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O SOLITÁRIO GRITO EXPRESSIONISTA NA REVOLUÇÃO

INDUSTRIAL E A DOR SILENCIOSA DAS MASSAS


NA REVOLUÇÃO DIGITAL

Giovani Tozi 1
Profª. Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro Azevedo 2

RESUMO

Esse trabalho apresenta o cenário que envolveu a Revolução Industrial no final do século XIX na
Alemanha, fomentando o surgimento do Expressionismo. A intenção dessa análise é contrapor os
fatos, dados e circunstâncias que colaboraram para o surgimento desse movimento na Europa, com
determinados aspectos fundamentais da sociedade contemporânea e sua arte Pós-Revolução Digital da
década de 1990, no Brasil.

Palavras-chave: Expressionismo Brasileiro. História do Teatro. Arte Digital. Jorge Andrade.

ABSTRACT

This work presents the scenario surrounding the Industrial Revolution in the late nineteenth century in
Germany, fomenting the emergence of Expressionism. The intention of this analysis is to counteract
the facts, circumstances that contributed to the emergence of this movement in Europe, with some
fundamental aspects of contemporary society and its Digital Post-Revolutionary art of the 1990s in
Brazil.

Keywords: Brazilian Expressionism. History of Theater. Digital Art. Jorge Andrade.

1Graduado em Comunicação Social e mestre em Artes da Cena Pela Universidade Estadual de Campinas,
UNICAMP. Autor da dissertação “Jô Soares, Diretor Teatral”. Email: giovanitozi@gmail.com

2É professora de Teatro Brasileiro e História das Artes Cênicas na ECA/USP desde 2003. Bacharel em História
pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, obteve grau de Mestre
em Artes na Escola de Comunicações de Artes da USP, em 1995, com dissertação sobre o teatro na cidade de São
Paulo no século XIX - Um Palco Sob as Arcadas. Email: bethazevedo@usp.br
INTRODUÇÃO

O Expressionismo e a Revolução Digital

Controverso, o Expressionismo surgiu como manifestação isolada, numa espécie de


reação ao fenômeno de industrialização que iniciou-se na Europa, mais precisamente na
Inglaterra, em meados do século 18, se alastrando posteriormente pelo ocidente europeu e
pelos Estados Unidos. Qualquer mudança ocorrida numa sociedade com padrões
estabelecidos compreende adaptações, porém, certas alterações movimentam as bases sociais,
politicas e comportamentais dos indivíduos que a compõe. Esses movimentos foram sentidos
sistematicamente pelos povos europeus, de acordo com o avanço das inovações que surgiam.
Entre eles, as peculiaridades e as condições de um grupo especifico foram definitivas para que
a industrialização se desse distinta, intensa, e que moldasse suas estruturas até os dias atuais:
os alemães.
A atual Alemanha começou a dar inicio, de fato, a sua industrialização apenas em
1866, com a derrota da Austria pela Prússia; ganhando força após 1871, quando os Estados
do Sul passam a apoiar os prussianos, na centralização do poder político e no fim das relações
feudais e semi-feudais em áreas com grande potencial econômico. Mesmo tendo sido esse
movimento de industrialização extemporâneo "a Alemanha pré-industrial não se caracterizava
pelo sub-desenvolvimento. Portos, cidades comerciais e bancos alemães eram fortes atores na
economia européia. Também os alemães foram os que formularam as exigências da Reforma
Protestante, que ajudara na autonomia dos Estados frente à Igreja Católica.” (KEMP, 1985. p.
102). Essa maior autonomia dos Estados resultou no impulso necessário para o processo de
industrialização. Diferente dos demais países europeus, a Alemanha precisou passar por esse
período de reorganização entre os Estados, revendo políticas internas, centralizando tarifas e
expandido as ferrovias, tudo para finalmente realizar, em 1871, a unificação alemã.
A industrialização fluiu de forma rápida no país e isso proporcionou uma grande
expansão industrial, colocando a Alemanha ao lado das maiores economias europeias, França
e Inglaterra. A diferença era que a riqueza de ambas era advinda, em parte, da exploração de
suas colônias, fonte que os alemães não podiam contar. O crescimento do poder alemão era
exclusivamente fruto de sua industrialização e proporcionou mudanças de grande impacto.
Segundo Eric J. Hobsbawm, o país viveu:
(…) o aumento da população, de 41 milhões em 1871 a
67 milhões em 1914. Paralelamente, ocorreu um processo
de urbanização de grande envergadura: em 1841, 1/3 dos
alemães vivam nas cidades, número que aumentou para
2/3 em 1910 – Berlim, que em 1867 possuía 700 mil
habitantes, passou a quatro milhões em 1913. Essa
urbanização correspondeu a um impressionante aumento
numérico da classe operária em relação ao todo da
população – em 1907, contavam-se 44,3% de operários e
68% de assalariados. (HOBSBAWM, 1996. p. 315)

O crescimento vertiginoso da economia combinado ao enorme sentimento


nacionalista, semeado desde a unificação, potencializou correntes ideológicas. Elas
disseminavam o discurso de guerra, e tinham pleno apoio de diversas classes, da burguesia às
massas operarias, cerceadas pelo PSD, o partido social democrata. Então, em agosto de 1914,
foi declarada a Primeira Guerra Mundial, envolvendo - com algumas excessões - grandes
potências mundiais. O resultado foi desastroso, violento e altamente mortífero, onde várias
nações choraram sua perdas, principalmente a própria Alemanha. O clima pós-guerra foi
devastador.
A crueldade como se deu a modernização e o avanço das novas tecnologias usadas
para a guerra resultaram em isolamento, medo de um novo confronto e alienação. Corria entre
os alemães o sentimento de culpa, mas também de injustiça, pois a Alemanha sofreu duras
penas através do Tratado de Versalhes. Todos esses profundos sentimentos, extraídos do mais
intimo dos cidadãos alemães, foi usado como material para que os artistas continuassem a
investigar uma forma de retratar a arte, iniciada de forma isolada no final do século XIX, que
não pretendia mais retratar a natureza ou a paisagem ao redor, não mais uma impressão a
respeito do real, mas aquilo que não poderia ser visto. A representação de sentimentos, desejos
e aflições sobre a atualidade que os cercavam, o Expressionismo.
Vários artistas são mundialmente reconhecidos por serem representantes desse
movimento. Nas artes plásticas, o norueguês Edvard Munch tornou-se um ícone com a série
de quatro pinturas chamada O Grito, de 1893.
Como dito, a arte expressionista não surgiu apenas após a Primeira Guerra, já no final
do século XIX vários movimentos de vanguarda experimentavam estilos e davam indícios de
uma arte que caminhava nessa direção. O Expressionismo não foi um movimento uniforme.
Ele trafegou por diversos nichos artísticos com significativa diversidade de estilos, como a
corrente modernista de Edvard Munch, fauvista de Georges Roault, cubista e futurista da
comunidade que se reunia para pensar o mundo possíveis novas formas de convivência - o
Die Brücke, surrealista de Paulo Klee, ou a abstrata do mestre Kandinsky. Wassily
Kandinksky foi professor da respeitada escola de artes alemã Bauhaus, que depois exerceu
forte influencia no movimento modernista brasileiro e na Semana de 1922.
A questão central é que o Expressionismo surge como uma possibilidade de
modernizar a cultura germânica com uma nova estética. A Revolução Industrial, no final do
século XIX, trouxe junto consigo a dor da mudança radical de uma sociedade que precisou
aprender a se adaptar a um mundo novo. Coerente com esse discurso, os artistas investigaram
novas possibilidades no terreno artístico, lançaram vanguardas e exprimiram o obscuro
universo das incertezas através deste movimento.
Quando pesquisadores e teóricos se debruçam sobre a história das artes, em geral
conseguem detectar uma simbiose entre a produção artística e os acontecimentos e fenômenos
que regem a sociedade em que essa produção está inserida. A obra artística nesse caso passa a
significar um retrato, subjetivo, do momento histórico de um lugar ou de um povo. Como
indicado até aqui, é evidente que o Expressionismo cumpre esse papel, ele retrata e nos dá a
possibilidade de experimentar a sensação de viver no contexto em que foi criado.
Se refletirmos sobre os impactos e as consequências que a Revolução Industrial trouxe
ao mundo poderemos aproxima-la de um advento moderno, tão inovador e devastador quanto,
a Revolução Digital. Na intenção de aproximar a perspectiva de observação, migraremos o
espaço de ação das ocorrências para o nosso entorno, o Brasil.
No início dos anos 1990, as casas do Brasil - e do mundo - foram expostas a uma rede
de informações interligadas que, de forma rápida modificou absolutamente a vida das pessoas,
a internet. Uma nova ruptura nos sistemas estabelecidos das sociedades. O que esse evento de
dimensões universais causa e quais são seus primeiros desdobramentos? O primeiro fato
notável é que, ao contrário da RI3, a RD 4 pode acontecer instantaneamente em todos lugares
do mundo, é um fenômeno global e teoricamente democrático. Ou seja, mesmo que o Brasil
seja um país subdesenvolvido, há a oportunidade de usufruir dessa tecnologia ao mesmo
tempo em que países europeus o fizeram. Na Europa ou no Brasil, é inegável que ambas as
revoluções trouxeram ao mundo uma nova perspectiva de existir. Essa nova visão da vida foi
refletida e inspirou artistas na busca por uma expressão original. Esse artigo tem como

3 Revolução Industrial

4 Revolução Digital
objetivo abrir um panorama para contrapor os aspectos estruturais atingidos pelas Revolução
Industrial e Digital e seus desdobramentos e suas influências no campo artístico.

ARTE E ESCUTA: REVOLUÇÃO INDUSTRIAL X REVOLUÇÃO DIGITAL

A Revolução Industrial modificou radicalmente o modus operandi das sociedades. A


industrialização possibilitou o avanço de novas tecnologias e alterou a lógica do homem e de
sua experiencia com o entorno. A partir do momento que a produção de bens de consumo
passa de artesanal para mecânica, prática iniciada na Inglaterra no século XVIII, a lógica de
consumo e do tempo das coisas se modifica. Para o professor Francisco Renato Silva Collyer,
"uma das consequências da Revolução Industrial foi a integração, em escala internacional, dos
vários fatores de produção, ou seja, capital, matérias-primas, recursos naturais e mão-de-
obra.” Collyer afirma que essa integração favoreceu a expansão do mercado mundial, pela
crescente necessidade de escoamento dos excedentes da produção e de acesso a fontes de
matérias-primas. Segundo o professor "surgiu, assim, uma nova articulação econômica entre
os países industrializados e as regiões menos desenvolvidas do planeta, conhecida como
divisão internacional do trabalho.”
Essa relação do homem com o trabalho e com a cidade que ele habitava modificou a
sua estrutura de vida em nos mais diversos aspectos. A aglomeração nos grandes centros e a
concentração das pessoas propiciou um nova experiência de vida. Segundo Collyer:

Nas cidades, o modo das pessoas verem o mundo, a


natureza e os seres humanos começou a mudar também.
Lentamente, o distanciamento da natureza foi se
concretizando. O tempo diário passou a ser medido pelo
relógio, que regrava o tempo do trabalho e da vida. As
atividades comerciais e culturais e as comodidades
urbanas se multiplicaram; o acúmulo de conhecimento e
a rapidez das informações tendiam a se concentrar nas
cidades; estas começaram a mudar cada vez mais rápido.
A vida social fora das fábricas era difícil. Nos bairros
populares dos centros urbanos em crescimento, o preço
da moradia era alto, não havia saneamento básico nem
higiene, muito menos lazer. Em condição social diferente,
a burguesia, formada pelos proprietários das fábricas, dos
estabelecimentos comerciais e financeiros, também
ampliou sua presença na sociedade, ocupando lentamente
o lugar político e econômico da antiga nobreza.
(COLLYER, 2018)
Atentemo-nos para o fator tempo. Ele é o elemento central em ambas as revoluções.
Na Industrial, o trabalhador passa a conviver com o relógio para administrar suas atividades.
Tem hora para entrar e sair do trabalho e isso rege os demais afazeres pessoais, familiares;
assim como o descanso e o prazer. Na Revolução Digital o tempo é comprimido ainda mais.
Com os smartphones o ser humano contemporâneo leva seu trabalho para todos os lugares. A
sensação de descanso e pausa é diminuída, afinal, os problemas e os afazeres, antes
concentrados no local de trabalho, passam a estar ao alcance das mãos.
A Revolução Industrial produziu máquinas à vapor e motores usados na locomoção
das pessoas, isso impactou diretamente no contato entre elas e na diminuição das distâncias. A
questão do espaço foi redimensionada. A Revolução Digital reprogramou essa relação. Não
existem mais estradas para serem superadas, acabaram as fronteiras, pois não existe mais a
exigência presencial de um para que se esteja próximo ao outro. As reuniões de trabalho
podem ser feitas através de programas de vídeo em tempo real, assim como olhar um parente
distante e conversar por horas com amigos, sem que isso tenha um custo financeiro maior.
Com o surgimento do cinema em paris, em 1895, muitos artistas de teatro sentiram-se
profundamente ameaçados. Pensou-se ser o fim das artes da cena, afinal o cinema oferecia
uma experiência próxima e muito mais tecnológica. Quando o cinema passou de mudo para
falado o pavor se estendeu e o "fim do teatro" havia sido por muitos decretado. Nunca
ocorreu. O teatro sobrevive firme até os dias atuais. O fato é que, pós revolução digital uma
diminuição considerável abalou novamente as plateias brasileiras. Fala-se numa crise de
público. Em que medida a digitalização atrapalhou ou ajudou a classe teatral? Se por um lado
a difusão de plataformas como o Netflix incentiva um individuo a não sair de casa e o conduz
para longas maratonas de séries, por outro lado ela criou oportunidades como o youtube e o
Vimeo para a divulgação e distribuição do trabalho do ator, do diretor em um meio
absolutamente novo. São oportunidades que tiram das mãos de grandes emissoras ou
produtoras de video a hegemonia sobre esse nicho, passando para as mãos do artista a sua
execução e repercussão.
A evolução e o aprimoramento vertiginoso dos aplicativos dos smartphones muitos
setores trabalhistas da sociedade sofreram danos profundos ou se extinguiram e o caso da
categoria de taxis, com o aparecimento do uber e de aplicativos de transporte; das agências de
turismo, por conta da eficiência de sites como o Trip Advisor; dos Hotéis com o surgimento
do AirBnb que organiza usuários dispostos a locar espaços na sua casa para receber hóspedes;
e até categorias impensáveis, como as de casas noturnas, bares e, até - pelo que é
popularmente dito - a profissão mais antiga do mundo, a prostituição, através de sites de
aplicativos de encontros e relacionamentos como o Tinder. Mudou a relação do homem com o
trabalho, com a diversão, com o sexo e tudo mais que o cerca.
Um caso curioso é o das grandes editoras, na questão das obras impressas, a
industrialização revolucionou radicalmente a produção e a distribuição desse material. A
evolução propiciada pela tecnologia permitiu que não fosse mais criado um produto único,
fruto exclusivo de uma encomenda ou desejo isolado. De acordo com o professor Humberto
Araújo " um pedido de edição de um livro requer, agora, toda uma empresa, capital para sua
realização e um mercado para sua difusão. Por conseguinte, o custo de cada exemplar diminui
consideravelmente, o que, por sua vez, aumenta consideravelmente sua expansão.”5 A RI
permitiu a produção em massa desse material, dando oportunidade para que o conhecimento
fosse de alguma forma democratizado. Ocorreu uma reforma radical nas estruturas de ensino,
oferecendo condições para que, quem tivesse poder suficiente, entrasse em contato com essa
fonte de informação. O ser humano que guarda conhecimento sempre teve grande valor numa
sociedade. São indivíduos que puderam dedicar tempo e, muitas vezes dinheiro, na obtenção
desse conhecimento. A revolução digital chega e propõe uma nova perspetiva, ela oferece esse
conhecimento ao alcance das mãos. Muito mais do que livros digitais, a RD concentra um
número infinito de informações em sites e ferramentas como o Google. Tradutores de idiomas
instantâneos, mapas interativos, agendas telefônicas eletrônicas, inteligências artificiais e
aplicativos que reduzem a necessidade de detenção de conhecimento a muito pouco. O que
leva a crer que a questão central dessa era digital não é mais o conhecimento que você
carrega, mas, o que você faz com ele. A era digital, além do que caminho percorrido na
Industrial nesse nicho, popularizou o acesso ao conhecimento e incentivou o registro e
compartilhamento de informações. Isso oferece ao mundo atual a oportunidade de realizar em
tempo real a atualização e preservação de um banco de dados, a memória associada de um
grupo de pessoas comuns. Sobre a contribuição dessas novas tecnologias em favor de acervos,
Elizabeth Azevedo comenta:

Há pouco mais de uma década, diante das inovações


tecnológicas surgidas nesse período, e que ampliaram de
maneira formidável as possibilidades de organização e
circulação da informação, a memória individual e a
memória social passaram a fazer parte das preocupações

5ARAUJO, HUMBERTO. Uma história da Industria Gráfica. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/


240797309/Uma-Historia-Da-Industria-Grafica. Acesso em 10 de agosto de 2018.
mais correntes das coletividades. Países,
municipalidades, instituições, famílias ou qualquer outro
agrupamento humano pôde querer que sua história fosse
não só registrada, mas posta à disposição de um possível
público interessado — seja por motivos afetivos, seja por
interesse científico. A procura e o valor que se passou a
atribuir aos mais diversificados tipos de informação
transformaram-nos em um dos bens mais valorizados da
contemporaneidade. (AZEVEDO, 2011)

São pontos negativos e positivos que norteiam as revoluções. O progresso traz


benefícios e também traz problemas, o fato é que não há mudança sem dor. Percebemos isso
em ambos os casos. No campo das artes, o que nos é possível refletor é que com efeitos e
desdobramentos tão similares, seria possível arriscar e dizer que a consequência da
digitalização das relações contemporâneas poderiam ser lidas, a longo prazo, como um
retorno do artista a sua necessidade de expor as mazelas causadas pela revolução de 1990, por
meio de uma arte conectada aos fundamentos dos movimentos expressionistas?

DA POSSIBILIDADE DE UM EXPRESSIONISMO CONTEMPORÂNEO

O movimento expressionista surge como reação a um fenômeno novo que altera


profundamente o modo de vida das pessoas, incluindo os artistas. Quando Munch pinta O
Grito, as pessoas se escandalizam com a imagem desfigurada de um homem com visível
pavor. O escândalo se dá, obviamente no terreno artístico, por ela se contrapor ao estilo
impressionista daquele período, mas, mais do que isso, a figura é escandalosa por tornar
visível um sentimento interno, não agradável, de algo até então, sem forma e sem rosto. Nos
dias atuais, se nos submetermos a caminhar à noite pelo centro da cidade de São Paulo
poderemos tragicamente experimentar o que é estar inserido na obra de Munch. Usuários de
crack, que vivem nas ruas abandonados a própria sorte, compõe a paisagem de uma cidade
devastada. A violência das telas e as cores mortíferas pinceladas nas obras expressionistas já
não nos choca tanto. Vivemos essa realidade ao vivo.
A revolução digital não disseminou apenas o conhecimento, abriu fronteiras e
possibilitou inovações, ela também espalhou o horror. Se antes os grupos se reuniam em
manifestações acaloradas na ruas, se os artistas tinham voz e o grito era sinal de alerta, hoje
tudo ocorre no silencio da sala dos apartamentos, com o teclado a postos, a luz fria da tela do
notebook e o privilégio de ser alguém sem rosto, num espaço onde Fake News também tem
lugar de fala.
Talvez seja precipitada a proposição de um estudo comparativo ou analítico sobre a
produção de arte contemporânea, a partir do viés sugerido nessa reflexão. De qualquer forma
a história nos dá a chance de observar as ações e reações de um passado não muito distante e a
escolha de seguirmos ou não na mesma direção. A certeza, é que qualquer artista conectado a
sua realidade é apenas um elemento dentro de um espaço comum, capaz de expor alguma
essência a respeito daquele espaço. Um artista na paisagem, visto por outro, é tão paisagem
quanto a própria paisagem.
Jorge Andrade, homem de teatro formado na recém-fundada Escola de Arte Dramática
(EAD), em 1950, é um importante expoente da dramaturgia de viés expressionista brasileira.
Autor de 17 peças e algumas obras inacabadas, Andrade conseguiu retratar em todos os seus
textos a essência do povo brasileiro e do impacto que as severas condições que a vida os
empunha e exerciam em seus cotidianos. Para a pesquisadora Elizabeth Azevedo, em todos os
seus trabalhos “identificam-se as mesmas preocupações e posturas de um autor comprometido
com a liberdade, com a luta contra a injustiça, com a identificação do peso sufocante do
passado sobre os personagens, com a esperança no futuro”. (AZEVEDO, Elizabeth. Prólogo.
p.150. In ANDRADE, 2013). Ainda é cedo para concluirmos que legado que os artistas
expostos a Revolução Digital deixará, mas baseados na história, podemos afirmar com certeza
que esse legado não será descolado da realidade silenciosa, ainda mais isolada e impessoal
que a primeira. O artista é consequência de seu entorno e sua obra é a prova viva disso. O
Poema de Abertura de Marta, A Árvore o Relógio traduz em versos essa perspetiva e será
modestamente emprestado para o fechamento dessa reflexão. Quando nos afastarmos do
presente, o que responderá o artista contemporâneo quando lhe perguntado - De onde veio?

Veio das Sombras,


Da memória de todos os tempos
Do menino nascendo veio.

Veio das novenas, das lajes, dos terços


E de sinos tangendo em monjolos e moinhos.
Do menino crescendo veio.
Veio do orgulho, das árvores, das raízes
E de relógios sem ponteiros e máquinas Singer.

Do menino caminhando, veio.


Veio de estrelas já extintas e tão distantes
E de chuvas tão inúteis e de terras sem sementes.
Do menino falando, veio.
Veio do suor em enxadas e das lágrimas nas peneiras
E da injustiça feita homem-Deus-colono.

Do menino observando, veio.


Veio de perfumes, leques, retratos
E DE mulheres com camafeu e de cortinas em filé.

Do menino Sonhando, veio.


Veio de balaústres, demandas, heranças, lustres
e do sangue feito canga ou coroa de espinhos.

Do menino amando, veio.


Veio de rastelos cantando canções estrangeiras
E de todos os sangues que não correm em mim.

Do menino sofrendo, veio.


Veio de tábuas largas, melindrosas, telha-vã
E do menino ouvindo vissi darte e os visse demore
Entre latidos de cães, pés na enxurrada e mangas no chão.

Do menino humilhado, veio.


Veio de livros roubados e de pedras procuradas.
Veio de momentos vividos e sonhados.
Veio das sombras,
Da memória de todos os tempos.
Do menino libertado veio, veio!

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Jorge. Marta, A Arvóre e o Relógio. São Paulo. Ed. Cintra, 2013.

AZEVEDO, Elizabeth Ribeiro. Memória e esquecimento do teatro paulistano. São Paulo:


Universidade de São Paulo; Professora Doutora. VI reunião Científica da ABRACE. Porto
Alegre, 2011.

COLLYER, Francisco Renato Silva. Muito além da Revolução. os aspectos políticos e


sociais da maior revolução da idade moderna. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
Teresina, ano 20, n. 4242, 11 fev. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/31268>.
Acesso em: 15 ago. 2018.

HOBSBAWM, Erick Jay. A Era do Capital. Ed. Paz Na Terra, 2006

KEMP, Tom. A revolução industrial na Europa do século XIX. Lisboa: Ed.70, 1985.

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