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FUNDAMENTO DO CASTELO E CIDADE


DE SÃO JORGE NA MINA

(19-1-1482)

S U M Á R I O — O cronista relata as peripécias da fundação do Castelo da


Mina e primeiros contactos com os naturais da terra.

E porque neste t e m p o a C i d a d e de S a m Jorge na M i n a se


edeficou novamente, h e de saber, que elRey e m seendo Princepe
ouve per doaçam Real delRey seu padre, a governança intei-
ramente dos lugares dAfrica, e assy as rendas, e tratos d a M y n a ,
e de todo Guinee, q u e a esse t e m p o trazia por m u y pequena
contia arrendados a Fernã Gomes da Myna, Cidadaão de
Lixboa. E consirando elRey, c o m o prudente, q u a m grande pro-
veito, e saude seus naturaaes receberiam nos corpos, e nas almas
e assy q u a m certa segurança suas mercadorias, e as cousas de
sua honra, estado e serviço teeriam, avendo naquellas partes da
M y n a hua sua Fortalleza, desejando saber se se poderia, ou
deveria fazer, teve sobrisso conselho, e m q u e o u v e votos, e opi-
niões m u y contrayras. Porque a hüs parecia cousa facil, e m u y
proveitosa, e a outros de m u i t o dano, e perygo, e em fim
impossivel, ou m u y dificil manteerse, assy pola grande dis-
tancia da terra, como por ser m u y doentia, e os negros de pouca
verdade, e menos fiança, em caso q u e logo consentissem
fazerse. O s quaaes aviam por tamanhos inconvenientes, que
se n o m devia fazer: pospostos os quaes elRey todavia detri-
m i n o u q u e se fezesse. E pera isso ordenou q u e toda madeira,
e pedraria, que pera portaaes, e janellas, e esquinas dos muros,
e torres, e pera outras cousas que fosse necessarea, logo de cá
fosse lavrada, e concertada pera sem detença d o lavramento se

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poder logo asentar. E assy se fez prestes m u y t a cal amassada,
e composta, e telha, e ladrilho, pregadura, e ferramentas, e men-
tiimentos, e todallas outras cousas pera a obra pertencentes em
grande abastança. / /
E assy foram ordenados, e prestes seiscentos homens, s. cem
Mestres de pedraria e carpentaria e os quinhentos pera defen-
der, e servir. E foy acordado que todo esto se levasse, como
levou, em Urcas, e N a v i o s grandes, c o m fundamento de mais
n o m tornarem, n e m navegarem e alem destes foram outros
Navios, e Caravellas fortes, e bõos com muitas provisões,
meezinhas, e ricas mercadorias, a que foram ordenados C a p i -
taaes homens m u y honrados, e Criados delRey. E teendose
ja escusadas a elRey alguas pessoas, a q u e encarregava esta obra,
por recearem as dificuldades, e perygos delia, ho primeiro
h o m e m q u e com despejo a aceptou, e a quis emprender foy
Fernã Lourenço, q u e era seu Escripvam da Fazenda, e t y n h a
emta cargo d o Tesouro, e Feitoria destes tratos, e despois o teve
por oficio. Mas elRey despois d e lhe dar por isso muitos
louvores, e grandes agardecimentos, como sua boa vontade
merecia, pollo m e s m o cargo q u e t y n h a h o escusou. / /
E pera isso sendo certeficado das bondades, lealdade, e
grande esforço, e descripçam de D i e g o da A z a m b u j a Cavaleiro
de sua Casa, que já e m outras cousas d e m u y t a importancia,
e grande p e r y g o esperimentara, c o m palavras de singular con-
fiança que nelle tynha, e c o m esperança de muita mercee, e
acrecentamento q u e lhe prometeo, ho encarregou da dicta obra,
e elle cÕ outras de m u y louvada obediencia e certa lealdade,
com grande descarrego da cara, e seguridade do coraça a
aceptou. E pera e x u q u ç a m disso se foy logo aparelhar a Lixboa,
donde partio em D e z e m b r o bespera de Santa L u z i a (1) do
anno d e mil e quatrocentos e oytenta e h ü , teendo ja emviadas
diante as Urcas q u e ho foram esperar ao C a b o V e r d e . E porque

(1) Dia 12.

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levava per Regimento q u e a Fortaleza se edificasse na terra da
M i n a , n o lugar q u e lhe melhor parecesse d o C a b o das T r e s
Pontas atee ho C a b o das Redes, q u e p o u c o mais ou menos
sam em travessa quarenta legoas, elle nesta paragem, a que da
outra armada h ü p o u c o se adiantou, c o m m u i t o tento e res-
guardo oolhou, e escoldrinhou os lugares d e toda aquella terra
pera isso convenientes, e a algüs em q u e havia boa desposiçam
na terra, achava ho mar por maas ancorações m u y contrairo; e e m
outros e m q u e h o mar era desposto, a terra ou por baixura, ou
por m i n g o a dagoa e pedra, o n o m consentiam. / /
E finalmente guiado d o Spirito Sancto, e emcomendado a
elle, arribou sobre a A l d e ã q u e se dizia das D u a s Partes, onde
sorgio a hüa quarta feira dezanove dias de Janeiro d o anno d e
mil quatrocentos, e oitenta e dous. E oolhando com grande
tento, o alto assento da terra, que pera defensam, e saude da
g e n t e era m u y desposto, e assy esperimentando, e sondando
as ancorações d o mar pera os N a v i o s , achou q u e pera Fortaleza
se n o m podia achar, n e m pyntar melhor desposiçam, especial-
mente por aver h y m u y t a pedra, e grande povoraçam, que
dava esperança dagoa doce, e doutras provisões, aas gentes
pollos tempos compridoiras. E ao outro dia q u e era dia d e
S a m Sebastiam, per aviamento dhu Joam Bernaldez, q u e achou
h y resgatando, saio e m terra vestido d e seda e brocado, e c o m
sua gente m u i t o em ordem. E ao pee, e soombra d h u a arvore
m a n d o u dizer, e ouvio M i s s a ; que foi a primeira q u e se disse,
e daly se chamou aquelle V a l e , e chamará pera sempre de
S a m Sebastiam. / /
O n d e despois de comer mandou concertar h ü rico estrado,
e m q u e se assentou, acompanhado d e m u y honrados homens,
e c o m suas trombetas, tamboriins, e tambores, e todos e m auto
de p a z , pera nelle receber per concerto h o Senhor d o lugar,
q u e se dezia Caramansa, a q u e os negros c h a m a v a m Rey, e lhe
fallar. A o qual h o R e y veeo, e diante delle h u a grande mari-
nada de buzios, chocalhos, e cornos q u e sam os seus estor-

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mentos, acompanhado de infindos negros, delles com arcos,
e frechas, e outros com azagayas, e escudos; e os principaees
traziam de tras de sy pages nuus com assentos de paao como
cadeiras pera se assentar. E o Rey vinha nuu, cubertos os
braços, pernas, e pescoço, de cadeas e joyas douro de muitas
feições, e com infinitas campaynhas, e contas douro compridas,
pendentes de seus cabellos e barba, e cabeça. E o Capitam
saio recebello fora do estrado com grande estrondo dos seus
estormentos, e o Rey deu ao Capitam seu custumado synal de
paz, que foi tocaresse os dedos, trincando logo hu com ho
outro, dizendo em sua linguagem bere, bere, que na nossa quer
dizer paz, paz, e ho Capitam a elle outro tanto. E asy ho prose-
guiram os principaaes que com elle vinham, molhando todos
primeiro os dedos na boca, e alimpandoos logo ao peito ante
que tocassem os do Capitam, que antrelles he cortesia, e premi-
nencia, que em special se guarda aos Reys e pessoas de grande
estado. E tornandos a asentar todos fecto synal de silencio, ho
Capitam começou sua falla, e com hü negro diante por Lingoa,
que logo a enterpretava, cuja sustancia foy: //
Que pela boa emformaçam que elRey seu Senhor tynha
delles, e do bõo trato, que sobre todos hos daquella terra, faziam
a seus vassallos que aly vinham resgatar, Sua Alteza ho man-
dava aly pera com elles tratar, e segurar paz, e amizade pera
sempre; por tal que naquelle lugar mais que em outro algü
daquella Comarca se fezesse, e fosse perpetuu assento de mui-
tas, e mui ricas mercadorias, pera que per seu bõo trato, elles,
e os que delles descendessem fossem sempre mais ricos, e mais
emnobrecidos. E como quer que outros Reys, e Senhores
daquella terra, avendosse disso por bem aventurados já com
muitas dadivas o requeressem, pera tal asento, elRey seu
Senhor nom queria salvo com elles polla grande fiança, e credito
que já em especial co elles tynha. E por quanto por aver
razam de as mercadorias que agora traziam, e ao diante viessem,
estarem aly sempre continoas, limpas, e seguras, era necessarea

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hüa casa, lhes rogava q u e dessem lugar, e licença, e ainda
ajuda pera na boca d o Rio se fazer, porque delia, e dos Chris-
taaos que nella estevessem sempre achariam, e receberiam
emparo, proveito, e favor. / /
E ho Rey com esses seus principaaes logo lhe responderam,
dizendo que a gente dos Christãos q u e atee aquelle t e m p o aly
viram fora pouca, cuja e vil, e q u e esta q u e entam viam, era
m u i t o pollo contrairo, c m especial sua pessoa, q u e por seus ves-
tidos, e parecer, devia ser filho, ou irmão d E l R e y de Portugal.
E a esto sem mais em sua falia procederem, lhe tornou logo
o Capitam: / /
que elle n o m era filho, n e m irmão delRey seu Senhor, mas
q u e era h ü m u y p e q u e n o seu vasallo; porque elRey era tam
poderoso, e tamanho Senhor, q u e em seus Regnos q u e man-
dava, e lhe obedeciam, t y n h a dozentos mil homens maiores, e
milhores, e mais ricos. / /
D a qual cousa maravilhados, em synal d e grande espanto,
c o m o he seu custume, deram e m sy muitas palmadas. E proce-
dendo em sua re[s]posta disseram mais: / /
q u e segundo sua presença, e asegurança c o m q u e em n o m e
delRey lhes fallava, n o m podia ser, q u e lhes escondesse a
verdade, n e m lhes trouxesse e m seus requerimentos engano,
n e m malicia. E por tanto lhe d a v a m lugar q u e fezesse c m boora
a casa c o m o quisesse; porque se c o m ella fecta mantevesse o
q u e prometia, fosse certo q u e elRey de Portugal seu Senhor
seria mais servido, e os Christaãos seus naturaaes pollos tempos
melhor tratados: e se o contrairo fezesse, q u e lhe leixariam as
casas, e a terra, e que poeriam e m liberdade suas pessoas, a q u e
em outra terra nõ falleceriam palhas e paaos d e que logo
fezessem outras. E no C a p i t a m por synal lhe repricou: / /
que de todo h o que lhe dissera, fossem sempre certos, e
seguros; porque os Christãos n o m custimavam mentir, antes
creessem que elRey seu Senhor, e os q u e delle descendessem,

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fariam aquella terra a mais honrrada, e mais rica, e de moor
povoaçã q u e nenhua outra q u e antrelles ouvesse. E seendo desto
m u y satisfectos, lhe deram com risonhos alaridos grandes gra-
ças, e se lhes ofereceram muito, e levantados todos se foram. / /
E h o C a p i t a m ante d e se recolher, foi logo co os Mestres
q u e levava apeegar h o assento da Fortaleza, q u e tomava pollo
c u m e dhüs penedos altos a q u e os negros adoravam, e t y n h a m
por seus Sanctos. E aquelle dia repartio l o g o o C a p i t a m ha obra
per lanços, e Capitanias pera n o outro dia que eram vinte h ü
dias de Janeiro, a começarem, c o m o começaram. E assy ordenou
pera o Rey, e pera os seus hu bõo presente d e muitos lambees,
e bacias, manylhas, e pano outro, q u e ante de t u d o lhe fosse
pera sua brandura primeiro dado, de q u e deu cargo a Joham
Bernaldez, q u e c o m elle n o m foy tam cedo, q u e já os oficiaaes,
e cavouqueiros mais cedo n o m começassem a obra; porque em
amanhecendo, entenderam e m abrir hos aliçeçes da torre, e
assy quebrar pedra, e logo assentar. / /
E os negros veendo com tamanho destroço destroir os seus
Sanctos Penedos, sentiramno tanto, c o m o se viram quebrar a
esperança de toda sua salvaçã, e acesos todos em grande furia,
tomaram suas armas, e assy deram rijo nos oficiaaes, q u e n o m
os podendo resistir, fogindo se recolheram aos batees. A o q u e
D i e g o da A z a m b u j a logo trigosamente socorreo; e porque soube
que o presente ordenado ainda se n o m dera, entendeo q u e da
negrigencia d o messegeiro, a causa d o alvoroço procedera. Pollo
qual mandou q u e o presente n o m tardasse, em que polia maior
necessidade q u e avia de favor em adeo mais algüas cousas, c o m
q u e todo o mal dos negros se tornou logo e m b e m , e sua
estreita defesa em dobrado consentimento. Pollo qual, atee q u e
a torre foi acima d o sobrado, n o m se assynou, n e m fundou outra
casa, n e m assento algü. E c o m o foy emcimada, logo se come-
çou o cerco d o Castello, pera q u e foy necessareo derribar
alguas casas de negros, em q u e elles, e suas molheres per gran-
des satisfações, e dadivas q u e lhe deram, levemente, e sem

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escandalo consentiram. E dagoa começou logo aver muy grande
necessidade; porque da que na terra, e hy junto avia, por
continoa guarda, e defesa dos mouros, nom se podiam delia
aproveitar. E pore, por evitar alvoroços, nom quiseram come-
tellos e avella per força. E despois de buscados muitos remedios,
ouveram per acerto, e quasi milagrosamente de se proveer doutra
parte. //
E tanta pressa se deu aa obra, com quanto da gente adoe-
ciam muitos, e morriam algüs, que em vinte dias o muro da
Fortaleza foy posto em toda sua altura. E assi a torre, e muitas
casas de dentro acabadas. E poslhe entam nome o Castello de
Sam Jorge por devaçam delle, que he Padroeiro, e Protector
de Portugal; mas despois estando elRey em Santarem, a quinze
dias de Março, do anno de mil quatrocentos e oytenta e seis, a
fez per sua Carta Patente Cidade, e com privilegios, e premi-
nencias de Cidade. E despois de a gente resgatar a seu prazer
toda sua mercadoria, e taixas ordenadas, pera que avia ouro em
grande avondança, Diego da Azambuja apartou sesenta homens,
e tres molheres, que com elle ficaram, e os outros todos despedio,
e se vieram a Portugal com larga conta que mandou dar a elRey,
de todo o que era passado, e fecto. E ho Capitam ficou no
Castello dous annos, e sete meses, em que pos forca e picota,
e fez outras Ordenanças, e Concordias com os negros muito
por honrra, e serviço delRey, e em proveito da Casa, e Forta-
leza. Acabados os quaes elRey o mandou viir, e sem seu reque-
rimento em chegando lhe fez muita honrra, mercee, e acrecen-
tamento, como tam grande merecimento e tamanho serviço
merecia com que Deos foy muito servido, e a elRey, e sua Real
Coroa, e aos herdeiros, e socessores delia se acrecentou honrra,
gloria, e louvor, e a seus Regnos, e Senhorios, e Vassallós, e
naturaaes delles muito bem, e grande proveito pera sempre.
Rui DE PINA — Chronica dEl Rei Dom João II, cap. II, in Collec-
ção de Livros Ineditos de Historia Portugueza, Lisboa, M.DCC.XCII,
tom. II. — A T T (Ms. pergaminácio — Livraria).

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