E HÁ UM objetivo que Losurdo perse- viam nenhuma contradição entre pro-
S gue de modo coerente ao longo desta clamar os dogmas da Economia Política Contra-história do liberalismo é o de pre- clássica e defender a peculiar institution, ferir o exame das políticas liberais “em como chamavam o cativeiro negro. sua concretização” ao engessamento em O que inquieta nosso autor é consta- definições genéricas pelas quais o termo tar o prestígio neoliberal dos textos de “liberalismo” se toma como uniforme e Calhoun reeditados em 1992 em uma abstrata doutrina. A sua regra de ouro coleção norte-americana que se intitula é historicizar sempre, isto é, analisar os “Clássicos da Liberdade”. papéis efetivos que os diversos grupos A relação entre doutrina liberal e es- políticos exerceram em nome de idéias cravidão, que, teoricamente, pareceria e ideais liberais. uma disjuntiva radical, revela-se na “veri- O método é fecundo, daí a riqueza tà effettuale della cosa” (não por acaso, dos resultados. Limito-me a pontuar al- expressão de Maquiavel) uma conjunção guns momentos fortes em que vemos, reiterável nos mais diversos contextos. em ato, propostas e decisões tomadas Começando por John Locke: solicitado por políticos assumidamente liberais. pelos proprietários da Carolina a colabo- John Calhoun, vice-presidente dos rar na redação das Constituições daquela Estados Unidos entre l829 e 1832, líder colônia, o filósofo subscreveu um artigo do Partido Democrático, escreveu tex- (de n.110) pelo qual “todo homem li- tos apaixonados em defesa da liberda- vre da Carolina deve ter absoluto poder de individual e das minorias, contra os e autoridade sobre seus escravos negros, abusos do Estado e a favor das garantias seja qual for sua opinião e religião”. constitucionais. Sua fonte teórica é o pai Locke, entusiasta da Revolução Glo- do liberalismo político inglês, John Lo- riosa e acionista da Royal African Com- cke. Ao mesmo tempo e com igual con- pany, escrevia no século XVII. John Stu- vicção, Calhoun defende a escravidão art Mill, em pleno século XIX, retomaria dos negros como um “bem positivo”, galhardamente os ideais de liberdade in- recusando-se a considerá-la como “mal dividual na mais pura tradição britânica, necessário”, fórmula concessiva de seus mas não deixaria de afirmar que “o des- companheiros de partido e fé liberal. potismo é uma forma legítima de gover- Os abolicionistas, os philanthropists no quando se lida com bárbaros, desde religiosos, eram, para Calhoun, “cegos que a finalidade seja o seu progresso e os fanáticos” que se propunham a destruir meios sejam justificados pela sua real ob- “a escravidão, uma forma de proprieda- tenção”. Mais adiante, exige “obediên- de garantida pela Constituição”. cia absoluta dos bárbaros”, cuja escravi- Losurdo poderia, a partir desse pri- zação seria “uma fase necessária, válida meiro exemplo, ter ido um pouco além para as raças não civilizadas”. e verificar que estudiosos e expositores São exemplos de atitudes que não se de Adam Smith nos estados do Sul não esgotam, porém, na hipótese, só em par-
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te verdadeira, de que foi a situação co- tre ideologia liberal-capitalista e trabalho lonial a responsável pela combinação de compulsório. Lembrando que o número liberalismo com a escravidão. Calhoun de escravos trazidos da África aumentou era vice-presidente de uma nação que já de modo extraordinário na primeira me- desfrutava, havia mais de meio século, tade do século XIX, precisamente quan- de altiva independência política. Losur- do o liberalismo se convertia em ideal do lembra incisivamente: hegemônico além e aquém do Atlântico, Em 32 – dos primeiros 36 anos dos o autor vai rastrear uma das razões en- Estados Unidos – os que ocupam o tão alegadas para justificar o cativeiro dos cargo de Presidente são proprietários negros: a inferioridade racial. Os liberais, de escravos provenientes da Virgínia. para manter a cara limpa em face da vio- George Washington, grande prota- lência que os seus interesses os levavam gonista militar e político da revolta a perpetrar, lançam mão do preconceito anti-inglesa, John Madison e Thomas que a ciência do século já estava trans- Jefferson (autores respectivamente formando em dogma. A discriminação da Declaração da Independência e da Constituição Federal em 1787), fo- permaneceria ainda mais viva depois da ram proprietários de escravos. abolição, e aqui a observação de Tocque- ville é de citação obrigatória: “Em quase Quanto à hegemonia da liberal Ingla- todos os estados [dos Estados Unidos], terra no que se refere ao tráfico ao lon- nos quais a escravidão foi abolida, são go do século XVIII, sabe-se que a Royal concedidos aos negros direitos eleitorais, African Company arrancou da decaden- mas, se eles se apresentam para votar, te Espanha o monopólio do comércio de correm risco de vida. Oprimido, pode carne humana. até lamentar-se e dirigir-se à magistratu- No caso da Holanda, pátria da tole- ra, mas encontra só branco entre os seus rância religiosa nos séculos XVII e XVIII, juízes”. O que se conhece da discrimi- a conivência assumida com o tráfico é de nação racial ao longo dos séculos XIX e molde a abalar os corações eurocêntricos XX (linchamentos, apartheid...) só viria mais convictos. confirmar a reprodução dos limites inter- O primeiro país a entrar no caminho nos da burguesia liberal que, chegando do liberalismo é o país que revela um ao poder, sabe quem e como excluir. apego particularmente ferrenho ao No capítulo central da obra, Losur- instituto da escravidão. Em 1791, os do volta-se para a história exemplar do Estados Gerais declaram formalmente que o comércio dos negros era essen- liberalismo francês entre as revoluções cial para o desenvolvimento da prospe- de 1789 e 1848. A admiração anglófila ridade e do comércio nas colônias. E dos philosophes é conhecida. A Inglaterra deve-se lembrar que a Holanda abolirá é o modelo perfeito das liberdades para a escravidão nas suas colônias só em Voltaire e Diderot, como o fora para 1863, quando a Confederação seces- Montesquieu. O alvo, atingido na ilha, sionista e escravista do Sul dos Estados é o absolutismo combinado com os abu- Unidos caminha para a derrota. sos da nobreza e do clero. Mas, passa- Losurdo tenta, a certa altura, percor- do o Terror, todo o esforço das novas rer outro caminho para enfrentar a rela- gerações liberais será, desde o Diretório, ção que se estabeleceu no Ocidente en- “terminar a revolução”.
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É curioso verificar que a questão do trabalho compulsório é aleatoriamente levantada por alguns liberais, que hoje situaríamos na conjunção de centro e esquerda, como Raynal, Condorcet e Brissot. Os três confiam na “revolução americana”, modelo que substituiria, nos seus escritos, a anglofilia dos enci- clopedistas. Onde o liberalismo excludente en- contra a mais firme resistência é no pen- samento abolicionista radical. A voz enérgica do abbé Grégoire se faz ouvir na Convenção exigindo a supressão imedia- ta e total do trabalho escravo nas colônias LOSURDO, D. Contra-história do libera- e enaltecendo a figura de Toussant Lou- lismo. Trad. Giovanni Semeraro. Aparecida: verture e a revolução do Haiti. “Uma Idéias & Letras, 2006. 400p. república negra no meio do Atlântico” – diz Grégoire – “é um farol elevado para o qual dirigem o olhar os opressores en- A escravidão nas Antilhas é abolida rubescendo e os oprimidos suspirando. pela Convenção, mas será restaurada por Olhando-a, a esperança sorri para os 5 Napoleão em 1802, em nome dos sagra- milhões de escravos espalhados nas An- dos direitos de propriedade dos colonos. Direitos que serão mantidos pela política tilhas e no continente americano”. (De de centro-direita da Restauração (1814- passagem, falta traduzir para o português 1830) e continuariam intactos sob a a obra pioneira desse bispo republicano monarquia liberal de Luís Felipe (1830- que tão bravamente denunciou a escravi- 1848). Direitos, enfim, plenamente con- dão e o preconceito de cor: De la noblesse firmados pelos decretos da abolição que de la peau, ou du préjugé des blancs contre obrigavam o novo Estado republicano la couleur des Africains et celle de leurs francês a indenizar os proprietários dos descendants noirs e sang-mêlés.) 250.000 escravos libertados. Quem retomaria a bandeira de Gré- As observações do autor rimam com goire seria outro republicano radical, o excelente (embora não citado) Le mo- este agnóstico, Victor Schoelcher, que ment Guizot de Pierre Rosanvallon, que conduziu a luta final pela abolição em reconstituiu a história dos mecanismos plena revolução de 1848. antidemocráticos acionados pelos gran- Nessa altura de sua exposição, Losur- des mentores do liberalismo francês, Gui- do pode traçar a linha principal de cliva- zot, Thiers, Benjamin Constant. Entre gem. De um lado, o liberalismo clássico, esses mecanismos, o mais eficiente foi o proprietista e excludente e, quando lhe voto censitário que entronizou a figura do é proveitoso, racista e escravista. De ou- cidadão-proprietário em todas as nações tro, o radicalismo democrático, que tem do Ocidente que emergiam da crise do como horizonte precisamente superar as Antigo Regime. barreiras de classe e de raça que os libe-
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rais conservadores ergueram para defen- em que Mariátegui desvendou a estreita der os seus privilégios. relação entre a política liberal-oligárqui- O autor detém-se longamente nas ca, que regia o Peru após a Independên- oscilações do mais fino e arguto dentre cia, e a brutal exploração do índio nos os liberais franceses, Alexis de Tocquevil- latifúndios da região serrana. le. Não cabe nesta resenha enumerá-las. Os argumentos dos liberais conser- Verá o leitor que, após 48, Tocqueville vadores brasileiros não eram nada origi- retrai-se em face dos movimentos demo- nais: misturavam críticas anódinas à ins- cráticos da Itália de Mazzini e da Hun- tituição com firmes recusas de enfrentar gria de Kossuth, perdendo o equilíbrio o problema de fundo, alegando sempre que marcara A democracia na América os interesses de nossa economia de ex- e chegando a augurar um projeto mili- portação sustentada pelo braço negro. tar que reverta o processo revolucionário No plano político-jurídico, a Constitui- desencadeado em quase toda a Europa. ção de 1824, incorporando dispositivos Quanto à recente conquista da Argélia, da Carta da Restauração e o duro pro- Tocqueville não usa de meios-termos: é prietismo do Código Napoleônico, omi- preciso domar completamente as popula- tia pudicamente o termo “escravidão”, ções árabes e forçá-las a viver sob a civili- exatamente como fizeram os autores da zação branca, francesa. Involução ou coe- Constituição norte-americana e as cartas rência do capitalismo liberal europeu que liberais das monarquias européias. Cá e está reiniciando, nesse momento, o ciclo lá..., o cimento ideológico aplicado pe- da conquista colonial prestes a atingir los donos do poder valeu-se largamente todo o continente africano? A discutir. do rótulo prestigioso do liberalismo. Na esfera do radicalismo, Losurdo si- O cerne da questão desnuda-se e ga- tua certas declarações de Simón Bolívar nha atualidade quando o autor passa da (hoje tão oportunas), que, louvando a relação senhor-escravo, ainda vigente revolução do Haiti, sonha para a Amé- nos meados do século XIX, para o par rica andina uma democracia de brancos moderno patrão-operário. Vem então à e índios, negros e mestiços. Resta per- luz a oposição estrutural entre capital e guntar: o que fizeram os políticos libe- trabalho e, em termos ideológicos, entre rais que assumiram o poder na maioria o liberalismo e os vários socialismos que das novas nações americanas? O que sa- se foram gestando na prática das lutas bemos ao certo é que houve uma repro- operárias e na cabeça de pensadores re- dução local da conivência de liberalismo volucionários ou reformistas. burguês e escravidão (caso do Brasil, das Em toda parte aonde chega a Revo- Antilhas e do sul dos Estados Unidos); lução Industrial, a regra é a superexplo- e uma fusão do mesmo liberalismo for- ração do trabalhador e a degradação de mal com a semi-servidão do indígena na sua qualidade de vida, como agudamen- Colômbia, no Equador, no Peru e na te a descreveu Engels na Manchester de Bolívia. Caso Losurdo houvesse tratado 1844. mais detidamente das formações sociais A tensão que se estabelece entre le- latino-americanas, muito lhe teria apro- gisladores liberais e os sindicatos é recor- veitado a leitura dos Sete ensaios de inter- rente e não podemos dizer que tenha de- pretação da realidade peruana (1928), saparecido. O neoliberalismo é o grande
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adversário das garantias trabalhistas que mente falando, inaplicável, porque pretende, à Thatcher e à Reagan, su- não comporta nenhum dos elementos primir ou precarizar. Um dos apóstolos necessários para fundar uma ordem do fundamentalismo liberal-capitalista, social. Mas poderia destruir a ordem Hayek, considera “dever moral do Esta- social que lhe preexiste. do” (sic!) impedir que os sindicatos in- terfiram no jogo livre do mercado. É no mínimo estranho que ainda se diga, de boa ou de má-fé, que o libera- lismo foi ou é sinônimo de democracia econômica e social. Ou então que só no Brasil a burguesia imperial e seus por- ta-vozes no Parlamento encenaram uma comédia ideológica ao protelarem a abo- lição do cativeiro. Se farsa houve, ela foi representada em diversos contextos e em todo o Ocidente desde que se criou o termo liberalismo. O ensaio de Losurdo contribui para desfazer qualquer equí- voco eurocêntrico ao demonstrar que o poder liberal, onde quer que estivesse instalado, não se propôs jamais compar- tilhar com “os de baixo” as suas sólidas vantagens. Não se tratava de comédia, mas do drama composto, em nível mun- dial, pela estrutura contraditória do ca- pitalismo em expansão. A oposição entre liberalismo e efeti- va democracia social oferece exemplos em toda parte, desde os mais grosseiros e violentos até os mais refinados. Um dos mais eminentes economistas liberais italianos, Einaudi, chamava, em 1909, o imposto progressivo de “banditismo organizado para roubar o dinheiro dos Alfredo Bosi é professor de Literatura outros mediante o Estado”. Brasileira na Universidade de São Paulo e autor, entre outras obras, de História Losurdo poderia fechar o seu belo concisa da literatura brasileira, O ser e ensaio citando uma tese de Karl Polanyi o tempo da poesia, Dialética da coloniza- reexposta brilhantemente em As meta- ção, Machado de Assis: o enigma do olhar, morfoses da questão social de Robert Cas- Literatura e resistência e Brás Cubas em tel: três versões. É editor da revista ESTUDOS AVANÇADOS e membro da Academia Bra- O mercado auto-regulado, forma pura do desenvolvimento da lógica econô- sileira de Letras. mica entregue a si mesma, é, estrita- @ – abosi@usp.br