbado. – Leonardo estava completamente sem graça, mas
riu da situação.
- Sabe o que você é, Júlio?! Um Falo de Príapo, se é que
me entende. – Os dois riram.
- Não podia apresentar vocês de um jeito melhor!

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- Confesso que foi difícil segurar a risada quando fingi que


não conhecia o Villa. Você é muito cara de pau, Leonardo!
Bem que Júlio me disse.
- Você é da Comunicação?
- Da História. Mas não precisa ser de lá pra conhecer o
cara. A fama o precede – os três riram. – Vou correr, meninos,
nos falamos melhor depois. – Amanda beijou Júlio na boca e
acenou para Leonardo antes de sair.
- Então é essa a sua Amanda.
- Que retaguarda! – disse Júlio suspirando enquanto ob-
servava Amanda se afastar.
- Faz jus à propaganda que você fez.
- Se faz! Pena que o leiaute promete mais do que cumpre.
– Leonardo riu fazendo uma cara de que era um desperdício.
– Amanda tem uma irmã, a Laura. Elas não são parecidas,
mas é tão bonita quanto, lembra o tipo da Fernanda, um pou-
co mais alta – disse Júlio insinuando uma proposta.
- Dispenso. Estou aposentado.
- E Manuela, como vai?
- Cumprindo o que o leiaute promete! – Júlio riu com cer-
ta propriedade, forjada, Leonardo sabia.
- Sempre que passo em frente à construtora – Júlio apon-
tou o prédio da empresa da família de Manuela, próximo de
onde estavam – imagino o que vocês dois já fizeram naquele
escritório com essa vista. Manuela nunca foi de ter muitos
escrúpulos, né, Leozão?!

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O (não) lugar do amor

Júlio estava certo. Manuela era uma rocha administran-


do os negócios da família. Mal terminara a faculdade, aos
20 anos(!), e seu pai delegou a ela as rédeas da Desconstru-
to. Assumiu com mão forte. Manuela era uma mulher dura.
Quase rústica. Seu cachorro se chamava Beethoven por cau-
sa do filme. Jamais saberia o que era uma sinfonia. E Leonar-
do tinha um puta tesão nisso.
- Desde roubar provas na época do colégio e vender pros
colegas até o que faz agora, colocar detetive atrás dos clien-
tes pra chantageá-los – disse Leo pensativo enquanto Júlio
ria – Não é um defeito, tem seu charme.
- Se tem! Se eu não te conhecesse há 21 anos acharia que
está apaixonado. Mas sei que a causa disso é o decote. – Leo-
nardo abaixou a cabeça entre as pernas e riu.
- Não posso estar?
- Nunca esteve.
- A Manuela é a única mulher que levei a sério.
- E daí? Você não conhece o amor.
- Tenho que ouvir isso do Don Juan tupiniquim?
- Amei muitas mulheres, de maneiras diferentes. Por al-
gumas fui apaixonado anos. Por outras só um final de sema-
na. Pela maioria delas, aliás. Mas você não sabe o que é isso.
- Quanta asneira! Ler Rasputin não está te fazendo bem.
Sabe disso, não sabe? Eu vou pedir a Manuela em casamento
nas bodas dos avós dela, na sexta.
- Sempre soube que faria isso, que casaria com a primeira
que lhe impusesse rédeas. Mas errei no meu palpite, achei

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que seria a Alessandra, namoradinha de colégio. Lembra


dela, a da sua sala, que sentava na terceira fila? Cabelo enro-
lado, cara de bem-nascida. Deve ter ficado com um traseiro
gigante. Sempre achei que ficaria.
- Não ficou. É mãe solteira, encontrei-a há pouco tempo.
E toma tarja preta.
- Credo.
- A Manuela é uma mulher incrível.
- Mas não pra você.
- Não existe isso!
- É isso que faz a diferença.
- Sei lá, Júlio. Eu tenho visto a Fernanda.
- De novo?
- É.
- Parece que não é só a Manuela que não tem muitos
escrúpulos.
- Olha quem fala, tem uma mulher em cada esquina.
- Não digo que quero casar com nenhuma delas. Bem,
dizer, eu digo. – Júlio e Leo riam. – É tão estranho, conheci as
duas quando ainda nem tinham peito! A Fernanda continua
a mesma coisa, mas olha só a Manuela. – Leonardo concor-
dava com a cabeça, o pensamento um pouco distante, talvez
em Fernanda, talvez no decote de Manuela, ou um pouco dos
dois. – Se bem que a velha guarda da Fernanda compensa a
comissão de frente. A Manu sabe que você se envolveu com
a Fernanda na época da escola?

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O (não) lugar do amor

- Só você sabia disso. E elas nem eram amigas na escola,


ficaram unidas depois da faculdade. A Manuela era bem dis-
tante na época do colégio.
- A Manuela teve bulimia, por isso se afastava. A Manue-
la tem seus segredos. Todo mundo tem, não é?!
- A Manuela?! Por que ela nunca. – Leo se sentiu um pou-
co desconcertado com isso.
- Ela não fala. Nunca falou. Só eu sei.
- Como sabe?
- Uma vez eu entrei no banheiro feminino pra colocar
uma bomba no vaso e ela estava lá. Eu prometi que jamais
contaria a alguém.
- A Manuela é uma rocha, nunca imaginaria.
- Não sei se representa fraqueza. Ela sempre foi muito
cobrada, talvez fosse uma válvula de escape, como dizem.
- A minha história com a Fernanda vem de antes, né,
cara?!
- Sua enrolação também.
- Não confio na Fernanda. Ela é muito desprendida de
tudo, me deixa assustado.
- Qual o problema de verdade? Eu sempre quis saber.
- Eu não sei. A Fernanda é nômade, cara. Cada hora está
em um lugar, é evasiva, se faz de desentendida. Você a co-
nhece tão bem quanto eu.
- Isso não muda nada.

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- Como não muda? Vejo a Fernanda sem saber se a verei


de novo em 15 minutos ou um ano. Sem saber se a verei de
novo, aliás.
- Não é disso que eu estou falando. Isso muda como você
se sente em relação a ela, ou em relação à Manuela? Ou a
quem quer que seja? Mudou alguma vez? – Júlio olhou ao
longe por alguns segundos – Você é maluco de pedir a Ma-
nuela em casamento.
- A família já está pressionando, a gente não consegue
mais se esquivar.
- Isso não é motivo.
- Eu já comprei as alianças – Leo disse como se aquilo
fosse caso encerrado.
- Não acredito que você fez isso.
- Não só fiz como você será padrinho.
- Que honra assistir a um naufrágio de camarote! Quem
será meu par? Fernanda?
- Provavelmente.
- Você está de sacanagem.

-T á arrependido, Leozão? Você é muito dramático!

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O (não) lugar do amor

- Nadinha. Só me preparando psicologicamente, o


pior está sempre por vir.
- É assim que funciona! Você vai fazer história, foi
convidado pro grupo antes de ter sido aprovado na pós.
- Era só desfazer o convite, nada demais. – Júlio fez
uma cara que Leonardo conhecia, e sabia que dali em
diante viria o discurso de academicismo, blá-blá-blá.
O cavalo de Troia e as confusões daquele outubro
ficaram de um jeito mais controverso e complicado do
que Leonardo podia prever. Se aquela quarta-feira o sur-
preendera, a sexta-feira chegou mostrando o quanto a
vida pode ser inusitada.

L eonardo só queria chegar em casa e telefonar para Ma-


nuela. Era o máximo que teria dela hoje. Depois de um dia na
agência atendendo clientes que não paravam de surgir – o
que era uma bênção e uma maldição, o paradoxo inevitável
da vida – e de uma prova de língua instrumental frustrada.
Bastava ligar para ela e fazer as perguntas esperadas; pro-
meter que amanhã faria uma visita e desmarcar em cima da
hora estava em seus planos. Com sorte, terminaria de ler o
livro de Durand, o último que faltava da bibliografia do seu
projeto. Ele começava a se perguntar se a lua não deveria ser
masculina e o sol feminino, como os alemães fazem, pensan-
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do numa lógica de fechamento e abertura. Quiçá, ignorando


a dicotomia, o sol seria um símbolo diairético, descortinan-
do o bem, encerrando o mal, quiçá isso tudo formasse uma
canção clichê que ele estava compondo para Manuela. Ela
sorria mesmo de um jeito diairético. Era essa a palavra que
ele precisava achar pra rimar com os versos que tinha escrito
“então me desarme / me perco no charme / desse seu com-
portamento antiético”.
- Leonardo?
A essa altura, a voz conhecida que trazia sua mente caó-
tica de volta à realidade soava como um empecilho aos seus
planos praquela noite.
- Pai?!
Claudio estava num bar em frente à sua casa, não teria
saída. Estava acompanhado de Inácio, amigo dos tempos da
faculdade. Tem uma filha que até é ajeitada, como diria Júlio,
mas chata em desproporção. Já podia pressentir o desfecho
que o destino reservara para ele aquela noite. E não era bom.
- Senta com a gente, a Melissa tá pra chegar. Há quanto
tempo as crianças não se veem, Inácio?
- Há uns bons dez anos. O Leo ainda usava aparelho nos
dentes.
Leo poderia usar seus dons de Nostradamus para obter
algum tipo de lucro, era o que ele pensava. Se bem que es-
tava mais para “mostra danos” ter que fazer social com Me-
lissa e ainda ouvir aquelas piadinhas típicas de parentes e
amigos de família que lhe viram crescer.

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O (não) lugar do amor

- Claro, será um prazer! – “Até que mentiras sinceras inte-


ressam”, pensava consigo. – Como vai Melissa?
- Está interessado na minha filha? – Inácio perguntou em
tom maroto. – Eu aprovo.
- Aprova mesmo, Inácio? O que você tem contra a sua
filha pra aprovar isso? – Leonardo percebeu a cara de repro-
vação de Claudio diante do tom quase agressivo com que ele
dissera aquilo.
- O que eu sei é que a Melissa está mais bem-sucedida
que você, filhão! – disse Claudio tentando quebrar o clima,
sem sucesso. Leo quis conter o olhar de reprovação, mas teve
certeza de que não conseguiu pela reação hesitante do pai.
- Está ótima, termina o doutorado no final do ano. E a sua
graduação, Leo? Ainda falta muito pra terminar?
- Muito! – disse Leo de maneira leviana, enquanto checa-
va as mensagens no celular.
- Vamos deixar pra lá. Falando nisso, a dissertação de
mestrado da Melissa foi publicada em livro, o lançamento
será na próxima semana.
- Certamente irei – Leo tentou não parecer irônico ao di-
zer isso, pensando que preferiria ser torturado lentamente do
que suportar o ego de Melissa ainda mais inflado pelas cir-
cunstâncias.
- Esqueceu da viagem com a Manuela? – Leo já estava
pensando em inventar um compromisso para cancelar a via-
gem para a fazenda dos pais de Manuela, mas, naquele mo-
mento, as palavras de seu pai lhe deram um misto de alívio
e satisfação.

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CAROLINA GAIO

- Infelizmente, não irei, Inácio. Com muito pesar! – A iro-


nia mais forte do que ele.
A satisfação latente de Leo, misturada ao seu incômodo
em estar ali, fez reinar um silêncio na mesa.
- Vou ali fora, preciso fumar. Se importam?
Leo rompeu o silêncio, fugindo mais uma vez. Claudio e
Inácio sinalizaram com a cabeça que estava tudo bem e se-
guiram uma conversa sobre qualquer coisa a que Leo já não
prestava atenção, já havia saído dali, levando o copo de cer-
veja. Era uma sexta-feira e o bar estava lotado, do jeito que
tem que ser. Ficava difícil andar se esgueirando pela multidão
que se enfileirava para entrar.
Caminhou até a esquina, que ainda estava um pouco
conturbada, havia uma leveza estranha no ar, coisa de mu-
dança de estação, talvez, embora ele soubesse que isso não
podia acontecer, era outubro.
Acendeu o cigarro pensando sobre o valor não ter ne-
nhum valor, e em como Saussure foi um bom de um filho
da puta; sobre a razão das guerras – e o conflito de Simmel
dando sentido à vida a gosto de qualquer religião; ou sobre
uma revista masculina que folheara na tarde do dia anterior,
por que a cultura da revista tinha morrido junto com a era
digital? Ele era um saudosista, era isso. E pensava sobre. E
pensava que. Ou tudo isso junto. Ou nada disso.
Na calçada da frente, perto da entrada de seu prédio,
um casal discutia com veemência. A mulher estava sentada
no meio-fio, segurando os sapatos e rindo de uma manei-
ra insana, o homem tentava convencê-la de qualquer coisa
sem obter resultados. Uma mulher que passava falando ao
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O (não) lugar do amor

telefone prendeu o salto do sapato no chão. Era engraçado


ver o jeito desengonçado com que ela não conseguia se livrar
da situação enquanto tentava disfarçar para as pessoas que
passavam. Seu cabelo era totalmente desgrenhado. Alguém
esbarrou em Leo, fazendo-o derrubar o copo no chão.
- Desculpa. – Leo ouviu uma voz feminina aguda dizer,
por um lapso, achou que fosse familiar, mas vociferou qual-
quer coisa de volta sem olhar quem era e preferiu se ater a
seus pensamentos.
A mulher, do outro lado da rua, não conseguia desprender
o salto por nada. Por que não desligava o telefone? Talvez
isso ajudasse. O casal estava na mesma situação de discus-
são, mas o homem conseguiu convencer a mulher a calçar os
sapatos.
Um mendigo passou e falou alguma coisa para o casal.
O casal. Que singular maldito! O homem não gostou e gesti-
culou algo que não deve ser reproduzido, enquanto a mulher
continha o riso, mas seu olhar estava perdido. Algo estava
em desacordo ali. A mulher que estava com o salto preso,
finalmente se soltou, e guardou o telefone depois de deixá-
-lo cair numa poça bem lamacenta e, com uma naturalidade
forçada, atravessou a rua na direção do bar, como se nada
tivesse acontecido. Leo a segurou.
- Melissa?! Você.
- Leo?! Não te reconheci de longe.
- Nem eu. Estava observando seu drama com o salto pre-
so na calçada. – Leonardo tentou manter o riso discreto.
- Que vergonha!

27
CAROLINA GAIO

- Não precisa, você se saiu muito bem. – Os dois riram. –


Então, tudo bem agora? – Leo fez menção de abraçá-la, ela
retribuiu. O cheiro do cabelo era bom, embora isso não ame-
nizasse o desconforto da situação toda. E Melissa era bem
mais baixa do que ele esperava.
- Caramba, não te vejo desde que você usava fralda, Leo!
- Nossa! – Que saco!, era a tradução. Melissa não preci-
sava endossar o discurso do pai, Leonardo pensava, mas isso
fazia parte daquela tortura. O que o consolava era pensar nas
boas gargalhadas que aquela situação renderia para Júlio.
- É, mas você agia como se usasse!
- E você continua do mesmo tamanho ou é minha miopia
me enganando? – Leonardo achou que entrar na onda talvez
aliviasse aquela tortura.
Melissa sorria mordendo o lábio inferior, e balançava a
cabeça como quem fala consigo mesmo. Aquilo parecia ser
algum tipo de resposta. Leonardo não queria se dar o traba-
lho de decifrá-la, era tão indiferente em tantos níveis.
- O que tem feito, Leo?
- Passeado com o cachorro, jogado na praia, limpado pis-
cina por aí pra conseguir uns trocados. O de sempre. – Melis-
sa sorria encarando Leonardo.
- Eu estou falando sério.
- Eu mais ainda. Mas já soube que você tem novidades.
Sobre o que é o livro?
- Sobre pornografia. Foco em pornografia incestuosa. –
Leo sentiu suas palavras fugirem. Ficou assustado com a na-

28
O (não) lugar do amor

turalidade com que Melissa falara aquilo. – Ei! É brincadeira,


não precisa ficar sem graça – Melissa falou às gargalhadas.
- Não fiquei sem graça, só não esperava.
- Todo mundo reage assim. Acho que sobre isso é que eu
deveria fazer uma pesquisa.
- Não aceito ser objeto de estudo. – Leo sorria sem graça.
Melissa o fez se sentir vulnerável, e ele detestava isso.
- Não é nada disso. Estava brincando contigo. Não é nada
socialmente agressivo.
- Não ser socialmente agressivo é ruim?
- Não é?
- Não sei, só achei engraçado. Tenho certeza de que o
tema é interessantíssimo.
- Mentindo para uma psicóloga?
- Menti!
- Sem problemas. Mentiras sinceras me interessam!
- Eu... – Ele tinha pensado a mesma coisa há uns minutos.
- Você o quê?
- Deixa pra lá. É que eu não sabia que clarividência fazia
parte da grade curricular do seu curso! Podemos fazer uma
consulta qualquer dia, tipo leitura de mão ou borra de café.
- Sempre engraçadinho. – Melissa encarava Leo – Sei que
não acha que eu posso fazer nada de relevante. Você quer
mudar o mundo escrevendo uma tese na sua poltrona e via-

29
CAROLINA GAIO

jando para a Europa. Eu não fiz isso. Desperdicei um livro é o


que acha, não é?
- Conclusões indiscutíveis! Parece que você conhece to-
dos os mistérios do universo, Melissa. – Leonardo teve a im-
pressão de que bufou involuntariamente. Apesar de o tempo
em que estiveram afastados tê-los tornado dois estranhos, os
dois se encaravam com o olhar da rotina. E isso era um tédio.
- Bem. À parte conclusões indiscutíveis, acho que nin-
guém pretende passar a noite numa esquina, não é?
- Nem quem trabalha em uma. Vamos voltar para o bar?
Melissa ajeitou os cabelos olhando em um vidro de car-
ro, o que não ajudava, o cabelo era ainda mais esquisito de
perto. Leo se deu conta de que estava com o zíper aberto,
provavelmente há algumas horas, começou a articular em
sua mente o que tinha feito, de trás pra frente, para descobrir
desde quando estava assim; depois da última vez que fora
ao banheiro tinha certeza de que encontrou alguns clientes.
Agora fazia sentido o olhar enviesado que recebera de uma
mulher no ônibus, não era de bom-tom andar dessa manei-
ra por aí. Talvez devesse comprar uma calça com velcro ou
de elástico. Ficaria muito cafona uma calça de elástico? Ele
sempre foi fã de pochete e poderia militar a favor do seu re-
torno, é tão prática. Não pegaria bem chegar na agência de
pochete e calça de elástico. Prestar mais atenção ao zíper
parecia a única solução sensata, apesar de não resolver o
problema da pochete.
- Onde eles estão?
- Eles quem, Melissa?

30
O (não) lugar do amor

- Leo?! Seu pai, meu pai. Não estavam aqui?


- Estavam. – Leo procurou com o olhar – Naquela mesa,
tenho certeza.
- Ei! – Melissa parou um garçom que passava – Você viu
dois homens sentados naquela mesa? Os dois mais ou menos
desse tamanho. – Melissa gesticulando ficava ainda mais de-
sengonçada. Coisa que não parecia possível. – Sabe se troca-
ram de mesa ou se foram embora?
- Eu estava atendendo a mesa, eles encerraram a conta. –
Leo não pode conter uma risada irônica.
- Ok, obrigado. – Leo afastou Melissa de uma muvuca
que se aproximava. – Que pena! – disse Leo com um discreto
deboche – Adoraria ficar aqui contigo, mas preciso ir.
- Eu também, só vim dar uma passadinha rápida. Qual-
quer dia, combinamos alguma coisa. E eu espero você no lan-
çamento do meu livro.
- Farei o possível para não ir, quer dizer, para ir, é claro –
Leo sorria com olhar implicante.
- Não tenho dúvidas – Melissa encarava Leo sorrindo com
um misto de simpatia e ironia.
- Foi bom conversar com você! Lembrava de você bem
mais chata. Na proporção do seu ego.
- Isso não é muito gentil.
- Desculpe se pareceu que ser gentil era a minha inten-
ção. Como vai pra casa?
- Estou de moto. Parei um pouco mais à frente.

31
CAROLINA GAIO

- Ok, boa-noite.
- Boa-noite!
A hora tinha passado de um jeito estranhamente rápido e
o caminho do bar até sua casa continuava caótico, apesar de
praticamente só precisar atravessar a rua. Um casal, apoia-
do no portão do prédio, ralhou com Leo quando ele foi abrir
o portão. Mas antes que a chave girasse, ouviu um som de
buzina, e aquela voz grave inconfundível.
- Leo? Você ainda está assim?!
- Manuela?! Assim como? Tá fazendo o que aqui?
- Sabia que você ia esquecer. Bodas dos meus avós, Leo!
Se arruma logo que estou sem nenhuma paciência hoje. E já
vai pensando em uma ótima desculpa por ter passado no bar
e ter se atrasado. E por ter fumado! Mas que merda!
- Manu... – Leonardo apoiou na porta do carro sem en-
tender o furacão que Manuela trouxe consigo.
- A Fernanda passou por você hoje. Ela disse que você
falou algum desaforo e nem olhou pra cara dela!
- Ela que esbarrou em mim? E por que não falou comigo?
- Ah, sei lá! Anda, Leo, já estamos atrasados.
- Manu, hoje não dá. É que eu. – Merda, merda. Ele tinha
planejado pedir Manuela em casamento nessa festa. – Se-
gunda é a arguição do projeto, não quero sair esse final de
semana, quero revisar a bibliografia, olhar alguns pontos.
- Ah, Leo! Você prometeu que iria. O que vou dizer agora
pros meus pais? Você precisa dessa insegurança, Leo? Fala
sério! Sabemos que vai passar.
32
O (não) lugar do amor

Leo realmente não precisava. Estava seguro da bibliogra-


fia, o motivo era menos o mestrado e mais a vontade de fugir
de exercer a função namorado. Hoje ele queria ser mais con-
teúdo do que forma. A família de Manuela era do tipo que
faz responder perguntas sobre se o casamento está próximo
e quais os nomes dos futuros filhos. No mínimo três. E ele não
achava nenhum nome bonito, ou sonoro o suficiente. E isso o
remetia a Todos os Nomes, do Saramago. Que ele detestava.
- Manuela.
- Leonardo!!! Para de olhar pra minha cara que está me
irritando! Coloca uma roupa decente. Rápido.
Leonardo não questionou mais. Sabia que facilmente per-
deria, como na maioria das vezes durante esses quatro anos
em que estava com Manuela. Não se esforçava muito para
questionar, aceitar dava menos trabalho. Catou a roupa que
deixaria Manuela menos incomodada de ficar ao lado dele e
salpicou perfume de feromônio. Ele acreditava que isso tor-
nava as pessoas mais fáceis de lidar, culpa de sua veia freu-
diana. Ou de seu gosto pouco divulgado de ler revistas do
João Bidu.
Mas toda a falta de disposição para suportar a paráfrase
de trova medieval que estava por vir ruiu quando viu Manue-
la sair do carro. Ele não tinha reparado. Ela estava deslum-
brante naquele vestido preto. Os cabelos enormes e extre-
mamente enrolados cobriam um detalhe que o vestido tinha
nas costas, deixando entrever a tatuagem tribal de Manuela.
Sempre foi um mistério para Leonardo como Manuela con-
seguia conservar aquela aura de primeira vez todas as vezes
que se viam. Eu só a amo quando estou com ela, mas amo

33
CAROLINA GAIO

com aquele tipo de certeza que tira qualquer pudor. Talvez


fosse mesmo por causa do decote. Generoso decote. Imedia-
tamente lembrou das palavras de Júlio: “Quando a mulher
usa decote, pode estar com uma casca de feijão no dente, ou
pode nem ter os dentes, não dá pra reparar nessas besteiras”
e riu mais alto do que deveria.
- Leo! Tá rindo de quê? Está o maior silêncio lá dentro.
- É que. – Leo se esforçava para esquecer a imagem de
Júlio falando isso como quem defende tese de livre-docência
– Você é irretocável, Manuela.
- Eu sei. Aprecio seu jeito meio pernóstico de me elogiar.
– Manuela estava um pouco irritada, o que a deixava sexy.
Mas as palavras de Leo e seu deboche na resposta a deixa-
ram mais dócil. – Você também está bonito. Meio bobalhão,
como sempre, mas bonito. Vamos entrar logo, ok?
- O casal está des-lum-bran-te! – disse uma tia forjando
simpatia. O casal. De novo. Entidade sem corpo. Singular. Por
que singular se eram duas pessoas? Por que consumir a indi-
vidualidade assim? Isso nunca faria sentido para ele. Sempre
encontrou isso como causa para o fim dos relacionamentos:
o casal. Esse singular mata qualquer sujeito. No caso, sujeito
singular que deveria ser composto.
- Obrigada, tia, a senhora está incrível. – Manuela sorria
enquanto cutucava Leo – Leo! Nem falou com ela!
- Quem é? Não me lembro.
- É a tia Janira, mulher do irmão bastardo do meu tio-avô.
- Se é irmão do seu tio-avô também é seu tio-avô, não?

34
O (não) lugar do amor

- É bastardo. – Leo ficou confuso com a naturalidade com


que Manuela falara aquilo.
- Esse tio não é o que te acompanhou quando você foi
tirar os sisos?
- Fiquei agradecida por isso, mas ele continua sendo bas-
tardo. – Leo olhava para Manuela com o olhar da curiosidade.
Não costumava ficar chocado ou julgar o ser humano, queria
conhecer e entender como funcionava esse bicho estranho.
Às vezes ele se perguntava se Júlio não tinha razão e se isso
não era uma ausência de envolvimento com as pessoas. Ou
se perguntava se pensar esse tipo de coisa era resultado do
cliente psicólogo com ares de galã que gostava de falar umas
frases de efeito nesse estilo para os funcionários da agência,
pelo qual Leonardo, sempre meio Maria vai com as outras,
começou a nutrir certa admiração, coisa que jamais admiti-
ria, aliás.
- Você é engraçada.
- Me esforço nesse sentido. – Leonardo riu. – Preciso pro-
curar uma tia.
- Qual?
- A Joana.
- Vamos, então. Eu gosto muito dela, tem tempo que não
a vejo.
- Não dá. Eu quero falar umas coisas meio pessoais com
ela. – Leonardo achou aquilo esquisito e sua expressão deve
ter denunciado. – Ah, Leo! Coisas de mulher, de casamento,
sabe como é.

35
CAROLINA GAIO

- Eu quero participar disso, Manuela, ao seu lado. Quero


te fazer algumas surpresas, inclusive.
- Tenho certeza disso, Leo. Deixa eu te surpreender tam-
bém. – Leonardo sorriu, segurando o rosto de Manuela com
uma das mãos. Seus lábios estavam maiores e mais verme-
lhos do que nunca, no contraste com a pele morena e os olhos
bem negros.
- Você é linda, Manuela – Leonardo disse isso e a beijou.
Aquele beijo que amolecia de maneira inesperada, desde a
primeira vez. Igualzinho. Manuela sorriu para ele dando uma
piscadinha e saiu na direção do jardim.
As palavras de Júlio de repente pesaram. Ele não podia
colocar Manuela naquela situação. E de um jeito egoísta,
também não queria. Fernanda não cabia ali. Talvez ele sem-
pre soubesse disso.
- Fala, Leonardo!
- Opa! Tudo bom, cara?
- Tudo ótimo! E o casório sai quando?
- Igor, sabe que eu estava esperando essa pergunta? Só
imaginei que viria de alguma tia, jamais de você! – Os dois
riram.
- Ah, cara, quero fazer meu merchan pra tocar na festa,
sabe como é.
- Sei, sei. Depois a gente vê o repertório. Pretendo pedir a
mão da Manu hoje.
- Aqui?
- Não acha uma boa?
36
O (não) lugar do amor

- Acho perfeito, muito romântico de sua parte.


Leonardo achou engraçado o jeito com que Igor falou
aquilo. Um tanto formal. Mas o tom amigável e o clima leve
foram abalados por gritos e um estampido seco. O som era
inconfundível. Tiro. Leonardo sentiu a garganta secar imedia-
tamente, e de repente o ar faltou. Um burburinho se formou
perto da entrada principal do salão, atrás da capela. Ele sen-
tiu o sangue gelar nas veias, cortante.
- O que foi isso? – Leonardo olhava Igor confuso, ele tam-
bém parecia perturbado. Manuela apareceu com os olhos
muito vermelhos, mas não estava chorando.
- Manuela? – Igor perguntou assustado.
- A tia Joana. Ela. – Manuela abraçou Leonardo, enfiando
a cara em seu peito.
- Como? O quê? Nós. Ouvimos barulho de tiro, o que
aconteceu aqui?! Você está bem?
Antes que Manuela pudesse responder, Amaral se intro-
meteu na conversa, incisivo com ela.
- O que houve, Manuela? Todos estão desesperados.
- Pai, eu estava na suíte ajudando tia Joana a terminar
de se arrumar. – Manuela parecia arrasada, mas conseguia
manter uma fala bem lógica para aquela situação toda. Leo-
nardo sabia que não era o momento para isso, mas observar
a racionalidade que imperava em Manuela o deixava maluco,
precisava daquela mulher na vida dele. – Um homem entrou,
atirou nela e carregou o corpo. Eu gritei, pedi para que ele
pelo menos não a levasse, mas ele apontou a arma pra mim e
mandou eu ficar quieta senão seria a próxima.

37
CAROLINA GAIO

- Um homem? Como era esse homem? Como passou pela


segurança?
- Não sei, pai, ele estava totalmente encapuzado, não
faço ideia.
- Deixa eu achar sua mãe, já volto.
- Eu vou junto – disse Igor, ele parecia muito abalado.
- Manuela, que história é essa? O homem roubou alguma
coisa?
- O corpo da tia Joana estava repleto de joias e ela usava
um vestido que foi arrematado em um leilão.
- Isso ainda não faz sentido. Como o homem podia saber?
- Leo, isso deve ter sido crime encomendado, coisa de
gente grande. Tia Joana é uma mulher conhecida, uma so-
cialite, o leilão foi televisionado, inclusive.
- É, eu sei disso. Mas como sabiam? Aqui, hoje...
- A maioria das festas da minha família é anunciada, você
sabe disso. Só não sei como o homem burlou a segurança,
não sei. – Manuela olhava em volta, Leonardo a sentiu perdi-
da e sentiu também que não era o momento de questioná-la.
– Se ele teve conluio com alguém da casa de festas, todos nós
corremos algum risco.
- Que tipo de risco? Envenenamento ou algo assim?
- Sei lá, Leonardo!
- Você está bem?
- Eu estou bem. Vou falar com meus avós e vamos embo-
ra, tudo bem?

38
O (não) lugar do amor

- Sim. – Manuela se afastou. Ela, de fato, parecia bem,


apesar da situação caótica que estava acontecendo. O bur-
burinho era geral, alguns parentes de Manuela já haviam
saído, alguns choravam em pequenos grupos, outros só con-
versavam observando o ambiente. A equipe da casa de festas
não se manifestou, estranhamente, tudo estava normal para
eles. Talvez Manuela tivesse razão, talvez a casa de festas
estivesse envolvida na história. Leonardo nunca confiou em
casa de festas. Temia todos os funcionários da mesma ma-
neira que sempre temeu palhaços. Muitos sorrisos, muita
alegria, aquilo só podia esconder algo bem sórdido. E baixo
nível de higiene não era a única coisa.
- Igor! Como as coisas estão?
- Mal, tia Janira teve uma queda de pressão, minha mãe
a estava acudindo quando saí do salão.
- Por que alguns parentes não parecem muito abalados?
- Tia Joana jogava, alguns especulam que foi um rival de
jogo. E temos convidados importantes aqui, não podemos fa-
lar abertamente, temos que tentar abafar o que aconteceu.
Temos ou tínhamos convidados, isso esvaziou tão rápido.
- Não pode falar abertamente? – Leonardo falava como
que em um sussurro gritado – Ouvimos um tiro! Foi clara-
mente um tiro!
- Não acho que tenha sido tão nítido. – Igor não parecia
estar em seu juízo perfeito falando isso. Não podia estar, ele
acabara de perder a tia de um jeito inesperado e cruel.
- O que você vai fazer? Manuela e eu vamos embora.

39
CAROLINA GAIO

- Já devo ir também. Vou voltar pro salão e ver como as


coisas estão.
- Tudo bem. Qualquer coisa me liga. A proposta de tocar
no casamento tá de pé. – Igor deu um sorriso sem graça e se
afastou, fazendo Leonardo perceber que ele não tinha o me-
nor tato com as pessoas.
- Vamos, Leo! – Manuela surgiu do lado oposto do salão.
- Onde você estava, Manu?
- Falando com a equipe da casa de festas. Alegaram que
o sistema de segurança é bem rígido e que não houve nenhu-
ma alteração.
- Isso indica que eles têm culpa no cartório! Vocês têm
que começar uma investigação por aqui!
- Leo, não faremos isso. Não pode haver nenhum tipo de
escândalo com o nome da família. – As palavras de Manuela
cortaram o coração dele. Ele se sentiu como se fosse muito
mais membro da Nogueira Amaral do que ela.
- Vamos, então?!
- Vamos, já falei com todo mundo, me despedi por você
também. Disse que você está com um desarranjo intestinal e
que precisamos ir logo.
- O quê?! Por que fez isso?
- Eu só quero sair daqui logo, Leo.
- Tudo bem.
O jeito decidido de Manuela às vezes assustava Leonardo.
Não só assustava como o colocava contra a parede, o deixava

40
O (não) lugar do amor

sem ação. Mas até que ele gostava, talvez isso representasse
uma fase anal mal resolvida. Quase que literalmente, nesse
caso.
Entrar no carro de Manuela dessa vez foi diferente. Toda
aquela sensação de leveza e aventura que ele tinha ao lado
dela não estava ali. Manuela tinha presenciado o assassinato
da tia e tinha sido ameaçada. Ele queria perguntar, queria
saber tudo, mas não, não podia. De repente a intimidade que
tinham se esvaiu, e nem se deveria abraçá-la ele sabia. Os
planos de Leonardo ruíram diante disso, o conto de fadas es-
tava tomando um rumo diferente.
- Fica na minha casa hoje? Não queria dormir sozinha.
- Fico sim, Manuela.

41
Capítulo 2 | fevereiro

L eonardo chegou em casa atrasado da agência. Tinha


marcado de tomar um chope com Júlio e as meninas há
cerca de meia hora, se o relógio estivesse certo, e ain-
da precisava tomar banho. Fazia uma semana que não
ia às aulas de fotografia, a campanha da operadora de
celulares estava tomando totalmente seu tempo, sentia
um pouco de alívio agora que havia emplacado o slogan
do torneio de vôlei para os funcionários, “se joga nessa
rede”, ele assumiu para si mesmo que não achou grande
coisa, e que podia soar até irônico pela péssima cober-
tura muito comentada, mas o cliente estava satisfeito
depois de refazer detalhes por semanas. Lembrou que
precisava entregar na segunda-feira um pequeno emba-
samento teórico, uma prévia do texto inicial do portfólio
para o curso de fotografia, depois que decidiu mudar ra-
dicalmente o tema. A proposta com a nudez o instigava,
mas estudar a zona da mata estava se mostrando incri-
velmente interessante e empolgante e, enquanto a água
escorria fria e renovadora pelo corpo, ele ria sozinho se
lembrando das loucuras que já tinha feito por causa de
uma foto, de um projeto que nem terminaria mais.

43
CAROLINA GAIO

E ra novembro, e Leonardo conferiu seu nome mais de dez


vezes. Chegou a ter um lapso e a pegar a identidade para ver
se era ele mesmo. Terceiro lugar! Finalmente se tornou um
mestrando e foi aprovado em terceiro lugar! Aquilo merecia
uma comemoração, mesmo que solitária, já que Júlio resol-
veu desligar o celular para uma tarde com Amanda. Decidiu
ir ao bar que ficava quase em frente ao campus, sempre fi-
cavam alguns conhecidos por ali. Entrou procurando alguém
para dar a notícia, quando a voz suave de uma mulher o sur-
preendeu.
- Leo?! Hey, doido! – Era Melissa.
- Fazendo o que aqui, cachaceira?
- Eita! Não perde uma! Por que não foi ao lançamento do
meu livro? Leu o que mandei pelo seu pai?
- Não li – disse com ironia, fazendo cara de falso pesar
–, mas agradeço a lembrança. O livro me serve muito como
calço de mesa! Costumo andar com ele, caso precise em al-
gum bar, sabe como é. – Os dois riam com a sintonia de quem
se conhece há anos, o que era verdade e mentira ao mesmo
tempo.
- Eu sempre digo isso pros meus amigos, é a maior utili-
dade que eu vejo!

44
O (não) lugar do amor

- Infelizmente esqueci de trazê-lo hoje! Vamos ter que fi-


car em uma mesa bamba.
- Vamos, é? É um convite?
- Não se acostume, mas é. Você está diferente hoje.
- Estou diferente? É a segunda vez que nos vemos, prati-
camente. Como pode saber?
- Quem me dera que fosse a segunda vez.
- Ah. – Melissa sorria mordendo o lábio inferior – Antes
não conta, mal lembramos.
- Se você mal se lembra, sorte a sua! Tenho lembranças
tenebrosas muito frescas. – Leonardo e Melissa riam às gar-
galhadas, mas ele falava sério.
- Então acho melhor recusar o convite e não causar mais
traumas que eu não poderei curar.
- Vamos contar essa como segunda vez, prefiro zerar o
passado. Se você quiser me tratar voltando à infância não
dará mesmo certo. – Melissa sorria desviando o olhar. – Você
está diferente. Uma efusão... triste. Por quê?
- Que contradição! Deve ter algum termo da minha área
para isso, mas sei que não vou lembrar. É que apresentei um
trabalho hoje em um Congresso. Tem a ver com minha tese
de doutorado.
- Que ótimo! Essa também é sobre incesto?
- Não. Necrozoofilia.
- Que horror, Melissa! – Os dois riam, Leo ligeiramente
assustado. – Você tem a mente insana demais para lidar com
gente.
45
CAROLINA GAIO

- É uma escolha.
- Que subversiva!
- Estou longe. – E o olhar de Melissa também ficou longe.
Distante daquilo ali.
- Continue me contando. Agora conte-me o mas.
- Mas?
- Sei que tem um mas. Sempre tem.
- Sempre? Acha que o ser humano é eternamente insatis-
feito? – Leo deu de ombros – Ah, nenhum amigo foi assistir.
Meus amigos acham um saco isso tudo.
- E aposto que você vai nas apresentações de todos eles,
não é?!
- Exatamente.
- Algumas pessoas não têm estômago para essas coisas
que você pesquisa. – Os dois riam com um olhar de cum-
plicidade que era esquisito. E, de alguma forma ainda mais
esquisita e que não fazia sentido nenhum, Leo sabia que não
eram os amigos o problema.
- Não têm mesmo! – Melissa sorria. – Mas irei na sua.
Quando vai defender?
- Nem tão cedo. Não se esqueça de que ainda estou na-
quela rotina.
- Sei, sei, limpando piscina por uns trocados, enrolando a
faculdade, levando a vida de bar em bar.
- Olha aí. – Leonardo gesticulou mostrando o ambiente
em volta. – Daí pra pior! Deve faltar uns quatro anos pra eu

46
O (não) lugar do amor

terminar a graduação! Se não for jubilado antes. – Melissa


sorriu enquanto erguia as sobrancelhas.
- Parabéns, Leo. Vi que passou em terceiro lugar pro mes-
trado. Boa colocação, esse programa é bem concorrido.
- Me descobriu!
- Sua futura orientadora foi minha orientadora de mes-
trado.
- Em Psicologia?
- Eu não fiz em psi. Hey, não importa se ainda faltam dois
anos, eu irei na sua defesa, é uma promessa.
- Ok! Pode deixar que vou mudar o projeto para algo do
seu interesse envolvendo atividades sexuais bizarras!
- É a minha condição. – Os dois riam.
- E o lançamento do livro, como foi?
- Foi ótimo. Gostou da foto na capa?
- Leonardo e Melissa! Não a-cre-di-to! – Leonardo e Me-
lissa se olharam também sem acreditar. Era Patrícia, filha de
um amigo dos pais deles, única razão pela qual eles se uniam
na infância, para fugir dela, mais chata do que os dois juntos.
- Patrícia, que coincidência – disse Leo sem graça.
- Não vão levantar pra falar comigo? Ah, nem precisa.
– Patrícia se curvou para cumprimentá-los, com um perfu-
me tão forte que fez Leonardo espirrar. – Eu sempre soube
que vocês ficariam juntos, tão óbvio! – Leonardo e Melissa se
olharam com cara de cúmplices.

47
CAROLINA GAIO

- Pati, você sempre foi boa em ler o ser humano mesmo!


Mas o que conta de novo? Tantos anos que não nos vemos!
- Nem tantos, Mel! Desde a faculdade, eu larguei pra
concluir na França e acabei fazendo a pós por lá mesmo.
Sabe como é esse pessoal que se forma no Brasil. Sem querer
ofender vocês. Mas deixe meu currículo pra lá. Já que estão
juntos, podem participar do meu torneio anual de casais!
- Torneio de casais? Se tiver luta de mulheres na lama, a
Melissa é especialista.
- Tem! Como adivinhou? – disse Patrícia forçando uma
expressão boquiaberta, Leo imaginou que ele estivesse com
uma expressão semelhante, mas com a incredulidade real. –
Eu já havia fechado a lista dos casais, mas posso colocar um
casal a mais sendo meus amigos de infância.
- Que isso, Pati, longe de nós atrapalharmos seu torneio.
- Não vão atrapalhar. Nesse ano vou premiar o casal ven-
cedor com 60 mil reais!
- Sessenta mil?! – Leo e Melissa se olharam.
- Só isso, Pati? – Melissa falou com maldade enquanto
encarava Leo.
- É, é. – Patrícia ficou ligeiramente sem graça. – Bem, todo
ano Lucas e eu ganhamos. – Leonardo e Melissa se olharam
de novo. – Mas, quem sabe, vocês não conseguem?
- Olha, Patrícia, realmente, não sei se será possível. É que
a Melissa e eu, na verdade – Melissa cutucou Leonardo com
força por baixo da mesa, chegando a dar uma canelada bem
doída que Leonardo teve que abafar qualquer vestígio de dor.
– É, estamos muito interessados. E gratos.
48
O (não) lugar do amor

- Ótimo. Começa hoje e vai durar o final de semana. Do-


mingo teremos um casal vencedor. Vai ser na minha casa de
verão, vocês devem se lembrar de onde é.
- Infelizmente – disse Leo.
- Felizmente – disse Melissa, com aquela ironia tamanha
que faz do silêncio uma melhor opção.
- Estamos na primavera, procede? – disse Leonardo no
ouvido de Melissa e ela fez um gesto confirmando.
- Estou feliz que meus melhores amigos vão participar –
disse isso e saiu, de forma mais mirabolante do que entrou.
- Melhores amigos? Essa mulher ficou louca? De onde ti-
rou isso?!
- Louca está você, Melissa. Tenho certeza de que isso é
treta.
- Por 60 mil eu pago pra ver.
- Trinta, né?! – Os dois riam. – Que furada em que você
nos meteu.
- Qual é, a Patrícia sempre foi assim. Acha que pode com
a gente?
- Claro que pode, estaremos na casa dela. Ela vai nos tor-
turar de todas as formas possíveis.
- Vai ser até divertido. Você sabe chegar na casa dela?
- Infelizmente ainda lembro. Passamos algumas férias lá,
esqueceu? A última foi quando eu jurei pra mim mesmo que
nunca mais olharia na sua cara.
- Como eu posso ter te traumatizado tanto assim?

49
CAROLINA GAIO

- Isso você que tem que me dizer! – Os dois riam. – Acho


melhor irmos pra casa arrumar as coisas pra esse final de
semana que nos espera.
- Vamos, quer carona?
- Pode ser.
Leonardo subiu na moto da Melissa.

***

Leonardo jogou umas roupas no banco de trás do carro,


aumentando a bagunça que já estava devida aos livros es-
palhados. Mandou uma mensagem para o celular de Júlio,
ele conhecia a Patrícia, em uma das vezes em que foi pra tal
casa de verão, Leo levara Júlio com ele. Júlio chegou a ter
um romance rápido com ela, inclusive, embora tente negar
até hoje. Parou em frente ao prédio de Melissa, ia ligar para
ela avisando que tinha chegado quando reparou em um vulto
dentro do carro.
- Que susto, Fernanda! Do nada! Onde você...? Como?
- Boa-noite pra você também! Achei que tivesse escutado
quando abri a porta.
- Estava distraído. De onde você? Ah. Vem cá. – Leonar-
do puxou Fernanda pro colo dele, ela o beijou enquanto ele
corria a mão por suas costas procurando o fecho do sutiã, já
sentia seus mamilos eriçados roçando em seu peito.
- Leo.
- Que houve, Nanda? – Leonardo a beijava enquanto fa-
lava.
50
O (não) lugar do amor

- Eu vou pra Europa semana que vem. De vez. – Leonardo


jogou Fernanda de volta no banco do carona.
- O quê? De vez?
- É – disse Fernanda sem encará-lo. Leonardo respirou
fundo.
- Você me aparece do nada e fala isso.
- Me perdoa.
- Não tem o que perdoar. Um amigo se perdoa. – Leonar-
do respirou fundo e encarou Fernanda. – Você eu amo. – Leo-
nardo viu os olhos de Fernanda brilharem, mas ela desviou o
olhar, respirou fundo e agiu como se ignorasse o que acabara
de acontecer. Ele nunca.
- Tá indo pra onde agora, Leo?
- Visitar uma amiga de infância. – Leonardo embarcou no
tom indiferente de Fernanda. Ela franziu o cenho.
- Amiga de infância além de mim e da Manuela? Devo
considerar o Júlio uma amiga? – Leonardo riu.
- Ele conhece ela, já teve um affaire, inclusive.
- É a tal da Letícia?
- Patrícia.
- Essa mesmo. A gordinha feiosa?
- É. – Leonardo riu. – Ela até está bem bonita.
- Só conheço de nome. Você está tendo um affaire com
ela agora?
- A história é mais louca do que isso. Você tá indo pra
onde?
51
CAROLINA GAIO

- Pra um caraoquê com a Manu e a Laura.


- Ela faz um mistério com essa Laura, só conheço de
nome. Elas têm andado mais juntas do que você e ela.
- Impressão. Ah, o Júlio talvez vá com a Amandinha.
- Então os três mosqueteiros estão abandonando D’Ar-
tagnan?! – Leonardo olhou Fernanda com um olhar inquiri-
dor. Retomando tudo o que estava acontecendo ali, muito
longe daquela conversa tão superficial. Ela de início devolveu,
depois o olhou de cima a baixo.
- Fresco! Me liga na volta? Quero te ver antes de ir. – Leo-
nardo beijou Fernanda com a sensação de que aquilo não se
repetiria.
- Vai e me dá notícias de que tá muito mais feliz lá do que
aqui. É só isso que eu quero de você. – Fernanda sorriu, seus
olhos brilhavam, mas seu sorriso não era feliz. Ela olhou pra
baixo por alguns segundos e encarou Leo.
- Eu sei disso. – A certeza na voz dela também não era
feliz. Nem um pouco feliz.
Fernanda saiu deixando uma sensação esquisita. Leo-
nardo encostou a cabeça no banco, o cheiro de Fernanda no
carro doendo demais. Não soou bem aquele “eu sei disso”,
parece que ela não tinha interpretado bem as palavras dele.
Por que não entendeu? O que ela queria que ele dissesse?
Se é que queria, a Nanda sempre fazia isso. Sempre viaja-
va e sumia e reaparecia do nada. O que isso significava? Se
é que significava. Nesse caso, precisava significar. Leonardo
viu Melissa saindo do prédio, o coração ainda tinha que ser
engolido de volta pro lugar.

52
O (não) lugar do amor

- Leo, doido! Por que não me avisou que já estava aqui?


Ele teve vontade de responder que não estava ali, mas,
estranhamente, esse pensamento o trouxe de volta. Rumo à
casa da Patrícia.
A casa continuava mais ou menos do mesmo jeito que
lembravam, excetuando o tamanho do jardim que, segundo
Melissa, estava bem maior.
- Meio parado, né?
- Estranho não ter carros por aqui, são quantos casais,
Melissa?
- Ela não disse. – Leonardo avistou Patrícia acenando pra
eles. Melissa também viu. – Como nos viu?
- Essa mulher tem métodos que a própria razão desco-
nhece. – Melissa riu. Leonardo percebeu que Patrícia estava
se aproximando enquanto estacionava o carro.
- Por que se atrasaram tanto? Já íamos começar sem vo-
cês!
- Onde os outros estacionaram? – perguntou Leonardo.
- Que outros?
- Os casais do torneio. São quantos mesmo? – perguntou
Melissa.
- Esse ano será um pouco mais intimista. Venham de-
pressa! – E saiu andando na frente.
- É isso mesmo que eu entendi, Leo? Só estamos nós qua-
tro?
- É o que parece.

53
CAROLINA GAIO

- Acha que devemos levar arma? – Leonardo olhou assus-


tado para Melissa.
- Você tem uma arma, Melissa? – Melissa olhou de volta
desanimada.
- Não.
- Tem o macaco do carro, acha prudente levarmos escon-
dido? – falou Leonardo fazendo Melissa cair na gargalhada.
– Pior que eu estava falando sério.
- Não acho que dê pra piorar. Deixa eu dividir o peso con-
tigo, não precisa carregar sua trouxa e a minha mala. – Leo
olhou para a trouxa improvisada que acabara de fazer.
- Até que não está das piores.
- Há controvérsias.
Melissa e Leonardo confirmaram suas suspeitas ao en-
trarem na casa. Só havia os quatro ali. Patrícia mostrou o
quarto dos dois, de forma frenética. Era um quarto relativa-
mente grande, com uma cama de casal, um sofá e uma mesa.
Parecia ter um banheiro dentro do quarto, mas eles não tive-
ram muito tempo de reparar, deixaram as coisas e Patrícia
logo os fez descer para o “torneio”.
- Muito bem, está dado oficialmente o início do XIII Tor-
neio de Casais. – Patrícia continuou falando alguma coisa,
mas Melissa e Leonardo conversavam entre eles.
- Que história é essa de XIII? Quando começou essa as-
neira?
- Acho que o número é simbólico – disse Melissa.
- Tudo é.
54
O (não) lugar do amor

- Olha a cara do Lucas fingindo que isso é sério.


- Ele parece acreditar que é.
- Apresento os casais! De um lado, o maravilhoso, inse-
parável e inigualável casal Bombástico, composto por Lucas
e Patrícia, vulgo eu. De outro, o casal mais esforçado e sim-
pático que conheço. – Melissa e Leonardo se entreolharam.
Ele imaginou que se Manuela estivesse ali comentaria algo
sobre querer matar Patrícia a dentadas e riu consigo mesmo.
– Qual o nome de guerra?
- Nome de guerra?
- Sim, o nome do casal.
- Nome do casal chega a ser judiação – Leonardo sussur-
rou no ouvido de Melissa.
- Sadomaso é nosso nome! – disse Melissa quase que
instantaneamente dando uma piscadinha para Leo, que teve
que conter o riso. Patrícia ficou levemente corada.
- O casal... – Patrícia parecia incomodada em dizer – Sa-
domaso, composto por Leonardo e Melissa.
- Por que o nome do homem vem na frente? – Melissa
perguntou para Leonardo.
- Sei lá, ô feminista.
- Fala sério, Leo?!
- Ordem alfabética, talvez.
- Estão prontos? Vocês vão começar. – Patrícia sorria com
um olhar de quem quer fazer algum malefício a todo custo.
- Estamos sempre prontos – disse Melissa.

55
CAROLINA GAIO

- Melissa, a gente nem ouviu o que vai ser, deixa eles co-
meçarem.
- Eu sei, ô medroso – disse imitando o mesmo tom de Leo-
nardo.
- Como o casal Sadomaso está meio inseguro, o casal
Bombástico vai começar!
- Estamos inseguros? – Leonardo olhou indignado para
Melissa.
- Que situação ridícula. Nós começaremos, Patrícia.
- Certo. A primeira prova é o jogo das perguntas! – Patrí-
cia puxou o que parecia um monte de cartas.
Sua empolgação era tremenda, dava vontade de rir, mas
Leonardo segurou.
- Essas fichas contêm perguntas que serão feitas para o
casal. Cada um deve anotar sua resposta – Patrícia atirou um
bloquinho com caneta na direção de Melissa e na de Leonar-
do – para fins de verificação. O outro deve acertar a resposta.
– Patrícia puxou uma das fichas do monte – Melissa, qual a
cor preferida do seu cônjuge? – Melissa segurou uma risada.
- Amarelo – respondeu Melissa.
- Como sabia disso? – perguntou Leo surpreso, que nem
chegara a terminar de escrever a palavra.
- Me lembro de você igual a um pintinho amarelinho,
várias vezes em que nos encontramos na infância. E aquele
dia em que nos reencontramos, no bar, você estava com uma
camisa tão amarela que ardeu meu olho. Acho que nem te

56
O (não) lugar do amor

reconheci por isso. Não achei que tivesse mudado de gosto,


ou não usaria aquela camisa tão grotesca.
- Exagero seu.
- Leonardo, mostre a resposta para nós. – Leonardo mos-
trou o bloco anotado, Patrícia fez cara de desagrado. – Muito
bem. A próxima pergunta é para você. Qual a comida prefe-
rida da sua cônjuge?
- Ela cismou com essa palavra – disse Melissa enquanto
anotava.
- Fácil, língua de boi. – Patrícia fez cara de deboche.
- Leonardo?! Eu já te disse isso?
- Esse é um dos meus traumas. Eu odeio língua desde
criança e você me obrigava a comer de formas “disfarçadas”,
não se lembra? Dizia que era impossível alguém não gostar,
que era “frescura de criança” da minha parte.
- Eu te dava língua pra comer sem você saber?!
- Sempre.
- Que maldade. – Melissa sorria, no fundo, gostou da
lembrança, parecia ter um quê de sadismo. Mas de um modo
estranho, Leonardo também gostou. Melissa mostrou o blo-
co.
- Parabéns, o casal está indo muito bem. – Patrícia en-
carou Lucas e aquela troca de olhares dos dois não foi boa.
Ela parecia querer matá-lo e ele deu de ombros como se não
pudesse fazer nada. – A próxima pergunta é para a Melissa.
Do que seu cônjuge tem medo?

57
CAROLINA GAIO

Melissa olhou Leonardo por alguns segundos, enquanto


ele escrevia. Ele estava de cabeça baixa e não a estava vendo,
mas sentia seu olhar.
- Tem medo de cachorro. Foi mordido na infância. Desco-
briu da pior forma. – Leonardo olhou surpreso para Melissa,
não sabia que ela lembrava daquilo. De repente ela parecia
se importar com ele. – Foi mordido pelo meu cachorro e odia-
va ele. Uma vez, tive que passar minhas férias inteiras sem
meu cachorro por causa do Leonardo. Quando voltei, ele ti-
nha morrido. – Melissa contou a história com certa amargura
guardada. Agora fazia bem mais sentido a sua lembrança,
e nem de longe ela se importava com ele. Típico. Leonardo
mostrou o bloco. Patrícia estava desconcertada.
- Pergunta para o Leonardo. – Patrícia o encarava com um
olhar que deveria ser desafiador na intenção dela, mas dava
um misto de medo e vontade de rir. – Qual a maior prova de
amor que sua cônjuge te deu? – Melissa ergueu as sobran-
celhas.
- Hey, Patrícia! Isso não é uma pergunta do jogo, você
nem tirou uma ficha! – disse Melissa parecendo alterada.
- Minhas regras, querida.
- Suas regras uma ova!
- Leonardo não sabe responder? Nunca deu nenhuma
prova de amor para ele? Menos seis pontos para o casal Sa-
domaso, o casal Bombástico toma a dianteira! – disse Patrí-
cia.
- Hey, mas vocês dois nem jogaram! – disse Melissa in-
dignada.

58
O (não) lugar do amor

- Melissa, qual o problema de responder isso? Não faço


ideia do que responder, mas você não pode falar? – Leonardo
não estava entendendo a proporção da reação dela.
- Não é isso – disse Melissa e se virou para Patrícia – isso
é roubo, essa é uma pergunta que não dá pra responder!
- Dá, sim – disse Lucas abrindo a boca pela primeira vez
na noite. – Se você já fez, dá.
- Tá bom, Lucas. Então, Patrícia, qual a maior prova de
amor que o Lucas te deu? Aliás, melhor, qual a maior prova
que ele te daria, já que se conhecem tão bem? – disse Melissa
ainda alterada enquanto Lucas pegou a caneta com Leonar-
do e começou a escrever.
- Se eu acertar, passamos à frente, Melissa?
- Pensei que isso fosse pré-requisito.
- O Lucas beberia meu sangue por amor – disse patrícia
erguendo as sobrancelhas de uma forma assustadoramente
estranha. Lucas mostrou o bloco.
- Vocês já fizeram isso? – Leonardo olhou para os dois
achando aquilo tudo muito forçado. – Deixa pra lá, vamos
continuar os jogos.
- Chega de jogos por hoje. Amanhã, continuaremos de
onde paramos. Lucas e eu vamos reformular as perguntas
para nenhum casal ser beneficiado injustamente. – Leonardo
buscou o olhar de Melissa, mas ela não correspondeu. – Po-
dem se dirigir aos aposentos de vocês. – Patrícia segurou a
mão de Lucas em um gesto teatral e se afastou.

59
CAROLINA GAIO

Melissa finalmente correspondeu o olhar de Leonardo,


mas não disse nada. Foram para o quarto e até sentarem-se
na cama não conversaram.
- Isso aqui é um pesadelo, Leo! Por que esse tipo de situa-
ção é tão engraçada nos filmes?
- Nos filmes rola sexo.
- Bela cantada! Achei que demoraria mais pra fazer isso.
– Melissa ergueu só uma das sobrancelhas, seu fraco.
- Hey, hey! Não foi uma cantada! – Leonardo falou ligei-
ramente indignado. – Eu disse sexo de maneira geral e não
contigo.
- Desculpa, eu estava brincando. Sexo comigo seria uma
ofensa? – Melissa ficou meio sem graça.
- Olha, você é gente boa, mas não queria que rolasse esse
tipo de coisa entre a gente. Isso nem deveria ser uma ques-
tão.
- Leo! Eu estava brincando. Eu também não olho desse
jeito pra você, ou nem estaria aqui. – Leonardo olhou pra Me-
lissa pedindo desculpa com o olhar.
- É, eu que peço desculpa, nem precisava de tudo isso. Eu
quis dizer que nos filmes são casais que estão ali.
- Nem sempre. Às vezes só viram um casal depois.
- Deu no mesmo. É um casal, eles só não sabiam ainda. –
Melissa olhou pela janela por uns segundos. Respirou fundo e
virou o rosto, encarando Leonardo com um olhar desafiador,
tentando recuperar o clima ameno.

60
O (não) lugar do amor

- Acho que nos filmes é tudo engraçado porque tem cer-


veja! Nem pra ter isso aqui.
- Bom, cerveja eu não garanto, mas encontrei isso aqui
na despensa da Patrícia – disse Leo erguendo uma garrafa
de vinho.
- Você roubou isso? – disse Melissa rindo com um misto
de espanto e orgulho.
- Roubar é uma palavra forte, não? E não tem só essa. –
Leo puxou mais duas garrafas.
- Passa isso pra cá! – Leo abriu a garrafa de vinho, deu
uma golada no gargalo e passou para a Melissa, abrindo a
outra.
- Você sabe o que nós devíamos estar fazendo, não é?
- Questionário um sobre o outro para o show dos horrores
de amanhã?
- Nunca. Pensando em algum malefício pra fazer praque-
les dois. – Os dois riram.
- Trancá-los com aquela chave-mestra? Raspar a cabeça
da Patrícia enquanto dorme? Colocar laxante em alguma co-
mida? Que tal passar cocô no vaso? Caso um deles acorde à
noite pra ir ao banheiro e não acenda a luz, eles.
- Mel, eu já entendi! – disse Leo às gargalhadas. Melissa
tinha uma risada gostosa, era bom estar ao lado dela. – O
que achou da resposta do Lucas hoje?
- O vampirismo de Eros? – disse Melissa com ironia e Leo
ria às gargalhadas.
- Vampirismo de Eros é demais!
61
CAROLINA GAIO

- Se eu ainda consultasse, deixaria um cartão com ele. –


Leonardo riu – Melhor do que isso são as escolhas imparciais.
- Ô! Não podemos dizer que não esperávamos por isso de
alguma forma.
- Mas eu fiquei curiosa pra saber o que você ia falar. –
Melissa deu uma golada no vinho. – Qual é a prova de amor
que você daria pra uma mulher?
- A deixaria ir embora. – Melissa deu uma gargalhada. –
Qual a graça?
- Amor verdadeiro! – disse Melissa irônica.
- Eu acho que amar é dar liberdade, é se sentir bem em
abrir mão do outro.
- Abrir mão? Leo, que loucura! Você ama uma mulher e
quer ficar longe dela?
- Não quero ficar, a vida leva.
- A vida leva? As pessoas não fazem escolhas? – Leo deu
uma golada no vinho com o olhar perdido.
- Escolha é ilusão, Melissa.
- Acho essa sua abnegação bem egoísta, pra ser sincera.
- Andou lendo Mauss? – Leonardo sentiu um tom de de-
boche sair sem querer em sua voz. Melissa o encarou por al-
guns segundos e deu uma gargalhada.
- Que vício em teoria! Eu li, se isso te faz me achar uma
pessoa melhor. Mas, não, eu nem pensei nele. Só falei o que
vejo em você. E antes que me questione, também não disse
como psicóloga. – Leonardo buscou o olhar de Melissa que-

62
O (não) lugar do amor

rendo se desculpar pelo tom com que dissera aquilo, de novo,


mas ela observava qualquer coisa pela janela. – Que seja! Eu
só não entendi por que ela precisaria ir embora. Isso já acon-
teceu, não é? – Melissa voltou a olhar a janela, e só obteve o
silêncio como resposta.
Leonardo fechou os olhos e pensou em Fernanda. E pen-
sou nela de uma maneira extremamente profunda, sentia o
cheiro meio ácido, a pele, os cabelos, até seu toque ligeira-
mente bruto. Mas assim como fez com Fernanda, também
deixou seus pensamentos irem embora. Encarou Melissa e
falou:
- E você, Mel?! Tá aí de sacanagem comigo. Qual a prova
de amor que você daria pra um cara?
- Eu escreveria um livro pra ele. – Leonardo encarou Me-
lissa pela decisão com que dissera aquilo. – O que foi?
- Você é mais fria do que eu.
- Fria? Seu empenho, sua dedicação, seu conhecimento,
suas noites de sono, suas ideias no meio de um engarrafa-
mento, as referências que ninguém mais vai entender. E seu
lirismo. Escrever tem sempre um lirismo, por mais acadêmica
que seja a escrita. Quer mais exposição do que escrever? É a
maior entrega de você mesmo.
- Puro egocentrismo. E por que é bom dar – e disse num
tom diferente – você mesmo pra alguém? Quem quer essa
porcaria? – Melissa sorria e brincava de desenhar na garrafa
que, a esta altura, já estava vazia. – O melhor que eu poderia
dar pra uma mulher não é o que eu sou, mas é ela mesma.
– E a imagem de Fernanda insistia em voltar, com um fundo

63
CAROLINA GAIO

musical sertanejo, como Leo sempre gostava de fazer com


seus pensamentos.
- Acho individualismo demais, ninguém precisa de tanto.
Ou talvez tudo isso seja só efeito do álcool.
- O mais provável, Melissa. O mais provável. – Leonardo
olhou para Melissa por alguns instantes, observando o jeito
meio desengonçado que tinha mesmo sem fazer nada. Era
engraçado. – Por que você topou isso, Mel? Não é pela grana,
né?!
- É, não tenho muita esperança de que veremos a cor da
grana.
- Essa grana nem deve existir.
- Você é mais novo, mas Patrícia e eu éramos muito uni-
das antigamente, estudamos juntas até a faculdade, meu pai
namorou a mãe dela uma época até. Mais brigávamos do
que qualquer outra coisa, mas pode ser formação reativa. –
Leonardo riu.
- Espera. A mãe dela não é casada com o pai?
- Sempre foi. – Os dois se olharam com cumplicidade.
- Sei que é estranho, mas por alguma razão inexplicável,
eu gosto da Patrícia.
- Que bonito – assim que Leo disse isso Melissa começou
a rir. – O que foi?
- Você acreditou mesmo que eu gosto dela?
- Essa história é mentira? – disse Leo meio confuso e pen-
sando que deveria levar o ser humano menos a sério.

64
O (não) lugar do amor

- A história é real, mentira é eu gostar dela, sempre foi


um saco.
- Também acho. – Os dois riam.
- Eu vou te contar porque estou aqui, talvez você possa
me ajudar. Se abrir o bico eu te capo durante a noite. Fiz dois
anos de veterinária e sei castrar. – Leonardo olhou assustado.
- Quer matá-la? – disse Leo sussurrando e olhando em
volta.
- Não! – Melissa ria intrigada. – Eu lembro que essa casa
tem uma biblioteca incrível.
- Tem mesmo, tinha me esquecido disso.
- É. Sempre olhei pros livros querendo roubar alguns, mas
era criança, não teria como carregar. – Leonardo ria descon-
troladamente
- E agora que pode carregar vai fazer isso?
- Claro. – Leonardo ficou sério.
- Mesmo? – perguntou Leonardo intrigado.
- Sim.
- Não sabia que você era cleptomaníaca. – Melissa forjou
um olhar de reprovação pra ele.
- Somos dois, então. Você é ladrão de vinhos e eu de li-
vros.
- Isso já deu um romance.
- Topa? – Leonardo ficou pensativo por alguns segundos.
Conhecia Patrícia desde criança e aquilo era roubo.

65
CAROLINA GAIO

- Com certeza. – E pensou que por essas razões eles talvez


merecessem uma indenização por aturá-la por tanto tempo.
- Fiz uma lista com alguns títulos, mas podemos ir olhan-
do e pegando.
- A ideia me interessou, mas admito que ainda não sei se
está falando sério.
- Claro que estou, Leo! Espera. – Melissa abaixou procu-
rando alguma coisa na mala. Tinha uma tatuagem no cóccix,
não dava pra ver direito o que era, mas era verde. Puxou uma
sacola dobrada, a sacudiu e ela se transformou numa bolsa
gigante. – Trouxe só pra isso.
Aquele plano mirabolante ser mesmo sério deixava Leo-
nardo um pouco assustado, mas ele se deixou levar.
- Vamos logo que pelo que eu me lembro do tamanho da
biblioteca, vamos demorar a noite inteira.

***

- Aquele puxa-saco do Lucas tá fazendo ginástica no jardim!


Não temos como sair agora!
- A essa hora? Qual o problema dele? – Leo olhava Lucas
o achando altamente esquisito, enquanto puxava a bolsa lo-
tada de livros, arrastando no chão.
- Talvez seja maníaco, vi pouco pra saber.
- Foi uma pergunta retórica, Mel. – Leonardo riu.
- Ah, sim.
- Teremos que esperar pra sair.
66
O (não) lugar do amor

- Dormir aqui e sair amanhã é suicídio! E se ela descobrir


algo?
- Não temos opção, o Lucas está perto do carro, teremos
que esperar. Vai dormir, você parece cansada. Eu vou ficar
acordado, não se preocupe, costumo dormir pouco mesmo –
o que era uma mentira deslavada, mas Melissa pareceu acre-
ditar ou fingiu que acreditou por causa do chamado de Mor-
feu. Largou a mala pesada com Leonardo e entrou na casa de
volta, não levou um livro sequer pra ajudar.

***

Leonardo acordou e viu Melissa lendo sentada em cima de


uma mesa que tinha no fundo do quarto, perto da janela. A
cena seria engraçada se ele não estivesse com o típico mau
humor matinal com que sempre acordava. Tentou falar algo
com Melissa, mas ela parecia muito concentrada na leitura,
resolveu ir até ela.
- Bom-dia! – Melissa falou com um tom de voz que lem-
brou os pedreiros da obra próxima à casa de Leo. Achou en-
graçado e irreverente aquelas palavras vindas de Melissa.
- Isso é pela minha cara de sono?
- Não, é porque está nu. – Leonardo olhou pra baixo e
ficou surpreso. Estava realmente nu. Tentou se cobrir com
qualquer lençol que achasse, o mais rápido possível.
- Nem precisa se preocupar. Já vi. E não é grande coisa.
- Obrigado! – falou Leonardo com ironia. – O que significa
isso?

67
CAROLINA GAIO

- Você tira a roupa de madrugada e eu que tenho que


explicar? Me poupe!
- Bom-dia, meu casal preferido! – disse Patrícia abrindo a
porta. E nem deu tempo de pensar – Nossa, vocês são incan-
sáveis! – Melissa riu.
- Pois é, Pati, daqui a pouco desceremos. Estamos em um
momento um pouco íntimo – disse Melissa se aproximando
de Leo de uma maneira que o assustava – como você pode
perceber. – Melissa fez menção de abraçar Leo, mas o olhou
de cima a baixo e parece que achou melhor só segurar sua
mão.
- Admiro casais que estão juntos há pouco tempo, são as-
sim mesmo! Lucas e eu já estamos juntos há quase oito anos.
- Só, Patrícia? Melissa e eu estamos juntos há pratica-
mente 26!
- Você não perde essa mania de fazer piada sem graça –
disse Patrícia dando uma olhada marota para Melissa, que
retribuiu como quem concorda, se desarmando. – De qual-
quer forma, é melhor deixar os dois a sós mesmo. Concluam a
brincadeira e desçam em meia hora. No máximo. – E saiu de
uma forma engraçada, tentando parecer enigmática.
- Mel, você podia ter me acordado um pouco antes, não
acredito que peguei no sono.
- Leonardo... – falou como quem chama atenção enquan-
to sentava na mesa de novo.
- Diga.
- Você ainda está nu.

68
O (não) lugar do amor

Os dois riram. Melissa voltou para a leitura e Leonardo


para seus pensamentos, enquanto vestia a roupa.
- Melissa, me responde uma coisa com sinceridade. Rolou
alguma coisa entre a gente? Eu não estava bêbado o sufi-
ciente para esquecer, mas achei estranho acordar nu.
- Claro que não, Leonardo! Você estava debaixo das co-
bertas, nem vi quando tirou a roupa, na verdade.
- Será que sou sonâmbulo?
- Que nada, deve ter esquecido que não estava em casa.
Esse livro é bom, você deveria ler.
- Já te disse que não gosto de ficção, acho uma perda de
tempo.
- Mas gosta de História, né?! – O comentário de Melissa
parecia uma crítica que ele não entendeu, talvez tivesse per-
dido a referência. – Acho que vai gostar desse.
- Qual o autor?
- Já esqueci. – Melissa virou o livro para procurar e caiu
um papel de dentro dele. – Aposto que é alguma simpatia pro
Lucas. – Os dois riram.
- Dentro de um livro?
- É a cara da Patrícia! – Leonardo abaixou para pegar e
entregou à Melissa – Ih, é uma foto. Será que ela fez vudu
pra alguém?
- Eu não duvidaria, deixa eu ver. – Leonardo pegou a foto.
Ele engoliu em seco quando viu.
- Leo?! Você ficou pálido. Você conhece? – Leonardo se
sentou na cama meio tonto com a foto que acabara de ver.
69
CAROLINA GAIO

- Melissa, essa foto é de uma tia da minha noiva que foi


assassinada há pouco tempo.
- Você é noivo? Hey, assassinada?! Você acha que...
- Acho.
- Acha que a Patrícia matou a tia da sua noiva? Ela é des-
compensada, mas não acho que seja assassina. Mataria por
quê?
- Não sei. A Manuela, a minha noiva, disse que estava
com a tia, um cara entrou encapuzado, atirou nela e a carre-
gou. Ela estava usando muitas joias e um vestido recém-ar-
rematado em um leilão.
- Nossa. Esse cara poderia ser a Patrícia?
- Olha a altura dela! Poderia ser ela ou alguém de conluio.
- Não sei se a Patrícia carregaria uma pessoa facilmente.
- Eu quero investigar isso.
- Você está implicando comigo ou isso é sério? Essa histó-
ria é estranha, ninguém mandou investigar?
- Quem dera, Mel! Isso é muito sério. Eu estava presente
quando tudo aconteceu. Eles não querem investigar, não po-
dem fazer escândalos, são uma família famosa. Talvez você
conheça, a Nogueira Amaral.
- A sua Manuela é a Manuela Nogueira Amaral? A her-
deira da Desconstruto?
- É, a própria.
- Nossa, nunca imaginaria vocês dois juntos.
- Por quê?
70
O (não) lugar do amor

- Ela é bonita demais pra você. – Leonardo olhou para


Melissa com um misto de indignação e concordância. Era a
verdade. – Eu te ajudo se quiser investigar.
- Eu quero. Mas se a Patrícia está envolvida de alguma
forma, também corremos perigo. Isso tudo pode ser até uma
emboscada.
- Liga pra Manuela e conta isso tudo.
Mas antes que pudesse pegar o celular, Patrícia abriu no-
vamente a porta do quarto. Segurava uma faca. Leonardo e
Melissa se entreolharam. Olhares gelados.
- Por que a demora? Achei que seria desnecessário vir
aqui de novo – disse Patrícia enquanto cortava uma maçã em
pedaços com a faca e comia, encarando e se aproximando
dos dois. Melissa olhou para Leonardo e ele sentiu a garganta
secar.
- Patrícia, quem é essa mulher? – Melissa pegou a foto
e mostrou para ela. Leonardo se afastou. Sentiu que estava
sendo covarde, mas era quase involuntário. Patrícia pegou a
foto e olhou por alguns instantes.
- Não faço ideia. Parece uma cartomante hippie. Eu de-
veria saber?
- Achamos essa foto dentro de um livro seu. Como não
sabe quem é?
- Um livro meu?! Que livro? Como acharam? – Melissa
olhou para Leonardo como se pedisse ajuda.
- Aqui no quarto mesmo. Achei interessante e comecei a
folhear.

71
CAROLINA GAIO

- Qual o nome do livro? – Patrícia se aproximou de Leo-


nardo olhando fixamente em seus olhos, brincava de rodar a
faca com a mão esquerda. Leonardo não fazia a menor ideia
do nome do livro.
- Esse aqui. – Melissa colocou o livro entre Leonardo e
Patrícia, e ele olhou para ela com um misto de alívio e agra-
decimento. Patrícia apoiou a faca e o resto da maçã na mesa
e pegou o livro. Folheou como se não o reconhece, até que pa-
rou em uma página e começou a ler. Um sorriso estranho se
abriu em seu rosto, Melissa e Leonardo se olhavam buscando
ajuda, mas sabiam que não podiam se ajudar.
- Esse livro nunca foi meu. É do meu padrinho Jorge, um
amigo da minha mãe. Tem tempo que não o vejo. Deve ter
esquecido aqui.
- Esse livro é do Jorge? Aquele esquisitão? – disse Leonar-
do logo se arrependendo de suas palavras, Melissa também
se arrependeu por ele pela cara com que o olhou.
- Você nem nunca o viu – disse Patrícia.
- Nem preciso ver pra saber que é esquisito! Você e sua
família contavam cada história sobre ele. – Leonardo forçou
um tom camarada a que Patrícia não correspondeu. Ela era
quase do tamanho de Leonardo, e o dobro dele pros lados,
mas parecia extremamente acuada com aqueles comentá-
rios. Melissa forçou um toque amigável no braço dela, talvez
como se quisesse redimir Leonardo.
- Como sabe disso, Pati? – disse Melissa tentando aliviar
o clima pesado.
- Simples, dedicatória. Não viram? – Patrícia mostrou a
página para os dois com certa indiferença para Melissa.
72
O (não) lugar do amor

“Jorge, diferenças existem / devo dizer / não vamos ne-


gar / vemos as estrelas / somos maiores / Sua Joana.”
- Sua Joana?! – Leonardo e Melissa se entreolharam.
- Devia ser uma namorada – disse Patrícia sem dar muita
importância. – Me deu um pouco de saudade dele.
- Joana é a mulher da foto – disse Leonardo um pouco
exaltado.
- A tia da Manuela? – Melissa perguntou a ele.
- A cartomante hippie? – Patrícia retrucou em seguida.
- Ela não é nem cartomante nem hippie!
- Como sabe? Parece.
- Patrícia, você não conhece mesmo essa mulher? – Pa-
trícia olhou Leonardo como se não o levasse a sério e deu de
ombros.
- Melissa e eu temos que ir embora. Podemos voltar no
próximo torneio, gostamos muito.
- Desistiram do prêmio? Ninguém é páreo para o casal
Bombástico! – Patrícia era totalmente desequilibrada falan-
do isso, parecia que ela realmente acreditava naquilo.
- Infelizmente para nós, Pati! Perdemos, não temos a me-
nor chance, é melhor desistir antes que a vergonha aumente.
– Melissa falou isso e deu um abraço em Patrícia, Leonardo
esticou o braço para a mesa e afastou a faca dela.
- Como acharem melhor. Estão convidados para voltar. –
Leonardo acenou para Patrícia e fez um cumprimento com a
cabeça enquanto ela se afastava.

73
CAROLINA GAIO

- Que situação, Leo!


- Você ficou maluca de abraçá-la?
- Ela não estava mentindo. Ela não conhece a Joana, nun-
ca viu esse livro. Ela pode ser louca, mas assassina, com cer-
teza não é.
- E esse tal de Jorge? Temos que ir atrás dele.
- Esse pode ter culpa no cartório. Achei aquela dedicató-
ria estranha, tem algo ali.
- Nem reparei. Temos que tentar descobrir onde esse Jor-
ge está, nem perguntamos à Patrícia!
- Ela não sabe, aquilo não foi fingimento. A mãe dela
pode saber o paradeiro do cara, talvez até conheça a Joana –
disse Melissa e Leonardo bufou.
- Preparada pra pegar a estrada pro mundo real? – Melis-
sa ergueu as sobrancelhas mostrando as malas prontas.

***

- Como foi o caraoquê na sexta?


- Ótimo! As meninas são divertidas. Missão cumprida na
casa da Patrícia?
- A noite rendeu bem mais do que você imagina.
- Percebi pelas mensagens. Vocês assaltaram a casa da
Patrícia? Aquilo foi sacanagem, não foi?
- Foi nada! A Melissa já foi pra lá de caso pensado, che-
gando lá eu descobri o motivo pra empolgação dela.

74
O (não) lugar do amor

- Vocês dois foram de caso pensado, né, Leozão? O res-


surgimento da Patrícia veio a calhar pros planos de vocês.
Conseguiu tirar as fotos?
- Tirei, mas dei mole! Apaguei nu, tive que fazer uma
cena pra Melissa de manhã.
- Como você apagou nu? Por que não colocou logo a rou-
pa?
- Fui ver se as fotos tinham ficado boas, deitei e fiquei
pensando nos efeitos, nos textos pro portfólio. Apaguei,
acontece!
- Acontece?! Apagar pelado na casa de um estranho?!
- Patrícia não é estranha e essa talvez tenha sido a coisa
menos estranha do meu final de semana.
- Estranha é tudo o que a Patrícia é. As fotos ficaram
boas, pelo menos?
- A do Lucas nem tanto, o cara estava se exercitando, tirei
de longe, como eu ia explicar tirar uma foto dele nu?
- O cara estava nu?! – Leonardo olhou Júlio como se o
repreendesse.
- Claro que não, Júlio! Eu estava! O meu projeto visa ava-
liar as reações das pessoas ao serem fotografadas inespera-
damente por um fotógrafo nu. Ainda tive uma trabalheira
danada de posicionar a segunda câmera no meio do jardim!
- É, eu sei disso. Já ouvi isso daí várias vezes. Mas você
não tem sido honesto! Você só tira fotos das pessoas sem
elas saberem que você está tirando.

75
CAROLINA GAIO

- A sua você sabia! As das meninas também, a da Nanda,


a da Manu.
- Nem me lembre desse dia. Somos só três e te conhece-
mos. Bem diferente do que diz seu projeto, não? Quantas fo-
tos você tem que colocar no portfólio de acordo com o edital
do curso?
- No mínimo 20.
- Você está trapaceando.
- Eu não podia adivinhar que eu passaria na seleção, o
curso é concorrido e geralmente só entram pessoas que já
têm trabalhos famosos, pelo menos no meio. Eu soube da
aprovação semana passada, tenho que entregar o portfólio
amanhã!
- Você me falou. Eu avisei para inscrever um projeto mais
acessível. Enfim. Conseguiu quantas fotos até agora?
- Terminei. A da Melissa foi a última.
-E como tirou a dela?
- Dormindo, né.
- Acho que ela te ajudaria se você contasse. Fez trata-
mento de imagem pra simular que ela estava acordada?
- Foi o jeito. O portfólio está praticamente pronto, faltam
só alguns ajustes. O curso já começa na quarta.
- Você está cada dia mais louco. Só não me diga que tra-
çou a Melissa.
- Nem pelo esporte. Ela é gente boa, mas não me atrai
em nada.

76
O (não) lugar do amor

- Não atrai ninguém, né, Leozão?! Aquela estirpe de anos


70, magricela toda vida, não tá com nada. – Leonardo riu
como se censurasse Júlio, mas no fundo concordava com ele.
– Estilo prancha de surf, nada de frente, nada de lado, nada
atrás, chatinha até dizer chega e ainda se acha o máximo.
- Já acabou a lista de elogios? – disse Leonardo irônico.
- Eu poderia continuar, sei que concorda comigo.
- Eu até acho que ela é bonita, mas não rola química.
- Ali não rola nada de Química a Linguística! – Leonardo
olhou para Júlio como se quisesse mudar o assunto.
- Ela me disse que vai ajudar a descobrir quem matou a
tia Joana.
- Criminologia faz parte da grade, isso deve ser de algu-
ma utilidade nesse caso. – A disciplina realmente estava na
grade de Psicologia, mas Júlio dissera aquilo com o deboche
de quem não perde uma oportunidade. – Eu não entendi di-
reito a história que você me contou. Por que achou que o tal
namorado do livro tem culpa no cartório?
- A dedicatória do Jorge foi esquisita e a foto no livro era
bem recente. Isso não quer dizer nada, mas é o mais próximo
que temos de uma pista. Conversamos com a mãe da Pa-
trícia, mas ela não teve nenhuma informação contundente
sobre o paradeiro do cara, a verdade é que não conseguimos
achar nada. Todo mundo que eu achava que podia ter algu-
ma culpa no cartório, a Melissa me garantia que não sabia
nem de longe.
- Peraí, Leozão. Jorge? O namorado do livro era o Jorge?
Por que não disse antes?

77
CAROLINA GAIO

- Como eu podia adivinhar que você conhecia o cara?! Eu


mesmo só ouvi falar. Que Jorge é esse?
- Jorge Villa. Isso te diz alguma coisa?
- Villa? Parente do Villa? Do Sebastião Villa?
- Irmão gêmeo.

L eonardo estava de volta ao mundo real. E bem de


volta depois daquele banho. Teve algumas ideias para o
layout dos totens que a operadora pretendia colocar em
seu evento, mas, como, sempre, não as anotou e elas fi-
caram difusas em relação ao que ele tinha pensado. A
música que estava tocando no celular foi subitamente
interrompida.
- Fala, Leozão! Tá aonde?
- Já cheguei há meia hora, tô no bar te esperando.
- Aprendeu a mentir mal assim comigo? Eu que es-
tou aqui, e vendo você chegar com esta enorme cara de
pau! – Leonardo avistou Júlio, deu um sorriso maroto e
desligou o celular.
- Cadê a Amanda?

78
O (não) lugar do amor

- Vem mais tarde com a Manuela, parece que foram


ajudar a Laura a escolher uma roupa pra uma festa.
- A Amanda conhece essa Laura?
- É a irmã dela!
- Não sabia que era a mesma pessoa. Como a Manu
ficou tão amiga da sua cunhada? – Leonardo falou cunha-
da com certo tom de provocação que Júlio ignorou.
- Eu conheci a Amanda através delas, na verdade.
Mas isso não importa. – Júlio parecia querer cortar o as-
sunto, Leonardo logo entendeu o porquê. – Tem novida-
des sobre o assassinato?
- O máximo que consegui descobrir foi que a dedica-
tória tem duas possibilidades de leitura.
- Somente as linhas ímpares? São três possibilidades,
na verdade, de baixo pra cima também faz algum senti-
do. – Leonardo olhou intrigado para Júlio, como ele con-
seguiu perceber aquilo tão rápido? Ele mostrou o livro
rapidamente para ele na última vez em que correram na
praia, fazia uns três dias. – Isso não é nada demais, có-
digos de apaixonados. Descobri algo que ajuda a chegar
perto do nosso suspeito.
- O quê?
- Lembra da Francisca?
- Aquela amiga da Melissa que conhecemos numa
exposição?
- Ela mesmo! Diga-se de passagem, me pediu seu
telefone. Eu dei. – Leonardo ficou meio intrigado, pediu

79
CAROLINA GAIO

dois chopes enquanto Júlio falava. – Encontrei com ela


por acaso num sebo ontem, conversa vai, conversa vem,
descobri que o pai dela compra joias.
- E?
- Adivinhe quem apareceu por lá na segunda venden-
do joias raras!
- O Villa!
- Quase! A Villa, na verdade. Luiza!
- A filha do Sebastião?
- Isso mesmo. A Chica comentou comigo que achou
estranha a quantidade absurda de joias, especialmente
por serem muito valiosas, que uma mulher levou na loja
do pai essa semana. Até então, eu não pensei nela, mas
quando ela me deu a descrição, tive certeza.
- A Luiza é bem comum, pode ter sido outra pessoa.
- Aí é que tá. Eu tinha uma foto dela no celular, mos-
trei e ela confirmou. Perguntei se ela lembrava o nome da
mulher. Luiza.
- Você acha que o Sebastião é o culpado? E que deu
as joias pra filha pra disfarçar?
- Não sei se foi pra disfarçar, ele não tinha interesse no
dinheiro. Acho que quis se livrar. A minha hipótese é que
o tiro não foi pra matar, não acho que houve assassinato,
ele sequestrou a Joana e vai usar isso contra a Manuela.
- Por que faria isso? Acha que foi direcionado à Ma-
nuela, então? Eles se conhecem?

80
O (não) lugar do amor

- Longa história, Leozão. Quando eu estiver menos


ébrio te conto. Mas, sim, acho.
- E por que ele não entrou em contato?
- Quem disse que não? Só a Manuela pode nos dizer.
- Ela não quer tocar no assunto, se esquiva.
- Vamos conseguir essa informação. – Júlio ficou pen-
sativo por uns instantes. Pediu mais dois chopes ao gar-
çom. – Onde foi o tiro?
- Não sei, cara! Não consigo falar sobre isso com a
Manuela, e nem acho apropriado forçar, ela presenciou
tudo.
Leonardo sentiu alguém tapar seus olhos, por trás. As
mãos macias com cheiro adocicado eram inconfundíveis.
- Manuela!
- Demoramos?
Manuela chegou com Amanda, cumprimentando os
dois. A aura leve que trouxeram consigo afastou o inqué-
rito que Júlio e Leonardo queriam fazer. Júlio pareceu ter
a mesma sensação, porque retribuiu o olhar que Leonar-
do lançou em sua direção.
- A Laura poderia ter vindo com vocês – disse Leonar-
do em um tom curioso.
- Manuela deixou ela em casa antes de me buscar na
faculdade, até ligamos dizendo que passaríamos lá de
novo, mas ela estava cansada e não quis vir.
- Vocês não estavam juntas escolhendo uma roupa?
– perguntou Leonardo.
81
CAROLINA GAIO

- Eu estava na aula! – Amanda emudeceu no final da


frase assim que Júlio a cutucou por debaixo da mesa. Ele
deveria aprender a ser discreto, mas cutucou, sem que-
rer, a perna de Leo ao mesmo tempo, Leonardo percebeu
Júlio e Manuela se entreolharem.
- O que estão escondendo de mim?
- Laura e Manu foram comprar um presente pra você,
era segredo – disse Amanda buscando o olhar de Júlio e
de Manuela, fazendo Leonardo sentir que não deveria ter
falado nada.
- Estragamos a surpresa – disse Manuela meio sem
graça.

82
Capítulo 3 | março

E ra a festa a fantasia que a “Lanternagem e pintura” or-


ganizou, a banda em que Júlio tocava bateria. Leonardo ti-
nha virado duas tequilas, o que para ele era muito, sempre
fraco pra bebida. Se aproximou do palco e viu Fernanda de
costas, pulando animada. Ela estava usando aquele mesmo
macacão que usou da última vez em que se encontraram, há
quase dois meses, aquele que ele deu a ela de presente e que
a deixava ainda mais bonita naquelas formas. Ela ainda não
pintava o cabelo de loiro nessa época, usava bem escuro e
estava enrolado. Ele nunca tinha visto Fernanda de cabelo
enrolado, achou bonito, estava preso em um rabo de cavalo.
Júlio olhava fixamente pra ela e ela parecia acenar para ele
enquanto dançava. Ele a puxou pela cintura e a beijou. Tal-
vez fosse saber que ela viajaria no dia seguinte e que não a
veria por um ano ou um pouco mais, ou a surpresa de ela ter
resolvido ir de última hora, mas aquele beijo estava diferente,
Leonardo nunca tinha beijado Fernanda de maneira tão pro-
funda e quente. Ele sentiu seu corpo amolecer inteiro naquele
beijo, ele a descobria de novo. E gostava. Aquela mulher não
podia ir embora, como só percebeu isso agora? Seria tarde
demais? A cintura de Fernanda estava incrivelmente fina, ela
devia estar correndo com Júlio durante esse tempo em que

85
CAROLINA GAIO

não se viram. Ela usava uma máscara do Fantasma da Ópera,


provavelmente emprestada da Manuela, era a cara da Ma-
nuela isso. Mas uma sensação estranha estava ali.
- Eu estou bêbado demais ou você colocou silicone? –
Dois meses. Ela fez a cirurgia e não falou nada? Mas aquele
volume todo nunca esteve ali, Leonardo conhecia bem.
- Silicone, Leo?! – Ela deu uma gargalhada. – Isso está aí
há muitos anos! Achei que tinha me reconhecido, mas parece
que você agarra estranhas em festas agora! – ela disse isso e
puxou a máscara. Não era Fernanda. Era Manuela.
- Manuela?! – Leonardo sentiu a garganta secar.
- Pelo jeito agarra mesmo! – A cara de surpresa que
Leonardo não conseguia desfazer deve ter levado Manuela
àquela conclusão.
Manuela. Ele não a via desde o último aniversário de Júlio
e era setembro, então tinha quase um ano. Como Manuela
conseguia ficar cada vez mais bonita? O cabelo enrolado. E
ele nem reparou. Melhor não falar pra Fernanda que beijara
Manuela por engano. Mas que engano, Manuela não era só
linda e divertida do alto daqueles 1,78m, Leonardo acabava
de descobrir, numa estranha sintonia, um interesse por ela.
Repentino e talvez maior do que deveria. Pegaria mal levá-
-la pra cama? Já se conheciam há 17 anos. Dezessete anos.
Nada mais justo, pelo jeito prometia.
- Eu estava brincando, sabia que era você, Manu – disse
Leonardo acariciando a pele com cheiro adocicado – é que
estou um pouco bêbado.
- Isso eu percebi, me agarrar do nada! Nunca imaginei.
– Manuela sorria um pouco sem graça e era lindo. – Mas eu
86
O (não) lugar do amor

gostei. – Ela sorriu e o beijou de novo. Aquele sorriso que ele


nunca achou palavras pra definir, mas que deixava qualquer
um entregue. As covinhas. O celular tocou, era uma ligação
de Fernanda.
- Vou atender... – Leonardo mostrou o celular e se afastou.
- Fernanda? Achei que viria.
- Te falei que era difícil, tenho que estar pronta mais cedo
do que imaginava amanhã pra embarcar. Mas a Manu me
disse que vai! Veio até aqui mais cedo e pegou uma roupa
emprestada. Já se viram? Faz tanto tempo que talvez vocês
nem se reconheçam, né? Manda um beijo.
- Ainda não – mentiu ele –, mas mando, sim, acabei de
chegar. Não te vejo mais?
- Não dá tempo, Leo. Estou ligando pra avisar que deixei
o caderno de cifras na portaria do seu prédio. Estava aqui,
achei quando fui arrumar as coisas.
- Obrigado, senti falta. – Leonardo sentiu Fernanda evasi-
va, o que era típico. – De você também.
- Aham, aproveita, um beijo.
- Boa viagem.
Desligou o telefone, observando em volta. Risos e más-
caras. Máscaras. Júlio no palco, com o olhar distante, tocava
altamente concentrado, muito mais agora do que quando
Leonardo chegou. Ele sempre lembrava do personagem de
Jack Black em Escola de Rock quando o via tocar. Sentiu al-
guém o abraçar por trás, e aquele toque esquentou seu corpo
de um jeito estranho. Era Manuela. O sorriso largo e a imensa
vontade de que aquela sensação não acabasse nunca mais.
87
CAROLINA GAIO

Na época, ele não se deu conta, mas costuma lembrar como


foi uma certa ironia do destino nessa hora a “Lanternagem
e pintura” começar a tocar uma versão hardcore da música
“She will be loved”, do Maroon 5.

-E ssa foi a primeira vez que vocês ficaram, Leo-


zão? Pensei que vocês já estavam juntos há algum tem-
po, parecia.
- Você tá maluco? Eu tinha um relacionamento com
a Fernanda, apesar dos pesares. E a Manuela. Olha, eu
nunca. Sempre esqueço de te perguntar. O que você que-
ria falar com a Manuela naquela noite?
- Como assim? Sei lá!
- Ela me disse que devíamos esperar o show terminar,
porque você queria falar algo importante com ela, mas
no meio da bebedeira e da empolgação acabamos indo
pra minha casa e só lembramos disso no outro dia.
- Isso tem cinco anos! Não faço a mínima ideia! – Júlio
deu uma última golada no chope e jogou uma nota na
mesa. – Paga daqui, estou te devendo da última. Amanhã
acordo cedo.
***

88
O (não) lugar do amor

O telefone não parava de tocar. Como Júlio conseguia


manter essa vida quase paradoxal de intelectual e atleta
sempre seria um mistério para Leonardo. Abriu os olhos
embaçados pelo sono, imaginando que devia ser meio-
-dia pelo jeito que o sol estava. Acordar a essa hora, junto
com a visão do livro pequeno lido pela metade em cima
da cômoda fez Leonardo perceber que ele estava fracas-
sando nas duas áreas. O telefone insistente.
- Fala, cara!
- Acorda, Leozão. Preparado pra voltar a investigar o
assassinato da tia Joana?
- Putz, cara! Esse monte de teoria me fez até esquecer
disso.
- Teoria nada, culpa da comidaria dessas festas que
você e Manu têm ido, sei que você fica empolgado com
isso. – Era verdade. Leonardo bem sabia que isso somado
às inúmeras tentativas de Manuela de deixar isso pra lá
fez com que Leonardo esquecesse por um momento. Ou
a falta de talento e tato que lhe era peculiar pra lidar com
indícios. As frequentes citações de Ginzburg que ele cos-
tumava fazer contradiriam isso. Balela, puro forjamento
acadêmico no qual ele estava completamente imerso.
- Tá aqui por perto?
- Na sua porta.
Desligou o telefone, levantou se ajeitando para rece-
ber Júlio.
- Quer café?

89
CAROLINA GAIO

- Café depois do almoço é bom – disse Júlio implican-


do com a hora que Leonardo estava acordando, enquanto
abria a geladeira pra pegar a garrafa de água. – Mudaram
os copos de lugar? – Leonardo mostrou com a cabeça a
pia lotada de louça.
- Boa sorte aí! E me conta, então a Manuela conhece
o tal do Jorge?
- Não só conhece como odeia. Mas eu acho que a
implicância dela vem mais pelo Sebastião do que pelo
Jorge, antes do mestrado eles até se davam bem, ela aju-
dava ele e a Joana se encontrarem escondido.
- Antes do seu mestrado?
- Antes do mestrado dela, né, Leozão?!
- A Manuela é mestre?
- Em que mundo você vive, cara? Ela foi do FDP até,
mas abandonou o grupo pelas constantes brigas com
o Villa. Muitas regras, inclusive, foram implantadas por
causa dela. As identidades secretas até a última reunião
e não poder ser orientando do Villa, por exemplo. – Júlio
estava dando um nó na cabeça de Leonardo. Ele estava
ao lado de Manuela há tanto tempo e, no entanto, ela co-
meçava a parecer uma estranha. – Não precisa se sentir
culpado por não saber disso.
- Eu não estou me sentindo culpado! – disse Leonar-
do sabendo que não se enganava nem a Júlio. Se sentia
completamente culpado e alienado.
- A Manu terminou o mestrado uns dois anos antes
de vocês começarem a namorar, e vocês não eram tão
próximos antes.
90
O (não) lugar do amor

- Não é isso, ela não comenta nada disso comigo,


nunca me falou nada. Ela sabe que estou no grupo.
- Ela não gosta de falar sobre isso por causa dos pro-
blemas que ocorreram na época. Você conhece a Manue-
la, ela gosta de apagar e fingir que as coisas ruins nunca
aconteceram. E eu já te disse que a Manuela odeia o Villa
e ela sabe da sua devoção por ele. Ela não falaria nada.
- Essa história é muito confusa! Por que ela odeia o
Villa? Por que passou a odiar o irmão dele e, o que mais
nos interessa agora, por que o Jorge precisava se encon-
trar escondido com a tia Joana?
- É um namoro de adolescência, você conhece a No-
gueira Amaral de perto. O Jorge sempre foi o típico cara
da área de humanas, militante da burguesia, largadão,
maconheiro, que vivia chapado discutindo filosofia e cujo
único bem é uma bicicleta, o cara era uma caricatura das
pessoas da nossa área.
- O oposto da Joana.
- Na verdade, não. A Joana mudou muito pra dançar
conforme a música. Ela era uma ovelha negra da famí-
lia, e não era em qualquer família. A adaptação foi uma
questão de sobrevivência.
- A eterna guerra da biologia e da cultura?! Quase
uma formação reativa, como diria a Melissa.
- Exatamente. – Júlio sorriu balançando a cabeça, es-
tava meio pensativo. – Eu vejo muito da Joana na Manue-
la, não gostaria que ela fosse pelo mesmo caminho.
- Como assim?

91
CAROLINA GAIO

- Não importa. A questão é que a Nogueira Amaral


iniciou uma rivalidade com os Villa, o Jorge sofreu muito
e ela acabou virando recíproca. A guerra fria estava ins-
taurada.
- A família do Villa tem dinheiro.
- Mas não tem a tradição dos Nogueira Amaral.
- Que a Melissa me perdoe, mas tem coisas que nem
Freud, só Hobsbawn explica! – Júlio riu – Mas você disse
que a Manuela acobertava os dois, o que mudou?
- Eu estava no último período da graduação quando
a Manuela entrou no mestrado, você ainda fazia Design,
acho que foi um ano antes de largar, se não me enga-
no. No primeiro ano já foi chamada pro FDP. As reuniões
eram presenciais, todo mundo mostrava a cara. Por coin-
cidência, no grupo estava um cara, o Luiz Fernando, orien-
tando do Villa, que por sinal, estava fechando negócios
com a Desconstruto. O cara era do mestrado também,
brilhante, considerado um livre-docente em potencial. A
Manuela achou interessante algumas considerações do
cara e começou a procurar pela produção dele, começou
a ler artigos e tal. Aí, ela percebeu que nada daquilo era
novo pra ela. De início, achou coincidência, achou que al-
gumas ideias que estavam ali fossem considerações que
perpassavam aquela linha de raciocínio, até descobrir se-
melhanças formais.
- Plágio? De quem?
- Plágio, Leozão. De um pesquisador norueguês que,
pelo jeito, ninguém do programa de pós conhecia.

92
O (não) lugar do amor

- Pesquisador norueguês? O ex-namorado da Manue-


la, aquele babaca?
- O próprio.
- Aksel.
- Coincidência infeliz. O tal do Luiz Fernando morou
um tempo na Noruega depois da graduação. Conheceu
um cara genial num bar e manteve contato esporádico,
fingindo ser um admirador, ou um amigo, ou ambos, vai
saber?! E o melhor, um cara que produzia numa língua
totalmente diferente. O plano seria perfeito se ele não
tivesse dado o azar de cruzar com a Manuela, ex do cara.
- O que ela fez?
- Acabou com o Luiz Fernando. E com o Villa. Ela o
acusou de acobertar, mas acho difícil que ele soubesse.
O Aksel não é nem filiado a nenhuma instituição, tem
uma editora independente, pequena.
- Eu conheço a trajetória do Aksel, não precisa me
lembrar.
- E a Manu se aproveitou dessa história pra chanta-
gear o Luiz Fernando, eu te disse que ele estava fechando
negócios com a empresa. Foi aí que ela tomou gosto por
investigar os podres dos clientes para chantageá-los.
- Quer dizer que ele foi a primeira vítima?
- Ela não ficou satisfeita em acabar com o tal Luiz Fer-
nando só academicamente.
- E depois dessa confusão com o Sebastião, por tabe-
la, a Manuela parou de acobertar o romance da tia com
o Jorge?
93
CAROLINA GAIO

- Por tabela nada, com o circo armado, o Sebastião


tentou prejudicá-la, o nome dele foi manchado e ele quis
vingança. Não foi fácil pra ela concluir aquele mestrado.
Ninguém me tira da cabeça que ela desistiu da vida aca-
dêmica por causa do Villa, ou dos Villa. Quanto ao namo-
ro, antes fosse só parar de acobertar. A Manuela passou
a perseguir o Jorge e a Joana. E eu acho que isso mexeu
com ela, porque a Manu virou mais Nogueira Amaral do
que nunca de lá pra cá.
- Agora a história do sequestro faz sentido.
- Aí é que tá. Estamos de volta às nossas hipóteses.
Ele pode até ter sequestrado, mas, a essa altura, assas-
sinou.
- Você acha mesmo que o Sebastião fez isso, não é?
- Acho, Leozão. Sei da profunda admiração que você
tem por ele. Eu também tenho, mas é o que as pistas in-
dicam até agora.
- Você acha que a Manuela sabe disso tudo e não
quer fazer nada? Duvido.
- Minha hipótese é que ela pediu pra ninguém fazer
porque quer resolver ela mesma.
- Isso é a cara da Manuela, realmente. Mas como?
- Um cara esquisito foi falar com o Villa hoje, mostrou
algumas fotos, ele pareceu bem preocupado.
- Você acha que é algum tipo de capanga?
- Acho. Eu esbarrei nele discretamente. – Leonardo
conhecia o discretamente de Júlio, não tinha nada de dis-
creto naquilo, mas ignorou o advérbio.
94
O (não) lugar do amor

- E aí?
- Daí pra frente é clichê.
- As fotos caíram no chão? Eram fotos da Joana?
- Não caíram, mas ele estava bem nervoso, vociferou
umas ofensas por causa do esbarrão, gesticulava sem
parar, e isso permitiu que eu visse as fotos. Sim, eram
fotos recentes da Joana e do Jorge.
- Isso não quer dizer nada.
- Uma foto em especial. – Júlio colocou a mão no bol-
so de trás da calça como se fosse puxar algo. – Essa da-
qui.
- Como roubou essa foto? – disse Leonardo surpreen-
dido com Júlio.
- Essa ficou no chão depois que o Villa e o cara estra-
nho saíram. – Leonardo olhou a foto.
- Ele está nessa foto. E essa roupa da tia Joana foi a
que Manuela me descreveu que ela usava no dia da festa,
o tal vestido.
- Exatamente, Leozão. – A foto mostrava Joana e Jor-
ge de um lado, pareciam acuados, e Sebastião do outro,
como se discutisse com os dois. Parecia ter sido tirada
em um local próximo à chácara em que ocorreu a tal fes-
ta, no dia seguinte. As roupas e o tempo reforçavam isso.
Mas o que chamou mais a atenção de Leonardo foi que a
foto parecia ter sido tirada por alguém escondido.
- Quem tirou essa foto? Acha que a Manuela já des-
confiava de algo? Que o Villa entrou em contato e ela os
seguiu, ou algo do tipo?
95
CAROLINA GAIO

- Com certeza, a Manuela não deixa passar nada, tem


uma observação incrível.
- Pelo jeito não adiantou muito. – disse Leo desanima-
do – Isso não prova nada.
- Não prova, mas não terminei ainda. Quando eu es-
tava indo embora, precisava falar com o Villa, coisas do
Fabrício, fui à sala dele, mas estava tudo escuro. Virei
para ir embora e ouvi ruídos lá dentro. Encostei na porta.
Ele estava ao telefone.
- Você conseguiu ouvir o que disse? – Júlio olhou Leo-
nardo de cima a baixo como se pedisse para não subes-
timá-lo.
- Sou profissional, Leo! Eu ouvi claramente ele dizer
“eu assumo meus erros, mas você nunca vai conseguir
provar o meu envolvimento”. – Leonardo não queria acre-
ditar.
- Não pode ser, Júlio! O que mais? Com quem acha
que ele falava?
- Não acho, eu sei. Ele continuou “você sabe que nun-
ca fui a favor do relacionamento dos dois, muito mais por
causa da sua família, mas você conhece bem as minhas
razões, não tente me prejudicar, Manuela”.
- Manuela?! A minha Manuela?!
- Só pode ser.
- Tenho certeza de que a Manuela gravou essa con-
versa.
- Eu também. Vamos procurá-la.

96
O (não) lugar do amor

- Ela vai falar o mesmo de sempre.


- É nossa única opção. – Leonardo não estava seguro
do posicionamento de Júlio, mas, de fato, era a única op-
ção que tinham. Antes de saírem, Leonardo hesitou por
alguns instantes. – Acho que a Manuela o pressionou, e
ele acabou cometendo o homicídio, no final das contas.
- Como chegou à conclusão do assassinato, Júlio?
- Preparado? Eu fiquei atordoado quando ouvi o nome
da Manuela e quis te procurar na hora, mas o Sebastião
continuou e eu voltei pra ouvir. Agora vem a frase derra-
deira. Ele disse “Você sabe que não há mais o que fazer,
eu já manchei minhas mãos. Eu já finalizei”.
Leonardo respirou fundo, Manuela precisava falar.

97
Capítulo 4 | abril

-U lrich é o Villa, não é, Leo?


- Isso, o herói sem nenhum caráter.
- Esse não era Macunaíma?
- Nada é original, meu caro.
- Nem inocente, como diria a Jaqueline nas aulas de
teoria.
- Fez a lista?
- Fiz. Eu sou Marco Antonio, você é Odair José, Tião
é Ulrich, Artêmis, Barbarella, Brillo e Rogozov. Faltou al-
guém?
- Não.
- Odair José e Barbarella. Isso é piada pronta? O Villa
deve ter ficado orgulhoso da coincidência.
- Certamente, mas Marco Antonio não fica atrás, se
é que me entende. Quem o Villa está esperando pra co-
meçar a reunião?
- Dizem que é sempre quem pergunta.
- Eu estou no grupo.
99
CAROLINA GAIO

- Não está. – Júlio tinha razão, não estava, Leonardo


entrou no grupo, mas esqueceu de se conectar à internet,
por isso não recebeu as atualizações, pensou ele.
- Vê se agora foi, Júlio. Júlio? Júlio?
- Fala! O telefone caiu no chão, é que Amandinha me
mandou uma foto que você nem imagina.
- Prefiro não imaginar pelo bem de nossa amizade.
- E eu prefiro parar pelo bem da minha sanidade du-
rante a reunião.
A reunião seguiu tranquila em relação ao padrão dos
últimos meses. Na anterior, em março, Brillo fez uma re-
ferência a Woody Allen com a famosa frase “Pouquíssi-
mas são as mulheres capazes de abrigar dois conceitos
ao mesmo tempo” pra ilustrar o que ele falava sobre um
filme que Leonardo já não lembrava qual era, só se lem-
brava que não tinha assistido, quando Brillo comentou.
Artêmis, ávida como nas reuniões anteriores, não espe-
rou as associações da frase, rebateu, dizendo que a frase
saiu até em um dicionário sexista. E ele só queria falar de
cinema!
Barbarella sempre engraçadinha disse que ninguém
ali tinha preconceito com sexo para ser “sexista” e Ar-
têmis forçou uma discussão etimológica que Rogozov
tentou cortar. Leonardo e Júlio queriam ver o circo pegar
fogo e começaram a discutir com Rogozov, atacando-o
de não fomentar o conhecimento que deveria surgir do
atrito. Ulrich chegou a deixar escapar uma risada. Digi-
tou errado, provavelmente, mas Leonardo e Júlio ado-
raram. Rogozov saiu do grupo e Ulrich o ameaçou. Júlio

100
O (não) lugar do amor

especulou que o Villa tivesse ligado para quem quer que


fosse o Rogozov no ato, porque ele voltou. Quase no final
da reunião, mas voltou.
Nesse mês não houve grandes emoções, como diria
Júlio, os assuntos não percorreram nenhum caminho
mais delicado, por assim dizer, e os ânimos pareciam se
reconciliar. A pauta acabou desembocando em amores
que acontecem em descaminhos. Alguém citou Agam-
ben, Brillo, se Leonardo se lembrava bem, e como o pa-
thos aristotélico andava arraigado em um de seus livros
na figura do fantasma. Ninguém rebateu com veemência,
os debates foram tranquilos.
Barbarella fez uma citação de Lukács sobre a epopeia,
que ela “não conhecia nem o crime nem a loucura”. Ape-
sar de Lukács se referir ao bem maior que impulsionava
os heróis – uma alegoria da sociedade –, porque aquelas
seriam instâncias pessoais e, portanto, não se aplicavam,
Barbarella deslocou um pouco o contexto e fez uma as-
sociação dessa frase com a construção de alguns filmes
comerciais norte-americanos de romance. Leonardo não
saberia dizer se foi interessante do ponto de vista aca-
dêmico, porque amor, crime e loucura e aquela reunião
trouxeram vivo aquele dezembro.

O dia começou antes de amanhecer para Leonardo. Ele


acordou olhando em volta assustado, o barulho da chuva
101
CAROLINA GAIO

caindo estava aterrorizante, mas ele conseguia ser encoberto


pelo interfone que não parava de tocar. Três e meia da ma-
nhã! Vinte e três chamadas perdidas no celular. Ele precisava
lembrar-se de tirar do silencioso, Claudio sempre dizia que
se alguém precisasse dele, morreria facilmente. Era Melissa.
Vinte e três chamadas perdidas de Melissa. O interfone inter-
mitente rompeu suas especulações.
- Melissa?! – Melissa estava encharcada pela chuva.
Chuva de verão, daquelas que não perdoam quem está por
perto.
- Posso ficar aqui?
- Pode. O que houve? – disse Leo puxando Melissa para
dentro de casa.
- Perdi minhas chaves, não tem ninguém na minha casa.
Eu só quero ficar até a chuva passar, não precisa.
- Tudo bem, pode ficar. Acho que meu pai viajou com o
seu, não?
- Tem certeza? – disse Melissa parecendo desanimada.
- Dorme no meu quarto que eu vou pro do meu pai. Pega
essa toalha, toma um banho. Pode pegar a roupa que quiser
no meu armário.
- Obrigada, Leo. Desculpa por isso, somos vizinhos, né?!
– Melissa riu um pouco sem graça.
- Pode vir sempre que precisar. Quer comer alguma coisa?
- Não. Vai dormir, eu me viro aqui. Obrigada, viu?! – Leo-
nardo apertou a bochecha de Melissa dando uma piscadinha
para ela e foi para o quarto de Claudio dormir, a situação
inusitada não fora suficiente para tirar o seu sono.
102
O (não) lugar do amor

Ou não. Leonardo deitou na cama virado para o armário


que tinha um espelho na porta, de onde dava pra ver a entra-
da do quarto, e os pensamentos começaram a ferver em sua
cabeça. Ele não pensou em Manuela ou em Fernanda. Elas
não passaram nem minimamente ali. Ele pensou em Melissa.
E pensou de um jeito que não tinha feito antes. Pela primeira
vez, ele pensou em Melissa. Os cabelos castanhos ondulados
encharcados por cima do vestido branco molhado de chuva
e os olhos profundamente azuis e inquiridores. Melissa tinha
um cheiro bom, no cabelo, na pele. A pele extremamente
branca e com pintas. Branca e com pintas. Fechou os olhos
por uns segundos e sentiu sua nuca esquentar. Era a respira-
ção de Melissa.
- Melissa?! – Leonardo viu Melissa deitada atrás dele,
pelo espelho, ficou surpreso e assustado.
- Leo. – Melissa encarava Leonardo pelo espelho morden-
do o lábio inferior. – Me deixa ficar?
Leonardo viu o rosto de Melissa um pouco escondido
atrás de seu ombro, virou-se e a encarou por uns segundos.
Passou a mão em seus cabelos enquanto a olhava, meio con-
fuso com aquela situação repentina. Como em uma música
brega, tudo lá fora, deixou ficar. Deixou sem pensar em mais
nada. Deixou. Sem saber o abismo que o esperaria depois da-
quela manhã.

***

- Duas da tarde?! Que horas fomos dormir? – Leonardo le-


vantou pulando da cama.

103
CAROLINA GAIO

- Lá pelas 11, talvez, vi a hora no celular, mas não lembro


direito. Tenho aula. E você? – disse Melissa ainda um pouco
sonolenta.
- Reunião com cliente às três! Te deixo lá, é caminho.
- Não precisa, estou de moto. Vou tomar banho. – Melis-
sa levantou da cama, Leo ficou olhando para ela.
- Hey, Melissa! – Melissa encostou-se no portal e olhou
fundo para Leonardo. Ele a encarou de volta e percebeu que o
olhar inquiridor de Melissa fez suas palavras fugirem. – Você
tem olhos de “por que não?”. – foi tudo o que conseguiu dizer.
Melissa continuou olhando Leonardo.
- Por que nunca fizemos isso antes, Leo? Foi como se sem-
pre tivéssemos feito, não? – Melissa sorria mordendo o lábio
inferior.
- Você é incrível, Melissa. – Ela sorriu e saiu.

-O que achou da reunião de ontem? Mais tran-


quila do que as últimas, não?
- Acho que a Artêmis é um saco! É isso que eu acho.
Quando começam muito a falar em coisas líquidas, prin-
cipalmente mulher, já imagino que ela tenha a retaguarda
coloidal.
- De onde você tira essas coisas, Júlio?

104
O (não) lugar do amor

- Da minha imensa criatividade. – Leonardo olhou dis-


cordando.
- A Artêmis é chata, eu também acho, é insistente
com certos assuntos, quer sempre voltar na mesma coi-
sa. Eu gosto da Barbarella e do Rogozov. – Assim que
Leonardo acabou de falar, Júlio riu com um ar de debo-
che. – O que houve?
- A missão incriminar Villa, ou Ulrich, como preferir,
nos afastou um pouco da outra.
- Você já descobriu a identidade de alguém?
- Lembra que a Amandinha comentou com a gente
sobre um blog que ela tem em que usa um codinome?
- Claro, fiquei curioso pra ler depois daquele dia, ela
tem umas considerações bem interessantes, diferentes.
Mas não tive tempo de entrar ainda.
- Eu entrei ontem, e descobri que o codinome que a
Amandinha usa no blog é Rogozov.
- Rogozov? Você acha que o Rogozov do FDP é ela?!
- Sem chance, Leo, a Amandinha é da graduação, o
grupo é restrito ao programa de pós.
- Onde você quer chegar, então? – De repente Leonar-
do percebeu que a resposta era óbvia. – Luiz Fernando.
- Voilà!
- Ele está descendo o nível, hein?! – Júlio olhou censu-
rando Leonardo. – Não subestimando a Amanda, a ques-
tão é que a Amanda é brasileira e vinculada à mesma
universidade que ele, é bem mais arriscado.

105
CAROLINA GAIO

- Quanto ao vínculo ele não tem como saber, ela não


divulga informações reais no blog, e ele não fez nenhum
plágio formal, só faz paráfrase das questões que ela le-
vanta, é muito sutil. Já separei várias coisas que vou le-
var pro Villa no final do ano, mesmo que seja na cadeia.
– Júlio deu uma tapinha nas costas de Leonardo como
se aquilo fosse uma piada, mas ver Manuela chegar e a
ansiedade de falar com ela cortaram qualquer tom en-
graçado que pudesse ter.
- Aqui estou, rapazes! O que querem de mim? – dis-
se Manuela erguendo só uma das sobrancelhas, daquele
jeito que deixava Leonardo maluco e que conseguia fa-
zê-lo esquecer de tudo, ou quase, já que estava imbuído
demais em descobrir as lacunas daquela história.
- Sei que tem fugido durante todos esses meses de
falar da tia Joana, Manu, mas já descobrimos o envolvi-
mento do Sebastião – disse Leonardo com aquela falta
de tato que sempre lhe fora peculiar. Manuela respirou
fundo, olhava pro chão.
- Eu ouvi uma conversa dele contigo no telefone,
Manu, e contei pro Leo. Eu vi as fotos, eu sei que a Luiza
andou vendendo joias raras.
Júlio e Leonardo se entreolhavam sentindo uma ten-
são imensa, em parte eles se sentiam em um filme, em
parte, aquilo tudo os colocava em uma situação compli-
cada. Pareciam próximos da resposta, mas não sabiam
se queriam escutá-la, pelo menos era assim que Leonar-
do se sentia e pela feição fechada de Júlio, tão diferente
da habitual, ele imaginava que ele sentia o mesmo. Ma-
nuela olhou em volta por alguns instantes, de repente,
106
O (não) lugar do amor

sua expressão séria se transformou em uma grande gar-


galhada.
- Qual a graça? – Leonardo olhava pra leveza de Ma-
nuela sem entender.
- Vocês são engraçados. Tantas vezes eu disse pra
deixarem isso pra lá. O Villa tem muitos defeitos, mas ele
não é assassino. É excêntrico demais pra conseguir fazer
isso. – Manuela ria sem parar, Júlio a encarava sério, não
parecia estar gostando do deboche. – Vocês são péssi-
mos detetives.
- Não estou entendendo, Manuela.
- Nem eu. Pode nos contar, ou vai ficar rindo?
- E pensar que a ideia disso tudo foi minha, achando
que esse seria o caminho mais fácil. Seria, não fosse essa
cisma de vocês dois. A tia Joana não está morta. Está
bem viva e melhor do que todos nós.
- Como assim? Onde ela está?
- Em Guadalajara. Com o Jorge. – Júlio fez uma cara
de que teve um estalo, Leo teve a sensação de que, de re-
pente, pareceu a ele óbvio e deveria ter percebido antes.
- Eles fugiram, não foi? Você e o Sebastião acoberta-
ram com essa história louca. – disse Júlio, como se tudo
fizesse sentido.
- Claro. Vejam só. – Manuela puxou o celular do bolso
de trás da calça, e mostrou as fotos que tinha recebido
no mesmo dia da tia e do Jorge, com comentários em-
polgados.

107
CAROLINA GAIO

- É só pra mim que isso tudo não tem a menor ló-


gica? – disse Leonardo ainda decepcionado por não ter
sido Sherlock por um dia, ou por uns meses, e por não ter
percebido nada.
- Desculpa enganar vocês, mas essa história não po-
dia vazar. O Júlio conhece de perto a história dos dois,
qualquer dia ele te conta.
- É, ele já me contou. – Leonardo reparou que Júlio se
sentia extremamente leve com aquele desfecho, e que a
empolgação o fez pedir frango a passarinho regado por
outra rodada de chope, mas ele ainda não estava satis-
feito. – E as fotos? E o capanga que foi na universidade
atrás do Villa?
- Capanga? – Manuela fez cara de quem não enten-
deu. – Ah, o Zé? Ele é um fotógrafo itinerante, conheci
há pouco tempo, andando pelo centro da cidade. Ele tira
fotos aleatórias de pessoas na rua e expõe em uma ten-
da que monta em vários lugares. Achei aquelas fotos por
acaso, gostei, pedi que entregasse ao Villa algumas em
que ele estava.
Leonardo olhava boquiaberto menos pra Manuela e
mais pra toda aquela situação. Júlio já parecia ter acei-
tado toda a história, agia como se todos os fatos esti-
vessem claros, mas Leonardo sentia aquela necessidade
típica de esmiuçar cada detalhe.
- E aquelas coisas que o Villa falou contigo no telefo-
ne sobre finalizar e sujar as mãos? Caramba, Manuela!
Eu fiquei preocupado achando que algo podia acontecer

108
O (não) lugar do amor

contigo, ainda mais do jeito que você é metida a valente!


– Manuela fez cara de que estava buscando na memória,
por alguns segundos, e, em seguida, sorriu.
- Ele estava falando sobre um projeto de doutorado
que pedi pra ele avaliar. Acho que ele alterou algumas
coisas, ainda não revi.
- Quer dizer que vocês se reconciliaram – disse Júlio.
- A fuga da tia Jô com o Jorge nos uniu, digamos que
o conflito fez seu trabalho – disse Manuela dando uma
piscadinha para Leonardo, e ele sentiu com aquela refe-
rência vinda dela um misto de orgulho e atração. Ela não
era dada àquilo. Não com ele. – Mas não é só isso. Parece
que o Villa quer investigar um caso de plágio envolvendo
algum professor, e pediu minha ajuda. Eu expliquei que o
caso do Luiz Fernando foi sorte, mas me dispus a ajudar
mesmo assim. – Leonardo sentiu que Júlio procurou seu
olhar, mas não retribuiu.
- Esse plágio que o Villa quer investigar vem do pró-
prio Luiz Fernando. De novo – disse Júlio empolgado, se
achando restituído ao posto de detetive.
- Ele ainda está na universidade? Acho difícil, Júlio, as
coisas foram complicadas, você vivenciou tudo comigo.
- Eu sei disso, mas uma identidade falsa, talvez? Não
sei bem, mas tenho pistas que levam a ele.
- Você quer ser orientanda do Villa? – disse Leonardo
que já estava segurando a pergunta havia alguns minu-
tos, fingindo não perceber que estava interrompendo a
conversa.

109
CAROLINA GAIO

- Não, não, eu vou tentar em outra universidade até,


o programa tem mais a ver com o que eu quero. E nem
é exatamente a área dele. Bem, o que não é a área dele
com todos aqueles PhD’s? – Os três riram. Apesar da
torrente de sentimentos confusos que passara por ali,
Leonardo se sentia bem. Estivesse Fernanda ali, os três
mosqueteiros e D’Artagnan estavam com a sintonia dos
velhos tempos.

110
Capítulo 5 | maio

O chope gelado na tarde de sábado que se encerra-


va quente veio a calhar. Alguém falou que aquilo não era
certo porque era quase inverno, Leonardo “sorriu e ace-
nou” como diria Manuela, ele se incomodava com essas
tentativas de encaixar fatos em teorias. Júlio chegou um
pouco mais cedo do que o esperado, pelo menos perce-
beu logo o sinal que Leonardo fez para ele para que des-
se uma volta e esperasse. Gabriel, menos vizinho do que
amigo, estava confidenciando para Leonardo a quantas
andava sua vida sentimental. Mal. “O tão banal do indi-
víduo contemporâneo”, teria dito Júlio. Uma tal de Gio-
vana começou a persegui-lo através de um blog, parece
que sabia de todos os seus passos acadêmicos e profis-
sionais e expunha no blog criticando minimamente suas
atitudes, criando defeitos inesperados. Como se não bas-
tasse ele desconfiar de quem estava por trás dessa Gio-
vana, ela começou a enviar cartas pra casa dele.
- Cartas com aquelas letras recortadas?
- Não, Leo! Cartas digitadas. Algumas românticas, al-
gumas poéticas, algumas dizendo o quanto eu sou ruim
em tudo. E o pior é que a melhor crítica que recebi sobre

113
CAROLINA GAIO

meu último livro foi dela. Negativa, diga-se de passagem.


A única negativa. Mas ninguém o leu tão bem e profun-
damente quanto ela. Parece que me conhece.
- Esse tipo de perseguição é coisa de alguém a fim de
você.
- Sei quem é, na verdade, ou desconfio, mas não me-
lhora muito a minha situação. Vou dar plantão agora, va-
leu, cara.
- Estamos aí pra isso, amanhã vou passar lá – disse
Leonardo se despedindo, pensou em ligar para Júlio, mas
ele surgiu sorrateiro, no mínimo estava ouvindo. Típico.
- Fala, Leozão! Qual a treta?
- A de sempre, coisas do coração! – disse Leonardo
forjando a imitação de uma mocinha, Júlio riu e Leonardo
sabia que não era com, mas dele.
- Falando nisso, a Fernanda vem visitar a família.
- Eu soube, encontrei a prima dela esses dias, ela co-
mentou comigo. A Tatiana.
- Ela que me avisou também, me ligou.
- Nem sabia que a Tatiana tinha seu número.
- Tivemos um romance há algum tempo. Manuela
quer fazer uma festa surpresa pra Nanda, precisamos
ver um dia bom pra todo mundo. Parece que ela vai ficar
pouco tempo.
- Combinem, eu dou um jeito de ir, quero vê-la. Eu
comprei uma coisa pra ela.

114
O (não) lugar do amor

- O quê?
- Um pacote de biscoito Gufy.
- Gufy? Isso ainda existe? A mulher vai morar em ou-
tro continente e você me diz que comprou um pacote de
Gufy pra ela? Nem era tão bom assim e no mínimo está
fora da validade. Que tipo de presente é esse?
- Tem um significado pra gente.
- Biscoito Gufy?
- É. Quando estávamos no colégio sempre dávamos
um pacote de Gufy vazio um pro outro, era uma impli-
cância boba nossa. Não lembro quem começou, mas nós
dois gostávamos muito de Gufy, oferecíamos o biscoito
um pro outro, o pacote sempre vazio. Ficávamos meio
frustrados em todas as vezes, sempre achávamos que o
outro teria alguma solidariedade de dar um pacote com
algum biscoito dentro, mas era sempre vazio.
- Por isso é que a Nanda sempre guardava as embala-
gens? Até quando eu comia, ela me pedia a embalagem.
- Com certeza. Quando brigávamos e queríamos rea-
tar, dávamos um pacote com alguns biscoitos dentro.
Quando ela decidiu que trabalharia embarcada, já não
existia mais por aqui, mas eu fui pro norte e encontrei lá.
Estávamos separados há uns três anos, devíamos ter 18,
por ai.
- Dezoito você ou ela?
- Eu. A Nanda é um ano mais velha que você e a
Manu, não é?

115
CAROLINA GAIO

- Um e meio mais velha que eu, quase três mais velha


que a Manu. A Nanda entrou um ano mais tarde no co-
légio, e a Manu, um ano antes, por isso nós três ficamos
na mesma turma.
- Isso, me lembro. A Nanda estava com uns 22, então.
Eu sabia que ela voltaria, por causa das férias, descobri o
dia exato e deixei um pacote de Gufy na portaria do pré-
dio dela, não deixei bilhete, nem nada, mas ela saberia
que tinha sido eu. Um pacote cheio, eu estava disposto a
pedi-la em namoro. Ela ainda morava no meu bairro, mas
não quis me encontrar nenhum dia, quase duas semanas
depois que já estava aqui, Fernanda me enviou um e-mail
dizendo que não ia renovar o contrato, que tinha arran-
jado trabalho por aqui e que ficaria, mas que era melhor
darmos um tempo porque ela estava começando um re-
lacionamento. A mulher volta de outro estado depois de
tanto tempo, morando no meu bairro e comprometida.
Isso acabou comigo.
- Você não insistiu, não fez nada?
- O que eu ia fazer?
- Falar com ela decentemente e não deixar um pacote
de biscoito idiota na portaria!
- Precisava falar alguma coisa? Aquilo tinha um sen-
tido pra gente. A primeira vez que comi Gufy foi com ela,
no mesmo dia que demos o nosso primeiro beijo. Eu es-
tava com 11 anos.
- 11? E a Nanda com 15?! Que pedofilia! – Leonardo riu
com certa nostalgia.

116
O (não) lugar do amor

- Eu era desenvolvido.
- Onde? Não desenvolveu até hoje! Só pra cima! – dis-
se Júlio debochando e Leonardo ignorou.
- Ela estava com 16, na verdade, foi no dia do aniver-
sário dela, uns meses antes de vocês entrarem no ensino
médio.
- O primeiro beijo de vocês foi no aniversário dela?!
Pensei que tivesse sido nas férias. Por que só me contou
quando as aulas voltaram?
- Não deu tempo, você viajou em seguida pra Disney
e depois eu fiquei praticamente morando na casa da Ma-
nuela, foi quando ela quebrou o braço, lembra? Eu nunca
me esqueço do quanto ela chorou quando foi tirar o ges-
so, porque você não falou com ela nenhum dia.
- A Manu chorou por que eu não a vi quando quebrou
o braço?
- Muito, ela só falava de você. – Júlio ficou pensativo
por alguns instantes e o clima contagiou Leonardo. – Eu
achava que vocês namoravam naquela época, mas nun-
ca perguntei porque tinha um pouco de medo da Manu.
– Júlio sorriu, e seu olhar denunciou alguma coisa que
Leonardo preferiu não interpretar. Talvez Júlio tivesse
percebido as entrelinhas, pois cortou o assunto com na-
turalidade.
- E quando a Fernanda voltou, Gufy pra lá, e-mail pra
cá, ficou por isso mesmo?
- Ficou. Ela pareceu bem clara pra mim.
- Foi quando ela namorou o Pedro?
117
CAROLINA GAIO

- Isso, foi nessa época mesmo. E quando eles termi-


naram, adivinha? Ela me enviou por correio um Gufy.
Mas eu já estava com a Manuela.
- Isso já tem muito tempo. Aposto que ela guardou o
que você deixou lá, não teria como achar isso de novo!
Onde você achou isso agora? É o mesmo, você guardou?
- Não é o mesmo, eu comi ouvindo “Nuvem de Lágri-
mas”. – Júlio riu. – É sério. Achei no eBay e comprei. Será
que fica preso na alfândega?
- Putz! Certamente, vão pensar que é droga disfarça-
da. Quem compraria Gufy?!
- Só espero que chegue antes dela.
- Leonardo, você é meu irmão, mas se você der o Gufy
pra Fernanda agora, eu vou quebrar a sua cara. – Leonar-
do deu uma risada. – Eu não estou brincando. – E não
estava, Júlio olhou bem sério para ele. – A Nanda tá bem
lá, tá feliz namorando o tal alemão.
- Alemão? Ela não tá na Turquia?
- É, o cara também, mas é alemão. Parece que são só-
cios em um estúdio de tatuagem, a Nanda é ilustradora
e o cara o tatuador, é o que ela sempre quis fazer des-
de que terminou Design. Se você fizer isso, ela vai ficar
balançada. Nunca me intrometi na confusão de vocês,
ouvia de um lado, ouvia de outro e ficava na minha, mas
isso eu não vou deixar você fazer. – Júlio parecia bem al-
terado e, embora de uma forma meio torta doesse não
poder mostrar pra Fernanda que ele guardava algo bom
dela, Júlio tinha razão.

118
O (não) lugar do amor

- Não vou fazer, é sacanagem mesmo.


- Não é sacanagem, é maldade. Você diz que quer a
felicidade dela, que quer deixá-la ir. Por que nunca dei-
xou?
Parecia que deixar ir, concreta ou simbolicamente,
era algo constante na vida de Leonardo. Essa sensação
trouxe de novo dezembro, saindo afoito de uma aula de
fotografia meio conturbada.

E le ainda estava enrolado em adaptar o tempo de abertu-


ra do obturador, e meio constrangido em saber que teria que
apresentar seu projeto de portfólio na aula seguinte. Nunca
entendeu como a vida o levou a se tornar publicitário, com
aquele pânico de falar em público tão arraigado. O parque
ecológico em que o curso era ministrado era incrível, ele tinha
ido poucas vezes lá até então, lembrou que foi dar uma volta
algumas vezes na adolescência, mas nunca observara bem o
lugar. Era bonito. Árvores e arte. E o trânsito intenso do ou-
tro lado do portão. Uma mulher tentava subir de moto pela
entrada principal, mas alguma coisa parecia dar errado. Ele
reconheceu, de repente, aquele cabelo desgrenhado por bai-
xo do capacete, e toda a catadura desajeitada. Era Melissa.
- O que houve na moto?
- Nada, estou estacionando.

119
CAROLINA GAIO

- No meio da subida?
- É. – O jeito que Melissa falou fez aquilo parecer natural.
E talvez fosse.
- Fazendo o que aqui?
- Uma amiga vai participar de um sarau, a Francisca.
Lembra dela?
- Claro. – Leonardo lembrou, e lembrou, inclusive, de uma
Francisca que costumava se insinuar pra ele sem discrição,
pensou que estava indo embora na hora certa.
- Vai ficar?
- Infelizmente, não. Faço um curso aqui, já estou indo em-
bora.
- De quê?
- Fotografia.
- Que legal, Leo! Seu portfólio é sobre o quê? – Leonar-
do respirou fundo num misto de preocupação e vontade de
rir, lembrou da foto que tirou dela nu, que, aliás, foi a foto
central do projeto do portfólio. Pensou no silêncio que seus
pensamentos tinham instaurado, mas ele não podia falar a
verdade.
- Sobre mulheres que trabalham na Zona da Mata.
- Nordeste?
- Isso. – Leonardo começou a buscar referências na sua
mente caso aquilo se alongasse. Teria que mudar de assunto,
não tinha nada.

120
O (não) lugar do amor

- Tenho casa por lá, podemos ir juntos um dia, te ajudo na


seleção das fotos.
- Claro, Melissa.
- Tá indo pra casa? Quer carona?
- Não, eu... Você não acabou de chegar? – Melissa enca-
rou Leonardo, seu olhar chegava a intimidá-lo.
- Não sabia que ia te encontrar. Você tem compromisso
agora? – Melissa mantinha o olhar.
- Agora não.
- Estou sozinha em casa, vamos?

***

Leonardo voltou ao quarto, Melissa estava deitada na cama


de lado, de costas para ele. A pele branca e as pintas. O jeito
de parecer entregue.
- Precisava disso, Leo.
- De quê?
- Você.
Leonardo tinha uma reunião com um cliente importan-
te às 20h e Melissa fez questão de deixá-lo na agência, de
moto. Leonardo viu a moto de Melissa se afastar, a observava
pensando em uma música de Roberto Carlos que definia exa-
tamente aquela tarde, em que a proposta de Melissa mudara
seu rumo. Isso estava se tornando cada vez mais corriqueiro
naquelas semanas, e era bom.

121
CAROLINA GAIO

Olhos de “por que não?”. Olhos azuis de “por que não?”.


Aquela tarde fez Leonardo perceber que eles falavam a mes-
ma língua de uma forma que era esquisita. E foi diferente de
tudo. Eles eram como estranhos que acabaram de se conhe-
cer, ou de se reconhecer, como podiam ter tanta sintonia e
identidade? Como podiam ter tido tantos desencontros se
eram tão parecidos de um jeito tão profundo? E aquela tarde
fez ele trocar radicalmente o projeto do portfólio. Mulheres
da Zona da Mata. Uma desculpa e a companhia de Melissa.
Por que não?

A quela lembrança veio quente e devastadora. Júlio


percebeu a digressão quando voltou do banheiro.
- O que tá pegando?
- Eu terminei com a Manuela há umas duas semanas.
- Estava esperando você me contar. – Leonardo sorriu,
era óbvio que Júlio já sabia.
- Eu perguntei a ela se ela foi apaixonada por você na
adolescência. Ela me disse que era óbvio, porque você
era lindo e todas as meninas eram.
- Você parece uma mulherzinha falando isso.
- Faz sentido, ela disse que eu também devia ser. Aliás,
ela acha que sou. Há chances – Leo deu uma piscadinha

122
O (não) lugar do amor

e jogou um beijo para Júlio, simulando uma cantada. – E,


segundo ela, você ainda jogava Rugby, que não é nada
comum. Isso ajudava a te deixar “incrível”. – Júlio tentou
disfarçar certa satisfação nostálgica.
- Ela também jogava.
- Eu lembro, e lembro também que todos os garotos
eram apaixonados por ela.
- A Manuela era um menino.
- Que isso, Júlio?!
- Não pra quem via de longe, com o corpão de modelo
e o cabelo na cintura. Mas eu conhecia de perto. Eu só
descobri que ela era menina quando ela deu o primeiro
beijo. No segundo ano da faculdade, com 18 anos.
- 18?! Foi com o Aksel? Aquele babaca?
- A perífrase não precisa acompanhar todas as refe-
rências ao cara. Foi com ele. Eu só percebi a Manuela aí.
Mas aí já era tarde.
- Ela reclamou que você a tratava como um menino.
- Não é verdade.
- Bem, tirar meleca e passar na roupa dela parece.
- É, eu fazia esse tipo de coisa. Tenho que concordar.
Mas ela pedia. Uma vez peidou numa garrafa, fechou e
deixou na minha mochila. A tampa soltou um pouco e a
mochila ficou impregnada dias.
- É, realmente não é um comportamento muito femi-
nino.

123
CAROLINA GAIO

- Cuidado com a Teoria Queer, hein! Artêmis vai te


dar um corretivo.
- Podíamos usar isso contra ela. Adoro provocar fe-
ministas.
- Mas não devia, elas alegam que isso é comporta-
mento de quem tem diminuto falo. Esta não é uma boa
fama para um solteiro – disse Júlio levantando o copo
como se quisesse brindar à “solteirice”.
- Hum, gosto de quem invalida suas próprias teorias.
– Júlio riu enquanto Leonardo dava uma golada no chope.
– Definitivamente, não é boa fama.

***

A tarde se encerrou numa noite agradável, Leonardo


chegou em casa planejando terminar um artigo que es-
tava enrolando há duas semanas para entregar. Mas o
bar com música ao vivo que dava para ouvir em sua casa
não colaborou. Devia ser proibido tocarem Fagner perto
dele. O cheiro adocicado de Manuela veio com tudo, jun-
to com as imagens do término recente e conturbado.

-C laro que eu sabia, Leonardo! A Fernanda é minha


amiga desde criança, é uma irmã.

124
O (não) lugar do amor

- Mas você não sabia da gente antes. De tudo. Ou sabia?


- Não, eu não sabia. Mas não é meio diferente. Você acha
mesmo que ela me trairia desse jeito?
- Manuela, eu traí desse jeito. Eu também cresci com vo-
cês, não achei que alguém nessa história pudesse ser muito
melhor do que eu. – Leonardo respirou fundo. – Como soube?
- Ela foi até a minha casa e me contou tudo. Contou que o
cara que eu namorava há pouco mais de um ano, que eu era
a primeira namorada dele, era o cara que ela amava há o quê,
uns 12 anos. Como você acha que eu fiquei no meio disso?
- Como a Fernanda descobriu? Ela nunca me disse nada.
- Quando ela voltou da primeira viagem de navio, ela me
procurou contando as novidades e eu disse que também tinha
novidades, que estava namorando alguém que ela precisava
ver. Eu nem quis contar, queria fazer uma surpresa. Ela ficou
empolgada na hora, depois ela me disse que pensou que fos-
se o Júlio, porque eu fui apaixonada por ele durante o colégio.
- Você era apaixonada pelo Júlio?!
- Quem não era? Hoje eu vejo que era óbvio pra Fernanda
quando eu disse que estava namorando que seria o Júlio, ela
nunca imaginaria que fosse você. Até por quê. Mas antes que
saíssemos juntos e combinássemos algo, a Fernanda foi até
sua casa te procurar. Quando ela chegou, viu você abraçando
uma garota no portão. Ela ficou chocada com a cena, por-
que você nunca tinha assumido ninguém, quem chegou mais
perto disso foi ela e, bem, mesmo assim. Você não aparecia
nunca com ninguém, Leonardo, era quase patológico. E ela
viu que você e a garota se beijaram. A vontade dela era ir até

125
CAROLINA GAIO

lá e matar os dois, mas, ao mesmo tempo, ela ficou sem rea-


ção vendo aquilo, só ficou parada observando. Depois de um
tempo, ela viu você se despedir da garota, e quando se afas-
taram, ela quis ir atrás, mas a punhalada veio certeira, ela
viu que a garota era eu. – Leonardo levou as mãos ao rosto.
Não podia acreditar que a dimensão do mal que causara às
meninas era muito maior do que achava. A inconsequência
dele veio cobrar com tudo na consciência.
- Manuela, eu... eu nem sei o que dizer, Manuela... A Fer-
nanda nunca me disse nada... E quando ela te contou, como
você ficou?
- Muito dividida, Leonardo. Minha vontade era mudar de
país e nunca mais olhar pra cara de nenhum de vocês dois.
Eu procurei o Júlio e acabamos ficando nesse dia. Acho que o
Júlio e eu, nós sempre. Foi a única vez em que aconteceu e só
serviu pra eu me sentir pior. Isso era errado em tantos níveis.
Você e eu namorávamos e ele é ao mesmo tempo o seu e o
meu melhor amigo, e no entanto.
Leonardo não queria pensar muito naquilo. Estava cada
vez mais nítido pra ele o quanto Manuela e Júlio sempre seja
lá o que for.
- Você e o Júlio? Ele ficou contigo sabendo que namorá-
vamos?
- O que foi agora? Vai culpá-lo de alguma coisa? – Não
era bem satisfações ou algo do tipo que Leonardo queria tirar,
ele só sentia o peso de saber outras versões daquela história
que parecia tão banal pra ele no dia a dia.
- Não é nada disso, Manuela... Essa história toda... Não
queria ter envolvido justamente vocês nela.
126
O (não) lugar do amor

- Eu sei disso, Leonardo. – Manuela olhou fundo pra Leo-


nardo e segurou a mão dele, o arrepio interno que sentiu com
o gesto de Manuela fez com que ele começasse a chorar. To-
dos os sentimentos que ele nutria por ela vieram à pele de
um jeito tão claro. E definitivamente perdidos, ele bem sabia.
– Eu pensava sozinha e me decidia que terminaria contigo,
oscilava entre te contar tudo e entre inventar algo que fizesse
você me odiar e sumir, mas cada vez que eu te encontrava, o
seu olhar amolecia minhas pernas e eu não conseguia. Eu es-
tava completamente apaixonada por você e a Fernanda vol-
taria em breve a trabalhar no navio. Eu tive que conviver com
a culpa, porque eu não conseguia ver minha vida sem você.
- Mas e quando a Fernanda voltou e depois que terminou
com o Pedro?
- Fernanda estava na minha casa, o pai dela tinha morri-
do havia pouco tempo, ela estava chorando muito. O telefone
dela tocou e era você pra saber como a Nanda estava com
aquela situação. Ela não sabe que reparei, porque eu tinha
virado de costas pra ela nessa hora e a vi pelo espelho. O bri-
lho instantâneo no olhar dela quando ouviu sua voz no tele-
fone foi uma das piores e mais duais sensações que já tive na
minha vida. Achei que eu estava errada nessa história, que
vocês devessem ficar juntos, que me meti sem saber em algo
que não era pra mim.
- Isso não tem nada a ver, eu que insisti pra ficarmos jun-
tos a sério depois da festa a fantasia, você não sabia de nada
e eu sim.
- Eu sei disso, Leonardo, mas não é tão simples na práti-
ca. Só sei que quando ela desligou, eu falei que ela devia se
encontrar contigo.
127
CAROLINA GAIO

- Você falou isso pra Fernanda? – Leonardo sentiu que


sua voz saiu muito mais alto do que planejava. – Eu não a
procurei com essa intenção...
- Eu sei que não.
- Nós nem ficamos juntos, aliás, isso foi recente.
- Eu sei, pouco menos de um ano. – Leonardo se sentia
ruindo por dentro com a precisão das informações que Ma-
nuela trazia. Era muito egoísmo pensar assim, mas, de algu-
ma forma, ele era o único que não sabia nada nessa história
toda.
– E você não sentiu ciúmes de mim, Manuela? Foi simples
assim, como se empresta uma roupa? Você empurrou a Fer-
nanda pra mim?
- Claro que senti, Leonardo. Eu sempre sabia quando vo-
cês se encontravam, quando rolava algo, ou não, e eu morria
por dentro. Só que, durante todo esse tempo, eu não consegui
ser fraca o suficiente pra vilanizar a Fernanda, nem forte o su-
ficiente pra terminar contigo. E você me aparece dizendo que
quer conversar. Quer conversar? Precisa disso entre a gente?
Em que momento deixamos de ser quem éramos um com o
outro, ou em que momento fomos de fato? Em que momento
fomos de fato é o que mais tenho me perguntado nos últimos
tempos. Eu mesma nunca permiti que você me conhecesse,
justamente por ter descoberto tudo tão cedo. Proteção, tal-
vez. Olha, eu não sei mesmo.
Leonardo sentia um enorme abismo dentro dele. Se ques-
tionava por que não havia sido honesto com Manuela, se era
tão fácil e ele sabia disso. Em que momento a covardia supe-
rou os anos de seja lá o que for por Manuela?
128
O (não) lugar do amor

- A Laura que tanto te incomodava.


- O que tem a Laura, Manuela?
- Estávamos juntas. – As palavras de Manuela vieram
como um baque quase literal, Leonardo sentou em um banco
que nem sabia que estava ali.
- Você estava namorando uma mulher?
- É isso, nada demais, já passou. Só acho que devemos
falar tudo agora, embora possa ser controverso. Mas chega
de pendências entre a gente. – O tom de voz e o olhar de Ma-
nuela não eram de quem fala para ferir, eram de quem tem
convicção no que fala, talvez por as palavras já não pesarem
mais como deviam, talvez por tudo já não fazer a menor dife-
rença e isso não fez bem a Leonardo. Ele nunca pensou como
seria de fato ficar sem Manuela, por tudo o que foram, ela já
havia se tornado parte do que ele era.

129
Capítulo 6 | Junho

L eonardo acordou com a cabeça pesada de sono e


foi à janela olhar o mar. Devia ser umas cinco horas da
manhã, o sol estava nascendo e iluminando a cidade de
uma forma estupenda. Carros, pessoas e árvores. E pré-
dios. Muitos prédios. Olhar aquilo não era nada demais,
mas para ele era tudo. Homo urbens. O ambiente urbano
lhe dava uma sensação fora do normal de familiaridade
e paz.
Tudo estava meio embaçado e ele lembrou que dor-
mira com as lentes de contato, essa lembrança evocou
outras à sua cabeça, que fizeram com que ele abando-
nasse Morfeu de vez e percebesse onde estava. Ele não
estava na casa dele, a baía que olhava da janela, podia
até ser a mesma, mas estava exatamente do lado oposto.
Leonardo ficou assustado, virou-se rapidamente para ver
onde estava e descobriu que o peso na cabeça não era
sono, correu para achar um banheiro necessário aos efei-
tos daquela súbita virada. Ressaca. Lembranças turvas
da noite anterior se formavam em sua mente. Escovou
os dentes com uma escova aparentemente idônea que
encontrou e foi procurar alguma explicação. Na sala, Jú-
lio dormia em uma espécie de sofá-cama, achou um dos
131
CAROLINA GAIO

quartos, que estava com a porta semiaberta, empurrou


para ver quem estava lá. Era Francisca. Ela estava deitada
de bruços em uma cama de casal. Leonardo organizou os
pensamentos e se localizou. Ele estava no apartamento
dela e pelo jeito que a cama estava, haviam dormido jun-
tos. Amiga da Melissa. Merda. Merda. Merda. Ele correu
para acordar Júlio.
- Que foi, Leozão? Que horas são?
- Júlio! O que estamos fazendo aqui?
- Você tem amnésia alcoólica? Não sabia disso – dis-
se Júlio se levantando e passando a mão no cabelo ba-
gunçado.
- Não é hora pra piada, cara. Eu acordei achando que
estava em casa. O que houve?
- Até onde você se lembra? – Leonardo respirou fundo
buscando seus pensamentos. Sua expressão certamente
denunciou sua última lembrança. – Melissa, não é? – Jú-
lio pegou a carteira que estava jogada no chão da sala e a
guardou no bolso. – Não acho minha camisa.
- Como você foi parar lá, Júlio?!
- Putz! A camisa ficou com a Dani! – disse Júlio esfre-
gando as mãos no rosto pra acordar.
- A Dani? Ela. Me conta essa história! – Leonardo fa-
lou isso um pouco nervoso.
- Vamos sair daqui.
Júlio foi ao quarto para se despedir de Francisca, en-
quanto Leonardo abriu a porta da sala para saírem. Ela

132
O (não) lugar do amor

devia estar dormindo um sono profundo, pois Júlio de-


sistiu de avisá-la que estavam saindo e fechou a porta.
- Que rabão de passista, hein, Leozão?! Você só me
enche de orgulho! – Leonardo fechou a cara pro Júlio. A
dor de cabeça fez sumir a paciência. – Por que saiu com
a Melissa ontem? Me explica essa antes de eu refrescar
sua memória.
- Eu não saí com ela.
E, de fato, não havia saído. Chegaram a combinar,
mas a maneira sempre frívola que Melissa agia com ele o
fez desistir dos planos.

U ma leve neblina descia do céu. Era chegada a hora de


mais uma conversa tão banal, mas que para ele era muito,
como cada momento pontual que tinham. Ele não podia de-
monstrar que para ele ela era toda a razão de todas as coisas,
então a olharia com indiferença, como se ela não passasse de
mais uma dessas pessoas que entram e saem da vida. Como
foi leviana no jeito que contou para ele que namorava. Logo
depois... Por que o procurava? Não estavam bem. Nunca
estão. Leonardo olhava para ela como se a tivesse visto há
menos de 15 minutos, ignorando a saudade que lhe aperta-
ra o peito durante os quase sete meses que não a vira. Sete
meses. Não soava muito. Por que para ele fazia tanta dife-

133
CAROLINA GAIO

rença? Como foi difícil resistir ao abraço dela, como se não


fosse nada.
- Melissa!
- Leo! Você tá diferente.
- Impressão. O que tem feito?
- Esperado a sua visita na minha casa da Zona da Mata.
Desistiu daquele portfólio?
- Não, esse é meu principal projeto, é que tenho anda-
do meio ocupado. – Como se não se pudesse arranjar tempo
para o que se quer.
- Senti sua falta.
- Falta? Por quê? Mal nos conhecemos.
- E apesar disso nos conhecemos tanto.
- O que você quer, Melissa?
- Queria cantar uma música pra você. – Como quem diz
“não é nada demais, ela só fala da nossa história, mas vou
fingir que é só mais uma canção que nem fala de amor”, por
que ela sempre fazia isso? Mas que merda!
- Previsível. A gente combina de sair qualquer dia desses.
Preciso ir agora.
- Mas. Você disse que iria encontrar o pessoal comigo. A
galera quer ver você. – Sete meses. Ninguém sentiu falta em
sete meses. Muito menos ela.
- Disse, mas outro dia marcamos. Enquanto te espera-
va, recebi uma ligação da agência, preciso trabalhar agora
– falou como quem mente por amor, ele não podia continuar

134
O (não) lugar do amor

fingindo, levando em banho-maria toda aquela situação que


existia dentro dele em um universo tão fundo e vasto.
- Isso sempre acontece quando você tá comigo. Não va-
mos sair mais? Por que você foge?
- Fujo de quê? Do que você tá falando? – Ele se corroía por
dentro. Não podia ser indiferença de Melissa. Chegava a ser
cinismo esse tipo de pergunta. – Desculpa, Melissa. Podemos
nos ver amanhã, se ainda tiver por aqui.
- Não sei. Tô meio enrolada, vou pro Nordeste nos próxi-
mos dias, achei que iria comigo.
- Não confirmei nada, não vai dar pra eu ir.
- Tudo bem, Leo. Mas vamos combinar de você ir pra lá
comigo. Quero ver o portfólio pronto. Vai ser uma ótima des-
pedida.
- Com certeza! – Leo sorria e pensava “Que vadia! Des-
pedida. Como pode falar isso de forma tão leviana?” o que
o rasgava de uma forma tão visceral que deveria ser crime
falar de maneira frívola. E ela sabia de tudo isso. De tudo.
Maldita. – Bom, preciso ir. Divirta-se. Mande lembranças ao
pessoal por mim.
Leonardo chegou a ver Melissa fazer menção de beijá-lo,
porém virou as costas como quem ignora a vida, como quem
acha tudo superficial e sem graça. Jamais diria a Melissa que
pensava nela diariamente e que acordava no meio da noite
de tão fortes que eram a sensação e a saudade do seu toque
em sua pele. Não, definitivamente não era o portfólio. Era a
mulher. E nada mais podia continuar daquele jeito. Era preci-
so seguir e fingir que foram só algumas trepadas quaisquer,

135
CAROLINA GAIO

como quando se assiste à novela e não a Almodóvar. Rasgou


o bilhete da passagem de avião que comprara para ir com
Melissa para o Nordeste, como haviam combinado. Já não
fazia a menor diferença.
Mas desistir dos planos não adiantou muita coisa, já que
a vida, ah, a vida. Melissa também mudou de planos naquela
noite, e a vida sempre marota, como diria Gabriel, fez com
que os dois se encontrassem.

-P ois é, Júlio, a Francisca me chamou pra assis-


tir a um show que eu já estava querendo, disse que iria
com algumas amigas. Chamei o Gabriel e fomos juntos.
A Francisca, a Dani e a Jamile estavam lá.
- O Gabriel traçou a Jamile? – disse Júlio exaltado,
cortando Leonardo.
- Não, ela é lésbica – disse Leonardo com cara de pou-
cos amigos para Júlio. – Ele só disse que a levaria em casa,
parece que mora perto do plantão dele, não me lembro
bem. A Melissa não estava com elas.
- Foi coincidência?
- Infeliz coincidência. Ela chegou com o Victório. Eu
tinha ido ao banheiro, quando voltei, vi os dois juntos,
conversando com a Francisca. Foi mais forte do que eu,
bebi uma bebida que a Dani estava segurando, virei. Nem

136
O (não) lugar do amor

ela entendeu. Só depois percebi que era Steinhäger. Ou


submarino, não sei se estava misturada com chope.
- Sempre achei que você se sentir mal com isso era
psicológico. Se bem que você é fraco. Foi quando pediu
pra eu te encontrar porque estava louco? – Júlio falava
isso contendo uma risada debochada.
- Quase. Acho que adivinhei que precisaria estar fora
de mim. Em seguida eu vi o Victório e a Melissa se bei-
jando. O Victório é estranho demais. Um cara um pouco
maior do que a Melissa com quase a mesma quantidade
de músculos que você e aquele cabelo enorme, raspando
na bunda.
- Pode deixar que um dia ainda te peço em namoro,
princesa – disse Júlio mandando um beijinho e debo-
chando do jeito com que Leonardo falava dele. – Isso ex-
plica as 37 mensagens seguidas que você me mandou.
Nenhuma fazia o menor sentido sem eu saber disso, mas
imaginei qualquer coisa parecida. A única mensagem mi-
nimamente compreensível dizia “Vem doido Júlio eu tô
Melissa show shooow Lenine”.
- Isso parece compreensível?
- Depois te mostro as outras pra você entender. – Jú-
lio continuava rindo. – Fui o mais rápido possível, ainda
tive que caçar onde era esse show. Quando cheguei você
estava tentando convencer o Gabriel a injetar midazolam
na Melissa.
- O soro da verdade?
- Soro da verdade é pentotal sódico. O midazolam é
um tranquilizante que pode causar uma fase de excita-
137
CAROLINA GAIO

ção, ou seja, pode funcionar, mesmo que minimamente,


como um soro da verdade. Mas não é a mesma coisa.
– Leonardo olhou pra Júlio querendo entender como ele
sabia daquilo, mas, pelo jeito, suas expressões deviam
estar facilmente decifráveis. - Quando eu cheguei, você
estava perguntando ao Gabriel se existia algum medica-
mento que pudesse ter o efeito de soro da verdade e o
cara estava dando uma verdadeira aula, apesar de total-
mente bêbado.
- De repente foi por isso mesmo, e não apesar de.
– Júlio olhou enviesado para Leonardo. – O que foi? Eu
acredito no álcool. Não sou praticante, mas acredito. –
Júlio balançou a cabeça como se aquilo fosse uma gran-
de asneira. No fundo, Leonardo sentia como se Júlio fos-
se sempre vê-lo como uma criança. Ou se era ele mesmo
que se sentia completamente despreparado para qual-
quer coisa.
- O Gabriel parecia até empolgado com a ideia, disse
que também tinha corticoide na mala do carro e poderia
resolver se algo saísse do controle. Não foi fácil fazê-los
desistir da ideia. O plano de vocês de dar uma injeção
numa pessoa no meio de um show parecia perfeito. Pra
vocês. Vocês queriam que eu puxasse assunto com o
Victório, para o Gabriel injetar o midazolam na Melissa.
E que depois eu desse um jeito de despachá-lo. – Leonar-
do olhava boquiaberto para Júlio que não continha risos
eventuais conforme contava a história. - Só que ninguém
é de ferro, né, Leozão?! Papo vai, papo vem, tomei umas e
outras e fui ficando meio altinho. Não lembro qual de nós

138
O (não) lugar do amor

três teve a brilhante ideia de dissolver uns comprimidos


de dimenidrinato na bebida da Francisca.
- Agora me veio muito clara a imagem do Gabriel di-
zendo que isso podia dar hipotensão.
- Não duvido que tenha dado pelo jeito que ela ficou.
- Mas por que pra Francisca? Tinha que ser pra Me-
lissa. Espera. Nós fizemos isso? – Leonardo não sabia se
o assustavam mais as palavras de Júlio ou todas as lem-
branças voltando e confirmando aquela história. Júlio pa-
recia se divertir vendo a reação de Leonardo.
- Fizemos, Leozão. A Melissa foi embora cedo e a Chi-
ca é a amiga mais próxima dela que conhecemos.
- Mas dimenidrinato não dá sono? Isso é pra enjoo,
não é?
- É, mas achamos que com sono a Chica soltaria al-
guma informação útil pros seus propósitos e que dificil-
mente se lembraria, ainda mais na interação com álcool.
- Eu não consigo acreditar que fizemos isso. O pior
de tudo é que eu estou lembrando exatamente da noite
passada e não estou gostando nem um pouco.
- No final das contas, não adiantou muito, ela ficou
bem dopada com os cinco comprimidos que demos...
- Cinco?!
- E não falou coisa com coisa. Acabamos indo pra
casa dela preocupados com os efeitos. Mas o Gabriel
mesmo que poderia resolver alguma coisa teve que ir pro
plantão.

139
CAROLINA GAIO

- Você pegou a Dani?! Eu dormi com a Chica?!


- Cheguei a cogitar na hora em que ela tirou minha
camisa dançando e me chamando de “Einstein do amor”
ou algo assim.
- Einstein do amor?
- Ela estava bem bêbada. E me alisando feito louca.
Einstein foi físico, pelo menos foi a analogia que eu fiz na
hora. Mas, não, não peguei. Eu estava muito bêbado e
imbuído na sua causa. Quanto a você e à Francisca. Bem,
digamos que dormir vocês não fizeram muito. – Leonardo
sentou no banco do ponto de ônibus, apoiando o rosto
nas duas mãos.
- Eu não fiz isso.
- Fez. E como fez. Se não me engano você a chamou
de Melissa em algum momento – disse Júlio enquanto
apoiava o pé no banco e procurava por algum ônibus se
aproximando.
- Júlio, você fica debochando! Isso é muito sério!
- Agora não há muito o que fazer.
Leonardo abaixou a cabeça, apoiando o rosto nas
mãos novamente. Pensou em Melissa e em Victório e no
que ele estava fazendo, envolvendo pessoas que não ti-
nham nada a ver com a situação que ele sabia que tinha
criado. O cheiro de cigarro impregnado na camisa ama-
rela.

***

140
O (não) lugar do amor

Passaram-se quatro anos e Leo não vira Júlio desde a


publicação do livro do grupo. Em uma situação que os
dois nunca imaginaram e muito menos desejariam estar,
eles se reencontraram. Festa de criança. Era aniversário
da filha de algum amigo que nenhum dos dois precisaria
o nome. Não fazia diferença. Leonardo e Júlio se olharam
com surpresa por se verem naquela situação.
- Eu não acredito que você casou, Leo... – dizia Júlio
olhando incrédulo pra mão esquerda de Leonardo – Por
que você fez isso?!
- Olha quem fala! – Leonardo só ria daquela situação.
Um pouco afastada dali, uma menina brincava. Leo-
nardo observava e Júlio percebeu.
- Ela tem seus olhos! – Júlio falava assustado e or-
gulhoso ao mesmo tempo. – Quem foi a felizarda, hein,
Leozão?!
Mas a curiosidade de Júlio não demorou muito para
ser saciada. Ao lado da menina, ele viu uma mulher se
abaixar, brincava com ela e mexia em seus cabelos. Era
Manuela.
- A Manuela?! Leozão, a Manuela?! Eu não acredito
que você fez isso! Sempre soube que faria, por que não
me procurou? Eu teria impedido!
Leonardo não conseguia nem responder às provoca-
ções de Júlio. Só olhava pra ele e sorria.
- A tia vai te levar pra brincar com as outras crianças,
tá bom?!

141
CAROLINA GAIO

- Tia?! Leozão, a Manuela. Então você não se casou


com a Manuela?! – mal falara isso, uma mulher abraçou
Leonardo por trás. Júlio olhou para a mão esquerda e viu
a aliança. Era o mesmo modelo que Leonardo usava. O
cheiro conhecido e o toque que sempre assombraram
Leonardo em seus sonhos estavam ali. Júlio abriu um
sorriso encarando Leonardo. Olhava os dois com admi-
ração e felicidade. Leonardo retribuiu o sorriso. De uma
maneira muito inusitada, ele se sentia em casa. A mulher
não era Fernanda como Júlio sempre achou que seria.
Tampouco Manuela. A mulher era Melissa.

***

Leonardo acordou ofegante e confuso. Estava assustado


com o sonho que acabara de ter. Ligou para Júlio. Ligou
três vezes seguidas e ele não atendia, na quarta vez, com
voz de sono, Júlio atendeu.
- Quem morreu? Fala logo.
- Júlio? Está fazendo o quê? – Leonardo ouviu um ba-
rulho como se Júlio estivesse mexendo no celular.
- Tá de sacanagem? São quatro da manhã! Eu estava
dormindo! Fala logo o que houve.
- O sonho. A mulher.
- Que sonho, cara, tá maluco?!
- Os sonhos que te contei que tenho tido. Finalmente
vi o rosto da mulher.
- Era Fernanda.

142
O (não) lugar do amor

- Não. Melissa.
- A Melissa? Ih, cara, tá pagando paixão mesmo pra
chatinha?!
- Fala sério, Júlio! Não tem nada a ver.
- Você acha que essa mulher está no seu destino, é
isso?! Se for, você sabe que não sou pai de santo, não
posso ajudar.
- Não é nada disso. Isso não existe! Eu só queria en-
tender por que eu vi o rosto dela.
- Liga pra ela, é psicóloga, deve conseguir explicar.
Não podia esperar até amanhã pra me ligar?
- Você tem razão, desculpa. Vou desligar.
- Ah! Agora me acordou. Quer que eu vá pra sua casa?
- Quero.
Júlio desligou. Leonardo estava confuso. Sentia o
cheiro de Melissa no quarto. Sua presença era tão forte
e real. E se perguntava se ela ao menos pensava nele en-
quanto uma trilha sonora vinha à cabeça. Por que “Anun-
ciação” o fazia pensar nela? Logo Alceu Valença, isso não
fazia sentido. Mas o que é que faz? Leo resolveu entrar
no grupo enquanto esperava Júlio chegar. Ninguém esta-
va online. Havia uma publicação nova feita por Barbarel-
la. Ela pedia de novo para darem sugestões para o título
da publicação, o livro sairia em quatro meses e eles não
faziam ideia do título. Tudo que havia sido sugerido soava
muito familiar e óbvio. Leonardo olhava em volta buscan-
do alguma ideia e viu o livro de Melissa. Estava jogado na
última prateleira da estante, nem lembrava que estava
143
CAROLINA GAIO

ali. Ele subiu na cama e deu pra ver a capa. Nunca tinha
reparado. A foto da capa era o lugar em que Melissa e ele
tinham se visto pela última vez. Onde ele rasgou o bilhete
da passagem, foi a última vez que se falaram, aliás. Por
que ela marcara com ele lá? Qual era o significado da-
quele lugar para ela? Leonardo estava encharcado desse
desejo de posse de dar significado a tudo. Mas tinha que
existir, talvez descobrir resolvesse os seus problemas.
Talvez não fizesse a menor diferença. Aquele lugar o ha-
via marcado de uma forma não tão boa quanto ele es-
perava, ou não esperava, já que, de alguma forma, sabia
que não podia esperar. Um não lugar. Olhou para o grupo
novamente e o título do livro era óbvio: O (não) lugar do
amor. Rogozov ficou online e viu a sugestão de Leonardo.
- Temos uma vítima de criatividade noturna aqui? –
escreveu ele.
- E uma de insônia, é o que parece – Leonardo retru-
cou. Rogozov apenas digitou uma risada. Leonardo viu
que ele começou a digitar qualquer outra coisa, mas o
interfone tocou. Era Júlio. Fechou o notebook e foi aten-
dê-lo.
- Satisfeito? Aqui estou, chore suas mágoas.
- Arranjei um título pro nosso livro. O (não) lugar do
amor, entre parênteses, saca?
- Espero que eu não tenha vindo aqui só pra ouvir isso.
- Não gostou? É o nosso livro!
- Esse pessoal que nunca escreveu uma dissertação
fica empolgado por qualquer coisa – Júlio desdenhava

144
O (não) lugar do amor

em tom de implicância, Leonardo riu. – Acabei de receber


a notificação do grupo pelo celular. A ideia é boa. Se Tião
topar, o artigo principal é seu, parabéns.
- Meu?!
- Você nunca leu o regulamento direito? – Leo fez
uma expressão que deu a entender que era óbvio que
não. - O autor do título é o autor do artigo principal, que
leva o nome do livro e tem que ser norteador para os ou-
tros. É o artigo central, inclusive, nos dois sentidos, saca?
Sempre achei que Tião copiou essa ideia do “Primeiras
Estórias”, do Rosa, por causa daquele conto “O espelho”.
Vou investigar na reunião. Mas já podemos voltar às va-
cas frias. Imagino, inclusive, que elas tenham inspirado o
título.
- O que essa mulher fez comigo? Como conseguiu, do
nada, fazer o que não tinha sentido ter direção?
- Anota essa frase e faz um pagode com ela. Combina
bastante. Dá pra rimar com coração ou ereção. Prefiro a
segunda opção.
- Que também rima. – Os dois riam. – Mas isso é sé-
rio, Júlio.
- Leozão, o problema é quando o sexo é causa. Foi o
teu caso.
- Já essa você pode anotar e usar pra fazer um funk.
– Júlio riu.
- Não acredito que você não reparou.
- Em quê?

145
CAROLINA GAIO

- Nos sonhos que você tem há anos com a mulher


misteriosa. Você lembra há muito tempo do jeito que ela
te abraça. Mas quando começou a sentir o cheiro dela?
- Não sei. Talvez do final do ano passado pra cá.
- Voilà.

146
Capítulo 7 | Julho

-V ocê podia ter vindo antes, Júlio, podíamos par-


ticipar da reunião daqui de casa.
- Não dá, o Villa tem um esquema de reconhecimento
de IP.
- Como sabe disso?
- A Manuela me contou. É mais uma estratégia pra
vigiar os integrantes, saber onde estão ou se passaram a
senha pra outra pessoa, essas coisas.
- É, eu entendi. Queria saber como a Manu descobriu
isso. Como é que ela está?
- Linda – disse Júlio fazendo Leo sorrir.
- Isso eu sei. Sinto falta dela. – E sentia. Sentia falta do
jeito que ela pedia pra ele morder seu lábio inferior com
força. Ele chegou a fazer isso com Melissa uma vez, mas
ela reclamou e ele achou engraçado. - Pensei em procu-
rá-la, sair pra conversar, nada demais.
- Por que não faz isso?
- Só acho melhor deixar as coisas como estão.

149
CAROLINA GAIO

- Você não tem coragem, não é? Você ama a Manue-


la. Eu estava errado. – A constatação com que Júlio falou
isso não era feliz. Ele ficou de repente com um olhar fos-
co, que Leonardo só viu nele uma única vez, quando a
Manuela tirou os sisos, Júlio prometeu que iria com ela,
mas ficou preso na redação e não conseguiu cumprir a
promessa. Ela teve uma recuperação complicada e Leo-
nardo não sabia se Júlio se sentia mais mal por isso ou
por não ter ido à cirurgia. Foi a única vez em que Leonar-
do viu Júlio com aquele olhar.
- Você gosta de ser do contra. Você estava certo,
sempre esteve. Não conheço o amor. E pelas descobertas
que tenho feito sobre o amor, segundo o FDP, nem quero
– disse Leonardo com certa ironia, Júlio sacudia a cabeça
como se fosse uma grande besteira, seu olhar voltara ao
brilho costumeiro. – Eu ainda não estou conformado com
a Manuela ser mestre.
- Só por que você acha que só você tem todo o conhe-
cimento do universo?
- Me parafraseando agora? Não é nada disso – disse
Leo consciente de que, em parte, ou até totalmente, Júlio
estava certo. – Ela nunca me disse nada.
- A Manuela quer viver livre de títulos, você não en-
tende? Mestre, Nogueira Amaral. Ela não quer nada dis-
so.
- Isso tudo faz parte dela. Se ela nega, ou omite, ela
mente.
- Claro que não, Leonardo! Por acaso não saber disso
invalida o que vocês viveram? Muda alguma coisa? Eu

150
O (não) lugar do amor

chuto que tenha sido até muito mais real e, conhecendo


a Manuela, sei que foi a intenção dela.
- Tá bom, Husserl – debochou Leonardo sabendo que
não convenceria Júlio em nada que contrariasse as ideias
de Manuela. – ou Garfinkel, se preferir, já que era hétero.
- Hétero? Ninguém é isso nesse meio, Leonardo.
- Alto lá! Nós somos.
- Nós ainda não temos cacife pra isso, ainda não che-
gamos lá. Estou falando da galera que já fez o nome nas
teorias, ou essa galera contemporânea do naipe do Villa.
- Que papo caído, hein?! Quer mudar de time?
- Quando eu chegar lá, vou mudar – Júlio passou o
braço pelo ombro de Leonardo simulando serem um ca-
sal – e você será meu parceiro, se é que me entende. – Jú-
lio deu um sorriso e jogou um beijinho para Leonardo, os
dois rindo. - Seremos como Rimbaud e Verlaine.
- Eles só escreveram um poema juntos.
- Que você saiba.
- Qual dos dois você quer ser, amor? – disse Júlio
mantendo o tom debochado. Uma moça passou próxima
aos dois e gritou “Eu vou pra Engenharia, bem que me
disseram que humanas só tem viado, vou largar enquan-
to estou no começo.” e mais algumas palavras que eles
não puderam entender. Leonardo sentou no banco rindo.
- Traumatizou a garota, Júlio.
- Se fossem outros tempos, eu tiraria o trauma agora
mesmo.

151
CAROLINA GAIO

- Tempos em que você estava mais longe do PhD. –


Os dois riram. – Vai brincando, cabelo de viado você já
tem.
- Nada, cabelo liso jogado é charme, as mulheres fi-
cam loucas. – As mulheres pareciam mesmo ficar loucas
com Júlio, mas Leonardo achava que fosse por qualquer
motivo menos aquele cabelo de gosto duvidoso.
- Cuidado, hein, Júlio. Já me perguntaram se esse seu
cabelo era pra fazer cosplay do Hugo. – Júlio olhou Leo-
nardo com ligeira preocupação.
- Quem perguntou? Mulher? – Leonardo desatou a rir.
- Estou de sacanagem.
- Falando em Hugo, já descobriu se ele é o Brillo?
- Ainda estou juntando informações, mas tenho qua-
se certeza.
- Quero fatos.
- Em breve. E você, descobriu quem são as meninas?
- Claro, sou profissional. – Leonardo sempre achava
engraçado o jeito sério com que Júlio falava isso.
- Elementar. Conte-me sua saga.
- Logo quando começou o grupo, eu desconfiei de
cara que a Jaqueline estivesse nele.
- Artêmis ou Barbarella?
- Os fatos te dirão. – Leonardo achava engraçada a
espécie de personagem que Júlio encarnava em algumas
situações. – Eu assisti a algumas aulas dela na graduação

152
O (não) lugar do amor

ano passado, porque estava querendo ficar com uma ca-


loura, aquela da bunda aculturada.
- O que seria uma bunda aculturada?
- Que não veio pela natureza, foi cultivada em acade-
mia. – O pior é que Leonardo associou imediatamente o
comentário do Júlio à pessoa.
- A Juliana?
- Isso.
- A Juliana não é caloura.
- Ela é formada em Letras, mas em Comunicação ela
é caloura.
- Que mal lhe pergunte, você pegou?
- Peguei nada, mulher difícil. Até serenata no bande-
jão eu fiz e nada.
- Ridículo. – Leonardo riu. – Qual era o cardápio?
- Sei lá.
- Se fosse frango, guaraná e doce de leite estava ex-
plicado, nada supera a felicidade de quando o bandejão
tem esse menu.
- Faz sentido. Eu deveria ter insistido.
- Não! Você furou os pneus da moto da garota pra dar
uma carona e puxar assunto.
- Sou uma pessoa de vanguarda!
- Está mais para marginal e olha que não digo no sen-
tido da arte. – Júlio sibilou uma expressão pouco amigá-
vel para Leonardo – Prossiga.
153
CAROLINA GAIO

- Li algumas coisas que a Jaqueline escreveu, mas não


batiam exatamente com as aulas nem com o que ela fala
no grupo, então continuei a pesquisa. Segui ela para pu-
xar um assunto e jogar discretamente alguns tópicos pra
ver qual era o posicionamento. – Leonardo pensava que
Júlio devia ter algum distúrbio cognitivo pra achar que
aquelas atitudes eram naturais. E, não, definitivamen-
te, ele não era discreto, já podia imaginar ele puxando
assunto “discreto” com Jaqueline do tipo “Oi, você está
participando de algum grupo secreto do programa de
pós?” daí pra pior. - Só que a sorte sorriu pra mim. No co-
meço da semana passada, a encontrei pelos corredores
da universidade. Joguei um charme e chamei pra conver-
sar. Ela sentou naquele banco do lado da coordenação de
graduação, estava segurando algum texto encadernado
com capa transparente, em cima das pernas.
- A tese?
- Não, parecia um artigo. Eu não parava de olhar e ela
jogou uma piada como se eu estivesse olhando pras per-
nas dela.
- E, te conhecendo, certamente estava.
- Estava, mas sem emoção. Ela não tem pelos nas
pernas.
- Eu já te disse que você está no caminho certo, nem
precisa esperar o PhD?
- Estou falando sério, mulher precisa ter aquela penu-
gem sensível à carícia contrária, saca, como diz o poeti-
nha?

154
O (não) lugar do amor

- Eu já tinha percebido a referência. E aí?


- Eu retribuí a investida, pedi pra que ela não escon-
desse as pernas com aquele trabalho, eu tirei o artigo e
coloquei de lado. O resumo estava com uma letra gigan-
te. E nesse lapso, eu fui ao nirvana.
- Só se for a banda – debochou Leonardo.
- Vai tirando onda. Ela levantou pra beber água e qua-
se virei religioso nesse momento. Tirei uma foto do re-
sumo do artigo pra te mostrar. Leia você mesmo. Júlio
mostrou a foto para Leonardo com o resumo em letras
garrafais. O poeta óbvio, com referência ao músico, o
deixou boquiaberto e sem querer acreditar.
- Barbarella.
- Bingo.
- Estou um pouco decepcionado, sempre achei a Ja-
queline sem graça.
- Sem sal, como dizem? Ela é.
- Mas a Barbarella não. Como pode?
- Você não queria uma Barbarella como a do Forest.
- Qualquer um queria – disse Leonardo fazendo Júlio
rir.
- Atualizando pra nossa situação, ela faria orgias
com o grupo todo no dia do encontro. Você pensou nis-
so? Prefiro que nem responda. Isso viraria uma legítima
pornochanchada, temos que concordar que muito mais
chanchada do que pornô.

155
CAROLINA GAIO

- A Jaqueline não pode ser Barbarella, Júlio. – Júlio fez


cara de quem tem algo para contar.
- Não é só isso. Tudo que eu tinha achado dela era
bem antigo, li um artigo mais recente que ela escreveu
em um livro da Gisela.
- Qual livro, o “Coisa não”?
- Esse mesmo. Copiei o artigo pra você, mas nem pre-
cisa ler tudo, o título é “Confusa e com colcheia: o amor
nos tempos do superficial”.
- Ela é Barbarella.
- Já sabíamos disso – disse Júlio com certa ironia for-
çada.
- E a Artêmis?
- Essa é a melhor parte. Lembra da descrição que eu
te dei de como imaginava ela?
- Claro, tenho pesadelos até hoje! A gorda que tem
caspa e não se depila, como poderia esquecer?!
- Pensa bem. Não tem ninguém no mestrado que te-
nha essas características?
- Bárbara? A Curupira?
- Isso.
- Ela vai bater na gente no dia do encontro.
- Há chances.
- Foi dedução?
- Eu desconfiei quando estávamos na fila da copia-
dora. A Jéssica me cumprimentou e perguntou se eu ia
156
O (não) lugar do amor

querer cópias pra mim e pra minha amiga. A “amiga” era


a Bárbara. Ela ouviu e fez uma cena danada que falar com
ela através de mim era machismo e por isso as mulheres
não iam pra frente porque não aderiam à luta e blá-blá-
-blá. Eu não resisti e disse que as mulheres não iam pra
frente porque iam pra frente e pra trás.
- Você não disse isso, Júlio. – Júlio ergueu as sobran-
celhas para ele, desafiador. – É, eu sei que disse.
- A Artêmis também gosta de criar polêmica sem
motivo, mas eu ainda não tinha ligado os fatos. Semana
passada Manuela estava lá em casa, estávamos apoia-
dos na janela. A Manu estava me contando altas piadas
machistas.
- Ela sempre foi chegada ao politicamente incorreto.
- Mas a história não é essa. Você sabe como as jane-
las dos apartamentos vizinhos ficam próximas umas das
outras lá no prédio. No auge das piadas da Manuela, nós
dois perto da janela rindo muito, ouço uma voz esganiça-
da de mulher gritando que “essazinha bocuda envergo-
nha as mulheres”. Quando me virei.
- Bárbara.
- Bingo. Com essa, eu tive o prazer de descobrir que a
Barbara é minha vizinha.
- Meus pêsames. Como você nunca viu aquela pérola
antes?
- É outro bloco, as entradas são distantes.
- Entradas distantes e janelas coladas, seria melhor
o oposto. Mas que desgraça a Curupira ser sua vizinha.
157
CAROLINA GAIO

- É, Leozão. Mas não parou por aí. Nisso juntei os dois


episódios e desconfiei que Artêmis pudesse ser ela. Acho
provável que ela fique sábado à noite em casa. – Leonar-
do abaixou a cabeça entre as pernas rindo.
- Nós também, pelo menos um por mês. – Júlio deu
de ombros.
- Durante a reunião do Falo, ela estava em casa e em
frente ao computador. Fiquei observando. Toda vez que
ela digitava, Artêmis digitava, quando Artêmis não es-
crevia nada, ela só olhava a tela do computador. Fiz um
teste final. Quando o Villa a questionou sobre Michelle
Vian, fiz uma provocação, abri a janela e gritei: “Manda
nudes, ô redundância!”.
- Redundância?
- Ela perguntou a mesma coisa. Eu disse “feminista
chata”.
- Qualquer dia você vai acordar capado. E o desfecho?
- Adivinhe. – Leonardo olhou fixo pra frente por al-
guns instantes como se vasculhasse sua memória à pro-
cura dos fatos da noite anterior. De repente, sua expres-
são se iluminou.
- Isso foi na hora em que ela ficou muda no grupo? O
Villa reclamou da demora dela, inclusive.
- Exatamente! Assim que eu gritei pra ela, ela saiu do
computador e começamos a discutir. Eu só de olho no
grupo pra ver se a Artêmis ia responder alguma coisa.
Nada. Quando a Curupira sentou de volta e começou a
digitar, voilà.

158
O (não) lugar do amor

- O grupo está mal de mulheres mesmo.


- Ô, se tá.

***

- Leo, você está ocupado?


Era Gabriel. Leonardo ficou um pouco assustado com
a entrada repentina dele.
- Desculpe entrar assim, o Claudio estava saindo com
o Inácio, abriram a porta pra mim.
- Já estou acostumado, Júlio vive fazendo isso. – Os
três riram, Júlio e Gabriel se cumprimentaram.
- Estou de saída, marquei com a Amandinha. Vai dar
plantão hoje à noite, Gabriel?
- Não.
- Mais tarde eu volto pra tomarmos um chope – disse
Júlio já saindo, sem perceber que saiu levando o copo em
que estava bebendo água.
- O que houve, Gabriel? – Gabriel parecia abalado. Os
olhos vermelhos denunciavam que tinha chorado.
- Você tem visto o blog da Giovana?
- A última vez em que vi ela publicou um artigo que
tem sido bem comentado. O nome é “Fogo e vício” se
não me engano.
- “Fogo e vício”. Você lembra da música? A que eu fiz
pro Juliano e te mostrei? – Leonardo teve um estalo.

159
CAROLINA GAIO

- “Fogo e vício”! É ele o autor do blog?


- É ele.
- Era dele que você desconfiava, mas já tem certeza?
- Nós tivemos uma discussão mais cedo. Ele estava
totalmente evasivo, não queria conversar direito, disse
que pretende se mudar pra outro estado. No final das
contas, ele abriu a mochila, tirou algo de dentro e me
entregou. Era um papel amassado. Ele me entregou e
mandou eu me “divertir”. E virou as costas. E foi embora,
tirando meu chão.
- Um papel amassado, Gabriel? O que dizia?
- No papel estava escrito Giovana e o número do meu
celular. Eu percebi que era o login do blog. Primeiro eu
entrei no e-mail, não havia nada demais além das farpas
que trocamos. Então eu entrei no blog e vi que ele manti-
nha dois blogs. Um era o que ele escrevia como Giovana,
que usava pra detonar o meu trabalho como vítima pre-
ferida. O outro se chama “Fogo e vício”. É um diário.
- Um diário? Você leu? Bem, ele queria que você les-
se.
- Eu sei disso. Era um diário poetizado. Comecei a ler,
mas não consegui continuar – Leonardo percebeu o olho
de Gabriel brilhar – vendo a tormenta que ele tem passa-
do. E que eu não desconfiava nem minimamente.
- Que tormenta, Gabriel? Ele revela por que ficou es-
tranho e começou a arranjar confusão por nada contigo?
Ele conta por que ficou distante?

160
O (não) lugar do amor

- Ele tem Aids.


- Aids? HIV?
- É. – Leonardo respirou fundo. Se sentiu na pele de
Gabriel por uns instantes e não foi bom.
- O que é que tem, Gabriel? Não é fácil, mas é possí-
vel que vocês convivam com isso. Você está com medo
de ter contraído?
- Não, não tem chance. Eu também não sei qual o
problema, eu quero ficar com ele, já cheguei a descon-
fiar disso e nunca me importei. Só não perguntei por que
não imaginava como tocar nesse assunto. – Leonardo se
sentiu tocado com aquelas palavras de uma maneira que
chegou a doer e sentir uma leve fraqueza. Será que um
dia ele teria esse tipo de sentimento por alguém? Lem-
brou de quando Manuela teve catapora, ele ficou com
ela todos os dias, mesmo nunca tendo contraído antes e
mesmo com todas as pessoas tentando afastá-lo. Ele ja-
mais ficaria longe dela naquela situação. Era a Manuela!
Mas era diferente, não se comparava. Era diferente. Não
era crônico. Tudo em que Cronos se impõe assusta. Mas
as palavras de Gabriel permaneceram latentes na sua ca-
beça. “Nunca me importei”. “Nunca”. Cronos.
- Isso é recente, Gabriel?
- É. Da penúltima vez em que nos separamos ele con-
traiu. Ele escreveu no blog que o que o deixa pior é que
contraiu de uma mulher.
- O Juliano é bissexual?

161
CAROLINA GAIO

- Até onde eu saiba, não, mas aconteceu. Eu não pre-


cisava ter descoberto assim, Leonardo, isso me deixa pior.
Eu queria estar do lado dele, eu estaria se ele deixasse.
- Vai deixar. Acho que ele quer, só não sabe como.
Como andam as pesquisas de imuno?
- Que ironia, não é?! – disse Gabriel olhando em volta.
Estava sentado apoiando os cotovelos nos joelhos. – Eu
ser imunologista só me faz conhecer o lado ruim de uma
maneira detalhada e até pior, além de saber que não pos-
so fazer nada. Não posso. Mas é essa mistura de ilusão
e egoísmo achar que estar ao lado dele pode minimizar
alguma coisa.
- Claro que pode. Se ele não achasse que poderia,
não deixaria você descobrir. Não teve coragem, fugiu. Só
acho que já está mais do que na hora de ele parar com
o blog da Giovana. O que ele quer construir desse jeito?
Até um artigo do Júlio já entrou na roda.
- Eu vi. Nem me fale. Mas depois que li o diário, as
coisas começaram a fazer sentido. Às vezes fazemos e
falamos coisas que não temos a mínima ideia de como
vão chegar nas outras pessoas. Não podemos imaginar a
dimensão daquilo ali no outro. Você entende?
Leonardo engoliu em seco, parece que aquelas pala-
vras serviram perfeitamente para ele. Ele entendia. Nun-
ca imaginamos a dimensão. A constatação veio pesada.
Leonardo já sabia que o relacionamento de Gabriel com
Juliano não estava bem, já haviam conversado sobre isso
em outras situações, mas não podia imaginar as propor-
ções. Pelo menos ele o convenceu a procurar Juliano e

162
O (não) lugar do amor

tentar ter uma conversa franca, ele ajudaria se fosse pre-


ciso, eles se davam bem. Gabriel achou a ideia do chope
com Júlio mais tarde uma boa, precisava mesmo espaire-
cer, nas palavras dele.
Gabriel deixou Leonardo com aquela bagunça nas
mãos. A vida é mesmo essa “Quadrilha” desvairada de
Drummond? Vandré tinha razão. A morte, o destino,
tudo estava fora de lugar. Leonardo enviou uma mensa-
gem pelo celular para Júlio “Confirmado o chope mais
tarde. Se não se importa, eu quero ser Verlaine”.

163
Capítulo 8 | agosto

-C onfirmei minhas suspeitas sobre o Hugo. Ele é


mesmo o Brillo, o moderador.
- Que é o moderador estava na cara, ele sempre me-
dia os debates.
- É.
- Conte-me tudo, não me esconda nada – disse Júlio
sempre teatral.
- Comecei a desconfiar porque ele também é aluno
do curso de fotografia, só que faz o módulo 3, o último.
Adivinha em que artista ele embasa o portfólio?
- Warhol.
- Exatamente. Sei que poderia ser uma coincidência
e continuei a busca. Foi difícil porque ele não deixou ne-
nhum furo. Aí eu me lembrei do que você me disse sobre
o esquema do IP do Villa. O login do Villa era meio óbvio,
entrei no grupo como se fosse ele e consegui acessar os
IP’s.
- Você fez isso da sua casa?
- Claro que não, da universidade.
165
CAROLINA GAIO

- Pode ser que o Villa nunca tenha entrado no Falo


pela universidade. Já pensou nisso?
- Já, mas de lá ele não tem como saber quem foi.
- Isso é.
- E qual é a senha, Leozão? – Leonardo ficou hesitan-
te, mas resolveu falar.
- meufaloparaeles.
- Você está de sacanagem.
- Pior que não. – E não estava. A história louca que Jú-
lio inventara sobre o grupo auxiliou a descobrir a senha,
talvez a história tivesse algum fundamento.
- Que orgulho, Leozão, está superando o mestre – dis-
se Júlio apontando para ele mesmo. – E como chegou no
Hugo?
- Pedi para que ele fosse lá em casa, pra me ajudar
com uns pontos do projeto. Ele pesquisa teatro de revis-
ta, talvez tivesse alguma informação sobre romances de
banca de jornal.
- E tem?
- Tem, sim. Poucas, mas as melhores que consegui
até agora.
- E como fez pra ele entrar no grupo?
- Enviei uma mensagem só para ele pelo grupo. Ele
podia esperar e só entrar em casa, mas era a opção que
eu tinha.

166
O (não) lugar do amor

- Ele verificou na hora, você acessou os IP’s e viu o


seu no login dele. Muito bom. Ele deu mole. O moderador
sabe dos IP’s.
- Como a Manuela conseguiu saber disso?
- Esqueceu que ela ia ajudar no tal caso do plágio? Ele
deve ter comentado sobre as novas regras do grupo. Ela
participou com uma configuração totalmente diferente,
natural que ele queira dividir isso com ela.
- Isso é. Você já conseguiu fazer as alterações pra
qualificação?
- Ainda não. Vou procurá-lo amanhã. E o seu projeto?
- Vou ter que mudar.
- Por quê?
- Está difícil dar prosseguimento a ele, as editoras se
recusam a falar comigo sobre isso. Parece que têm ver-
gonha.
- Pode ser, ainda é recente. E muitas editoras lança-
vam esses romances por selos especiais.
- Pois é, mas selo não desvincula da editora. Mesmo
assim, não acredito que um trabalho desse tipo possa ser
prejudicial para elas.
- Uma vez eu conheci um cara que escrevia esse tipo
de romance que você quer.
- Isso é sério?! Eu nem sabia que existiram autores
nacionais no ramo.

167
CAROLINA GAIO

- Os romances mais famosos são traduções, sim, mas


existiram alguns autores nacionais. Poucos e nem sem-
pre reconhecidos. Alguns tinham um tipo de vida dupla,
saca?
- Imagino. Lançando livros “normais” e os de banca
de jornal.
- Quem me contou essas coisas foi esse cara. Eu não
tinha muitas informações a respeito antes, só conhecia
os que a Fernanda lia e que a Manuela sacaneava.
- Eu também tenho poucas apesar de estar pesqui-
sando, tem sido difícil.
- É difícil, você seguiu minha lista de macetes pra
abordar as editoras?
- Eu li a lista, mas não decorei aquilo tudo pra conver-
sar ao vivo com alguém e não achei de bom-tom levar
anotado.
- Não seria.
- Qual o nome do cara?
- J. Táram, vou procurar o contato e te passo ainda
hoje.
- Ok. Como vocês se conheceram?
- Eu participei de um sarau em que ele estava. De-
clamei alguns poemas autorais que ele gostou e veio co-
mentar comigo.
- Deixa eu adivinhar. Você foi a esse tal sarau atrás da
Juliana e sua bunda aculturada.

168
O (não) lugar do amor

- Culpado! Em minha defesa digo que isso já tem al-


gum tempo. O tal do Táram me convidou pra participar
de uma reunião com autores de romance de banca de
jornal. Mas nunca fui.
- Os caras se reuniam?
- É, parece que faziam algumas criações coletivas. Os
romances tinham que ter um padrão, era interessante
que os autores conversassem.
- Quantos anos tem esse cara?
- Uns 40 e poucos, ele é da safra da galera que produ-
ziu dos anos 90 pra cá.
- Então não pegou a época crucial pro projeto.
- Não pegou, mas conhece a galera das antigas, pa-
rece que os autores que já não faziam mais romance de
banca de jornal também participavam dessas reuniões,
davam ideias e tal. Você vai gostar de conversar com ele.

***

Leonardo não resistiu e arranjou meios de descobrir o


dia e a hora em que Melissa chegaria do Nordeste, mas
fez questão de se sentir como se não fizesse a mínima
ideia. Dezessete de agosto, por volta de 17h chegaria o
voo. Ele passou todos aqueles dias como quem não faz
senão passar, atravessado pela imagem de Melissa. Vivia
sua agenda agitada, sentindo todas as emoções que os
dias lhe conferiam, porém era como se isso não perten-
cesse a ele de fato. Acordou dia 17 como se não tivesse

169
CAROLINA GAIO

nem dormido, com aquela sensação de que acabara de


se despedir de Melissa, tinha cerca de um mês que não
se viam, mas era tanto.
A lembrança de Melissa estivera cada vez mais viva
e queimando por dentro. Aquele dia, como todos os em
que se espera algo acontecer, demorou mais do que o
normal para passar, todas as atividades de praxe pare-
ciam ter fugido, compromissos cancelados. Só restava
a ele sentar e aguardar. Preparou um chocolate quente,
receita diferente que o haviam ensinado. Pegou o violão
e se pôs a fazer o dedilhado em sol de qualquer sere-
nata de segunda mão, enquanto olhava da janela. Vida
nova praquelas esperanças profundas. Qual é a sua fan-
tasia? Chuva. Nada podia ser mais clichê, por que as
coisas sempre acontecem exatamente do jeito que elas
têm que acontecer? Isso é tão irônico e cruel. O telefone
toca. Leonardo ergue os olhos para o relógio na parede
do quarto. Dezessete e oito. Era melissa. Jamais salvou
o número dela na agenda, não precisava, decorou a se-
quência desde a primeira vez. Quem mais vai fazer doer
vai ter sempre uma sequência numérica fácil para o tele-
fone, dizem as más línguas. Não eram más as línguas que
diziam isso, era Amanda.
- Alô? Quem fala?
- Leo?!
- Eu.
- Leo! É Melissa.

170
O (não) lugar do amor

- Oi, Melissa! – Aquela parada cardiorrespiratória co-


notativa que dura mais do que dura na realidade. Gar-
ganta seca. – Você...
- Estou no aeroporto, Leo. Eu acabei de chegar. Está
por perto? Você bem que podia me buscar aqui.
Leo congelou. Era uma mistura de efusão e ódio ouvir
aquilo. Melissa sempre fora popular, tinha melhores ami-
gos em todos os cantos do mundo. Por que ligar pra ele?
Logo ele. Quanta ingenuidade pensar que seria mais do
que uma oportunidade. Mas quantos não fariam isso por
ela facilmente? Ele era mais um desses, no entanto.
- Devia ter me avisado antes que viria. Não posso.
- Mas hoje não é seu dia de folga? Não é o dia em que
todos os seus mil empregos e cursos te dão uma canja?
Maldita. Como conseguia lembrar de cada detalhe
das coisas que ele falava pra ela? E por quê, por que fazia
questão de mostrar que sabia de tudo?
- É, mas tive uma reunião de emergência. Nem estou
em casa, inclusive. Infelizmente, terei que desligar.
- Leo, a carona foi uma desculpa. Eu quero ver você.
- Tenho certeza de que quer. – E por que não avisou que
viria, então? Como pode ter essa cara de pau?! – E eu quero
tanto quanto você. Combinamos algo em breve. Um bei-
jo, querida.
Querida. Ele odiava falar querida. Talvez ela soubes-
se. Melissa titubeara qualquer coisa no telefone antes de

171
CAROLINA GAIO

Leo desligar, mas ele não compreendeu bem. Sentia um


misto de vitória e frustração. Ele aguardara tanto este dia
e ela ligou para ele assim que chegou. Ela ligou pra ele,
foi a primeira coisa que fez. Mas por que não falou com
ele antes? Tinha todas as formas à disposição, até carta!
Que saudade é essa que surge do nada? É aquela velha
história de que cada um sente de um jeito? Uma ova!
Uma parte dele queria acreditar, mas a outra era puro
niilismo, como de praxe. Ficou por alguns segundos ali.
Sentado, observando a chuva e pensando em toda essa
situação, fazia contas, criava PA’s e PG’s matemáticas,
criava sequências, por mais louco que isso pudesse pa-
recer, mas ele precisava achar uma lógica nisso tudo, ou,
pelo menos, uma saída. Seus pensamentos foram inter-
rompidos pelo som intermitente do telefone. Era Melissa
mais uma vez.
- Melissa?
- Leo.
- De novo? Eu te disse que eu.
- Acabei de falar com o Gabriel. Você está em casa.
Posso passar aí? – Leo sentiu como se o chão se abrisse
embaixo de seus pés. Não sabia o que dizer, nem o que
pensar. Por que e pra que Melissa ligara pro Gabriel? Eles
só se viram uma, ou talvez duas, mas não mais que três
vezes até onde ele sabia. - Leo, me responde! Estou cheia
de coisas e, sei que estou sendo um pouco abusada, mas
já estou a caminho.
- Claro que está a caminho, Melissa, você mora a
duas ruas da minha casa.

172
O (não) lugar do amor

- Hey, eu estou brincando, Leo. O que está acontecen-


do? Deixa eu te ver. Você está pensando muito. Isso não
é bom. Fala pra mim, no que você está pensando? – Leo
engoliu em seco.
- Que aqui está uma puta bagunça! Mas pode vir, a
casa é sua. – Leo sentia seu estômago se revirar e todas
as outras sensações ruins que ele poderia sentir, tudo
doía, tudo incomodava, ele parecia estar prestes a sentir
qualquer coisa desconhecida e fulminante. E forjando na
voz uma amizade com Melissa. Amizade. Suava. – Não
demora, tem chocolate quente. – Ele mesmo se assusta-
va com a naturalidade e o desprendimento com que fa-
lava com Melissa. Puro fingimento. Queria abrir a janela
e gritar. Talvez ninguém se incomodasse, podiam achar
que era performance.
- Ok. Chego em 10 minutos. Beijos. – E desligou.
Melissa sempre surgia da maneira mais clichê e inu-
sitada ao mesmo tempo, mas se não fosse paradoxal,
não seriam eles dois.
Campainha toca. Quando Leo percebeu que havia
passado mais tempo do que o planejado e ele ainda es-
tava em trajes pouco apresentáveis. Correu para vestir
qualquer coisa melhor e abrir a porta. Melissa o olhava
com olhos de saudade, mas ele fingiu que não percebeu
e olhou para ela com o olhar do cotidiano. Ela estava des-
lumbrante. Olhos cada vez mais azuis com aquela pro-
priedade de quem é muito seguro de si. Tão forjado. Tão
forjado. Me deixa entrar nesse universo, ele queria falar.
Ela entenderia, mas perguntaria o que ele quis dizer com

173
CAROLINA GAIO

aquilo, se era letra de uma música nova. Queria dar na


cara dela por isso. E beijá-la depois.
- Leo! – Antes que pudesse pensar, Melissa o abraçou
como nunca. De um jeito que deveria ser crime abraçar
se não pretendesse passar todos os dias ao lado daquela
pessoa.
- Melissa. Você...
A pele extremamente branca e as pintas. A pele bran-
ca e as pintas. A pele branca e aquele mar de pintas. E o
jeito de gemer.

***

- Tem um cara na porta querendo falar com você, se


apresentou como J. Táram.
- O Táram taí?! – Leonardo não tinha dado o endere-
ço pro tal autor dos romances de banca de jornal, mas
Júlio o avisara de que ele era um excêntrico e que era pra
relevar algumas coisas. Não imaginou que incluía esse
tipo de coisa. Leonardo pediu que Melissa esperasse, ela
pediu pra tomar um banho e ficar lendo no quarto dele
enquanto eles conversassem. Melissa. Fechou a porta de

174
O (não) lugar do amor

seu quarto com Melissa lá, tentou guardar aquela sen-


sação de modo que ela pudesse se tornar cotidiana, mas
outras sensações o impediam. Abriu a porta para o Tá-
ram. O susto quando o viu, misturado à resposta óbvia
de como ele teria seu endereço, foi explicado por aquele
J em eu nome. J. Táram era de Juliano Táram. Juliano, o
namorado de Gabriel.

175
Capítulo 9 | Setembro

L eonardo entrou no hall do salão principal da univer-


sidade achando que estava atrasado, mas se lembrou de
que deixava o relógio meia hora adiantado por causa dos
seus problemas com pontualidade. Somente o Villa e o
Júlio estavam no salão, conversando.
- Leonardo! Ou melhor, Odair José, apresento o inte-
grante Marco Antonio! – disse o Villa gesticulando para
os dois.
- Você por aqui! – disse Leonardo com tamanha arti-
ficialidade que achou que seria melhor se tivesse ficado
quieto.
- Pois é, Leonardo. – Villa e Júlio se entreolharam e ele
não se conteve.
- Relaxa, Leozão, o Villa me confessou agora que sa-
bia que sabíamos.
- Como?
- Acham que eu não conheço minha filha? Luiza não
consegue esconder nada. Fiquem à vontade, vou telefo-
nar para a Gisela – disse o Villa se afastando com aquele
olhar maroto costumeiro.
177
CAROLINA GAIO

- Você contou pra ele, não foi?


- Nada, cheguei e ele me perguntou por que não vie-
mos juntos se todos sabiam que ficamos tentando des-
cobrir quem era quem.
- Todos?
- Presumo que esse “todos” sejam ele e a Gisela.
- O Villa lê gente! O olhar dele diz isso.
- Eu sei. – Leonardo observou o Villa no telefone por
alguns instantes. Ele se sentia da mesma maneira em
que o vira pela primeira vez, com aquele jeito de que não
pertence à realidade dos meros mortais. Ele não era arro-
gante, pelo contrário. Tinha algo nele que Leonardo não
conseguia explicar, só admirava. Talvez fosse isso.
- Será que o Luiz Fernando vai ter a cara de pau de
aparecer, Júlio?
- Ele tem que aparecer.
- Não me conformo de o Villa ter redimido ele. – Bár-
bara entrou na sala e foi falar com o Villa.
- A sua Artêmis aí, Leozão!
- Sai pra lá, você que é chegado em mitologia. – Hugo
entrou em seguida, de braços dados com uma mulher.
- Deve ser irmã – disse Júlio respondendo à interro-
gação que a expressão de Leo se tornou. - Não dá pra ver
direito, ele está tapando ela.
- Nosso integrante Brillo! – a voz do Villa anunciou.

178
O (não) lugar do amor

- Devíamos fazer cara de surpresa, não acha?! – Bár-


bara percebeu que Júlio estava olhando para ela, fez um
sinal com o dedo do meio e saiu do salão, Júlio desviou
o olhar.
- E Artêmis! – disse o Villa parecendo mais empolga-
do do que de costume. Leonardo virou-se e percebeu que
Villa não se referia à Bárbara, mas à mulher que chegara
junto com Hugo.
- Não é a Bárbara!
- Como não?! – Júlio virou-se de volta para olhar. Leo-
nardo percebeu que a cara de surpresa dele e a de Júlio
já estavam ali, não precisariam mais forjar. - Juliana! A
Juliana é a Artêmis?!
- Ao que tudo indica...
- Mas. A Juliana?
- É, a da Letras, a caloura, a que você não pegou, a
difícil, a da bunda aculturada...
- Ela não pode ser Artêmis.
- Não só pode como é. Deve estar fazendo a segunda
graduação e o mestrado ao mesmo tempo, tem outras
pessoas na turma dela fazendo isso.
- Não é por isso, Leozão. – Júlio cortou Leo, estava
inconformado. – A Juliana é bonita.
- O que é que tem?
- Ela é muito bonita! Lembra o que eu te disse sobre
a Artêmis?

179
CAROLINA GAIO

- Que eu não devia elogiar as questões da Bárbara


porque mulher feia tem obrigação de ser inteligente?
- Isso. – Leonardo achou engraçada a reação séria do
Júlio, bem típica. – Bárbara não. Juliana. Bonita.
- A Juliana é a Artêmis, ou seja, é a redundância, es-
queceu?
- Leozão, essa mulher tinha que ter algum defeito!
- Não sabia que ela e Hugo eram próximos.
- BFF!
- Fala sério! Você fez de tudo por essa mulher e nem
pensou em pedir dicas para o Hugo? Se sabia que eram
amigos por que não fez isso?
- Eu conheci o Hugo depois, se não me engano ele fez
doutorado sanduíche e voltou agora, eu nunca tinha visto
ele por aí.
- Ele fez sim, ele que pesquisava uma interação entre
diálogos de cinema e jargões de propaganda, não é?
- Isso mesmo. – Mas Júlio parou subitamente de fa-
lar. Juliana estava vindo em direção a eles. Pela expres-
são de Júlio, Leonardo imaginou que ele estava suando.
Mas, não, Júlio não era dado a este tipo de reação. Muito
menos com mulheres. Talvez com Manuela uma ou duas
vezes. Manuela. Por que ela? Leonardo afastou esse pen-
samento sem nenhum propósito de estar ali.
- Quem é Marco Antonio? Leo?
- Não, sou eu. Leonardo é Odair José.

180
O (não) lugar do amor

***

Os dreadlocks que Juliana usava, amarrados em coque,


a deixavam ainda mais bonita. Usava um vestido verme-
lho justo, quase criminoso na silhueta “aculturada”, mas,
apesar disso e do decote generoso, Leonardo estava até
duvidando de sua masculinidade, pois ele não conseguia
tirar os olhos do sorriso largo. Que sorriso, ainda mais
bonito no contraste com a pele extremamente negra. Es-
ses olhos puxadinhos devem ter feito Júlio perder o sono
muitas vezes, nada mais natural. Quem não perderia?
- Peço perdão por algumas brincadeiras que fiz no
grupo, se soei ofensivo. – Leonardo não pôde segurar um
riso que disfarçou em tosse ao ouvir Júlio falar isso. – É
que eu pensava que a Artêmis fosse a Bárbara. Somos
vizinhos, implicância boba de um com o outro. Me per-
miti um tom jocoso. – A cara de “tom amistoso” de Júlio
ao falar de Bárbara era impressionante. Leonardo estava
pasmo menos com o tamanho da cara de pau e mais com
o dom pras artes cênicas do amigo. Desperdício, deveria
estar em algum palco por aí.
- Eu tive que me desculpar com o Villa por isso depois
que soube do controle de IP’s. Ela foi a algumas reuniões
no meu lugar, eu sou contrabaixista de um bar de rock
aqui perto, não podia ir a algumas reuniões por causa
dos shows e pedia pra que ela me substituísse. Temos
um grupo de pesquisa juntas, vocês estão convidados a
participar.

181
CAROLINA GAIO

- Quem está no grupo? – disse Leonardo intrigado


com aquela informação, Júlio o encarava com um olhar
que ele sabia o que significava. “Bonita e baixista”, Leo-
nardo não se surpreenderia se ele saísse dali feminista
por causa dela. Maior contradição ideológica não have-
ria. Mas não o condenaria, não podia dizer que agiria di-
ferente no lugar dele. Que mulher!
- Por enquanto só nós duas, mas tenho certeza de que
o popularizaremos.
- Se depender de mim, já somos três no grupo, tenho
grande interesse pelas questões feministas. Hilda Hilst
sempre foi minha autora preferida, sabia?
- Eu não gosto muito dela, na verdade, mas seria inte-
ressante se vocês participassem. Quanto à Bárbara, ela
não poderia integrar o Falo, ela é graduanda.
- Mas ela fez parte de um seminário comigo no perío-
do passado.
- Sim, ela frequenta aulas da pós, fizemos algumas
juntas. Mas é graduanda. – Júlio finalmente retribuiu o
olhar de Leo, pela primeira vez desde que Juliana foi falar
com eles.
Leonardo viu Jaqueline entrar no salão e ir na direção
do Villa.
- Bingo! Barbarella fajuta! – disse ele, mas Júlio nem
ouviu, tão concentrado naquele sorriso escandaloso de
Juliana.
- Semana que vem, organizaremos uma passeata,
estão convidados a participar. – Leonardo buscou nova-

182
O (não) lugar do amor

mente o olhar de Júlio, que mais uma vez não correspon-


deu.
- Claro que iremos, somos muito imbuídos na causa
feminista, não é, Leozão?! – disse Júlio cutucando Leo-
nardo.
- Ô!
- Qual a temática? – Juliana olhou Júlio sem entender
o que ele quis dizer com essa pergunta.
- Bom, já que nós dois estamos concluindo o doutora-
do esse ano, acho que não corro tanto risco em te contar.
- Contar o quê? Como assim?
- Você é fofoqueiro! Sua fama de fofoqueiro só não é
maior do que a fama das histórias que espalha. E inventa,
como se não bastasse. – Leonardo não conteve o riso. E
era um riso de quem concordava.
- Que seja, mas contar o quê?
- O seu orientador, o Fabrício e eu... Bem, já faz algum
tempo.
- Putz! – Leonardo viu Júlio virar a cabeça pra trás
como sempre fazia quando percebia que algo óbvio lhe
escapara. - Como não percebi?
- Há quanto tempo namoram, Juliana? – disse Leo-
nardo intrigado. Ele e Júlio sempre especulavam que Fa-
brício fazia parte do time, por assim dizer, mas não só era
hétero, como. Ah, Juliana.
- Somos casados. Há seis anos – disse Juliana, dando
uma piscadinha pro Júlio e saindo. Pegou uma taça de

183
CAROLINA GAIO

alguma bebida que Leonardo não identificou da bandeja


de um garçom que passava.
- Você é muito trouxa, “Julião” – disse Leonardo rindo
e imitando o jeito de Júlio falar.
- É, assumo, não percebi que ela estava me sacanean-
do com o lance do feminismo. Aquele sorriso é indecen-
te. Uma verdadeira guerra com o decote! Você sabe que
não sou de ficar indeciso entre os dois. – Leonardo abai-
xou a cabeça rindo.
- Apresento a vocês Rogozov! – disse o Villa.
- Nem vi o Luizão chegar.
- Nem eu. Onde está? – disse Leonardo olhando em
volta. Mas a falta de Luiz Fernando no salão e a presença
de outra pessoa fez os dois ligarem os pontos. A inves-
tigação que o Villa pedira ajuda a Manuela. Como não
perceberam?
- Rogozov?! – Júlio e Leonardo se entreolharam.
- Rogozov não era o Luiz Fernando?
- Na verdade, a gente nunca chegou a investigá-lo, só
desconfiei.
- Rogozov não é o que plagiou Amandinha, Júlio?
- O próprio. Preciso contar isso a ela. – Eles viram Ja-
queline se aproximar, Leonardo estava nervoso, mas Jú-
lio, enfurecido.
- Júlio e Leonardo! Deixem-me adivinhar. Brillo?! – Ja-
queline apontou para Júlio, deixando-o com mais raiva.

184
O (não) lugar do amor

- Jaqueline, cada comentário seu no grupo está gra-


vado. Sabe disso, não é?
- Só espero que não comparem nada com o capítulo
que escrevi para o “Coisa não”. Vão achar que é outra
pessoa. – Jaqueline deu uma piscadinha para Júlio e sor-
riu - Não deixa de ser. Sua namoradinha, Brillo. – Jaqueli-
ne falava “Brillo” com um tom de deboche na voz.
- Por que o deboche, Jaqueline? Admiro o Hugo. Ele
mostra quem é e não precisa de plágio. Foi assim que
conseguiu sua vaga de professora? – Leonardo olhava
meio atônito, não vira Júlio tão irritado desde a época em
que discutia nos jogos de Rugby.
- Não, meninos. Pela vaga eu tive que matar. Li na
infância “Farda, fardão, camisola de dormir” e fiquei en-
cantada com as tramoias narradas por Jorginho por uma
vaga na ABL. Não tinha este tipo de aspiração, mas tratei
de vivenciar uma paráfrase do thriller à minha maneira.
Isso foi só um aviso para saberem com quem estão li-
dando. – A voz de Jaqueline parecia ainda mais rouca. –
Lamento não poder me estender com vocês, tenho ques-
tões a resolver com o professor Villa e com uma amiga
dele, uma editora famosa que ele vai me apresentar.
- O Villa vai saber quem você é. Tenho o blog da
Amanda pra provar que as ideias são dela.
- Um blog com um codinome? Aliás, um ex-blog seria
mais correto. Alguns amigos que sabem das coisas con-
seguiram tirá-lo do ar. Mas a Amanda é boa, vai superar
isso. O que usei dela não vai prejudicá-la. – Leonardo per-
cebeu Júlio cerrar os punhos, e se meteu delicadamente

185
CAROLINA GAIO

entre os dois, interpelando Jaqueline com um tom de voz


mais ameno.
- Não foi só a Amanda que você copiou. – Leonardo
tentou forjar um tom de voz o mais amigável possível,
como se gostasse das atitudes de Jaqueline. – E a Barba-
rella?
- Achei uns escritos antigos de uma amiga de gradua-
ção e reformulei.
- Antigos? E por que eram dentro da mesma temáti-
ca e das orientações teóricas que a Barbarella usava no
grupo?
- Algumas pessoas não evoluem, rapazes.
- Valeu, Darwin. – Júlio olhou feio para Leonardo, não
era hora para fazer piadas.
- Quando te encontrei em frente à coordenação de
graduação você estava segurando um artigo. – Leonardo
sentiu que Júlio o afastou de volta para onde estava, e
chegou mais perto de Jaqueline.
- Ah, sim, esse era atual. Diferentemente da Aman-
da, acho que prejudiquei minha amiga de graduação com
essa. Peguei emprestado o artigo dela pra usar no capí-
tulo do “Coisa não”. Pena não poder devolver! Tive que
dar um fim no original, não foi fácil, mas tenho meus mé-
todos.
- A Barbarella?
- Pelo que vocês dizem, parece que sim.

186
O (não) lugar do amor

- Quem é ela, Jaqueline? – Júlio segurou firme no


braço de Jaqueline e ela se afastou erguendo os braços,
Leonardo percebeu que onde Júlio segurara ficou bem
vermelho.
Jaqueline não precisou responder a pergunta. En-
quanto os três se encaravam, a voz do Villa anunciou.
- E, por fim, Barbarella! Quinze minutos para a reu-
nião começar – Villa disse no tom de voz amigável de
sempre que fez com que, por um momento, Leonardo
esquecesse a situação em que estavam. Ele e Júlio se en-
treolharam, não podiam acreditar no que viam. A Barba-
rella estava ali. E era Melissa. Pareceram horas, mas não
durou mais do que alguns segundos, assim que Leonardo
viu Melissa, deu um tapa na cara de Jaqueline, Júlio o se-
gurou, mas já era tarde, o ímpeto veio antes de qualquer
coisa. Ela levou a mão ao rosto, onde Leonardo bateu,
e se afastou com um sorriso de canto de boca, parecia
completamente transtornada.
- Espero não ser recepcionada da mesma maneira! –
disse Melissa se aproximando de Leonardo e Júlio.
- Melissa, desculpa, mas preciso falar com o Villa. –
disse Júlio saindo.
- O que houve, Leo?
- A Jaqueline copiou trabalhos seus.
- É, eu já soube. Mas isso não tem importância.
- Como não tem importância?!

187
CAROLINA GAIO

- Eu escrevi pra isso. Você bateu nela por causa do


plágio? De... mim?
- É. – Leonardo disse sem graça, tomando consciência
do seu ato.
- Não se preocupa, Leo. O Villa só chamou a Jaque-
line pro grupo pra deixá-la perto, ele já está tomando as
devidas providências a respeito pra conseguir tirá-la da
docência. Depois do caso Luiz Fernando tudo ficou dife-
rente por aqui.
- Já chegou tão informada! – Leonardo ficou um pou-
co confuso.
- Desculpa, Leo, mas o Villa confiava em mim. Eu não
podia. – De repente as coisas se encaixaram para Leo-
nardo.
- O mediador não era o Hugo. Era você.
- Eu não podia contar. Achei que desconfiaria, eu con-
cluí o doutorado, mas não defendi a tese, o que me impe-
diria? Atendi a um pedido do Villa. Eu te dei tantas dicas
de que era eu. Como não percebeu?
- Você sempre soube que era eu, então. Você queria
que eu escolhesse o título do livro, fez de tudo pra isso.
Por quê?
- Achei que isso significaria algo pra você. – Melissa
tinha razão.
- O que pensou quando leu o título?
- O (não) lugar do amor? Achei interessante, mas não
me surpreendeu. Não é uma crítica acadêmica. É uma
coisa pessoal, você me entende? Eu esperava por isso.
188
O (não) lugar do amor

- A foto da capa do seu livro. – As palavras saíram


sem Leonardo querer e sem fazer muito sentido, mas pa-
rece que Melissa entendeu o recado.
- Não reconhece o lugar?
- Foi o lugar em que nos encontramos há uns meses.
- É. Foi o lugar em que nos conhecemos.
- No mirante? Nos conhecemos no mirante?
- Sim. Você não sabia?
- Nunca me disseram. E eu tinha dois anos.
- É. Mas eu tinha 10 e lembro bem. Meu pai falava
muito empolgado que o melhor amigo dele teve um fi-
lho e minha mãe dizia que a criança era linda. Eu fiquei
ansiosa pra ver você. Mas seus pais mudaram de cidade
durante dois anos e tive que esperar uma oportunidade
pra ver “o filho do amigo dele”, aguentando a curiosida-
de. Quando seus pais voltaram, marcaram um encontro
com os meus, estava rolando uma exposição no museu e
fomos. Cheguei lá te procurando, mas estava só o Clau-
dio, sua mãe tinha te levado pra brincar no mirante, tinha
uma pracinha lá, lembra? Nós chegamos a brincar algu-
mas vezes lá quando éramos crianças.
- Eu não lembrava que essa praça era lá.
- Era. Meu pai ficou com o seu e minha mãe e eu fo-
mos encontrar vocês.
- Eu não me lembro disso.
- Você era pequeno pra lembrar, mas eu jamais es-
queci.

189
CAROLINA GAIO

- Por quê? – perguntou Leo intrigado.


- Porque você era a criança mais feia que eu já tinha
visto na minha vida. – Leonardo riu. - Aliás, você foi a
criança mais feia que eu já vi em toda a minha vida.
- Você não era das mais bonitas. E a chatice não co-
laborava. – Leonardo sentiu que deveria se ofender com
aquelas palavras, mas sabia que Melissa não estava to-
talmente errada.
- Eu esperava uma criança bonita, de comercial. Bem,
digamos que era quase isso. Você parecia uma criança
vinda de propaganda, mas do governo. Fiquei impressio-
nada como uma criança podia ser tão feia.
- É, eu realmente não era muito favorecido.
- Melhorou muito – Melissa sorriu pra Leo com cum-
plicidade. Ele retribuiu de um jeito automático, mas ime-
diatamente se arrependeu de ter feito isso.
- Por que quis me encontrar no mirante aquele dia,
Melissa? – Melissa sorriu.
- Gosto de lá. Costumava subir de moto e ler lá em
cima na época da graduação.
- Não me respondeu. Por que na capa do livro? Não
tem nada a ver com o conteúdo.
- Você leu o meu livro?
- É claro, Melissa. – O olhar surpreso de Melissa inco-
modou um pouco Leonardo.
- Vamos lançar um juntos dessa vez. No próximo
mês! Escreveu pra alguém?

190
O (não) lugar do amor

- Cada linha. Inclusive o título. – Os dois riram.


- O título eu já sabia – provocou Melissa – Achei inte-
ressante você ter considerado minhas palavras, mesmo
eu estando um pouco bêbada.
- Só considerei por isso – Os dois riram. - Provas de
amor mudas.
- São as maiores, apesar de sutis.
- É exatamente por serem sutis que são as maiores. –
Leonardo segurou a mão de Melissa.
- Acho que aprendi contigo, Leo.
- Como assim?
- Entendi o que você quis dizer com deixar ir.
Leonardo olhou Melissa. Seus olhos de “por que
não?” estavam perigosamente próximos. O paradoxo
da proximidade forjada, ele bem sabia. E sabia também
como isso terminava.
- Não, você não entendeu. Eu não quero que entenda.
Melissa, fica.
- Não estraga meu romance. – O tom decidido na voz
de Melissa deixou Leonardo sem entender. - No final, os
protagonistas não ficam juntos.
- Como assim?
- Já volto, vou pegar algo para bebermos.
Melissa saiu caminhando daquele jeito que deixava
Leonardo maluco. Ele ficou olhando para ela e pensando
se ela sempre estaria tão perto, mas ele nunca a teria de

191
CAROLINA GAIO

fato. É possível ter alguém, de fato? Melissa tinha Leo. E


não deixaria de ter com facilidade. Não importava o que
ela fazia com essa informação. É a isso que tudo se reduz.
Informação. Melissa saiu com aquela mesma incerteza
costumeira com que saía se fosse para outro cômodo ou
para outros braços, a segunda opção sempre mais corri-
queira, deixando um turbilhão de pensamentos fazerem
companhia a Leo, junto com o aperto no peito. O próximo
passo seria ouvir Raça Negra no celular. Não, definitiva-
mente, o suor jamais dará pra disfarçar.

192
Epílogo | Outubro

-O capítulo que escreveu em “O (não) lugar”


tem sido elogiado, você viu, Leo?
- Li algumas coisas a respeito, fiquei esperando a que-
rida “Giovana” comentar algo.
- Ela, ele, aliás, chegou a escrever algo, mas imagino
que o Gabriel tenha reclamado, porque saiu logo do ar, a
repercussão foi bem pequena. O Juliano tem maneirado
bastante nas críticas depois que eles voltaram.
- Eu percebi, ele tem me ajudado com o projeto. Vai
entender! Nem cheguei a ver o que ele escreveu, você fez
alguma cópia?
- Provavelmente, só preciso achar onde está e te
mando.
A conversa corriqueira dos dois foi brutalmente inter-
rompida pela aparição de Manuela entrando na lancho-
nete. Estava mais bonita do que nunca, aquela aura de
brilho que a cercava parecia ainda mais forte.
- Como é que ela consegue, Júlio?

195
CAROLINA GAIO

- Ser tão bonita? – Júlio riu de um jeito como quem


sabe como aquilo termina, mas ao mesmo tempo, era o
jeito dele de concordar com esse tipo de coisa. - Vai falar
com ela?
Leonardo hesitou por alguns instantes, e teve vontade
de se esconder antes que ela o visse. Talvez pelo suor que
o acometera por inteiro, talvez por ter tido que engolir o
coração de volta, talvez por ele não saber lidar com nada
do que fugisse à vida chata e planejada que ele acredita-
va ser a melhor opção. Mas aquela cena, Manuela com
o cabelo preso num meio coque com um lápis, e naquele
vestido curto esvoaçante, delineando o corpo irretocável,
fez com que alguns pensamentos viessem à tona, e lem-
brassem a Leonardo que, apesar de coragem não estar
entre seus pontos fortes, ele deveria forjá-la.
Esses pensamentos incluíam Melissa, e uma ideia
um tanto controversa, naturalmente vinda de Júlio, de
“resolver a situação de Leonardo”, algo que ele esperava
que só o complicasse. Mas, apesar de duvidar das ideias
sempre pitorescas de Júlio, essa parecia ter dado certo.
Era a reunião final do FDP, antes do lançamento do livro,
Leonardo estava sentado remoendo dores “aculturadas”
como diria Júlio, quando o próprio chegou com suas típi-
cas piadas.
- Até que a magrela ficou favorecida nessa calça! –
Leonardo abaixou a cabeça e riu. - Aliás, você está fu-
gindo até agora de me contar como foi a conversa que
tiveram na semana passada.

196
O (não) lugar do amor

- Você teve qualificação, não fugi. Combinei de en-


contrá-la no bar aqui em frente. Como sempre, ela che-
gou fingindo indiferença.

-P or quê, Melissa?
- Por quê? Tá falando do quê, Leo?!
- Eu te amo. – Melissa ficou muda, o sorriso debochado
em seu rosto se transformou em uma expressão fechada. Ela
engoliu em seco e desviou o olhar.
- Leo... eu não quero te enganar.
- Me enganar? Você bate à minha casa de madrugada,
me liga de madrugada bêbada. Aparece no meu trabalho
chorando. O que mais?! – Leonardo olhava em volta como se
pudesse encontrar uma resposta. - Lembra o dia em que eu
te liguei, bêbado?
- Lembro, Leonardo.
- Victório do seu lado, você me disse que estava escreven-
do o dia inteiro, lembra?
- Claro. – Melissa olhava em volta como se quisesse fugir
daquilo, enquanto dava uma golada no chope. – Leonardo, eu
tenho visto o Victório.

197
CAROLINA GAIO

- Isso agora impede algo pra você, Melissa? Eu ainda não


acabei. Nesse dia, você me disse que estava escrevendo e
aquilo me atingiu de um jeito.
- Então você tem sua resposta – disse Melissa incisiva,
cortando Leonardo, claramente ela não queria ouvir nada
daquilo. – Você não quer a mim, quer uma escritora. É bem
simples, envia o currículo – Melissa debochou ao dizer isso e
ele entendeu o recado – para editoras, com sorte você acha
alguém legal.
- Não quero alguém legal, quero alguém de quem eu gos-
te.
- Você odeia pessoas legais? – Melissa deu um sorriso
debochado forçando indiferença, como se aquele assunto
não dissesse respeito a ela. Leonardo não pensou muito e a
beijou, de olhos abertos, como gostava de beijar Melissa.
- Olhos abertos, Leonardo.
- Eu gosto de ver.
- O quê?
- Você. – Leonardo a beijou de novo. – Nós nunca ficare-
mos juntos, não é? Você não sente nada por mim? Por quê,
Melissa? – Melissa levou a mão aos lábios de Leonardo e o
encarava profundamente com os olhos de “por que não?”. O
jeito que Melissa o olhava chegava a doer, o aperto no peito
tão típico daquela sensação de impotência.
- Você não pode me colocar na parede. Isso não vai resol-
ver nada, você não entende?

198
O (não) lugar do amor

- Eu não consigo ficar indiferente, merda! – Leonardo sen-


tiu a cabeça doer. - Por que você não experimenta não me
procurar?
- Isso não tem nada a ver comigo. O dia que você desco-
brir, vai acabar com essa tortura. – Melissa não parava de en-
cará-lo. Se aproximou e ficou uns segundos respirando bem
perto da boca de Leonardo. Ela o beijou encarando, de olhos
abertos. Leonardo queimava. Melissa se afastou.
– Desculpa se te dei alguma esperança em algum mo-
mento. Pessoas infelizes gostam de se iludir, eu deveria ter
cortado. – Leonardo não podia acreditar nas palavras que
estava ouvindo, muito menos na frieza com que Melissa as
dizia, justamente naquele momento - Tchau, Leo. Você é in-
crível na cama. – Aquelas palavras não soaram como elogio,
só serviram para aumentar o abismo que ele sentia dentro
dele. Deu as costas para Melissa, e percebeu que os dois saí-
ram andando em direções opostas, sem pagar a conta.

***

- Por isso que o Tucão veio me cobrar uns chopes que “Leo-
nardo e uma garota não pagaram”!
- Ele te cobrou? Que cara de pau!
- A cara de pau não foi dele, né, Leozão?! Isso não pode fi-
car assim – disse Júlio enquanto pegava o celular e começava
a digitar alguma coisa.
- Não precisa disso tudo, eu te pago.

199
CAROLINA GAIO

- Você vai me pagar, mas eu estou falando da Melissa.


Vou falar com ela e vai ser agora.
- Você tá maluco? Hey, por que está me ligando?
- Vou deixar no viva-voz pra eu nem precisar te contar.
- O quê?! Júlio, não!
- Se esconde por aqui, ela tá voltando.
Leonardo se sentia vulnerável quando Júlio fazia esse tipo
de coisa, e ele sempre fazia, o deixando sem reação com es-
ses rompantes. Não havia como fugir, e, no fundo, embora
não assumisse nem pra ele mesmo, ele queria. Se escondeu
embaixo de uma mesa encostada na pilastra com um arranjo
grande de planta, e não demorou muito pra perceber que a
porta de vidro quase em frente dava uma visão privilegiada
do lugar em que Júlio e Melissa estavam, só precisaria ter
cuidado para não ser visto. Colocou fones no celular para ou-
vir melhor e quase não respirava para captar todas as nuan-
ces daquela cena que estava prestes a acontecer.

***

- Melissa! Não posso falar que estou surpreso.


- Sei que está, mas não é nada demais. – Júlio sorriu com
aquela típica expressão que ele fazia quando admirava cer-
tas atitudes nas pessoas, Leonardo sentia que podia ler al-
gum pensamento de Júlio que o fazia entender por que ele se
apaixonara por ela.
- Quando você e o Leo vão parar com esse jogo de gato e
rato? – Leonardo fechou os olhos involuntariamente quando

200
O (não) lugar do amor

ouviu isso, como se quisesse fugir dali, mas mesmo de olhos


fechados conseguia ver o exato sorriso debochado no rosto
de Melissa.
- Não sei do que está falando, Júlio!
- Não sabe? Ler Hjelmslev e Lacan foi inútil, então! Pena,
esperava mais de você, doutora! – O jeito direto de Júlio dei-
xava Leonardo mais nervoso, ele percebeu que Melissa enca-
rava Júlio.
- Parabéns, doutor, já saiu a qualificação, eu vi! – Melissa
forçou a naturalidade como era tão típico dela.
- Quando você tirou a foto pra capa do seu livro? Como
foi? – Júlio ignorou a tentativa de Melissa de cortar o assunto.
- Eu estava no mirante com o Victório. – Melissa respirou
tão profundamente num suspiro que Leonardo conseguiu es-
cutar não só pelo celular - Ele me pediu em casamento e eu
não podia aceitar. Achei melhor terminarmos. Ele ficou ar-
rasado e tirou a foto como uma forma de ironia. Mandou eu
enviar pro blog da Amanda ou da tal Giovana pra falar mal
do enquadramento, é só esse tipo de coisa que eu levo das
pessoas, segundo ele.
- Dá pra entender por que o Leonardo tem essa cisma
com você.
- Ah, é? Qual o palpite?
- Nunca conheci alguém mais apaixonado por si mesmo
do que ele e parece que estou conversando com ele agora.
- O mito de Narciso. Típico. Meu palpite é semelhante,
talvez por isso eu não tenha deixado ele perceber as diferen-

201
CAROLINA GAIO

ças. – Leonardo percebeu que Júlio riu com gosto, parecia que
a “magricela chatinha” estava subindo no conceito dele.
- Quer dizer que o seu rompimento com Victório foi as-
sim, com ares de poesia?
- Ele sabia que eu terminaria. Disse que o pedido de ca-
samento foi um teste. Nós dois sabíamos que o fim já tinha
acontecido, só demoramos a aceitar. Sabe como é?
- Se sei! – Houve uma pausa e Leonardo ficou tenso, que-
ria falar algo para Júlio no telefone, mas Melissa podia escu-
tar. – Espera. Melissa, isso aconteceu há poucos meses, bem
depois do lançamento do seu livro.
- É, você é mais esperto do que o Leonardo. – Melissa des-
viou o olhar e Leonardo teve a sensação de que ela sabia que
ele estava ouvindo, de alguma forma. Júlio manteve a postu-
ra inquiridora, Melissa sentou-se, parecendo, com esse gesto,
ceder. - Eu estava sem ver o Leonardo há algum tempo, e nós
combinamos de nos reencontrar... Não sei pra quê, nunca nos
demos bem, talvez pressão dos nossos pais em forçar uma
amizade. Devíamos estar com uns 24 anos nessa época...
- Deviam? Você, né?! Leozão ainda era menor de idade,
pelos meus cálculos, 16, certo?
- É. Ele sempre foi alto e sério, sempre tive a sensação de
que era da minha idade. Enfim, ele levou o violão e tocou uma
música linda que ele havia feito pra uma garota de quem
gostava. Eu fiquei balançada com aquilo. Sei que não havia
motivo, mas pensei que a música era pra mim, até chegar ao
refrão em que ele repetia “Fernanda, Fernanda”. Eu me sur-
preendi com como aquilo mexeu comigo. Tentei falar com ele

202
O (não) lugar do amor

que estava confusa em relação a ele, mas ele só falava nessa


mulher, pediu minha opinião, me contou algumas coisas a
respeito dos dois. Fingi que não me importei muito, dei uns
conselhos. – Leonardo recostou a cabeça no muro que apoia-
va o canteiro, fechando os olhos. Não podia acreditar na falta
de tato que teve e nem como aquilo pôde ter se transformado
na tormenta que havia dentro dele. - Eu me afastei do Leo-
nardo, de todos os programas em que podíamos nos encon-
trar depois disso. Loucura, não é? Eu me questionava por que
aquilo estava acontecendo e repetia pra mim mesma que não
estava. Eu estava em negação com uma coisa tão inesperada
e repentina. Um sentimento por ele. Nada me dava resposta.
Quando fui lançar o livro, eu não me decidia sobre a capa,
a editora já estava me pressionando, fui ao mirante pensar,
colocar as ideias em ordem pra ver se surgia alguma coisa,
aquele lugar sempre me ajudou nesse sentido. Eu cheguei lá
e vi o Leonardo. Ele não me viu, eu saí de perto quando vi. Ele
estava com uma mulher. Era loira, com um cabelo gigante,
meio liso, meio ondulado, quadril largo, sobrancelhas grossas
e um nariz bem grande. Usava óculos e era absurdamente
bonita. Não tinha motivo pra isso e já tinham se passado 10
anos desde a última vez que eu vira o Leo, mas eu senti que
aquela mulher era a Fernanda, a garota da música.
- É a Fernanda.
- Ela é bonita demais, e tinha uma cara de pessoa de-
terminada, de espírito indomável, inalcançável. Aquela cena
me deixou atordoada, eu não esperava por isso. Achei estra-
nho quando o Leonardo me disse que namorava a Manuela
Amaral há algum tempo, eu já vi várias fotos da Manuela,
ela vive na mídia... e não era a mulher do mirante. – Leonardo

203
CAROLINA GAIO

percebeu Júlio dar uma risada meio maldosa. E se arrepender


depois. E queria cruzar o olhar dele pra concordar exatamen-
te com cada palavra dita por Melissa sobre Fernanda.
- Longa história, Melissa. Mas todas as informações pro-
cedem. E aí? Você viu o Leo e a Fernanda...
- Dez anos depois e ele estava com a garota da música
que ele cantou pra mim com 16 anos. Dez anos e aquela cena
me deixou confusa exatamente do mesmo jeito, com aquele
frio na barriga adolescente. Olhei a paisagem e pra mim ficou
claro. A capa do meu livro tinha que ser uma foto daquilo ali.
Você leu a epígrafe que escrevi?
- “Um entrelugar não se cala.”? Claro que li. Eu te citei em
um artigo recente, inclusive.
- Uma foto do mirante não tinha muito a ver com o livro,
mas tinha tudo a ver com a epígrafe, que definia exatamente
como eu me sentia. – Leonardo ouvia aquilo incrédulo, mas,
relembrando os fatos, tudo realmente se encaixava. A ficha
caiu de uma forma inesperada, ele não sentiu a profunda
felicidade que esperava sentir, as palavras de Melissa não
o fizeram sentir do jeito que ele sempre esperava. Ele sem-
pre esperou o momento em que ela diria que o amava, que
ele era correspondido, que eles ficariam juntos. Isso estava
acontecendo e, pra surpresa de Leonardo, não o deixou mi-
nimamente satisfeito, pelo contrário, ele sentiu um ligeiro
incômodo que o deixou ainda mais perturbado. Mas não era
felicidade, satisfação, ou paz. Não era.
- Entrelugar, não lugar... O que vocês estão esperando,
Melissa?

204
O (não) lugar do amor

- Eu sei que o Leonardo não me ama, Júlio! É tão nítido. E


sei que você concorda comigo. Como ele pode não ver?
- Ele vai querer me matar por isso, mas eu concordo. Só
que as coisas não são assim, não temos como saber, não é?! É
loucura acharmos que podemos ter uma noção sequer. Acho
que vocês deveriam se permitir. – Melissa abriu a boca para
dizer algo e Júlio a interrompeu. Leonardo queria realmente
matá-lo depois desse comentário, mas a vontade foi diluída
nas suas divagações. O que ele tanto esperava aconteceu e
não, não obteve o resultado esperado, ele não parava de re-
petir pra si mesmo. – Não, você nunca permitiu. Como quer
um veredicto de algo que você não deixa acontecer?
Leonardo apareceu por trás de Melissa, Júlio fez uma cara
pra ele de que não era o momento, ele a segurou e a beijou.
Não era um beijo como os outros, ele buscava a tal resposta
que Melissa tanto falava pra ele. Sim, ela estava certa. Mas
antes de acontecer, Leonardo já sabia, talvez sempre soubes-
se, talvez tivesse medo, ou apego à novidade, ao inesperado,
às tormentas. Antes de fechar os olhos, Leonardo viu Júlio fa-
zer aquela cara de que aquela cena era banal e de que previa
tudo o que se seguiria após ela.
- Você me beijou de olhos fechados.
- O que é que tem, Melissa?
- Você nunca tinha feito isso. – A expressão de convicção
no rosto de Júlio começou a ruir. Leonardo sentiu uma efusão
enorme dentro dele, era um misto de alívio com a sensação
de ter todas as respostas do mundo.
- Livre.

205
CAROLINA GAIO

- Livre? – disse Melissa sem entender, e Júlio balançava a


cabeça como se compreendesse e concordasse.
- Você tem razão, Melissa. A infelicidade ou a insatisfa-
ção fazem coisas incríveis – disse Leonardo se afastando com
um sorriso que talvez Melissa tivesse interpretado como de-
boche, mas não era. O alívio que sentia não dava espaço pra
isso.
- Onde quer que você vá, e eu já imagino – disse Júlio
gesticulando, insinuando como se Leonardo fosse ligar para
a Fernanda. Ele sempre fazia um gesto semelhante ao do
Nacional Kid para imitar a Fernanda, uma implicância pelos
óculos com grau extremamente forte de miopia. Era exata-
mente isso que ele estava fazendo agora e tinha certa satis-
fação nesse gesto. –, não demore, a reunião começa em cinco
minutos.
- Não demoro!
Leonardo saiu com vontade de correr, tinha a sensação de
que estava fazendo isso sem querer, pela cara que as pessoas
por que passava o olhavam. Antes de sair da sala de reunião,
viu Melissa sorrir pra Júlio com um misto de conformação e
cumplicidade. Os olhos de “por que não” já não o afetavam
minimamente, ele passou pelo enorme jardim do campus e
se jogou na grama.
Nenhuma teoria tem razão.
Daqui sempre deu pra ver mais estrelas do que de casa.

206
O (não) lugar do amor

A quele dia se passou como um filme na cabeça de


Leonardo, ele sentiu de novo as exatas sensações, pare-
cia estar novamente na reunião, quando uma cotovelada
de Júlio o fez voltar bruscamente para a lanchonete.
- Vai ficar com essa cara de que está em outra dimen-
são, Leozão? A Manuela já te viu. – Leonardo fez menção
de que se esconderia atrás de Júlio.
- Viu?
- Distraído como sempre. Viu nada, estava implican-
do.
- Onde ela está?
- Sentou na mesa do fundo, naquela em que nos reu-
níamos na época do colégio. Acho que está sozinha.
- Vamos lá?
- Já vou, estou esperando a Amanda vir me entregar
as coisas, ela não sabe chegar aqui, é meio enrolada com
isso, prefiro ficar aqui fora. – Amanda era enrolada, mas
Leonardo duvidou de que a razão de Júlio fosse aquela,
talvez não quisesse que ela se sentasse com eles. Não
questionou, ele queria olhar de novo para Manuela como
se só existissem eles dois no mundo.

207
CAROLINA GAIO

- Achei que não viria falar comigo – disse Manuela


com um sorriso meio bobo, que ressaltava suas covinhas
nas bochechas. – Cadê o Júlio?
- Esperando a Amanda. – Leonardo se sentou enca-
rando Manuela. Aquele brilho no olhar seria pra sempre
um mistério pra ele. Será que ela sabia? Será que só ele
percebia? - Você está tão bonita, Manuela. – Ela sorriu
e Leonardo sentiu o peito apertar. – A Laura está vindo?
- Não que eu saiba, mas somos amigas. Você está
com ciúme?
- Manuela... – Leonardo buscava as palavras, se sentia
como um completo estranho na frente de Manuela, sem
saber o que dizer, o que fazer com as mãos, ou como dis-
farçar a voz hesitante. – Eu sinto tanto a sua falta, não tem
mais jeito? Acha que acabou pra nós? – Manuela deu um
sorriso de canto de boca, encarou Leonardo por alguns
segundos como se estivesse pensando na resposta.
- Eu não sei, Leonardo. – A expressão serena de Ma-
nuela de repente ficou pesada. – Também sinto sua falta.
- Deixa eu te mostrar que eu mudei. – Manuela segu-
rou as mãos de Leonardo, encarando-o, ele sentiu aque-
la sensação de coisa nova que só ela conseguia fazê-lo
sentir.
- Eu te conheço o suficiente pra saber que está falan-
do a verdade. Acredito em você, mas não sei se confio
pra voltarmos agora que já estamos há algum tempo se-
parados, você me entende? – Leonardo fechou os olhos.
Ele entendia totalmente, a ponto de sentir o que Manue-
la sentia e, dentro disso, saber que não tinha nenhuma

208
O (não) lugar do amor

chance de solução. Era o certo, era o que ele merecia, ele


pensava. Manuela acariciava as mãos de Leonardo e as
olhava, a ternura em seu olhar voltara. – Saudades das
suas mãos. E dos seus punhos largos. E da voz grossa
também. Eu ainda te ouço nos meus pensamentos, sinto
falta de dividir algumas coisas contigo.
- É exatamente o que eu sinto, Manuela. E me vem
um vazio depois, com uma sensação de que nada vai ser
igual.
- Não vai, Leo. – Manuela sorria, mas seu sorriso não
consolava Leonardo. Era diferente. Sorriso de quem se
decidiu e que está em paz. – Nem se for comigo. – Ma-
nuela piscou para Leonardo, encharcando-o de sensa-
ções duais. Confiança e desespero. Fogo e vício, como
diria Gabriel.
- Eu amo você, Manuela. Isso não vai passar.
- Não passa, mas muda. – Manuela ainda segurava as
mãos de Leonardo com uma das mãos, com a outra aca-
riciava seu rosto, sua barba. Seu toque era quente, o chei-
ro adocicado. Leonardo se levantou da cadeira em que
estava, em frente à Manuela, e se sentou do seu lado.
Segurou seus cabelos e a beijou. Profundamente. Exata-
mente do jeito que passou os últimos meses pensando
em fazer. Manuela permitiu, mas não correspondeu, exa-
tamente. Ela parou para olhá-lo com cumplicidade e sor-
riu. Ela o beijou novamente, e ele sentiu uma totalidade
tão grande naquele momento e naquelas sensações, que
teve certeza de que nunca mais aconteceria. Talvez nem
esbarrasse mais com Manuela, apesar da sensação ain-
da forte de que ela era parte dele.
209
CAROLINA GAIO

- Diz que vai ficar tudo bem.


- Você sabe que vai, não quero apagar o que vivemos.
Mas não dá pra voltarmos atrás, Leonardo. As marcas
não somem. – As palavras pacientes de Manuela soavam
como de alguém que explica a uma criança que a realida-
de não corresponde ao que ela acredita. Leonardo sentiu
uma lágrima escorrer tão rápido que ele nem percebera
que aquilo aconteceria. Manuela a enxugou com sereni-
dade. O jeito carinhoso com que Manuela o tratava não
lhe dava esperanças, pelo contrário. E ele se sentia um
canalha tentando consertar e justificar o passado. Talvez
o melhor jeito de mostrar a Manuela que ele a amava
seria não insistir mais, o melhor caminho talvez fosse
aceitar. Deixar ir. Mas ele sabia que não conseguiria fazer
isso. Ele jamais estaria aqui pra aceitar.
Manuela o encarou mais um pouco, olhava fundo em
seus olhos. Ela abraçou Leonardo daquele jeito que sem-
pre fazia quando ele estava triste, nervoso, ou com medo
e, pela primeira vez na vida, ele sentiu toda a certeza da-
quela paz de estar em seu lugar. Já não importavam os
descaminhos da vida dali por diante, já não importavam
as consequências de seus atos, se ele nunca mais teria
Manuela como mulher, se ele não encontraria nada se-
melhante em outro alguém, se ele perdera a mulher in-
crível que, por sorte ou ironia, se apaixonara por ele há

210
O (não) lugar do amor

cinco anos. Aquela certeza que ele sentia nela, em seu


abraço e em seu cheiro, o fez achar o que ele tanto bus-
cava, e nada mais precisaria ser questionado ou temido.
Manuela não era o amor. Manuela era a certeza. Manue-
la era o princípio e o fim de todas as coisas. Manuela era
o sentido.
Os olhos de Júlio fixos em Manuela. E a resposta tão
óbvia e clichê.

211
RA
ZZ
AH

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