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LUMEN ET VIRTUS

REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. XI Nº 27 MARÇO/2020
ISSN 2177-2789

BILBO BOLSEIRO E GOLLUM:


EMPATIA E DILEMAS EM O HOBBIT
DE J. R. R. TOLKIEN

Profª Mª Aldenora Márcia Belo C. Pinheiro Carvalhoi

Débora Furtado Moraesii

RESUMO – O presente artigo tem como partir da leitura de O Hobbit, este artigo
objetivo analisar, por meio de pesquisa traz uma reflexão, dentro dos aspectos
bibliográfica, os aspectos da empatia e levantados previamente, de que maneira a
tomada de perspectiva na personagem Bilbo leitura de ficção oferece ao sujeito a
Bolseiro, protagonista de O Hobbit, de J. possibilidade de perspectivar situações fora
R. R Tolkien (2013b), em seu confronto do seu repertório emocional para
com a criatura Gollum; analisando tal compreender os sentimentos do outro.
acontecimento como uma representação Nesse sentido e, considerando o aporte
dos dilemas vividos no relacionamento teórico, buscamos analisar como a obra em
entre o indivíduo e seus pares. Foram questão exemplifica o olhar empático
definidas três categorias de análise: a através de Bilbo em relação a Gollum e
primeira discute acerca da recorrente como o leitor também pode experimentar
associação entre obras de fantasia, contos das perspectivas da personagem Bilbo
de fadas e leitura na infância, bem como a Bolseiro e da criatura Gollum.
definição do gênero fantasia, com base em
Tolkien (2013a), Todorov (2004) e Marques PALAVRAS-CHAVE – O Hobbit,
(2015); em seguida, pretendemos analisar os empatia, tomada de perspectiva, literatura.
aspectos da empatia observados em Bilbo
diante de Gollum na passagem em questão, ABSTRACT - This article aims to analyze,
a partir das definições de empatia e de through bibliographic research, the aspects
tomada de perspectiva estabelecidas pela of empathy and perspective taking on the
Associação Americana de Psicologia - APA character Bilbo Baggins, protagonist of The
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(2013), ainda Moitoso & Casagrande (2017) Hobbit, by JR R Tolkien (2013b), in his
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e dos estudos de Nikolajeva (2013), confrontation with a Gollum creature ;


McCreary & Marchant (2017). Por último, a analyzing this event as a representation of
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the dilemmas experienced in the reading of The Hobbit, this article brings a
relationship between the individual and his reflection, within the aspects raised, of how
peers. Three categories of analysis were the reading of fiction offers the subject the
included: the first discussion on the possibility of perspective of situations
association between fantasy works, fairy outside his emotional repertoire to
tales and childhood reading, as well as the understand the feelings of another. In this
definition of fantasy genre, based on sense, considering the theoretical content,
Tolkien (2013a), Todorov (2004) and we seek to analyze how an issue in question
Marques ( 2015); then, we intend to analyze exemplifies the empathic look through
the aspects of empathy observed in Bilbo Bilbo in relation to Gollum and how the
before Gollum in the passage in question, reader can also experience the perspectives
from the definitions of empathy and of the character Bilbo Baggins and the
perspective taking of the American creature Gollum.
Psychological Association - APA (2013),
still Moitoso & Casagrande (2017) and from KEYWORDS – The Hobbit, empathy,
the studies of Nikolajeva (2013), McCreary perspective taking, Literature.
and Marchant (2017). Finally, from the

Introdução Para fins de recorte teórico, nos


A obra O Hobbit (2013a), do escritor basearemos no Dicionário de Psicologia
britânico J. R. R. Tolkien (1892 - 1973), da APA (American Psychological
lançado há pouco mais de oitenta anos, Association), que denomina ‘tomada de
ganhou no cenário artístico literário, perspectiva’ como a habilidade humana de
diversas adaptações para outras mídias “olhar uma situação a partir de um ponto de
como cinema, videogames e quadrinhos. vista diferente do habitual. Isso requer
Nessa configuração, incontáveis são as adotar a perspectiva de outra pessoa ou
análises e leituras artísticas dessa obra aquela associada a um determinado papel
encontrada em livros e periódicos. A social” 1 (APA, 2013, p. 429 [tradução
proposta desta análise é investigar a nossa]). Já o conceito de ‘empatia’ varia
interação entre as personagens Bilbo e entre teóricos. No referido dicionário, por
Gollum, a partir das noções e conceitos de exemplo, encontra-se o termo empatia
empatia propostos pela Associação definido como “compreensão de uma
Americana de Psicologia (2013), e Moitoso pessoa a partir do seu quadro de referência
& Casagrande (2017) e dos estudos de
Nikolajeva (2013), McCreary e Marchant
(2017).
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1“looking at a situation from a different viewpoint. social role” (American Psychology Association,
That may involve adopting the perspective of 2013, p. 429).
another person or that associated with a particular
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em vez do próprio” 2 (APA, 2013, p. 206. Inicialmente, faremos uma reflexão


[tradução nossa]), sendo este conceito acerca dos contos de fadas e sua relação
semelhante ao da tomada de perspectiva. com a infância, mais precisamente a
O termo ‘empatia’, abrange também associação entre ambas. A seguir,
outras definições, como “colocar-se no elencaremos algumas considerações acerca
lugar do outro; sentir como sente outra do ‘maravilhoso’ abordado por Todorov
pessoa; ser tocado pelo que sente o outro (2004), que servirão de suporte para a
indivíduo; conectar-se emocionalmente a exposição das características do gênero
outro ser humano” (MOITOSO; fantasia. A seguir, apresentaremos
CASAGRANDE, 2017, p. 214). A partir brevemente o encontro entre a personagem
dessas conceituações, observamos que, em Bilbo Bolseiro e a criatura Gollum. Nesse
geral, apesar da semelhança com a definição sentido, faremos uma apresentação sintética
de ‘tomada de perspectiva’, a ideia de sobre o enredo da obra e o
‘empatia’ pode ser considerada uma desenvolvimento de episódios específicos
habilidade que perspectiva mais do presente e/ou passado das personagens
especificamente o campo emocional. Nesta em recorte. Por último, serão feitas algumas
análise, adotaremos o conceito de empatia considerações acerca do papel da literatura
como a compreensão dos sentimentos do no exercício da empatia e da tomada de
outro, considerando-a como a forma mais perspectiva, habilidades sociais tão
específica de tomada de perspectiva, necessárias para o convívio humano.
conforme sustentado pela crítica literária
Nikolajeva (2013). Contos de fadas, fantasia e infância
Nessa acepção, a partir da análise de A professora, pesquisadora e crítica
como a empatia é manifestada pela literária Coelho (2012), afirma que “os
personagem Bilbo em relação a criatura contos de fadas fazem parte desses livros
Gollum, este artigo objetiva refletir e que os séculos não conseguem destruir e
analisar sobre como a literatura pode que, a cada geração, são redescobertos e
proporcionar ao leitor, perceber o mundo voltam a encantar leitores e ouvintes de
em uma perspectiva que não seja a sua, sob todas as idades” (COELHO, 2012, p. 27).
o ponto de vista do outro, mesmo que esse Os mesmos são usualmente destinados ao
outro seja uma personagem fictícia. público infantil, associação esta que não
Também, pretende refletir sobre de que deve ser considerada como processo
forma essa experiência no mundo literário é natural, mas, estimulada artificialmente.
capaz de despertar no sujeito – desde a tenra O escritor e filólogo britânico J. R. R.
idade –, a habilidade de perceber a realidade Tolkien (2013a), no ensaio intitulado Sobre
sob a perspectiva de outra pessoa em seus contos de fadas, critica tal associação
relacionamentos interpessoais. alertando “proponho-me a falar de contos
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2 “understanding a person from his or her frame of


reference rather than one’s own” (American
Psychology Association, 2013, p. 206).
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de fadas, apesar de estar ciente de que é uma compreendemos que esse fenômeno teria
aventura temerária. O Reino Encantado é arruinado – palavras do próprio escritor3 –
uma terra perigosa, em que há armadilhas os contos de fadas que, ao ficarem restritos
para os incautos e calabouços para os ao público infantil, teriam sido
demasiado audazes” (TOLKIEN, 2013a, p. desprestigiados e renegados pelo público
07). No ensaio, o autor de O Hobbit, adulto:
defende que o interesse nos contos de fadas
e histórias maravilhosas, quando existente, é No mundo letrado moderno os contos
fruto da própria natureza humana, não de fadas foram relegados ao “quarto das
crianças”, assim como a mobília velha ou
devendo ser considerada inerente a fora de moda é relegada à sala de
determinada faixa etária, tal como recreação, primordialmente porque os
recorrentemente proposto às crianças, adultos não a querem, e não lhes importa
afirmando: que se faça mau uso dela.
[...]
[...] os contos de fadas não deveriam ser
As crianças [...] não gostam mais dos especialmente associados às crianças.
contos de fadas, nem os compreendem Eles são associados a elas naturalmente,
melhor, do que os adultos, e não os porque as crianças são humanas e os
apreciam mais que muitas outras coisas. contos de fadas são um gosto humano
São jovens e estão em crescimento, e natural (porém não necessariamente
geralmente têm apetites aguçados, de universal); casualmente, porque os
modo que por via de regra os contos de contos de fadas representam grande
fadas são bastante bem digeridos. [...] [O parte do material literário que a Europa
gosto pelos contos de fadas, quando recente relegou aos sótãos (TOLKIEN,
existente] não é exclusivo, nem 2013a, p. 26, 30)
necessariamente dominante. Também é
um gosto que, creio eu, não surgiria Portanto, compreendemos que nessa
muito cedo na infância sem estímulo
artificial (TOLKIEN, 2013a, p. 26)
esfera, os contos de fadas, histórias
maravilhosas e textos que abordam a
Segundo o escritor britânico, fantasia em geral, não deveriam ser
historicamente, “[...] a associação entre considerados naturalmente destinados às
crianças e contos de fadas é um acidente de crianças e estas, por extensão, não poderiam
nossa história doméstica” (TOLKIEN, ser consideradas público leitor de contos de
2013a, p. 26), fruto de estímulos artificiais fadas; visto que ambos foram associados
por parte dos adultos, que conduziram tal artificialmente, não havendo qualquer
tipo de literatura para o público infantil evidência de base biológica para sustentar
conforme seu próprio interesse por ela, fora tal ideia. Acerca da definição do conto de
diminuído gradualmente. Nessa acepção,

3 “É verdade que recentemente os contos de fadas fato de as artes e as ciências não serem, como um
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em geral têm sido escritos ou ‘adaptados’ para todo, relegadas ao quarto das crianças; [...] Os contos
crianças. Mas também pode-se fazer isso com de fadas assim banidos, eliminados de uma
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música, poesia, romances, história ou manuais arte plenamente adulta, no fim estariam arruinados;
científicos. É um processo perigoso, mesmo quando na verdade, na medida em que foram assim banidos,
necessário. Na verdade só se salva da desgraça pelo foram arruinados.” (TOLKIEN, 2013a, p. 26)
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fadas, o crítico literário Tzvetan Todorov


afirma: Consideramos, portanto, o maravilhoso
de Todorov como aquele gênero que se
Relaciona-se geralmente o gênero configura a partir da aceitação,
maravilhoso ao do conto de fadas; de harmonização e, por conseguinte, da
fato, o conto de fadas não é senão uma integração do sobrenatural em um mundo
das variedades do maravilhoso e os
acontecimentos sobrenaturais aí não que é sabidamente o nosso, o mundo real;
provocam qualquer surpresa: nem o sono batizado como ‘Mundo Primário’ por
de cem anos, nem o lobo que fala, nem Tolkien (2013a). Entretanto, a despeito
os dons mágicos das fadas (para citar dessa harmonização, o próprio Todorov
apenas alguns elementos dos contos de
Perrault). O que distingue o conto de (2004) considera que o maravilhoso não
fadas é uma certa escritura, não o estatuto possui limites claros, o que abre o assunto
do sobrenatural. (TODOROV, 2004, p. para ampliar a discussão. A pesquisadora
60) Mirane Marques (2015) acrescenta às
Para Todorov, o maravilhoso consiste definições propostas por Todorov, o gênero
em um dos gêneros vizinhos ao fantástico fantasia, sendo este vizinho ao maravilhoso
sendo, portanto, necessário definir o e caracterizado pela existência de um
fantástico para que se defina, por extensão, ‘Mundo Secundário’ na narrativa. Marques
o maravilhoso. Segundo Todorov (2004), o afirma:
fantástico, caracteriza-se por uma narrativa
[...] enquanto o maravilhoso se
em que, “num mundo que é exatamente o caracteriza pela integração do
nosso, [...] produz-se um evento que não “sobrenatural” no Mundo Primário de
pode ser explicado pelas leis desse mundo maneira a não causar sobressalto, a
familiar” (TODOROV, 2004, p. 30). Este, fantasia, também sem criar estardalhaço,
promove uma espécie de disjunção entre
consequentemente, provoca uma incerteza, o mundo real e a fantasia. Dessa maneira,
a hesitação entre uma explicação natural – o maravilhoso designa uma alteração e
uma ilusão dos sentidos, por exemplo – e uma ampliação do mundo que
uma explicação que aceite o sobrenatural. reconhecemos como nosso, enquanto a
fantasia nos apresenta um mundo
Essa hesitação entre o tipo de explicação desconhecido, mas com o qual podemos
ante tal acontecimento, de acordo com o nos relacionar. (MARQUES, 2015, p. 68)
crítico francês, é fundamental para a
configuração do fantástico, pois A reflexão, nesse sentido, aponta para o
fato de que a fantasia proposta por Marques
O fantástico ocorre nesta incerteza; ao (2015) apresenta um ‘Mundo Secundário’
escolher uma ou outra resposta, deixa-se nos moldes do que Tolkien (2013)
o fantástico para se entrar num gênero determinara décadas antes ao falar sobre
vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O
“um Mundo Secundário no qual nossa
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fantástico é a vacilação [hesitação]


experimentada por um ser que só mente pode entrar. Dentro dele, o que ele
conhece as leis naturais, face a um [o subcriador] relata é ‘verdade’, concorda
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acontecimento aparentemente com as leis daquele mundo” (TOLKIEN,


sobrenatural. (TODOROV, 2004, p. 31)
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2013ª, p. 27). Isto significa dizer que contraste com o nosso mundo, aqui, se
estamos diante de um conceito complexo dá pela sua ausência. Poder-se-á dizer ser
a forma mais “pura” de fantasia, uma vez
que estabelece um mundo com sua própria que prescinde da apresentação de sua
consistência interna de realidade e suas disjunção em relação a nossa realidade,
próprias leis que o regem. Deste modo, possui tal consistência a sua realidade que
Marques caracteriza o ‘Mundo Secundário’ ela se afirma por si mesma. (MARQUES,
2015, p. 191)
como:
Quando observamos as duas acepções,
[...] um mundo que difere do Mundo concluímos que em fantasias imersivas,
Primário no sentido de poder ocorrer
coisas neles que a princípio não ocorrem
assim como no maravilhoso, não há
no mundo designado real. O mundo estranhamento em relação aos
criado pela fantasia está cheio de acontecimentos que, em nossa realidade, de
acontecimentos incríveis, irreais, acordo com as leis naturais que
maravilhosos, com seres desconhecidos e
diferentes. Nesse mundo tudo pode conhecemos, seriam considerados eventos
acontecer se não forem infringidas as leis sobrenaturais. Em ambas, o ‘sobrenatural’ é
que o regem, ou seja, esse mundo deve integrado à realidade da narrativa. No
ser dotado de uma coerência interna que entanto, podemos perceber que enquanto
lhe dê um sentido de realidade, não pode
haver incredulidade em relação ao no maravilhoso o mundo é o nosso – o
narrado. (MARQUES, 2015, p. 67) Mundo Primário –, onde novas leis passam
a vigorar em harmonia com as leis naturais
É precisamente com base nessa conhecidas, na fantasia imersiva, é possível
perspectiva, que Marques (2015), estabelece entrar em um novo mundo, – o Mundo
que o Mundo Secundário pode surgir de Secundário. Tal estrutura encontra
diferentes maneiras nas narrativas do exemplos na série de livros As Crônicas de
gênero fantasia, sendo uma narrativa Gelo e Fogo, de G. R. R. Martin, e em
classificada, a partir da forma como o diversas obras de J. R. R. Tolkien, a exemplo
Mundo Secundário se apresenta, ou seja: de O Silmarillion, O Senhor dos Anéis e
como fantasia de portal ou fantasia O Hobbit.
imersiva. Chegamos assim, a uma
dimensão constituinte onde observamos
que a fantasia de portal, “[...] geralmente, a Olhando com outros olhos em outros
história nos situa em nosso mundo (em um mundos
lugar que reconhecemos) e, então, Retomando à narrativa, é necessário
estabelece-se a passagem para outro, destacar que O Hobbit (2013b), enquadra-
diferente”. (MARQUES, 2015, p. 178). Por se como uma obra de fantasia imersiva
outro lado, as fantasias imersivas, devido à autonomia assumida pelo Mundo
caracterizam-se como:
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Secundário em relação ao Mundo Primário


que, por sua vez, marca-se por sua ausência
[...] narrativas em que o Mundo – ou seja, o Mundo Secundário está
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Secundário se desprendeu do Mundo


Primário, ganhando autonomia. O encerrado no Mundo Primário –.
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Embora mundialmente conhecido por narra as aventuras do hobbit Bilbo Bolseiro,


sua produção no campo literário, convém que sai a contragosto do conforto do seu lar
destacar que a obra de autoria do professor, no Condado – onde vive em sua toca – a
escritor e filólogo britânico John Ronald convite do mago Gandalf para auxiliar um
Reuel Tolkien foi publicada originalmente grupo de anões, liderado pelo próprio
em 1937, porém, segundo o pesquisador Gandalf [imagem 1] e o anão Thorin
Stark (2014), seu processo de composição Escudo-de-Carvalho. O grupo aparece
iniciara-se anos antes, no fim da década de inesperadamente na casa de Bilbo e
1920. Originalmente, O Hobbit tratava-se organiza a incrível demanda que pretendia
de uma das diversas histórias que o escritor recuperar um imenso tesouro que havia sido
costumava escrever para entreter seus tomado pelo dragão Smaug; anos antes.
filhos, portanto restrito àquele ambiente Nessa jornada, o grupo se aventura na
familiar até que, incentivado por amigos – travessia da Terra-Média [imagem 2],
entre eles o também escritor C. S. Lewis, enfrentando diversos perigos para chegar
atualmente conhecido como autor da série em Erebor, a Montanha Solitária, antigo lar
de livros As Crônicas de Nárnia – decidiu dos anões que fora invadido por Smaug, no
publicar a obra. tempo de Thrór, avô de Thorin.
Objetivando apresentar o enredo,
destacamos que em linhas gerais, a obra

Imagem 1 Imagem 2
An unexpected party (Alan Lee, 2003) Bilbo Mirkwood treetops (Alan Lee, 2003)
102

A certa altura da longa e imprevisível interior de uma montanha encantada –. Faz-


jornada, o grupo de anões juntamente com se necessário destacar que Os Orcs também
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Bilbo, são sequestrados e aprisionados por criaturas fantásticas carregadas de mistérios,


Orcs – criaturas que viviam em túneis no como os Elfos, os Goblins, os Trolls, os
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Nazguls e demais criaturas que povoam o


imaginário do leitor nas obras de Tolkien.

Imagem 3 Imagem 4
Orcs by Alan Lee (Alan Lee, 2003) Nazgul by Alan Lee (Alan Lee, 2003)

Após esse evento, o grupo é resgatado [...] E quando ele dizia “gollum”, fazia um
pelo mago Gandalf, responsável pelo barulho horrível na garganta, como se
estivesse engolindo alguma coisa. Era
envolvimento do hobbit na jornada. Porém, assim que tinha conseguido esse nome,
durante a fuga, Bilbo se perde do restante embora sempre chamasse a si mesmo de
do grupo, cai num fosso e ao acordar, o Sr. “meu precioso” (TOLKIEN, 2013b,
Bolseiro percebe que se encontra perdido. p.72)
Desorientado pela escuridão e tateando o Podemos observar nas palavras de
chão para encontrar a saída da montanha, Tolkien que estamos diante de uma
chega a uma espécie de lago subterrâneo, personagem cercada por fantasia e mistério,
onde encontra a criatura Gollum, descrita posto que ela desperta diversas impressões
por Tolkien, nos seguintes termos: no leitor. Impressões essas que são
reafirmadas também na apresentação da
[...] o velho Gollum, uma criatura viscosa
[...] escuro como a escuridão, exceto por
personagem Gandalf, encapsulado por
dois grandes olhos redondos e pálidos no diversos mistérios, por sua natureza mágica.
rosto magro. [...] Olhos pálidos feito Entretanto, vale destacar que Gollum não é
lamparinas, ele procurava peixes cegos, descrito como um Orc [imagem 3], Goblin,
que agarrava com os dedos longos num
piscar de olhos. Gostava também de Troll ou Nazgul [imagem 4] também não
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carne. Gostava de orcs, quando pertence ao grupo de anões e


conseguia apanhá-los, mas tomava aparentemente não se trata de um hobbit.
cuidado para que nunca o descobrissem. Ele é identificado como uma ‘criatura’,
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[...]
apenas. O autor apresenta ao leitor, Gollum
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como uma criatura pálida e viscosa, que subterrâneo, no interior de uma montanha,
morava em uma ilha no meio de um lago isolado de todas as demais criaturas.

Imagem 5 Imagem 6
Gandalf ‘s (Alan Lee, 2003) Gandalf and the Dwarves (Alan Lee, 2003)

Ao observarmos o encontro do hobbit compreende que “ele parecia ansioso para


Bilbo com a criatura Gollum, podemos parecer amigável, pelo menos no momento,
inferir sobre a fenda que se abre na realidade e até descobrir mais sobre a espada e sobre
de ambos. O tranquilo hobbit havia o hobbit, se ele realmente estava sozinho, se
enveredado numa arriscada aventura pela ele realmente era bom de se comer, e se
Terra Média sob a tutela do mago Gandalf Gollum estava realmente faminto”
[imagem 5], para recuperar um tesouro que (TOLKIEN, 2013b, p. 72).
não lhe pertencia. Os anões que dias antes Percebemos no excerto acima que
se reuniram em sua casa no Condado provavelmente o longo isolamento auto
[imagem 6], para planejar a jornada, não infligido a Gollum, o havia levado a
tinham nenhum laço de amizade ou empatia comportamentos bem característicos,
com Bilbo até aquele encontro coordenado como, por exemplo, falar sozinho,
por Gandalf. referindo-se a si mesmo na segunda pessoa
É possível imaginar o encontro entre do plural. O impacto da descrição de
Bilbo e Gollum a partir da observação da Gollum facilmente gera uma imediata
obra intitulada Riddles in the Dark [Enigmas aversão do leitor em relação à criatura. Por
no escuro] do ilustrador inglês Alan Lee. conseguinte, podemos inferir que
Observamos que ao se aproximar do dificilmente um leitor se interessaria em
104

hobbit, a criatura Gollum propõe a ele um descobrir algo sobre seu passado, assim
jogo de adivinhas objetivando ganhar como Bilbo. No momento em que ambos
Página

tempo para obter mais informações sobre disputavam os enigmas no escuro, as


ele. A partir do jogo de enigmas o leitor preocupações e angústias mais pertinentes –
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de Bilbo e do leitor também, –se dos personagens”5 [tradução nossa]. Nesse


concretizam em identificar se a criatura sentido, entendemos que a despeito da
oferece ou não algum perigo, como sair finalidade da leitura – seja leitura fruição,
ileso daquela situação engendrada por leitura informativa, leitura formativa, leitura
Gollum e finalmente, como encontrar a interpretativa etc. –, essa atividade pode
saída da montanha. proporcionar ao sujeito, a oportunidade de
compreender no outro, pontos de vista,
Uma história antes da história juízos e sentimentos – no caso, as
Retomando as perspectivas teóricas aqui personagens – com histórias de vida,
propostas quando abordamos a temática culturas, posições e papéis sociais diferentes
sobre empatia e dilema entre a personagem dos seus.
principal de O Hobbit, Bilbo Bolseiro e a A reflexão, nesse sentido, esclarece que
criatura Gollum, consideramos que os “[...] leitores entendem uma narrativa pela
conceitos de empatia e tomada de compreensão das emoções do protagonista
perspectiva estão entre as habilidades através de tomada de perspectiva” 6
sociais mais importantes para o ser humano. (MANO et al, 2009, apud MCCREARY;
Entretanto, tais capacidades não são MARCHANT, 2017, p. 193) [tradução
desenvolvidas instantaneamente no sujeito, nossa]. Na obra O Hobbit, o leitor
visto que conforme estabelece compreende a narrativa por meio da
(NIKOLAJEVA 2013, p. 95-96), estas perspectiva da personagem, ou seja, pela
habilidades de base emocional tomada de perspectiva de Bilbo. O narrador
“desenvolvem-se gradualmente e podem ser onisciente, em terceira pessoa, descreve e
aperfeiçoadas e treinadas” 4 [tradução apresenta ao leitor, o repertório emocional
nossa]. formado pelos pensamentos e sentimentos
Nessa acepção, podemos considerar que do hobbit ao longo das aventuras pelas
tanto a empatia quanto a tomada de quais passa e é possível perceber como a
perspectiva se tratam de habilidades que história de vida o influencia nesses aspectos
podem ser exercitadas constantemente pelo e na forma como este interpreta as situações
sujeito por meio da leitura, visto que – tanto aquelas planejadas quanto as
conforme estabelecem (MCCREARY; inusitadas – pelas quais passa.
MARCHANT, 2017, p. 185), a leitura é, Importa-nos, sobretudo, destacar que ao
essencialmente, um “[...] processo interativo longo da narrativa, parte do passado de
através do qual experiências são Gollum vai sendo revelado ao leitor por
compartilhadas. O leitor é integrado ao Tolkien. Isso proporciona ao outro a
contexto de um evento e às personalidades percepção de que aquela criatura-
105

4 “they develop gradually, and they can be enhanced characters” (MCCREARY; MARCHANT, 2017, p.
and trained” (NIKOLAJEVA, 2013, p. 95-96). 185).
5 “Reading is an interactive process whereby 6 readers comprehend narrative by understanding
Página

experiences are shared. The reader is integrated into the emotions of the protagonist through perspective
the context of an event and the personalities of the taking (MANO et al, 2009, apud MCCREARY;
MARCHANT, 2017, p. 193).
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personagem, por mais repulsiva que seja, agora, tal como revelado naquele momento
tanto na percepção do protagonista quanto sombrio da história.
para o próprio leitor, possui uma história de Tolkien descreve a partir das memórias
vida ainda não completamente revelada. de Gollum, que em tempos distantes, ele
Isso significa dizer que a despeito da convivera em sociedade, tivera família,
aparência física e do estado emocional em amigos e costumava brincar com estes.
que se ele é descrito quando do encontro Entretanto, uma vez expulso de sua
com Bilbo, presumimos que Gollum nem comunidade, passou a vagar sozinho desde
sempre fora tal como aparenta ser no então e, apartado de todos, foi
campo da perspectiva real de Bilbo. É desenvolvendo ao longo do tempo os
possível identificarmos tal ideia nos aspectos físicos e emocionais que o
fragmentos abaixo que revelam: constituíam agora como criatura. Este
recurso convida o leitor – mesmo que por
Só conseguiu pensar em adivinhas. breve instante –, a assumir a perspectiva da
Propô-las e algumas vezes decifrá-las era personagem e imaginar as angústias e
o único jogo que já tinha jogado com outras
criaturas divertidas, sentadas em suas tocas, dissabores pelas quais ele passara até chegar
muito, muito tempo atrás, antes que ele àquele atual estado físico e emocional, para
perdesse todos os amigos e fosse expulso, sozinho, compreender seu modo de pensar e suas
e descesse mais, cada vez mais para a escuridão atitudes e artimanhas, o que não implica
sob as montanhas
[...] necessariamente, em aprová-los, conforme
Mas exatamente quando Bilbo começava Nikolajeva (2013).
a alimentar esperanças de que o patife Retomando o enredo que apresenta o
não conseguiria responder, Gollum momento do encontro entre Bilbo e
trouxe memórias de muitas eras passadas,
de quando vivia com a avó numa toca na margem Gollum, [imagem 7] vemos que eles
de um rio. [...] realizam um jogo de adivinhas no fosso
Mas aquele tipo de adivinhas comuns, de escuro da montanha e, uma vez
cima da terra, estava começando a cansá- especificadas as regras da competição, fica
lo. Além disso, fazia-o se lembrar de
tempos em que era menos solitário, furtivo e consensualmente acertado que Bilbo
nojento, e isso o deixava nervoso. obteria como prêmio – caso ganhasse a
(TOLKIEN, 2013b, p. 73-74, 75, grifo disputa – ‘a saída’ da montanha que deveria
nosso) ter o caminho apontado por Gollum, sem
Nos trechos grifados acima, vemos que estratagemas. Por outro lado, caso a criatura
o autor desconstrói, no leitor, a visão ganhasse o jogo, o hobbit seria devorado
cristalizada acerca da personagem, por Gollum, sem trapaças. E possível inferir
construída a partir da sua aparência. que Gollum estava certo que ganharia as
Percebemos finalmente, que Gollum não adivinhas e, por essa razão, não deixava
transparecer claramente as reais intenções
106

vivera sempre de forma solitária, furtiva,


isolado num fosso escuro no coração de de trapacear no jogo, “pois, se havia uma
uma montanha, tampouco tivera durante coisa que Gollum tinha aprendido há muito
Página

toda a sua vida aquela aparência repulsiva de tempo atrás era que nunca, nunca se deve
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trapacear num jogo de adivinhas, que é um


jogo sagrado e de imensa antiguidade”
(TOLKIEN, 2013b, p. 78).

Imagem 7 Imagem 8
Riddles in the Dark (Alan Lee, 2003) Sauron forges the One Rings (Alan Lee, 2003)

Depois da longa disputa, quando Bilbo facilmente investir contra o hobbit, que
finalmente ganha a competição, derrotando desorientado, seria facilmente morto e
Gollum; este pede que o hobbit o espere devorado.
enquanto vai à ilha do lago subterrâneo Entretanto, o um anel escorregara de
pegar um objeto que, segundo ele, o ajudaria seu dedo durante sua última caçada e estava
a mostrar para Bilbo, a saída do lugar, tal agora com o hobbit, que o encontrara no
como ficara acertado como regra do jogo. chão pouco antes de chegar ao lago
Entretanto, o leitor percebe que a subterrâneo. É interessante perceber que
verdadeira intenção e os planos sombrios da Bilbo lembrou-se do anel por acaso, ao
criatura era de usar o um anel7 [imagem 8] colocar a mão no bolso, e foi também por
que guardava consigo há muitos anos e que acaso que ele descobre o poder do anel
o tornava invisível. Nesse sentido, Gollum enquanto tenta fugir de Gollum. A
contradizendo seu próprio discurso acerca sequência narra o momento em que Gollum
da suposta sacralidade do jogo, na verdade, persegue Bilbo a esmo sem chances de
arquitetara colocar o precioso anel no dedo encontra-lo, uma vez que Bilbo está
e, ao se tornar invisível para Bilbo, poderia invisível e passa pela criatura sem que esta
107

7Referido como o anel de Sauron é o emblemático controlar o poder dos demais anéis descritos nas
Página

e mais poderoso dos 20 anéis do poder que foram obras de J. R. R. Tolkien em O Senhor dos Anéis,
forjados por Celebrimbor e Sauron. O um anel – O Hobbit e O Silmarillion.
precioso –, como também era conhecido, servia para
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perceba a sua presença. A criatura tinha em sua capacidade de empatia e pela ideia
extremo apreço e devoção pelo anel e de tomada de perspectiva, perceba um
costumava chamá-lo de precioso ou ‘meu pouco da angústia de Gollum, considerando
presente de aniversário’ pois, segundo suas que até mesmo as criaturas menos
memórias, o anel havia chegado a ele no dia ‘amigáveis’ e supostamente desprezíveis são
do seu aniversário. O narrador conta que capazes de sentir emoções como tristeza e
desespero.
‘Meu presente de aniversário’! Chegou Ao prosseguirmos na leitura, vemos que
para mim no dia do meu aniversário, meu ao cessar de chorar, Gollum vai em direção
preciosso. - Assim ele sempre dissera a si
mesmo. à saída da montanha desconfiando que
Mas quem pode saber como Gollum Bilbo houvera escapado para lá, porém,
conseguiu aquele presente, em priscas protegido pelo encanto/poder do anel que
eras, nos dias antigos quando ainda havia o tornara invisível, o pequeno hobbit o
anéis desse tipo espalhados pelo mundo?
Mesmo o mestre que os governava talvez segue de perto sem ser visto e, finalmente,
não soubesse dizer Gollum costumava encontra a saída. Porém, ao chegarem à
usá-lo no início, até que ficou enjoado; saída da montanha, a criatura pressente a
depois passou a guardá-lo numa bolsa presença de hobbit.
junto ao corpo, até ficar com a pele
esfolada; agora geralmente o escondia Nesse momento, chegam a um inevitável
num buraco na pedra em sua ilha, e impasse, pois Gollum – à espera do hobbit
estava sempre voltando lá para olhar para –, permanece, ainda que desorientado,
ele. E ainda o colocava algumas vezes, parado precisamente entre Bilbo e a saída da
quando não suportava mais ficar
separado do anel, ou então quando estava montanha, perscrutando quase a esmo,
com muita, muita fome, ou cansado de qualquer tentativa de avanço do hobbit para
comer peixe (TOLKIEN, 2013b, p. 81) capturá-lo e, por conseguinte, matá-lo. O
episódio marca uma tensão angustiante,
Nota-se o quão obcecado pelo anel a
pois Bilbo sente-se encurralado, “[...] quase
criatura se tornara na passagem daquelas
parou de respirar, enrijecendo-se também.
priscas eras. Compreendemos na narrativa
Estava desesperado. Tinha de sair dali,
de Tolkien que durante os longos anos de
daquela escuridão horrível, enquanto ainda
isolamento, o anel fora a única companhia
lhe restavam forças. Tinha de lutar. Tinha
para Gollum. Considerando essa
de apunhalar a coisa maligna, apagar seus
configuração, compreendemos a raiva e o
olhos, matá-la. Ela queria matá-lo”
desespero que a criatura manifestou ao
(TOLKIEN, 2013b, p. 86). Entretanto uma
perceber que certamente havia perdido o
coisa o impede de levar tal ideia a cabo:
um anel para sempre. A descrição do grito
de desespero é tão latente e angustiante que
Gollum não havia ameaçado matá-lo,
o leva à exaustão e inconformado, “de nem havia tentado ainda. E estava
108

repente Gollum sentou-se e começou a arrasado, sozinho, perdido. Uma


chorar, num ruído assobiado e gorgolejante, compreensão repentina, um misto de
pena e horror, cresceu no coração de
Página

horrível de ouvir” (TOLKIEN, 2013b, p.


Bilbo: um vislumbre de dias infindáveis e
84). Esse momento serve para que o leitor indistintos, sem luz ou esperança de
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melhora, cheios de pedra dura, peixe frio, Considerações finais: perspectivando o


movimentos furtivos e sussurros. Todos mundo com outros olhos
esses pensamentos lhe passaram pela
mente num lampejo. Estremeceu. Considerando que a empatia e a tomada
Depois, de súbito, num outro lampejo, de perspectiva “geralmente desenvolvem-se
como se impelido por uma nova força e aos quatro anos de idade [...] [e] empatia não
resolução, deu um salto. (TOLKIEN, emerge totalmente até a adolescência” 8
2013b, p. 86)
(BLAKEMORE; FRITH, 2005 apud
É precisamente com base na análise aqui NIKOLAJEVA, 2013, p. 96. Tradução
proposta que percebemos o momento em nossa), desenvolvendo-se gradualmente ao
que a personagem Bilbo, repentinamente longo do amadurecimento do indivíduo, é
tem uma tomada de perspectiva acerca da possível encontrar na literatura um campo
repugnante criatura Gollum. O hobbit promissor para que estas habilidades
analisou a situação por meio da perspectiva humanas sejam aperfeiçoadas, pois a ficção
da criatura. Uma profusão de sentimentos “[...] pode criar situações nas quais emoções
perpassa Bilbo Bolseiro, num tempo são evocadas. Crianças aparentemente têm
extremamente curto ele traz à memória o experiência de vida limitada; portanto, [...]
fato de que acabara de presenciar o choro ler ficção prepara crianças para lidar com
desesperado de Gollum, pela perda do anel empatia” 9 (NIKOLAJEVA, 2013, p. 96.
e compreende o estado emocional da Tradução nossa) e tomada de perspectiva.
criatura. Entretanto, podemos inferir que a Compreendemos que diversos teóricos
empatia e a compreensão de Bilbo acerca de defendem que a experiência estética com o
Gollum, não invalida obviamente, o teor texto literário pode ser benéfica para o
das suas ações, reprováveis para o hobbit. aperfeiçoamento da empatia e da tomada de
Portanto a partir da tomada de perspectiva, perspectiva, afirmando que “inferir as
Bilbo foi capaz de compreender de que emoções de personagens ficcionais a partir
forma Gollum se sentia emocionalmente e de seus comportamentos e discurso direto e
teve, ele mesmo, uma reação emocional: compreender sua compreensão sobre as
pena. Por essa razão, Bilbo abandona o emoções de cada um, possibilita um
impulso de matar seu suposto inimigo e excelente treinamento para confrontos
salta por cima dele, conseguindo escapar da sociais da vida real” 10 (NIKOLAJEVA,
montanha e da criatura. 2013, p. 107. Tradução nossa) pois

“[…] a habilidade de inferir (através de


tomada de perspectiva; Frith & Frith,
2006) é central para a compreensão dos

8 “Typically develops around the age of four [...] fiction prepares children for dealing with empathy”
109

[and] empathy does not fully emerge until (NIKOLAJEVA, 2013, p. 96)
adolescence” (BLAKEMORE; FRITH, 2005 apud 10 ““To infer fictional characters’ emotions from

NIKOLAJEVA, 2013, p. 96) their behavior and direct speech, and to understand
Página

9 “[...] can create situations in which emotions are their understanding of each other’s emotions,
evoked. Children ostensibly have limited life provides excellent training for real-life social
experience of emotions; therefore, [...] reading engagement.” (NIKOLAJEVA, 2013, p. 107)
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motivos e estado mental do outro. As ponderar sobre a forma como aquela


mesmas áreas do cérebro envolvidas no situação estava sendo absorvida por ele a
processamento da empatia e da
compreensão de nossos próprios estados ponto de perturbá-lo de tal maneira. Vale
mentais estão também envolvidas na aqui ressaltar que, diferentemente do leitor,
compreensão do estado mental dos o hobbit não tinha quaisquer informações
outros”11 (MCCREARY; MARCHANT, sobre o passado de Gollum e, mesmo assim,
2017, p. 107. Tradução nossa)
foi capaz de deduzir tanto sobre o que a
Vimos ao longo deste estudo que criatura vivera até ali quanto o sofrimento
algumas pesquisas estabelecem uma relação pelo qual estava passando.
entre a leitura – seja ela literária ou não – e Portanto, à guisa de uma conclusão,
a tomada de perspectiva, bem como a compreendemos que a tomada de
empatia segundo a definição adotada neste perspectiva e a empatia são habilidades
trabalho, já que a dinâmica da leitura facilita essenciais para o ser humano, visto que
o envolvimento com personagens e as entender o ponto de vista do outro é
diversas situações do mundo estético essencial para o convívio do sujeito entre
(MCCREARY; MARCHANT, 2017) de seus pares. Assim, por meio da experiência
forma similar à dinâmica da vida real. literária, é possível experimentar situações e
Assim, considerando as temáticas aqui emoções que, de uma forma ou de outra,
abordadas, observamos que por meio da exigem tais habilidades, fazendo com que o
experiência literária, leitores podem leitor veja situações a partir da perspectiva
encontrar exemplos desses fenômenos da das personagens. Isto é, que o leitor
percepção entre personagens, como também entenda – para além do enredo –,
aconteceu no episódio que marca o o repertório emocional de personagens, em
encontro entre Bilbo e Gollum na obra de um esquema semelhante ao que acontece
Tolkien. O hobbit, por meio de uma durante as relações interpessoais. Sendo
mudança de perspectiva, tomou consciência assim, para as crianças, a experiência estética
acerca dos dissabores que a criatura passara com a literatura tem grande potencial para o
durante os anos de isolamento e considerou aperfeiçoamento e exercício da habilidade
tais aspectos para avaliar o porquê de de enxergar situações sob a perspectiva do
Gollum ter se tornado o que se tornou. Por outro, bem como entender os sentimentos
extensão, essa análise condicionou Bilbo a do outro no mundo.
110

11 “As with reading (Kuhn, 2013), the ability to infer processing empathy and understanding our own
Página

(through perspective taking; Frith & Frith, 2006) is mental states are also involved in understanding the
central to understanding the motive and mental state mental states of other” (MCCREARY;
of another. The same areas of the brain involved in MARCHANT, 2017, p. 107)
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LUMEN ET VIRTUS
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ISSN 2177-2789

i
Professora Assistente do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão –
UFMA, São Luís, Maranhão, Brasil. Mestre pelo PGCult (UFMA). herabello@hotmail.com
ii
Graduanda em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA,
São Luís, Maranhão, Brasil. deeby.furtado@gmail.com

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