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Crônicas de um epilético:

Narciso caído à beira do tempo


Três horas da manhã. Do outro lado da rua está sentado um mendigo que há tempos não
pára de olhar o relógio de bolso que porta em sua calça suja e desbotada. Não se passa mesmo dois
minutos sem que ele volte a olhar o relógio, como se tivesse hora marcada, como fosse alguém
esperado por outrem, nalgum outro lugar. Todavia, seu único compromisso desde que comecei a
espreitá-lo é tão somente dirigir-se ao muro que fica por detrás da parada de ônibus onde ele está
sentado e mijar. Mija longamente como se nada mais tivesse que fazer da vida, depois retorna ao
banco e começa novamente a olhar o relógio de quando em quando, como se algo urgente estivesse
por acontecer.
Súbito percebo que estou há horas olhando este quadro hipnótico e fedorento. Não sei dizer
quem está mais estagnado nessa história, se o velho mendigo bêbado que não para de mijar na
calçada ou se eu que há horas não me levanto e estou com as calças molhadas... molhadas?!? como
assim molhadas? Diabos! Mijei nas calças enquanto olhava aquele mendigo vagabundo.
Foi certamente por influência de seu urinar insistente que acabei por me descontrolar.
Cuspiria em sua cara com todo gosto, mas creio que meu cuspe seria para ele um banho, e ao invés
de sujá-lo, limpá-lo-ia. Escória! Imundice! Trapo humano que não serve para nada senão lembrar-
nos da fisiologia fétida dos órgãos.
Penso tudo isso sem mexer um músculo, e tenho medo de mim, tenho medo dessa
violência que poderia muito bem me levar ao crime, à sede insaciável de sangue. Essa violência
contra o miserável me faz lembrar meus piores pesadelos.
“Eu certamente apertaria o gatilho!”. Esse pensamento me acompanha desde longa data. E
apertaria o gatilho sem me importar se o cano do revólver estaria ou não apontado para minha
própria cabeça. Todavia, sempre desconfiei que teria mais prazer em apontar a arma a outro alguém,
e ver em seu rosto o medo da morte, o abismo que se instaura quando se está certo de deixar a vida.
O medo. Simplesmente o medo. Ou a fé! Qual a cara da fé na iminência da morte? Não apenas da
morte, mas do assassinato frio e sangrento e calculado? Os torturados talvez sejam espécimes
místicos, que vivem na fronteira do sagrado, e os torturadores a mão divina agindo certo por linhas
tortas. Semi-deuses movidos diretamente pela sabedoria do Senhor!. Nunca vi graça alguma em
mortes fulminantes. Nada como um tiro no joelho, depois outro na mão, e um pouco de vinagre nas
feridas para lembrar ao fiel a dor de Cristo o redentor.
“Eu certamente apertaria o gatilho!” Essa ideia martela meu juízo a cada esquina solitária
de minha impotência. Sou uma espécia de Raskolnikov incapaz do ato assassino, incapaz de tentar e
de afrontar os limites do razoável, limites que não obstante já se afastaram imenso de mim. E é isso
exatamente que mais me causa inquietação, pois são os fracos os mais capazes de reagir com
violência quando a fraqueza se torna por demais evidente e ameaça sua integridade humana.
Quando o homem se aproxima perigosamente da natureza de ratinhos brancos
amedrontados e dóceis é que a vaga de estupor cáustico pode emergir de forma incontrolada e
indócil, deixando atrás de si a carcaça de uma vida ordinária, que nem mesmo no ato assassino foi
capaz de registrar na vida sua assinatura. Um nada até mesmo no ato de tirar a vida.
“Eu certamente apertaria o gatilho!” Penso isso tudo sem sequer mexer um músculo, mas
minhas calças esquentam novamente e me vejo uma vez mais mijado, com frio, sentado num banco
de beira de calçada. A noite já anuncia seu fim e não sei mais se o mendigo sou eu ou aquele
fantasma de gente do outro lado da rua. Ele se parece tanto comigo que não sei ao certo quem ele é.
Mas não é possível feições tão semelhantes. Nada vezes nada, ensina a matemática das
equivalências, é igual a um resto indecidível, e portanto ainda resta a calça molhada e a estranha
proximidade...
“Eu certamente apertaria o ga....zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz! Pam!
Meu corpo tomba. Minha cabeça quebra o espelho do quarto. Acordo como que pasmado.
De minha testa escorre um sangue ralo. O chão está coberto de estilhaços do espelho. Tento me
levantar e minhas mãos também sangram, e meus joelhos, e não tenho como olhar minha cara. O
mendigo sumiu do ponto de ônibus. O ponto de ônibus também partiu, em estilhaços, mais
precisamente. Minhas calças estão molhadas e para além do latejar insistente de minha cabeça,
ainda tenho tempo de rir ao pensar que poderia também estar todo cagado. Definitivamente um
mendigo decadente. Cuspo no chão por falta de ter em quem cuspir, o que é mais conveniente face à
minha covardia atávica. Na saliva também há sangue, e um desespero agudo, elétrico, do tamanho
do silêncio que consome meus dias e estilhaça minha vontade.
Dr. Goorï

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