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o direito como

ARGUMENTAÇÃO
Manuel Atienza À Cármen

© Escolar Editora, 2014


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Traduzido da edição esprmbola, El Derecho como


Argumentación. EditoriaJtAriel, 2012.

Proibida a reprodução total ou parcial deste livro sem a


autorização expressa do editor.
Todos os direitos estão .reservados por Escolar Editora.

Coordenação Editorial
João Costa

Tradução:
Manuel Poirier Braz

ISBN 978-972-592-385-6
Depósito Legal nO 360 425/2013

Capa
Tiago Oliveira

Paginação
Mário Félix, Artes Gnmeas

Impressão e Acabamento
Manuel Barbosa & FillIios, Lda.
íNDICE

APRESENTAÇÃO ................................................................. 11

CAPÍTULO 1
DIREITO EARGUMENTAÇÃO....................................... 15
1. Introdução. A argumentação jurídica e a sua importância
actual.................................................................................... 15
2. Factores que explicam o fenómeno .. .... ... .... .......... ..... ...... .... 20
3. Concepções do Direito: dos teóricos e dos práticos... .......... 26
4. O formalismo jurídico.......................................................... 32
5. O positivismo normativista .............. ...... .... ...... ........ ..... ....... 36
6. O realismo jurídico ..... ... .................. ......... ................... ........ 44
7. O jusnaturalismo.................................................................. 51
8. O cepticismo jurídico............. ........... .......................... ... ...... 62
9. O que resta........ ............ ................ ............ ............. ... ........... 68
10. Acerca do pragmatismo jurídico .......................................... 74
11. Direito, conflito e argumentação .......................................... 76

CAPÍTULO 2
TRÊS CONCEPÇÕES DAARGUMENTAÇÃO ............. 79
1. Argumentar e decidir ...... ....... ... ..... ... .... ................... .... ........ 79
2. Um conceito complexo......................................................... 86
3. O conceito de argumentação................................................ 94
4. Concepções da argumentação ... ..... ........... ........ ......... .......... 99
8 o Direito como Argumentação Indice 9

5. A concepção formal, a concepção material e a concepção CAPÍTULO 5


pragmática da argumentação ................................................ 103 A CONCEPÇÃO PRAGMÁTICA ...................................... 319
6. Concepções da argumentação e argumentação jurídica........ 122 1. O império pragmático ......................................................... 319
7. Algumas consequências ........................................................ 127 2. Lógica, retórica e dialéctica..... ...... ... ....................... ....... ..... 323
3. A concepção pragmática e a concepção material ................. 330
7.1 Contexto de descoberta e contexto de justificação .......... 128
4. Retórica e dialéctica .............................. .............................. 334
7.2 Argumentação e falácias............. .... ............. ............ ....... 137
5. A dialéctica como procedimento................... .... ............ ... ... 340
6. A actividade retórica ........................................................... 348
CAPÍTULO 3
7. De novo, acerca das falácias ................................................. 352
A CONCEPÇÃO FORMAL ................................................ 141
8. O papel da retórica e da dialéctica na argumentação
1. A lógica formal ...... ... ......... ....... ... ...... .... ........ .... ..... ....... ...... 141
jurídica ...................................................... '.' ............... ......... 360
2. A lógica dedutiva ................................................................. 156
3. A lógica deôntica ................................................................. 161
BIBLIOGRAFIA .................................................................... 371
4. As lógicas (deônticas) divergentes ........................................ 171
5. Lógica dedutiva e lógica indutiva ......................................... 184
6.A forma dos argumentos ...................................................... 192
7. A forma dos argumentos jurídicos.... ... ...... ............. ... .... ...... 199
8. Subsunção, adequação (raciocínio finalista: meio-fim)
e ponderação ......... ......... ... ................. ............ ............... ....... 209
9. Algumas conclusões. .... ........................................................ 227

CAPÍTULO 4
A CONCEPÇÃO MATERIAL ............................................ 233
1. A concepção formal e a concepção material ........................ . 233
2. Raciocínio teórico e prático ................................................. . 245
3 . Raciocínio J. urídico e raciocí· nlO pra, t·ICO ............................... . 254
4. Razões e tipos de razões ...................................................... . 261
5 . Razões·'di
Jun cas (d· o sIstema Jun . 'd·ICO ) ................................. . 274
6. Razões jurídicas extra-sistemáticas (da prática jurídica) ...... . 286
7. Relevância e peso das razões ............................................... . 292
8. Razões institucionais ........................................................... . 302
9. Razões jurídicas e razões morais. A unidade do raciocínio
prático .................... ...................................................... ........ 311
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Se o valor de um livro se medisse pelo trabalho de o escrever, este
~: mereceria seguramente ser considerado um bom livro. Mas as coisas
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nem sempre são assim. Por vezes, esforços árduos produzem resulta-
dos medíocres, e outras vezes pode-se eventualmente obter um bom
(ou aceitável) resultado (e um êxito considerável) com um esforço
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.~ bastante reduzido .
Pois bem, despendi bastante tempo e trabalho para escrever as
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páginas que seguem e, de facto, o livro em si mesmo constitui a sín-
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J tese e o desenvolvimento de muitas obras que, no campo da argu-


mentação jurídica, publiquei durante os últimos anos, algumas dos
, quais em colaboração com Juan Ruiz Manero. O meu projecto con-
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" sistia em elaborar uma teoria argumentativa do Direito, mas o que
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j'~' agora apresento é somente a primeira parte da mesma: uma análise
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das três concepções da argumentação (formal, material e prática) que,
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devidamente articuladas, deveriam servir para dar uma resposta (que
o leitor, todavia, não encontrará aqui) às três grandes questões susci-
tadas por essa abordagem teórica: como analisar uma argumentação
jurídica, como avaliá-la e como argumentar em Direito; ao que have-
ria de acrescentar-se o estudo dos diversos contextos que caracteri-
zam a argumentação jurídica e dos limites - inevitáveis, mas talvez
não imediatamente óbvios - desse enfoque.
O que antecede pode explicar, segundo creio, a estranheza que
o título causou a alguns dos leitores de uma versão prévia (mas não
12 o Direito como Argumentação Apresentação 13

muito diferente) do texto que foi publicado. Com efeito, o título: e concepções: existem determinadas características presentes em qual-
O Direito como argumentação situa-se realmente para além daquilo quer tipo de argumentação (que configuram o conceito) e diversas
que o leitor poderá encontrar nestas páginas e, por isso, optei por maneiras de interpretar esses elementos comuns, que dão origem a
acrescentar um subtítulo que fornece um maior rigor informativo três concepções características: a formal, a material e a pragmática;
acerca do conteúdo: Concepções da argumentação. Renunciar, nesta no âmbito desta última faz-se, por sua vez, uma sub-distinção entre
fase, a um título pensado já há muito tempo parecer-me-ia o mesmo as concepções dialéctica e retórica. A argumentação jurídica con-
que prescindir da possibilidade de, algum dia, vir a conseguir levar a siste numa combinação peculiar de elementos provenientes dessas
cabo a tarefa completa. três concepções (ou perspectivas), mas importa também distinguir os
Existe outra circunstância de que o leitor deve ser advertido. Embora diversos contextos jurídicos em que uma ou outra dessas concepções
o livro pretenda ser auto-suficiente, isto é, tudo o que nele se diz deve- desempenha um papel preponderante. Os três capítulos seguintes
ria ser compreensível (por exemplo, para qualquer jurista ou estudante destinam-se a esclarecer cada uma delas.
de Direito de cultura média) sem necessidade de recorrer a fontes exte- Assim, no capítulo terceiro, faz-se coincidir essencialmente o
riores a ele, faz-se, contudo, uma referência constante a diversas teorias núcleo da concepção formal, com a lógica dedutiva clássica. Assi-
da argumentação jurídica, em cuja análise não entro. A razão consiste nala-se, não obstante, a importância que a lógica deôntica, as lógicas
em ter escrito, há alguns anos, um livro dedicado precisamente a esse divergentes e a lógica indutiva revestem para a argumentação jurídica.
tema, As razões do Direito. Teorias da argumentação jurídica (Atienza, E distinguem-se três formas fundamentais dos argumentos jurídicos:
1991), e não se justificava, obviamente, uma repetição. Limitei-me a a subsunção, a adequação (argumentos meio-fim) e a ponderação,
dar, de vez em quando, algumas indicações breves, apenas para que o cada uma das quais pressupõe a utilização (como premissa) de um
texto se tornasse mais inteligíveL A preocupação de não repetir o que enunciado jurídico característico: uma regra de acção, uma regra de
já tinha escrito sobre autores como Toulmin, Perelman ou Alexy justi- fim e um princípio (princípio em sentido estrito ou directriz).
fica, além do mais, que o capítulo dedicado à concepção pragmática da -Do mesmo modo que a concepção formal se baseia na noção de
argumentação seja menos extenso do que os outros. inferência, a concepção material (a que é dedicado o capítulo quarto)
Em síntese, o conteúdo do livro é o seguinte. consiste, no essencial, numa teoria das premissas, dos tipos de argumen-
No primeiro capítulo descrevo quais são os factores que explicam tos que se usam na resolução de problemas teóricos e práticos. A argu-
o interesse crescente da argumentação no Direito e centro-me nos de mentação jurídica é considerada como um tipo peculiar de argumento
natureza teórica. A tese fundamental é que as principais concepções prático no qual operam argumentos (premissas) de dois tipos: uns (nor-
de Direito do século xx não permitem, por diversas razões, captar mas, declarações de princípios, definições) fazem parte do sistema jurí-
os aspectos argumentativos do Direito. Para além disto, identifico
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.;:,. dico, e outras (declarações de facto, em sentido amplo) são argumentos
alguns indícios de uma nova concepção de Direito (actualmente em extra-sistemáticos, provenientes da prática jurídica. O uso dos argu-
fase de formação), cujo pressuposto seria o pragmatismo jurídico e mentos suscita o problema da relevância e do peso dos mesmos, assim
que tende a considerar o Direito como argumentação. como o da relação entre os argumentos jurídicos e os de natureza moral.
O segundo capítulo é dedicado ao esclarecimento da noção de Por fim, o capítulo quinto é dedicado à concepção pragmática da
argumentação, o que se consegue através da distinção entre conceito argumentação, ou seja, a considerar a argumentação essencialmente
14 o Direito como Argumentação

como uma actividade dirigida a persuadir sobre algo ou a defender


ou atacar uma tese; a tónica não se coloca agora sobre a noção de
inferência nem de premissa (e conclusão), mas nos efeitos que se visa
obter com a argumentação. A distinção entre as concepções retórica
e dialéctica depende essencialmente de que, na actividade social que
consiste em argumentar, uma das partes da relação ou ambas assu- CAPíTULO 1

mam um papel activo. A concepção pragmática tem alguma priori-


dade sobre as outras duas, mas a argumentação jurídica não pode ser DIREITO E ARGUMENTAÇÃO
apreciada exclusivamente em termos retóricos e/ou dialécticos.
Durante o longo período em que estive ocupado a escrever este
livro recebi estímulo de muitas pessoas. Desde logo, de todos os mem,..
bros da área de Filosofia do Direito da Universidade de Alicante·, em
especial de Josep Aguiló, cuja capacidade para orientar as pessoas em 1. Introdução. A argumentação jurídica e a sua importância
questões teóricas ou práticas é, como quase se poderia dizer, seu apa- actual
nágio; e de Hugo Ortiz, com o qual contraí, nestes últimos anos, uma
impagável dívida de gratidão. Mas também de pessoas alheias (ou Parece óbvio afirmar que a argumentação é uma componente impor-
relativamente alheias) ao nosso grupo, como Ernesto Garzón Valdés tante da experiência jurídica sob praticamente todas as suas facetas:
(o actual primeiro capítulo deste livro foi a minha conferência na quer se considere a aplicação como a interpretação ou a produção
Cátedra de Ernesto Garzón Valdés 2003 'O Direito como argumen- do Direito; quer ainda se nos colocarmos na perspectiva do juiz, do
tação, Fontam~ México, 2004') e Robert Summers, meu anfitrião advogado, do teórico do Direito ou do legislador. O que talvez seja
no inesquecível ano sabático que passei na Universidade de ComeU, menos óbvio é esclarecer em que consiste - ou em que se traduz
em 2001. Além disso, tive a sorte de um bom número de colegas e - exactamente essa importância e, sobretudo, de que maneira a
amigos terem lido este livro (numa versão prévia da actual) e de me perspectiva argumentativa permite entender em profundidade mui-
terem feito numerosas observações que evitaram que incorresse em tos aspectos do Direito e da teoria jurídica e fornece, por último,
vários erros e que me permitiram melhorar o respectivo conteúdo sob instrumentos sumamente úteis para actuar com uma orientação em
vários aspectos. A lista -inclui Juan Ruiz Manero,Josep Aguiló, Daniel Direito; particularmente, nos sistemas jurídicos dos Estados dotados
González Lagier, Ángeles Ródenas, Isabel Lifante, Victoria Roca, de uma constituição.
Macario Alemany. Raimundo Gama, Amalia Amaya, Ali Lozada, Uma certa dificuldade na prossecução de todos estes objectivos
Juan Cofre, Perfecto Andrés Ibafiez, Luis Vega,Jesus Delgado e José provém da obscuridade que está associada à expressão "argumentação
Juan Moreso. A todos eles fico profundamente agradecido. jurídica" e a muitas outras que podem considerar-se mais ou menos
sinónimas (ou parcialmente sinónimas): "argumento" "raciocínio
Alicante, Novembro de 2005 jurídico", "lógica jurídica", "método jurídico" ... Ao longo deste livro
ir-se-á aclarando em que sentido falo de argumentação jurídica (ou,
16 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 17

melhor, em que sentidos: uma das ide ias centrais do mesmo é que que, na cultura ocidental, houve momentos (e direcções do pensa-
existem diversas concepções ou dimensões da argumentação dotadas mento jurídico) em que Direito e lógica parecem ter tido tendên-
de relevância jurídica) mas, já agora, convém fazer algumas precisões cia para se aproximar (por exemplo, no jusnaturalismo racionalista)
iniciais. e outros em que a relação terá sido mais de tensão (como acontece
A primeira é que, por argumentação jurídica, não entendo o com o movimento anti-formalista ou realista). Como exemplo deste
mesmo que por lógica jurídica, embora se adoptássemos uma con- último, é inevitável citar a conhecidíssima frase do juiz Holmes, no
cepção suficientemente ampla de lógica (que incluísse, por exemplo, início da sua obra lhe common law: "a vida do Direito não foi lógica,
o conjunto de temas tratados por Aristóteles no Organon) nada exis- mas sim experiência" (Holmes, 1963, p. 1). Mas essas palavras foram
tiria praticamente - nenhum tema dos que aqui abordaremos - frequentemente mal interpretadas, de certo devido à mencionada
que não pudesse ser considerado como pertencente à lógica, isto é, à obscuridade da expressão "lógica". Parecer bastante razoável supor
lógica jurídica. De facto, a expressão "lógica" usou-se - e usa-se - que aquilo que Holmes pretendia ao escrever aquelas linhas não era
com uma enorme variedade de significados, um dos quais (enquanto afirmar que no Direito não existiria lógica: Holmes estava plena-
adjectivo) equivaleria a "racional", "aceitável", "fundado". De qualquer mente consciente da importância da análise lógica dos conceitos
modo, hoje é frequente contrapor a perspectiva lógica da argumenta- jurídicos, e as suas sentenças - particularmente os seus votos dis-
ção a outras de carácter retórico, corrente, comunicativo, etc., e aqui cordantes - são exemplos destacados de como usar persuasivamente
seguirei basicamente essa tradição que, além do mais, se encontra a lógica. Aquilo que pretendia era contrapor melhor o formalismo
solidamente radicada. Dito de maneira aproximativa, a lógica - a jurídico a uma concepção instrumental ou pragmática do Direito; ou
lógica formal - considera os argumentos como encadeamentos de seja, assinalar que o que orienta o desenvolvimento do Direito não
enunciados, a partir de alguns dos quais (as premissas) se chega a é uma ideia imutável de razão, mas sim a experiência - a cultura
outro (a conclusão). Outras perspectivas podem consistir em consi- - em mutação (vid. Menand, 1997, p. XXI). Dito de outro modo, o
derar a argumentação como uma actividade, uma técnica ou uma arte aforismo de Holmes seria contrário à lógica, mas entendida esta num
(a ars inveniendi) dirigida a estabelecer ou a descobrir as premissas; sentido que nada tem que ver com aquele em que hoje se emprega -
como uma técnica orientada no sentido de persuadir outro ou outros tecnicamente - a expressão.
de determinadas teses; ou como uma interacção social, um processo Também merece a pena evidenciar o facto de que quando hoje se
comunicativo que decorre entre vários sujeitos e deve desenvolver-se fala de "argumentação jurídica" ou de "teoria da argumentação jurí-
de acordo com certas regras. dicá' não se está a dizer algo muito diferente do que anteriormente se
Além do mais, a questão das relações entre o Direito e a lógica é designou melhor por "método jurídico", "metodologia jurídica", etc.
complexa e torna-se bastante obscura em consequência da impreci- Torna-se assim significativo que nas primeiras páginas do seu livro
são com que costuma falar-se de "lógica" no âmbito do Direito (e em Teoria da argumentação jurídica (uma das obras mais influentes das
muitos outros âmbitos). Na realidade, acaba por ser um dos temas últimas décadas, na Europa e América Latina), Robert Alexy mos-
clássicos do pensamento jurídico, que costuma ser abordado de uma tre explicitamente que aquilo que pretende é abordar, centralmente,
maneira muito distinta, de acordo com a cultura jurídica da época que os mesmos problemas de que se tinham ocupado os autores dos
se considere. Falando de uma maneira muito geral, poderia dizer-se mais influentes tratados de metodologia jurídica (Larenz, Canaris,
18 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 19

Engisch, Esser, Kriele ... ): ou seja, clarificar os processos de interpre- de "Legal reasoning" trata-se de ensinar os estudantes a "pensar como
tação e de aplicação do Direito e proporcionar um guia e uma orien- um jurista" (algo fundamental num sistema educativo dirigido quase
tação para o trabalho dos juristas. Em minha opinião, a diferença exclusivamente a formar bons profissionais) e cumprem uma fun-
entre o uso que hoje se faz da expressão "argumentação jurídica" rela- ção - propedêutica - semelhante à que muitas vezes se atribuiu à
tivamente à de "método jurídico" baseia-se essencialmente no facto lógica em relação às demais ciências.
de a primeira tender a centrar-se no discurso jurídico justificativo Pois bem, em qualquer dos sentidos em que seja oportuno fal~
(em particular, no dos juízes), enquanto que "método jurídico" (pelo de raciocínio jurídico ou de argumentação jurídica, não há dúvida de
menos entendido em sentido lato) teria que fazer referência também que as respectivas origens são muito antigas. O estudo das formas
a outra série de operações levadas a cabo pelos juristas profissionais lógicas dos argumentos utilizados pelos juristas ("a part', "afortiod',
e que não têm estritamente (ou não só) um carácter argumentativo: "a contrario" ... ) remonta pelo menos ao Direito romano. A ars inve-
por exemplo, encontrar o material necessário para resolver um pro- niendi, a típica, teria sido, segundo Viehweg (1986), o estilo caracte-
blema ou adoptar uma decisão relacionada com um caso (na medida rístico da Jurisprudência na época clássica do Direito romano e teria
em que se distingue da justificação dessa decisão). De facto, o que subsistido na Europa, pelo menos até à chegada do racionalismo. E a
pode designar-se por "teoria padrão da argumentação jurídica" parte própria origem da retórica (na Sicília, no século v a.C.) não é outra
de uma distinção clara (que não é habitual encontrar entre os cultores se não o Direito: aquele que foi considerado o primeiro tratado de
mais tradicionais da metodologia jurídica), por um lado, entre a deci- retórica - o Corax - surge da necessidade de persuadir os juízes
são Gudicial) e o discurso referido ou relacionado com a decisão; e, em relação a determinadas contendas acerca da propriedade da terra.
por outro lado (no plano do discurso), entre o de carácter justificativo Ora bem, este interesse de sempre pela argumentação jurídica
e o descritivo e explicativo dos processos que conduzem à tomada da - e pela argumentação em geral - aumentou enormemente nos
decisão (o contexto da investigação), que exigiria que fossem toma- últimos tempos. Importaria falar, talvez, dos momentos de inflexão.
dos em conta factores de tipo económico, psicológico, ideológico, etc. Um deles ocorreu nos anos cinquenta do século xx, quando se veri-
Todavia, como o leitor se irá apercebendo, o livro inspira-se ficou um grande ressurgimento da aplicação da lógica ao Direito, em
numa concepção mais ampla da argumentação jurídica, que tende a parte pela possibilidade de aplicar a este os instrumentos da "nova"
associar a actividade argumentativa com os processos de tomada de lógica matemática (a publicação da Lógica jurídica de Ulrich KIug
decisão, de resolução de problemas jurídicos, e que, de certo modo, é de 1951, mas a elaboração do livro data dos finais dos anos trinta
relativiza as anteriores distinções; de maneira que poderia dizer-se 'Vid. Atienza, 1991'), e em parte como consequência da lógica nor-
que a perspectiva argumentativa do Direito aqui proposta consiste mativa ou lógica das normas (o trabalho pioneiro de von Wright data
essencialmente me considerar os problemas do método jurídico sob de 1951); mas também de outras tradições do estudo dos argumen-
a sua vertente argumentativa. Por outro lado, no mundo anglo-saxó- tos, representadas pelos princípios gerais de Viehweg (com afinida-
nico - particularmente nos Estados Unidos - "raciocínio jurídica" des extremas, além do mais, com a concepção de raciocínio jurídico
("legal reasoning") usou-se tradicionalmente - e continua a usar- de um autor norte-americano, Levi, que na mesma época publicou
-se - num sentido muito amplo e praticamente equivalente ao de um influente livro sobre o assunto), a nova retórica de Perelman, ou
método jurídico (vid. p. ex., Burton, 1985; Neuman, 1998). Nos livros a lógica "operativa" ou informal de Toulmin. Por isso, quando hoje
20 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 21

se fala de argumentação jurídica (ou de teoria da argumentação jurí- pelo menos, não centraram particularmente a sua atenção nela - a
dica) faz-se referência a um tipo de investigação que não se limita ao dimensão argumentativa do Direito. Isso explica que exista um inte-
uso da lógica formal (a análise lógica formal seria apenas uma parte resse - chamemos-lhe, um interesse de conhecimento - em cons-
da mesma) e inclusive, por vezes, a um tipo de investigação que se truir teorias jurídicas mais completas que preencham essa lacuna.
contrapõe ao da lógica (ao da lógica formal). Adiante desenvolverei este aspecto com algum pormenor.
Outro momento de inflexão teve lugar nos finaIs dos anos setenta, O segundo factor - obviamente associado ao anterior - é de
quando se elaborou o núcleo conceptual do que pode considerar- ordem prática. A prática do Direito - especialmente nos Direitos
-se como a "teoria padrão da argumentação jurídica" (vid. Atienza, de Estado constitucional- parece consistir de maneira relevante em
1991), que aparece exposta em diversos trabalhos de Wróblewski, argumentar, e as imagens mais populares do Direito (por exemplo,
Alexy, MacCormick, Peczenick e Aarnio; embora pondo a tónica o desenrolar de um julgamento) contribuem igualmente para que se
noutros aspectos da argumentação jurídica (a que desde já chamarei destaque essa dimensão argumentativa. Isto torna-se especialmente
a sua dimensão "material"), por essa época publica-se também uma evidente na cultura anglo-saxónica - sobretudo na cultura norte-
série de trabalhos de Dworkin, Summers e Raz que influíram decisi- -americana - com sistemas processuais baseados no princípio do
vamente na maneira de entender o discurso justificativo (de carácter contraditório (nos sistemas continentais, só o processo civil - mas
judicial). O enorme interesse existente pela argumentação jurídica, não o penal- se baseia nesse princípio) e naquela em que o Direito
a partir destas datas, é muito fácil de constatar. Basta examinar os é contemplado tradicionalmente, não sob o ponto de vista do legis-
índices das revistas de teoria ou de filosofia do Direito ou recorrer lador ou sob a perspectiva abstracta do teórico ou do dogmático do
a diversos números dessas mesmas revistas em que se promoveram direito (como acontece nas culturas do continente europeu ou da
inquéritos para conhecer quais eram os temas dessas disciplinas que América latina), mas sob a perspectiva do juiz ou do advogado. Isso·
os seus cultores consideravam de mais interesse Mas, além disso, não' explica que, embora os norte-americanos não tenham sentido com
se tratava apenas de um interesse teórico, por parte dos filósofos do grande premência - nem, segundo me parece, o sintam agora -
Direito, mas de um interesse que estes partilham com os profissionais a necessidade de construir uma teoria da argumentação jurídica, a
e com os estudantes de Direito. prática da argumentação constitui o núcleo do ensino do Direito nas
Faculdades - ou melhor, escolas profissionais - de prestígio, desde
a época de Langdell: instituições como o método dos casos, o método
2. Factores que explicam o fenómeno socrático ou as Moot Courts comprovam-no (vid. Pérez Lledó, 2002).
Pois bem, o que se torna ainda mais evidente - estamos tra-
A que se deve então o carácter central que a argumentação jurídica tando do apogeu actual da argumentação jurídica - é que o aspecto
passou a ter na cultura jurídica (ocidental)? Existem vários factores argumentativo da prática jurídica, se torna também destacadamente
que, considerados em conjunto - de facto, estão estreitamente asso- evidente em culturas e ordenamentos jurídicos que fazem parte de
ciados - oferecem uma explicação que me parece satisfatória. outra grande família dos sistemas jurídicos ocidentais: a dos Direi-
O primeiro tem natureza teórica. As concepções do Direito mais tos romano-germânicos. O caso espanhol pode muito bem servir de
características do século xx tiveram tendência para descuidar - ou, exemplo para ilustrar essa mudança. Limitar-me-ei a assinalar dois
22 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 23

dados. O primeiro - cujo carácter evidente não carece de qualquer a interpretação e a aplicação do Direito, e c) mecanismos de Con-
prova - é que, a partir basicamente da Constituição de 1978, as sen- trolo da constitucionalidade das leis. Como consequência, o poder
tenças dos juízes estão mais e melhor motivadas do que era normal do legislador (e de qualquer órgão estatal) é um poder limitado e
anteriormente; para o que muito contribuiu a ide ia - aceite pelos tri- que tem que justificar-se de forma muito mais exigente. Não basta
bunais após algumas hesitações iniciais - do carácter vinculativo da a referência à autoridade (ao órgão competente) e a certos proce-
Constituição e a própria prática (de exigente motivação) do Tribunal dimentos, mas exige-se também (sempre) um controlo em relação
Constitucional. Outro dado de interesse é constituído pela introdu- ao conteúdo. O Estado constitucional pressupõe assim um desen-
ção do júri (cumprindo precisamente uma exigência constitucional), volvimento no que tange à tarefa justificativa dos órgãos públicos e,
em 1995. Perante a alternativa entre o júri puro anglo-saxónico e o portanto, uma maior exigência de argumentação jurídica (do que a
sistema escabinado (composto por leigos e juízes) vigente em diver- exigida pelo Estado legislativo de Direito). Na realidade, o ideal do
sos países europeus, optou -se pelo primeiro, mas com a especifici- Estado constitucional (o culminar do Estado de Direito) pressupõe
dade de que o júri espanhol tem que fundamentar as suas decisões: a subordinação completa do poder ao Direito e à razão: a força da
não pode limitar-se a estabelecer a culpabilidade ou a não culpabi- razão, frente à razão da força. Parece por isso bastante lógico que a
lidade, mas tem também que fornecer as suas motivações. Como é evolução do Estado constitucional tenha sido acompanhada de um
natural, trata-se de uma maneira de certo modo peculiar de motivar, incremento quantitativo e qualitativo da exigência de fundamentação
de argumentar (a motivação está contida num conjunto de respostas das decisões dos órgãos públicos.
dadas aos quesitos elaborados - nalguns casos podem exceder 100 Acresce que - a par do constitucionalismo - existe outra ten-
- pelo juiz que preside ao júri; não é, portanto, uma motivação dis- dência dos sistemas jurídicos contemporâneos que aponta no mesmo
cursiva 'Atienza, 2004' como a que pode encontrar-se numa sentença sentido: refiro-me ao pluralismo jurídico, ou se preferirmos, à tendên-
judicial; e muitas das críticas que foram dirigidas ao funcionamento cia para apagar os limites entre o Direito oficial ou formal e outros
daquela instituição resultam precisamente das dificuldades em levar processos - jurídicos ou para-jurídicos - de resolver os conflitos.
a cabo essa tarefa. Porém, o que me interessa destacar é até que ponto Ao menos em princípio, a tendência para um Direito mais "informal"
se considera hoje que a prática do Direito - a tomada de decisões (a utilização de mecanismos como a conciliação, a mediação, a nego-
jurídicas - deve ter carácter argumentativo. ciação) pressupõe um aumento da componente argumentativa (ou
O terceiro factor prende-se com uma mudança geral nos siste- "retórica") do Direito, face aos elementos burocrático e coactivo (vid.
mas legislativos, provocada pela passagem do "Estado legislativo" ao Santos, 1980; 1998,,; e infra, capo 1, ap. 8).
"Estado constitucional". Por Estado constitucional, como é óbvio, O quarto factor é de natureza pedagógica e, de certo modo, é uma
não se entende simplesmente um Estado em que a Constituição consequência - ou se quisermos, faz parte - dos anteriores. Recorro
(que pode não sê-lo em sentido formal: pode não existir um texto outra vez ao exemplo espanhol. O aspecto que tanto os professores
constitucional) contém: a) um princípio dinâmico do sistema jurí- como os estudantes de Direito consideram mais negativo do processo
dico poütico, ou seja a distribuição formal do poder entre os diversos educativo poderia sintetizar-se na frase: "O ensino do Direito deve
órgão estatais (vid. Aguiló, 2001): b) certos direitos fundamentais que incidir mais sobre a prática!" A expressão "prática" é, todavia, bastante
limitam ou condicionam (também quanto ao conteúdo) a produção, obscura (como acontece com o termo "teoria" a que costuma andar
.",~."."

24 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 25

associada) e pode entender-se em diversos sentidos. Se a interpretar- profissionais; gerar, entre os futuros juristas, um cepticismo radical,
mos como um ensino que prepara para exercer com êxito uma das uma visão puramente instrumental do Direito que, no fundo, leva
muitas profissões jurídicas que se oferecem ao licenciado em Direito a pensar que aquilo que é tecnicamente possível (usando o Direito
ou para formar juristas capazes de actuar com competência (o que ainda que seja de uma maneira enviesada) é também eticamente
pode significar algo diferente de "com êxito profissional") no contexto aceitável. Pois bem, eu diria que tudo isso é, de certo modo, uma
dos nossos sistemas jurídicos, então um ensino mais prático há-de consequência de se ter desenvolvido um modelo - uma concepção
significar um ensino menos voltado para os conteúdos do Direito - de argumentação jurídica que privilegia quase exclusivamente os
e mais para o manejo - um manejo essencialmente argumentativo elementos de tipo dialéctico e retórico, em detrimento dos que agora
- do material jurídico. Utilizando a terminologia dos sistemas espe- denominarei de elementos formais e materiais da argumentação: o
cializados caberia dizer que, do que se trata não é que o jurista - o aspecto mais estritamente lógico e a justificação em sentido estrito
estudante de Direito - chegue a conhecer a informação contida na das decisões.
base de dados do sistema, mas de saber como aceder a essa informa- O último (quinto) factor é de tipo poütico. Falando em termos
ção, aos materiais jurídicos (é o que os norte-americanos designam gerais, as sociedades ocidentais sofreram um processo de perda de
por Lega! research) , e qual é - e funciona como - o motor de busca legitimidade baseada na autoridade e na tradição; em seu lugar -
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do sistema, ou seja, o conhecimento instrumental para manejar esse como fonte de legitimidade - aparece o consentimento dos inte-
material (o Legal method ou o Lega! reasoning: como faz o especialista
do Direito - como pensa - para, com esse material, resolver um
problema jurídico). Em última instância, pois, aquilo que se reivin-
dicaria não exactamente um ensino mais prático (menos teórico) do
II. ·: ressados, a democracia. Este processo tem lugar em todas as esferas
da vida, e explica que o interesse crescente pela argumentação - um
interesse ligado, pois, ~o incremento da democracia - não se cir-
cunscreva ao âmbito restrito do Direito. Em todo o caso, o fenó-
Direito, mas tão-somente mais metodológico e argumentativo. Se
concordarmos. a par do lema: "O ensino do Direito deve incidir mais
I~ me no da constitucionalização do Direito, a que já me referi, supõe,
por um lado, um reflexo da legitimidade de tipo democrático mas,
sobre a prática!" haveria que colocar outro: "nada é mais prático do 'I por outro lado, inclui um elemento idealista - os direitos huma-
que a boa teoria e o núcleo dessa boa teoria é a argumentação".
Como já se disse, este tipo de ensino "prático" do Direito já existe, I~
nos - que se situa para além da democracia ou, se quisermos, que
aponta para outro sentido da democracia. Dito de outra maneira,
mas não há razão para que o consideremos um modelo ideal, visto não
o ser. E não o é. em minha opinião, por uma série de factores que têm
que ver precisamente com a argumentação. Qyando se examinam as
II a vinculação da argumentação à democracia varia de acordo com o
entendimento que se tenha de democracia. Se a concebermos apenas
como um sistema de governo - um processo de tomada de decisões

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críticas que costumam ser feitas às grandes escolas de Direito norte- - para o qual são tidas em conta as preferências de todos (em que
-americanas (vid. Pérez Lledó, 2002), deparamos, por um lado, com funciona a lei da maioria), é óbvio que existe um espaço amplo para a
objecções que apontam para um excesso de casuísmo, para a falta de argumentação - muito mais amplo do que num Estado não demo-
uma maior sistematização e, por outro lado, com deficiências que se I crático - embora não necessariamente - ou nem sempre - para
referem a elementos ideológicos do sistema educativo: estimular uma uma argumentação de tipo racional que procure não simplesmente
aceitação acritica do Direito; esquecer os aspectos não estritamente a persuasão, mas a correcção (se quisermos, a persuasão racional).

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Mas as coisas são diferentes no caso do que se costuma designar Muitas vezes se caracterizaram as três primeiras concepções, assi-
por democracia deliberativa, isto é, a democracia entendida como um nalando que cada uma delas se baseia, respectivamente, no elemento
método em que as preferências e os interesses das pessoas podem ser normativo, comportamental (sobretudo, a conduta dos juízes) e valo-
transformados através do diálogo racional e da deliberação colectiva. rativo do Direito. Recorrendo a uma metáfora arquitectónica, é como
Essa democracia (naturalmente, uma ideia regulativa, um ideal, mas se o edifício do Direito se observasse, preferencialmente sob o ponto
não um desvario da razão) pressupõe a existência de cidadãos capazes de vista da sua estrutura, da sua funcionalidade e da sua idealização.
de àrgumentar racionalmente e com competência relativamente às Não é uma ideia desacertada e, de certo modo, contribui para expli-
acções e às decisões da vida em comum (vid. Nino, 1996). car a pujança dessas três concepções do Direito. De facto, o mesmo
pode dizer-se da própria arquitectura, que permite, tipicamente essas
três perspectivas. Mas esse esquema - em si mesmo extremamente
3. Concepções do Direito: dos teóricos e dos práticos vago - carece de ser enriquecido (ou se preferirmos, "cruzado") com
as respostas que se dêem ao anterior conjunto de perguntas, para evitar
Por concepção do Direito entendo um conjunto de respostas, com assim uma construção insuficiente (ou pior que insuficiente: confusa)
certo grau de articulação, a uma série de questões básicas em relação dessas concepções. Essa confusão ocorre, por exemplo, quando, para
ao Direito (Atienza,2001): a) quais são as suas componentes básicas; caracterizar o jusnaturalismo, se elege somente a resposta a alguma das
b) o que se entende por Direito válido e como se traçam os limites anteriores questões, e se confronta com o juspositivismo do qual, por
entre o Direito e o não Direito; c) que relação tem o Direito com sua parte, se destacam as respostas às outras perguntas. Assim, é bas-
a moral e com o poder; d) que funções desempenha o Direito, que tante usual apresentar o positivismo jurídico a partir da chamada "tese
objectivos ou valores devem - ou podem - alcançar-se através dele; das fontes sociais do Direito", ou seja (entendida em sentido amplo) a
e) como pode conhecer-se o Direito, de que maneira pode construir- tese de que o Direito é um fenómeno convencional que se cria e modi-
-se o conhecimento jurídico; fi como se entendem as operações de fica através de actos humanos; a qual permite diferenciar essa postura
produção, interpretação e aplicação do Direito; g) e porventura algu- do jus naturalismo teológico de outras épocas, mas mais dificilmente
mas outras. do jus naturalismo contemporâneo (por mais que o elemento teológico
No século xx, e em relação aos sistemas jurídicos ocidentais, ou religioso não tenha desaparecido de todas as actuais versões do jus-
parece ter havido, basicamente, três conjuntos de respostas, de con- naturalismo). E alguns jusnaturalistas, por seu lado, enfatizam a tese
cepções, que desempenharam um papel central e outras duas que da conexão necessária entre o Direito e a moral, na imp~ssibilidade de
poderiam ser consideradas como periféricas. As centrais teriam sido: distinguir claramente entre o ser e o dever ser, na ideia de que o Direito
o normativismo positivista, o realismo (em si mesmo, uma forma de não pode ter qualquer conteúdo, etc.; mas não é evidente que isso per-
positivismo) e o jusnaturalismo. Enquanto que, na periferia, se have- mita, por si mesmo, caracterizar urna concepção de Direito: dito de
ria de situar o formalismo jurídico e as concepções cépticas do Direito outro modo, pode-se subscrever sem necessidade de fazer profissão de
(até à década de setenta do século xx, essencialmente, as correntes de fé do jusnaturalismo; e é uma tese que, desacompanhada de qualquer
inspiração marxista e, desde então, as chamadas teorias "críticas" do outra (como a da não completa autonomia do Direito em relação à
Direito, mescla de marxismo e alguma outra coisa). religião), deixaria de fora uma boa parte da tradição jus naturalista.
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o critério múltiplo anteriormente sugerido permite, segundo me assim quatro tipos de sistemas jurídicos: 1) Fechados e que rejeitam
parece, uma análise comparativa que poderia proporcionar resultados a inovação: o Direito judaico clássico, o Direito muçulmano e a com-
interessantes neste sentido. Mas não vou desenvolvê-lo aqui. Só utili- mon law clássica. 2) Fechados e que admitem a inovação: a common
zarei o esquema como uma espécie de marco conceitual para explicar law desde o século XIX ou os Direitos codificados de tipo continen-
por que nenhuma dessas concepções incorpora uma teoria satisfató- tal europeu. 3) Abertos, mas que não aceitam a inovação: Direitos
ria da dimensão argumentativa do Direito. consuetudinários. 4) Abertos e que aceitam a inovação: aproximar-
Porém, antes de prosseguir, convém perguntar se - ou até que -se-iam do que Weber entendia por "racionalidade substantiva":
ponto - essas concepções (dos teóricos e dos filósofos) do Direito têm sistemas de legalidade revolucionária, como o Direito soviético da
o seu reflexo na prática jurídica, quer dizer, se os juízes, advogados, etc., primeira época; ou o tipo de Direito orientado para policies (políti-
actuam no Direito de acordo com alguma (ou com alguma combina- cas), característico do Estado social (do WelJare State).
ção) dessas concepções. Em princípio, pareceria que teria que ser assim, Sobre a base do anterior esquema, parece que se haveria de che-
embora seja também razoável pensar que as concepções do Direito, por gar à conclusão de que os sistemas jurídicos evoluídos dos nossos
parte dos práticos, não apresentam o grau de articulação interna que dias obedecem basicamente a uma combinação de elementos dos
tem cabimento encontrar nas obras dos filósofos do Direito. tipos 2) e 4) ou que podem estar sobrepostos um no outro: são siste-
O que aqui entendo por concepção de Direito dos práticos con- mas inovadores e relativamente fechados, o que não quer dizer que
serva um conexão estrita com aquilo a que Friedman (1978) chamou todos os sistemas e/ou sectores do Direito o sejam no mesmo grau.
cultura jurídica interna, isto é, a dos que desempenham as actividades Esta caracterização pode muito bem servir de marco para situar a
jurídicas especializadas numa sociedade, a que se contrapõe a cultura diversidade de concepções do Direito que se pode encontrar entre
jurídica externa, ou seja, as ideias, atitudes, etc., que a população em os juízes, os advogados, etc., que operam dentro de um determinado
geral tem acerca do Direito. Precisamente para Friedman, a argu- sistema jurídico. Assim, referindo-se ao Direito norte-americano e
mentação jurídica, a prática judicial que consiste em fundamentar as .,
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aos respectivos juízes Summers identificou duas concepções operati-


decisões, é um elemento significativo dessa cultura interna, e desen- vas diferentes (working conceptions) que não constituem uma neces-
volve uma tipologia dos sistemas jurídicos, de acordo 'com a forma sidade lógica, mas sim uma necessidade pragmática (para operar no
- o estilo - que nelas assume a argumentação jurídica. Para tal sistema). Caberia, segundo ele (vid. Summers, 1992), distinguir entre
efeito, considera duas perspectivas. De acordo com a primeira des- a concepção que vê o Direito como um conjunto de regras pré-exis-
sas perspectivas, um sistema jurídico pode ser fechado, se as decisões tentes (pré-existentes ao labor judicial) e a que o considera como
só podem considerar como premissas das mesmas, "proposições de um método para reconciliar, mediante argumentos, pontos de vista
Direito" (ou seja, se parte de uma distinção entre proposições que são que se encontram em conflito. Estas duas concepções poderiam ser
jurídicas e outras que o não são); aberto, se não há limite para o que apreciadas sobre três perspectivas: facilitar a identificação dos fenó-
pode ser considerado como uma premissa ou proposição de Direito menos normativos pré-existentes, interpretar esse material, e criar
(a anterior distinção não se aplica). Sob a segunda perspectiva, exis- novo Direito (inovar o Direito). Summers chega à conclusão de que,
tiriam sistemas jurídicos que admitem a inovação, isto é, a possibi- sob a terceira perspectiva, a concepção do Direito como argumento é
lidade de que possa surgir Direito novo; e outros que não. Resultam superior, isto é, resulta mais operativa.
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Um estudo profundo (e suficiente pormenorizado) da diversi- constituído em maior grau pelo positivismo normativista. Assim se
dade de concepções dos práticos (e dos teóricos, os dogmáticos) do explica a escassa influência de Kelsen na cultura jurídica norte-ame-
Direito pressupõe a realização de investigações de carácter empírico, ricana: ou o aparecimento de teorias como a de Dworkin que, obvia-
que devem ter em conta, adicionalmente, as diferenças existentes em mente, obedece ao modelo de considerar o Direito como "razão".
função das profissões, as peculiaridades de cada sistema jurídico e 3. As mudanças no sistema jurídico (e nos sistema social) que
o momento temporal escolhido. Porém, existem certos riscos, mais ocorreram nas últimas décadas deram origem a que o "modelo norte-
ou menos gerais, que podem imaginar-se sem demasiado receio de -americano" esteja, de certo modo, a ganhar terreno. Por exemplo, o
equívoco (ou que sejam refutados). Por exemplo: desenvolvimento do Direito europeu impõe aos juristas a necessidade
de operar dentro de ordenamentos jurídicos de grande complexidade,
1. A cultura jurídica norte-americana (interna e externa) é muito com sistemas de fontes (e estilos de argumentação) distintos, fre-
menos formalista que a dos países de Direito continental e, em espe- quentes conflitos de leis, etc.; parece óbvio o paralelismo com a com-
cial, que a espanhola e a dos países latino-americanos. Assim, na cul- plexidade jurídica norte-americana, onde vigora tanto a common law
tura académica dos Estados Unidos, a filosofia moral e política e/ou a como o Direito legislado, a que se associa a existência quer de regu-
análise económica do Direito faz actualmente parte da bagagem cul- lamentações e jurisdições de cada Estado, quer de carácter federal.
tural de um jurista, o que não pode dizer-se das nossas Faculdades 4. Pelo que se refere à cultura jurídica interna espanhola - à dos
de Direito: antecipadamente, esse papel de abertura para o exterior práticos e à dos professores de Direito - a situação poderia descrever-
parece ter sido desempenhado pela literatura e pela retórica (K.ronman, -se assim: a) Subsiste um fundo formalista que, todavia, tende progres-
1993). Utilizando o anterior esquema de Summers, não seria muito sivamente a enfraquecer. b) O modelo do positivismo jurídico, à Kelsen
ousado supor que aquilo a que ele chama concepção do Direito como suscita uma rejeição bastante generalizada, em particular entre os juízes:
argumento é muito mais fácil de encontrar nos Estados Unidos do em parte porque não se vê como o modelo de juiz da teoria pura possa
que na Europa onde, pelo contrário, tem muito mais força a visão do reflectir a realidade da aplicação prática do Direito, e em parte também,
Direito como um conjunto de normas pré-existentes. Por outro lado, quiçá, porque pressupõe· uma imagem pouco clara da função judicial.
entre os sistemas de common law, o Direito norte-americano parece Uma concepção como a de Hart ou Carrió, pelo contrário, torna-se
ser mais substantivista (mais aberto, ao aceitar como "pressupostos do muito mais atractiva: ou seja, a ideia de que em alguns - poucos -
Direito" - fontes - critérios não baseados na autoridade) e o inglês casos os juízes criam em maior ou menor medida Direito, enquanto que
mais formalista (com um sistema de fontes mais imediatamente ligado outros - na maioria - se limitam a aplicá-lo. c) Pode talvez dizer-se
às autoridades) (vid. Atiyah e Summers, 1987). que o modelo de Dworkin resulta atractivo, mas é bastante alheio aos
2. O que antecede justifica (ou explica) que a cultura jurídica parâmetros da nossa cultura jurídica; os seus elementos "cumunitaristas",
norte-americana - falando sempre em termos muito gerais - hermenêuticos, não são facilmente compreensíveis: os juristas - como
propenda melhor para o realismo e não sinta uma particular pro- os demais juristas - em Espanha não têm em absoluto l a impressão
pensão para o jusnaturalismo (ou por certa maneira de entender a
doutrina do Direito natural), enquanto que o pólo de atracção dos 1 Aqui haveria que excluir o Tribunal Constitucional e talvez algum outro
juristas europeus do século xx (incluindo entre eles os ingleses) foi tribunal superior.
32 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 33

de serem participantes de uma tarefa comum do tipo de redigir uma em geral, como formalista, e outra que o formalismo não tenha
novela em sequência ou da construção de uma catedral (este último sido - e continue a não ser - uma atitude frequente na prática
exemplo é de Nino). d) Algum "realismo jurídico" está certo, mas dema- do Direito; quer dizer, aqui parece existir um certo distanciamento
siado conduz ao cepticismo, e este último não é uma atitude perante o entre as concepções do Direito dos teóricos e as concepções "opera-
Direito para que propendam os juízes ou os professores (talvez mais tivas" do Direito dos práticos. Por outro lado, o termo "formalismo"
frequente entre os advogados). Poucos aceitariam, por exemplo, a tese é obscuríssimo e, embora hoje tenda a usar-se a expressão em sen-
da indeterminação radical do Direito, segundo a qual "as leis, nem ser- tido pejorativo, a existência de lugares-comuns como "os aspectos
vem de ordenamento à sociedade, nem resolvem os conflitos, mas sim, formais são importantes em Direito" outros, pelo estilo, apontam
em tudo o mais, são directrizes, pontos de referência que o legislador para uma certa ambiguidade da noção de formalismo que convém
põe nas mãos dos funcionários e dos juízes, na convicção de que só aclarar, dado que existem, pelo menos, estas duas maneiras distintas
muito parcialmente irão aplicá-las e que o decisivo será sempre não a de entender o formalismo:
vontade do legislador, mas o critério pessoal do agente" (Nieto, 1998, p.
15). e) Do jusnaturalismo (a concepção que, ao menos como ideologia, A) O formalismo como característica do Direito moderno, que
terá sido a mais familiar para uma boa parte dos juízes e dos professo- vem a identificar-se com aquilo a que Weber chamou "racionalidade
res espanhóis, no seu período de formação) nada parece quase restar. formal".2 Essa mesma ideia, expressa na terminologia da teoria do
Se acaso, a propensão para identificar (mas não de forma explícita) a Direito contemporânea, significa que o Direito moderno consiste
Constituição com uma forma de Direito natural, de princípios indis- essencialmente em regras, ou seja, as premissas dos argumentos jurí-
cutíveis que compete encontrar nesse texto, interpretado pelo Tribunal dicos funcionam como razões excluentes ou peremptórias (vid. infra,
Constitucional; ou, dito de outra maneira, a defesa de um positivismo capo 4, ap. 4), de maneira que em muitos ou na maioria dos casos os
ideológico (a outra face de certo jusnaturalismo) que identifica desde decisores (os aplicadores) podem prescindir das circunstâncias parti-
logo o Direito com a justiça e que, portanto, faz com que o jurista pense culares dos casos, isto é, das razões, para a decisão que em princípio
que não tem motivo para embarcar em qualquer aventura teórica que o seriam aplicáveis para decidir o caso, mas que, por não figurarem na
transporte para além do Direito positivo; a filosofia moral e política não regra abstracta pré-estabelecida, o decisor não necessita de tomar em
é apenas perigosa para o jurista, como este não necessita dela. consideração; o que significa também que a aplicação das normas
pode fazer-se sem que entrem em jogo os critérios morais e políti-
cos do aplicador. A prática da aplicação do Direito - da tomada de
4 O formalismo jurídico decisões jurídicas - salvo em aspectos marginais, resulta assim não
só simplificada, mas torna-se relativamente previsível, já que esses
Disse anteriormente que o formalismo jurídico foi uma concepção órgãos - os juízes - não necessitam de levar a cabo, em sentido
do Direito extrema ou marginal no século xx. Porém, esta afirma- estrito, uma tarefa deliberativa.
ção necessita de ser matizada, pelo menos nos seguintes sentidos.
Por um lado: uma coisa é que, efectivamente, a teoria - ou a filo- 2 "Legalismo", tal como se usa em determinados contextos, seria uma expressão

sofia - do Direito do século xx não se tenha visto a si mesma, sinónima.


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34 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 35

Pois bem, existem algumas linhas de desenvolvimento do Direito explicável - e justificável - que a aplicação do Direito por mui-
contemporâneo que parecem ir contra essa tendência para o forma- tos órgãos burocráticos (particularmente se situados nos níveis bai-
lismo ou seja, à racionalização formal do Direito: o aumento cres- xos da estrutura do sistema jurídico) obedeça quase exclusivamente
cente das funções do Direito; a tendência para uma regulação jurídica a parâmetros formalistas, mas não parece que tenha que ser o mesmo
cada vez mais particularizada em muitos domínios; a importância quando se trata de tribunais superiores de Justiça e, como é evidente,
das normas de fim, isto é, normas que assinalam objectivos, estados do Tribunal Constitucional. 3
de coisas a obter; o aumento dos factores que contribuem para minar B) O formalismo, entendido propriamente como uma concep-
o carácter "sistemático" do Direito: lacunas, contradições, etc., como ção do Direito, é algo distinto (embora tenha certa relação com o
consequência da proliferação legislativa; a importância crescente dos fenómeno anterior). Talvez pudesse dizer-se que o que une as gran-
princípios e dos valores jurídicos substantivos ... Contudo, parece des correntes formalistas do século XIX (a escola da exegese, a juris-
também razoável pensar que se trata de tendências que não podem prudência dos conceitos, a Analytical Jurisprudence e o "formalismo
pôr em questão esse fundo de formalismo; ou, dito de outra maneira, jurisprudencial" americano) é uma tendência para tornar absolutos
se não fosse assim, o sistema jurídico perderia os seus sinais de iden- os elementos formais do Direito e a construir a partir daí uma teo-
tidade em relação aos outros subsistemas sociais, e outro tanto ocor- ria - uma ideologia - que, para os efeitos que aqui interessam, se
reria com o raciocínio jurídico: não haveria propriamente raciocínio caracteriza por uma tendência para a simplificação das operações de
jurídico se este não tivesse, de algum modo, um carácter "fechado" no aplicação e interpretação do Direito. Como diriam Hart ou Carrió:
sentido de Frieman. Parece-me que essa é também a razão de fundo por não ver os casos situados na penumbra, os casos difíceis e tratá-
latente na reivindicação das formas - de certo formalismo - no -los todos com se fossem casos fáceis. Daí que a motivação, a argu-
Direito. E também a razão mais poderosa para defender actualmente mentação das decisões, seja vista em termos puramente dedutivos
o positivismo jurídico (que é costume classificar de "ético" ou "axio- ou mecânicos (embora uma coisa e a outra não sejam o mesmo).
lógico"): não tanto porque suponha a adesão à tese das fontes sociais Os formalistas, propriamente falando, não necessitam de uma teoria
do Direito ou da separação entre o Direito e a moral, mas porque, da argumentação jurídica. Basta-lhes a lógica dedutiva, que alguns
ao subscrever essas teses, se está a aceitar uma determinada atitude chegam a reduzir inclusive a um só tipo de argumento: o modus
moral face ao Direito: uma atitude que consiste em limitar o poder ponens, o silogismo judicial.
dos intérpretes e dos aplicadores. É o tipo de positivismo defendido Existe, desde logo, algo de certo na famosa - e hoje geralmente
já há tempos porScarpeli (1965; vid.Jori, 1987) e, mais recentemente repudiada - "teoria da subsunção": a justificação de decisões que
por autores como Campbell (2002), Hierro (2002) ou Atria (2002). implicam o estabelecimento de normas concretas tendo que basear-
Não é oportuno entrar aqui na profusa discussão contemporânea -se em certas normas - premissas - pré-estabelecidas, supões que
em torno do positivismo jurídico (e suas variantes de "neo-positi- pelo menos um dos passos da justificação tem que ser dedutivo. Mas,
vismo", "positivismo crítico", "positivismo incluente", "positivismo por um lado, que um dos elementos da justificação seja dedutivo (ou
excluente", etc..)., mas antes parece importante ressaltar que o peso
do "formalismo", no sentido em que estou usando a expressão, nos 3 O que justifica que isto seja, assim, o que poderia chamar-se "as razões do

diversos sectores do Direito não é uniforme (e não deve sê-lo): é formalismo": basicamente, a segurança jurídica.
36 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 37

possa reconstruir-se assim) não significa identificar, sem mais, jus- uma das teorias da argumentação jurídica mais influentes e impor-
tificação e justificação dedutiva. Por outro lado, é importante não tantes dos últimos tempos: a de Neil MacCormick.
confundir - muitos formalistas fizeram-no -justificação e decisão: O positivismo normativista foi também uma concepção do
"decidir - segundo o acertado dictum de MacCormick (1978) - Direito de grande influência na filosofia do Direito do século xx,
não é deduzir". Finalmente, o formalismo jurídico, enquanto concep- rio mundo de língua espanhola. E também aqui é possível encontrar
ção do Direito, é uma coisa, e a lógica - formal - jurídica, outra. duas formas básicas que podem exemplificar-se nas obras de Genaro
A análise lógica do Direito, do raciocínio jurídico, não tem motivo Carrió, uma delas, e nas de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, a
para incorrer no formalismo, embora por vezes o faça. Mais adiante outra. A de Genaro Carrió é essencialmente semelhante à de Hart,
(cap. 3) abordar-se-á o tema com mais pormenor, mas por agora bas- embora talvez se possa dizer que o autor argentino mostrou desde
tará dizer que aquilo em relação a que devemos estar prevenidos não sempre um maior interesse pela argumentação judicial e dos advo-
é contra a lógica jurídica (um instrumento simplesmente essencial gados. Isto deve-se provavelmente a dois factores: um é a influência
para o estudo e para a prática do raciocínio jurídico), mas sim contra que o realismo sempre teve na sua obra (tanto o realismo americano
o logicismo jurídico, contra a tendência para reduzir o raciocínio jurí- como o escandinavo, de AlfRoss); e o outro tem que ver com o facto
dico aos seus elementos lógico-formais. de Carrió ter exercido durante muito tempo a advocacia e mais tarde
ter chegado a presidente do Supremo Tribunal da Argentina. Em
todo o caso, vale a pena recordar aqui alguns dados significativos da
5. O positivismo normativista sua produção teórica. Carrió não só traduziu o famoso livrinho de
Levi sobre o raciocínio jurídico (Levi, 1964), mas também redigiu
Como antes se disse, o positivismo normativista foi provavelmente a uma sugestiva e sensata introdução a essa obra, na qual assinalava as
concepção do Direito mais divulgada entre os teóricos europeus do afinidades que ela apresentava com os princípios jurídicos gerais de
Direito do século xx. Caberia falar aqui de duas formas básicas: uma, Viehweg; é autor de um livro de grande êxito no foro argentino sobre
a mais radical, é representada pelo modelo kelseniano; a outra, mais o recurso de defesa (cuja primeira edição é dos anos sessenta 'Car-
moderada e sofisticada, identifica-se com a obra de Hart. A incom- rió 1967') que constitui um magnífico exemplo de como construir a
patibilidade da concepção kelseniana do Direito com a visão do dogmática jurídica sob uma perspectiva argumentativa do Direito; e
Direito como argumentação é, como a seguir se verá, um facto mani- nos últimos anos da sua produção escreveu dois pequenos manuais
festo e indiscutível. No que se refere a Hart, sem dúvida, o juízo tem (dirigidos aos jovens advogados) acerca de como argumentar num
que ser mais matizado. Poder-se-ia resumir assim: a visão do Direito caso concreto e como fundamentar um recurso, à maneira dos livros
presente na sua obra principal, O Conceito de Direito, tem pouco que estadunienses de introdução ao raciocínio jurídico (Carrió, 1987 e
ver com o enfoque argumentativo do Direito, mas Hart mostrou em 1996). Todavia, as insuficiências básicas, que encontramos no enfo-
outros dos seus escritos (posteriores a esse livro) um notável interesse que de Hart (a que em breve me referirei), podem também aplicar-se,
pelos aspectos argumentativos do Direito e, além disso, não pode no essencial, à obra de Carrió.
esquecer-se que, sobre a base dos pressuposto hartianos (e desenvol- Como dizia, a outra concepção de positivismo normativista que
vendo a sua concepção de Direito em certos aspectos), se co~struiu teve - e tem - uma grande influência na filosofia do Direito de
38 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 39

língua castelhana é representada pela obra de Carlos Alchourrón B) Uma teoria da validade do Direito - das normas jurídica
eEugenio Bu1ygin. Falando em termos gerais, pode dizer-se que, _ que leva, na realidade, a considerar as cadeias de validade como
sob o prisma argumentativo, a produção conjunta destes dois auto- cadeias de autoridades: em definitivo, a validade, para Kelsen, é uma
res se situa num ponto intermédio entre Kelsen e Hart. Ao con- questão de fiat, e não de argumentação racional.
trário de Kelsen (e de outros autores "irracionalistas", como Ross), C) A consideração do Direito como um objecto para ser conhe-
Alchourrón sempre defendeu a tese de que as decisões jurídicas cido, melhor que como uma actividade, uma prática, em que se par-
podem (e devem) justificar-se em termos lógico-dedutivos; ou seja, ticipa (por exemplo, argumentando).
que se podem realizar inferências normativas e que a lógica tam- D) O emotivismo ético, a consideração da justiça como um ideal
bém se aplica às normas. Pode dizer-se, inclusivamente, que a sua irracional e, por consequência, a negação da possibilidade da razão
tendência foi identificar justificação e justificação lógica (dedutiva); prática.
recentemente, Bu1ygin aceitou que "o modelo dedutivo de justifica- E) A última tese de Kelsen (mas que não pode ver-se em abso-
ção""não exclui outros" (Bulygin, 1993), mas nem ele nem Alchour- luto como uma mudança radical da sua obra) de que não há relações
rón mostraram interesse por esses outros modelos. Isso tem que ver, lógicas entre as normas; ou seja, a impossibilidade de justificar racio-
em minha opinião, com o seu forte cepticismo em relação à razão nalmente as decisões jurídicas ou, dito de outra maneira, a negação
prática e à sua tendência para a emotividade em matéria moral. De radical do discurso justificativo. Bu1ygin (1988, p. 25) sugeriu que
Hart (e Carrió) separa-os, precisamente, o maior ênfase posto na essa atitude de Kelsen pode ter-se devido ao seu escasso conheci-
análise lógico-formal do direito e no cepticismo moral (Hart pode mento da lógica moderna;4 mas, naturalmente, trata-se de uma tese
considerar-se como um objectivista mínimo em matéria moral) e, explicativa e não justificativa.
talvez como consequência disso, é que Alchourrón e Bu1ygin ela- F) A sua forma de enfocar a interpretação e a aplicação do
boraram uma teoria do Direito que, de certo modo, se centra sobre Direito. Como é bem sabido, Kelsen relativizou a distinção tradi-
os casos fáceis. cional entre a criação e a aplicação do Direito e considerou que os
O que faz com que a visão kelseniana do Direito seja basicamente órgãos aplicadores (quer sejam juízes ou não) também criam Direito;
antagónica em relação a outra de tipo argumentativo são aspectos mas nessa produção de Direito, as regras do método jurídico - o
como os seguintes: raciocínio jurídico - não desempenham praticamente qualquer
papel. De maneira mais concreta, a partir da distinção entre a análise
A) O ênfase na análise estrutural do Direito, ou seja, o Direito estática e dinâmica do Direito, o lugar "natural" para dar cabimento
visto como um conjunto de normas, face ao enfoque funcional
(sociológico) e ao enfoque valorativo. Como é bem sabido, Kelsen 4 Também Vernengo (1987) é de opinião de que, apesar das suas conjecturas

sustentou que o Direito é uma técnica de controlo social e deu consi- geniais, Kelsen nunca atingiu uma concepção clara de lógica, em sentido
derável importância a essa faceta, mas um pressuposto inamovível da contemporâneo. Sobre isto, vid. Schmill (1993) o qual assinala (num trabalho
publicado originariamente em 1978) que o erro de Kelsen (ao sustentar que a
sua construção teórica (provavelmente traído na elaboração dos seus
lógica não se aplica às normas) consiste em não ter distinguido com suficiente
escritos) é a separação demarcada entre a ciência do Direito (norma- clareza "entre as relações lógicas existentes entre as normas e o processo de
tiva e estrutural) e a sociologia do Direito. individualização de uma norma, o qual não consiste numa diferença lógica" Cp. 46).
40 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 41

à argumentação jurídica na obra de Kelsen teria que ser a dinâmica a primeira tradução dos escritos de Perelman para inglês (Perelman,
do Direito e, em particular, a teoria da interpretação. Mas este é, tal- 1963). E, talvez sobretudo, o parecer Problems of Legal Philosophy
vez, o capítulo mais insatisfatório da teoria pura (vid. Lifante, 1999). redigido para a enciclopédia MacMillan em finais dos anos sessenta
Kelsen distinguiu entre a interpretação autêntica, a que é realizada (Hart, 1983). Neste último trabalho, Hart considera que há essen-
pelos órgãos de aplicação do Direito, e a interpretação da compo- cialmente três espécies de problemas (que têm entre si certa rela-
nente científica do Direito. A primeira consiste num acto de vontade ção) e de que se ocupa a filosofia do Direito: problemas de carácter
em que a argumentação racional não desempenha qualquer papel. conceitual; problemas de raciocínio jurídico, e problemas de crítica
Pelo contrário, a interpretação da componente científica do Direito é do Direito. Esclarece que os respeitantes ao raciocínio jurídico (dos
uma actividade puramente cognitiva, mas bastante inútil: as normas juízes e tribunais) preocuparam sobretudo os autores americanos.
jurídicas são marcos abertos a diversas possibilidades, e a única coisa E apresenta um quadro teórico extremamente lúcido desses proble-
que interessaria era pôr em evidência os diversos sentidos possíveis, mas (e que deixa antever os posteriores desenvolvimentos de Mac-
sem valorizar qualquer deles. 5 Cormick); mostra o alcance e os limites da lógica dedutiva, devido
ao carácter indeterminado das normas; denuncia a obscuridade com
Conforme antes antecipei, relativamente à concepção hartiana do que costuma tratar-se o tema do raciocínio indutivo; distingue entre
Direito, não se pode emitir um juízo semelhante. E mais, vários dos os contextos de descoberta e de justificação (métodos de descoberta e
seus trabalhos (vid, Hart, 1983) podem considerar-se como contri- padrões de avaliação - appraisa/); distingue também entre o carácter
buições de interesse para a teoria da argumentação jurídica. Assim, final e infalível dos tribunais de última instância; e inclusivamente
a propósito de Bentham, Hart desenvolveu a ideia de considerar assinala a importância dos princípios (principies, policies and stan-
as normas jurídicas como razões peremptórias, o que constitui um dard;) para resolver os casos difíceis, aqueles para os quais a dedução
aspecto central daquilo a que chamarei "concepção material" da argu- não basta.
mentação e da qual mais adiante se falará. Também é relevante o seu De qualquer modo, o texto que melhor permite entender a con-
artigo sobre a teoria do Direito norte-americano em que estabelece cepção de fundo de Hart sobre o raciocínio jurídico (sobre o Direito,
a sua posição, a propósito da interpretação e aplicação do Direito, em geral) é o famoso Postscriptum ao conceito de Direito. Neste trabalho
entre o pesadelo dos realistas extremos que exacerbam os elemen- (Hart, 1997; a data de redacção é 1983), que essencialmente é uma
tos de indeterminação do Direito e o nobre sonho daqueles, como tomada de posição em relação à concepção dworkiniana, Hart reco-
sobretudo Dworkin, que sobrevalorizam o papel da razão prática e nhece que, em O conceito de Direito se tinha ocupado muito pouco do
da capacidade do Direito para fornecer uma solução correcta para problema da aplicação judicial do Direito (a adjudicação) e do racio-
todos os casos difíceis. É significativo o seu interesse pela obra de de cínio jurídico e, muito em especial, da argumentação em relação com
Perelman que se plasma no facto de ter feito uma apresentação para os princípios (p.118). Mas Hart insiste (em minha opinião, com toda
a razão) em que a sua concepção nada tem que impeça de reconhecer
5 Uma aguda e, em minha opinião, radicalmente acertada crítica deste tipo de que os princípios também podem fazer parte do Direito; uma ideia
positivismo pode encontrar-se no livro de Lon Fuller do ano quarenta do século que, para mais,já tinha sido defendida por Carrió (1971) imediata-
passado: lhe Law in quest of itse!f. mente depois de terem aparecido as primeiras críticas de Dworkin a
42 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 43

Hart. Em particular, Hart insiste em que a regra de reconhecimento sua teoria centra-se no Direito considerado como sistema, melhor
pode incorporar como critério último de validade jurídica princípios do que como prática social. 6
de justiça ou valores morais substantivos (p.102). De maneira que as Em termos gerais, caberia dizer que aquilo que separa o positi-
diferenças em relação a Dworkin se reduziam, na realidade às duas vismo normativista, do enfoque do Direito como argumentação é o
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que seguem. A primeira, refere-se à defesa por Hart da tese da dis- segwnte:
cricionariedade judicial. Isso é, o carácter indeterminado do Direito
até que, em alguns casos, o juiz tenha que criar Direito, já que a sua A) Sob a perspectiva do conceito de Direito, os normatlVlstas
decisão não pode ver-se como pré-determinada pelo Direito. Como vêem o Direito como uma realidade já outorgada; o Direito é um
é evidente, Hart não pensa que o juiz deva criar Direito arbitraria- conjunto de normas: um livro, um edifício ou uma cidade, que está
mente: tem que basear-se em "razões gerais" e deve actuar "como aí fora para ser contemplada e descrita. 8 Para o enfoque do Direito
um legislador escrupuloso o faria ao decidir segundo as suas próprias como argumentação, o Direito consiste principalmente numa acti-
convicções e valores" (p. 137). Ou seja, existem razões, embora não vidade, numa prática complexa; seria melhor a imagem de um
se trate de razões jurídicas e embora essas razões sejam limitadas. Já empreendimento, uma tarefa, na qual se participa, a redacção de uma
a segunda diferença (sublinhada também por Hart na entrevista que novela em série, melhor que o livro já escrito; a construção de uma
Páramo lhe fez para a revista Doxa '1990' algum tempo depois da catedral, em vez de a catedral já construída; ou, ainda melhor, a acti-
publicação do Postscriptum) é que ele pretende ter construído uma vidade que consistisse em construir e melhorar uma cidade em que
teoria descritiva e geral do Direito, enquanto que a de Dworkin seria se tenha que viver.
"parcialmente valorativa e justificativà' e "dirigida a uma cultura em B) Segundo a perspectiva de quais são os elementos integran-
particular" (o Direito anglo-americano) (p. 93). tes do Direito, tanto Kelsen como Hart, Alchourrón e Bulygin, etc.,
Pois bem, esses dois aspectos que o separam de Dworkin vêm analisam o Direito em termos de normas e de tipos de normas (ou
a ser também os pressupostos de fundo que fazem com que uma se preferirmos, de enunciados, alguns dos quais podem não ser nor-
concepção de Direito como a hartiana (ou a de Carrió) deva con- mativos). O enfoque do Direito como argumentação vê no DireiJ:o
siderar-se insuficiente para dar plena conta do elemento argu- um processo (ou, pelo menos, confere uma grande importância ao
mentativo do Direito. A tese da discricionariedade pressupõe a da aspecto processual) integrado por fases, momentos ou aspectos da
separação entre o Direito e a moral, e com ela, a da negação da actividade, da prática social em que o Direito consiste. Dito, talvez,
unidade da razão prática: a argumentação jurídica não pode por de outra maneira, os positivistas tendem a ver o Direito como sistema
isso encarar-se como formando uma unidade com argumentação (por analogia com o sistema da língua ou o sistema da lógica) e a
moral e a política. E o enfoque descritivista (obviamente vinculado
à tese da separação conceitual entre o Direito e a moral) leva (como 6 Isto, apesar de Hart ver as normas como práticas sociais. Vid. infra, capo 4,
no caso de Kelsen, mas de maneira muito menos radical) a ver o ap.S
7 A distinção é semelhante à que Summers (2001) traça entre o que chama
Direito essencialmente como um objecto de conhecimento; ou seja, "rule-approach" e "form-approach".
Hart não está interessado no carácter especificamente prático do 8 Como exemplo dessa abordagem pode servir um dos últimos trabalhos de

Direito, que é substancial à ideia de Direito como argumentação: a Alchourrón (2000) em que compara o direito a um livro magistral.
44 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 45

descuidar o Direito enquanto prática social (enquanto prática que vai isso deve-se a razões distintas das que se acabam de assinalar em
para além do sistema, da mesma maneira que a prática da linguagem relação a positivismo normativista.
- a pala'VTa - não se pode reduzir à língua; nem a argumentação à Também em relação ao realismo jurídico americano podem dis-
lógica dedutiva). tinguir-se: uma versão extrema e outra moderada. Qyem costuma
C) Sob a perspectiva da forma de estudar o Direito, o norma- ser considerado como o representante mais característico da versão
tivismo positivista interessa-se sobretudo por uma análise estrutural, extrema é Jerome Frank. Dado que para ele não pode falar-se em sen-
anatómica, enquanto que a perspectiva do Direito como argumenta- tido estrito dejustijicação das decisões judiciais, torna-se claro que a sua
ção conduz a um estudo de carácter mais funcional e fisiológico. concepção é incompatível com o enfoque argumentativo do Direito.
D) Finalmente, sob o ponto de vista da metodologia ou dos Não obstante, se ter proposto estudar o Direito não tanto na perspec-
objectivos teóricos, os positivistas normativistas procuram descrever tiva dos tribunais de apelação, mas mais dos tribunais de primeira ins-
de maneira neutral uma realidade (ou, talvez melhor, o esqueleto, a tância (vid. Frank, 1930 e 1993), deve-se a Frank, entre outras coisas,
parte conceitual da mesma) como um objecto previamente fornecido; ter chamado a atenção para a importância da argumentação (ou, se
enquanto que o enfoque do Direito como argumentação pressupõe preferir-mos, o manejo - ou a "manipulação" - ) dos factos, pois na
contribuir para a realização de um empreendimento: o objectivo da prática quotidiana do Direito o mais frequente é que o jurista tenha
teoria d Direito não pode ser exclusivamente cognoscitivo, dado que que resolver questões respeitantes aos factos e não às normas. Em todo
a teoria (como acontece com a concepção "interpretativa" do Direito o caso, os elementos que na obra de Frank (e no realismo em geral) se
de Dworkin) se funde com a prática. opõem ao enfoque do Direito como argumentação são os seguintes:

A) O cepticismo axiológico. Frank, como em geral os realis-


6. O realismo jurídico tas, considera que os juízos de valor desempenham um papel muito
importante na tomada de decisões jurídicas, mas esses juízos não
A anterior contraposição refere-se exclusivamente a uma das gran- pertencem ao campo da razão. Sobre eles não é possível construir
des formas do positivismo jurídico do século xx; deixa de fora a um discurso propriamente justificativo, mas apenas de carácter per-
outra: a que é representada pelo realismo jurídico. Precisamente suasivo. Não se trata de justificação, mas de racionalização. Não de
esta última é uma concepção que, particularmente na versão "ame- argumentação mas, em todo o caso, de retórica.
ricana", põe ênfase no Direito considerado como uma prática social, B) O interesse pelo es.tudo da retórica fica, por outro lado, limi-
como um fenómeno essencialmente fluido: digamos, o Direito in tado pelo facto de que o enfoque realista do Direito é um enfoque
jieri, melhor que o Direito formalmente estabelecido: de acordo sobre as condutas. Trata-se de predizer, ou pelo menos, de explicar a
com essa tradição, o Direito é, sobretudo, um meio de construção posteriori as condutas dos juízes, e para isso a retórica é de escassa ou
social, "engenharia social". Tudo isto aproxima, sem dúvida, esta nula utilidade, já que as razões explicitas (as que aparecem na moti-
concepção ao que se chamou o enfoque do Direito como argu- vação) não são as "verdadeiras razões" que produzem a decisão. Nisto
mentação. Se, apesar disso, o realismo jurídico nada produziu que se baseia a sua conhecida crítica à teoria do silogismo judicial: os
possa considerar-se como uma teoria da argumentação jurídica, juízes não operam de acordo com o modelo silogístico; não começam
46 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 47

afirmando o princípio ou a regra que serve como premissa maior do Como já o havia feito Holmes, Llewellyn contrapõe a lógica à
seu raciocínio, para utilizar logo os factos como premissa menor, e sabedoria (wisdom) ou prudência em sentido clássico (a frónesis aristo-
chegar finalmente à resolução mediante processos de puro raciocínio. télica). O objectivo do seu livro é combater o cepticismo jurídico, isto
Ou seja, a Frank não interessa, na realidade, o nível da justificação, é, a perda de confiança nos tribunais de apelação dos Estados Unidos
mas sim o da explicação. Ou, melhor dito, Frank tende a confundir que, para ele, constituem o símbolo central e vital do Direito. Segundo
o contexto da descoberta e o da justificação e, a partir de uma tese Llewellyn, os factores de estabilização que fazem com que as deci-
explicativa de como os juízes chegam realmente a formular as suas sões desses tribunais sejam razoavelmente previsíveis não têm que ver
decisões, infere que tais decisões não são susceptíveis de ser justifica- com a lógica; assinala inclusive que os lógicos deram razões aos "ico-
das (em sentido estrito) (vid. infra, capo 2, ap. 7.1). noclastas", ao mostrar que a dedução pressupõe a eleição de premissas
C) Por fim. a indeterminação radical do Direito (a respeito das e que esta operação tem um carácter puramente arbitrário (Llewellyn,
normas e dos factos) defendida por Frank faz com que não possa 1960, p. 4 e 11). Essa estabilização depende de uma série de factores
falar-se propriamente de argumentação jurídica. E nem sequer de (alguns dos quais se prendem com o que agora designarei por "concep-
método jurídico. As decisões judiciais, segundo ele, não são determi- ção material" e "con.cepção pragmáticá' da argumentação) como, por
nadas por normas previamente estabelecidas, mas só podem expli- exemplo, a "doutrina jurídica", entendendo como tal um conjunto de
car-se a partir de considerações biográficas, idiossincráticas, sobre os regras, princípios, tradições, etc.; a existência de "técnicas" de trabalho
juízes. Do que se necessita não é, pois, de lógica - argumentação que os juízes utilizam de forma mais ou menos consciente; a tradição
- mas de psicologia. Para Frank, a tarefa fundamental da teoria do da "única resposta correcta", que Llewellyn interpreta aproximada-
Direito não tem carácter construtivo, mas mais crítico; não consiste mente no sentido de Alexy, isto é, como uma ideia regulativa; a prática
propriamente em construir um método, mas em desfazer mitos - o da motivação das decisões; a existência de mecanismos de limitação
da segurança jurídica, o da justificação das decisões judiciais, o da dos problemas ao reduzir, por exemplo, as decisões a termos binários:
existência de respostas correctas, etc. - que a cultura jurídica foi edi- revogação ou não revogação, condenação ou absolvição; a argumenta-
ficando como uma espécie de ideologia que proporciona uma visão ção dos advogados no contexto de um procedimento contraditório; o
confortável- mas falsa - da realidade do Direito. sentido de responsabilidade para com a justiça; etc.
Por outro lado, a concepção de Llewellyn, sob um ponto de
No caso do realismo moderado, como é o de Karl Llewellyn, as coi- vista axiológico, não pode já qualificar-se em sentido estrito como
sas colocam-se de forma notavelmente diferente. Melhor dito, no pri- emotivista; e nem sequer poderia dizer-se que a sua seja uma con-
meiro Llewellyn podem encontrar-se esses três motivos (o cepticismo cepção claramente positivista do Direito pois, entre outras coisas,
axiológico, o conductismo e a indeterminação do Direito) embora for- Llewellyn põe em causa a distinção entre ser e dever ser. Todavia,
mulados de outra maneira, com menor radicalidade. Mas a sua con- a sua análise, sob o ponto de vista do enfoque do Direito como
cepção de Direito muda significativamente nas suas últimas obras; em argumentação, continua a ter o limite de que o centro do seu inte-
particular em 'lhe common law tradition (1960), na qual poderia dizer- resse não é o discurso justificativo, mas o de carácter predictivo.
-se que, dos tres motivos anteriores, só fica na realidade um: a visão O que importa não é propriamente o que dizem os juízes, mas sim
conductista do Direito (vid. Twining, 1985; Kronman, 1993). a sua conduta. Llewellyn defende nessa obra aquilo a que chama o
48 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 49

Grand Sty/e ou O Style ofReason (dos juízes dos Estados Unidos, na embora (eu diria que, como contrapartida) Ross tenha uma concep-
época da formação do seu sistema jurídico, no começo do século ção muito mais céptica acerca do alcance da razão.
XIX, logo perdido e recuperado a partir do anos vinte do século xx) Ao contrário do positivismo normativista, Ross tem uma visão
que contrapõe ao Formal Style. Característica do estilo formal é a ampla e fluida do Direito. Dedica grande importância ao Direito não
ideia de que os casos são decididos pelas regras do Direito e de que estabelecido pelas autoridades e destaca, em particular, o papel daquilo
a motivação tem uma forma dedutiva. Mas o grande estilo é uma a que chama "tradição de cultura" (que consiste basicamente num
forma de pensar e de trabalhar, isto é, um método que não con- conjunto de valorações) enquanto fonte do Direito que podem ser o
siste unicamente - nem talvez centralmente - em argumentar. elemento fundamental que inspira o juiz ao formular a regra em que
Seguramente tem que ver com isto, o facto de Llewellyn conceber baseia a sua decisão (Ross, 1963, p. 95). Igualmente, a propósito da
o trabalho do jurista como uma técnica artesanal, cuja "justifica- interpretação e do "método jurídico" (os princípios ou regras que real-
ção" se encontra mais facilmente no produto, na sua eficácia, que mente guiam os tribunais na passagem da regra geral para a decisão
na "correcção" dos meios utilizados. Por isso também, o modelo de particular), sublinha a importância dos elementos valorativos, isto é,
argumentação que ele parece defender tem muito mais que ver com não cognoscitivos (face à concepção tradicional) e defende também
a retórica que - digamos -. com a discussão habermasiana ou, (agora contra Kelsen) que o jurista (quem elabora a dogmática jurí-
talvez com a argumentação entendida à maneira da lógica dedutiva. dica) não pode abster-se de valorar, eleger e decidir. Ao destacar que o
Assim, as recomendações que dirige aos juízes de apelação são, jus- Direito é uma técnica social, um instrumento para alcançar objectivos
tificar-se-ia dizê-lo, recomendações sobre como utilizar, com habi- sociais de qualquer tipo, Ross dá grande importância à "política jurí-
lidade e honestidade profissional, regras técnicas (a lei da discrição dicá', isto é, à formulação de propostas a propósito da aplicação do
jurídica, a dos espaços de livre actuação 'leeways',9 da adequação e Direito (de sententia ftrenda) e da sua produção (de lege ferenda). Tanto
o tom) que têm que ver, sobretudo, como que designarei por con- a administração da justiça como a produção legislativa do Direito con-
cepção pragmática da argumentação. E outro tanto - e algo mais sistem, em sua opinião, numa amálgama de elementos cognoscitivos
- cabe dizer dos consellios dirigidos aos advogados, embora, num e valorativos, e por isso o jurista (como acaba de ser dito) não pode
e noutro caso, se trate de uma retórica bem entendida, isto 'é, de pôr excluir do seu campo o discurso valorativo. Ao contrário de Kelsen
a persuasão ao serviço de uma ideia de Direito, na qual o sentido de (que também sublinhou o carácter de técnica social do Direito, mas
justiça desempenha um papel de grande importância. defendeu uma dogmática livre de considerações sociológicas e valora-
tivas) Ross não pede ao jurista teórico que não faça política, mas que
Em relação ao realismo jurídico escandinavo, a análise que com- tenha consciência de quando faz ciência e quando faz política; mais
petiria fazer é muito semelhante. O que se encontra, por exemplo, em concreto, as decisões de política jurídica têm para ele uma compo-
na obra principal de A1f Ross, Sobre o Direito e a justiça é algo muito nente cognoscitiva, racional (cujo incremento depende basicamente do
parecido com a última fase de Llewellyn, com a diferença de que o desenvolvimento de uma sociologia do Direito sobre bases científicas),
autor dinamarquês é muito mais sistemático do que o americano, mas, em última análise, existe sempre uma componente de irraciona-
lidade, isto é, as decisões dependem dos juízos de valor que, segundo
9 Baseio-me na tradução do livro de Félix F. Sanchez Díaz (2002) Ross, têm um carácter emocional (irracional).
50 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 51

o pressuposto último da posição de Ross é a ideia de que toda como improcedentes) evitasse o problema. Segundo ele, uma inferên-
a acção deliberativa está condicionada por dois factores: um motivo cia prática como: "deves manter as tuas promessas; esta é uma das tuas
ou meta (uma atitude), e uma série de "concepções operativas", isto é, promessas; portanto deves manter esta promessa" carece de validade
de elementos cognoscitivos (crenças) que dirigem a actividade até ao lógica. Não é logicamente necessário que o sujeito que estabeleça uma
fim. As atitudes (incluindo as atitudes morais) exprimem emoções e regra geral deva também estabelecer a aplicação particular dessa regra.
situação para além da justificação e da argumentação: são irracionais, Qye este último aspecto ocorra ou não, depende de factores psicoló-
no sentido de que se trata de uma forma de consciência irredutível gicos. Não é raro - acrescenta Ross - que um sujeito formule uma
aos actos de apreensão, às crenças (por isso, a ide ia de uma "razão prá- regra geral, mas evite a sua aplicação quando ele mesmo se vê afectado
ticà' é, para ele, uma contradição nos próprios termos: se é razão, não por ela. Ora bem, aqui parece haver um erro: o de supor que a validade
é prática, e se é prática não pertence ao domínio da razão). Qyando se lógica de uma inferência depende de factos externos ou psicológicos.
tomam decisões respeitantes à interpretação e à produção do Direito Como escreveu Gianformaggio (1987),os autores que sustentam a tese
(já se disse que, para Ross, interpretar implica sempre decidir) existe, de que a lógica não se aplica às normas estão na realidade a misturar
a necessidade de obter um acordo, para o qual se pode recorrer a duas questões distintas: uma é que, se a relação entre duas normas váli-
métodos racionais ou irracionais. Os primeiros, de natureza argu- das (pertencentes a um sistema) são relações de tipo lógico; a resposta
mentativa podem usar-se para influir nas convicções (crenças); mas é não, ou não necessariamente, pois que, a um mesmo sistema podem
para influir (de maneira directa; de maneira indirecta pode fazer-se pertencer normas contraditórias: por exemplo "as promessas devem
modificando as crenças) o que existe é a persuasão. Na produção e ser cumpridas" e "não é obrigatório cumprir determinada promessa".
interpretação do Direito, os juristas recorrem a diversas "técnicas de E outra questão é a de se saber se é possível inferir validamente uma
argumentação" (por exemplo, a propósito da interpretação: como usar norma de outra; não se vislumbra motivo para que a resposta tenha que
os argumentos por analogia, a contrario, etc.), mas trata-se de técnicas ser negativa neste segundo caso, embora exista grande dificuldade em
retóricas, isto é de uma mescla de argumentação e persuasão. Ross aceitar que tradicionalmente a noção de inferência ou de consequência
considera que é impossível prescindir da persuasão e que não se deve lógica se tenha construído com base nos valores verdade/falsidade, que
adaptar uma atitude de cinismo a esse respeito. Mas a retórica carece, não parecem ser aplicáveis às normas.
em sua opinião, de critérios objéctivos de correcção "existe sempre
a possibilidade de que outra pessoa, ainda que aceite os argumen-
tos formulados e não invoque contra-argumentos, possa actuar de 7. O jusnaturalismo
maneira diferente da recomendada, sem que isso justifique que se
diga que a dita pessoa actuou 'equivocamente'" (Ross,1963, p. 327). Como não podia ser de outra forma, também dentro das concepções
O argumento de Ross (que, em minha opinião, se baseia num erro) jus naturalistas do século xx podem distinguir-se muitas variantes.
é, na realidade, o mesmo que utilizou noutras obras (1941; 1971) para A mais generalizada, pelo menos nos países de tradição católica, não
defender a tese de que a lógica clássica não se aplica às normas, e pro- promoveu em absoluto a consideração do Direito como argumenta-
por por consequência uma lógica das normas que, através de diversos ção. A razão para isso, expressa em termos genéricos, é que esse tipo
expedientes técnicos (hoje considerados, praticamente sem excepção, de jusnaturalismo se preocupou sobretudo em determinar a essência
52 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 53

do Direito e mostrar as conexões existentes entre a ordem jurídica (referindo-se a essa mesma ideia) tinha comparado, em certa ocasião,
e outra ordem de natureza superior que, em última análise reme- os partidários do Direito natural aos cavaleiros a quem não bastava
tia para uma ideia de tipo religioso. A fundamentação teológica do que a sua dama fosse formosa; havia de ser a mais bela que tinha
Direito encontra-se inclusivamente nos autores mais "secularizados" existido e pudesse chegar a existir (Holmes, 1920, p.310). Natural-
dessa tradição, como poderia ser o caso do espanhol Legaz y Lacam- mente, uma consequência dessa aproximação é a falta de interesse
bra. 10 Para Legaz "todas as coisas são ordenadas por Deus" e esse é pelas questões metodológicas, por como funciona - e como pode
o ponto de partida para ocupar-se também do mundo do Direito,já funcionar - o Direito (o Direito positivo) enquanto realidade deter-
que "o critério supremo da verdade está na religião, em Deus" (Legaz, minada social e historicamente. Ou, dito nos termos de um influente
1964, pp. 282 e 306)11 trabalho de Bobbio da década de cinquenta (vid. Bobbio, 1980): o
Um dos autores jusnaturalistas mais influentes do século xx, Gior- jus naturalismo do século xx foi, sobretudo, uma filosofia do Direito
gio del Vecchio, entendia (e com isso reflectia uma opinião ampla- dos filósofos, preocupada em aplicar ao Direito uma filosofia geral
mente - para não dizer unanimemente - compartilhada por esse (de base teológica) e não uma filosofia do Direito dos juristas, isto é,
tipo de jusnaturalismo) que a positividade não é uma nota essencial do construída desde baixo, a partir do desempenho das diversas profis-
conceito de Direito; o essencial seria unicamente a noção de justiça. sões jurídicas.
Por isso, o Direito natural reflectia a ideia do Direito "na sua plena No mais, esse idealismo cavalheiresco e escapista resultava suma-
e perfeita luz", enquanto o Direito positivo ofereceria da mesma só mente funcional enquanto ideologia justificativa da ordem existente:
"reflexos parciais e defeituosos" (Del Vecchio, 1957, p. 530). Holmes o Direito positivo nunca será perfeitamente justo, mas seguramente
é difícil encontrar algum outro que, em algum sentido, não pressu-
10 Recentemente, Delgado Pinto (2000, pp. 740 e 743) sustentou que a obra de ponha "um ponto de vista sobre a justiça" (esta era a definição de
Legaz, na qual se dedica uma considerável atenção à metodologia jurídica, se afasta Direito dada por Legaz na Espanha franquista 'vid. Legaz, 1964')
claramente do jusnaturalismo "de cariz tradicional", hegemónico na Espanha
de maneira que, em definitivo, ao que se chegava (de forma mais
franquista.
11 Uma excepção ao que acaba de ser dito é o caso do filósofo hispano-
ou menos velada) era à identificação, sem mais, do Direito positivo
-mexicano Luis Recaséns Siches, defensor de uma concepção flexível do Direito com a justiça. Entende-se assim que os juristas - os professores
natural, e que deve ser considerado, sem. dúvida, como um dos precursores das de Direito - que, nas Faculdades tinham a seu cargo o estudo dos
teorias contemporâneas da argumentação jurídica. A sua maneira de situar as diversos ramos do Direito, se referissem ao Direito natural no pri-
relações entre o Direito e a moral, de certo, recorda muito a que Robert Alexy
meiro dia de aulas (quando se versava o tema do conceito de Direito)
popularizou nos últimos tempos. Segundo Recaséns: "Direito, propriamente, são
tão só as normas produzidas pelos homens para reger as relações sociais de uma para o esquecerem completamente quando começavam a tratar das
colectividade política, num certo lugar e numa determinada época". À essência do questões "próprias" das suas matérias.
jurídico pertenceria, não propriamente a justiça, mas "a referência intencional à Todavia, como antes dizia, o que se acaba afirmar não serve para
justiçá', ou "dito por outras palavras: todo o Direito é uma tentativa de realização
caracterizar todos os jus naturalistas que existiram no século xx, mas
das exigências da justiça em relação a uma realidade social determinada; é um
propósito de constituir Direito justo; mas esse propósito pode resultar conseguido
tão só na sua forma mais conspícua. Não serve por exemplo para
ou fracassado: Por isso, o que pertence à essência do jurídico é esse propósito ou caracterizar (ou pelo menos, não totalmente) a concepção de um
intenção" (Recaséns Siches, 1975, p. 195). autor como Michel Villey, cuja forma de entender o Direito natural
54 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 55

suscita, além do mais, consideráveis receios entre os próprios autores dever-se ao seu espírito conscientemente arcaizante: pré-moderno
jusnaturalistas, que se consideram a si mesmos dentro dessa tradição ou anti-moderno. A sua concepção de Direito poderia ser adequada
aristotélico-tomista (vid. Vigo, 1991). Para Villey (1981), o Direito ao Direito romano da época clássica, mas não para o do Estado cons-
natural é essencialmente um método para descobrir o Direito, o justo, titucional cujos valores, simplesmente, resultam anti-éticos com os
nas relações sociais. O justo, na sua opinião, identifica-se com "o seu, pressupostos ideológicos de Villey.
de cada um", mas isso é algo que não se encontra nas normas, mas Todavia, não é este o caso de Gustav Radbruch, um dos paladinos
na própria realidade social. O método propugnado por Villey outro do "renascimento do Direito natural" depois da segunda Guerra Mun-
não é que a dialéctica, entendida em sentido aristotélico: um tipo dial. A sua reacção face ao positivismo jurídico produz-se como con-
de raciocínio que não se confunde nem com o da lógica dedutiva, sequência da experiência nazi, e o que Radbruch procura no Direito
nem com o das ciências empíricas, mas tão-pouco com o da retó- natural bem pode dizer-se que é, acima de tudo, uma forma de realizar
rica. A dialéctica (diversamente da retórica) não está voltada para os valores do que logo se designou por "Estado constitucional". De
a persuasão, mas sim para a verdade, e para isso parte de opiniões facto, existe uma nítida continuidade entre muitas das suas teses de
múltiplas e divergentes; o essencial da dialéctica seria assim a ideia "fundo" e as de Alexy, tal como também há muitas afinidades entre
de um diálogo ordenado e sincero. Outro aspecto dessa metodologia muitas das ideias de Fuller e as de Dworkin: Alexy e Dworkin costu-
jurídica é constituído pelas fontes de Direito; as fontes indicam onde mam ser considerados (vid. Bongiovanni, 2000) como os dois princi-
se pode encontrar o Direito, isto é, de onde pode partir o raciocínio, a pais representantes da teoria constitucionalista do Direito.
dialéctica; para Villey existem tantas fontes de Direito positivo como Radbruch estava consciente de que a validade (a validade em sen-
de Direito natural. tido pleno) do Direito não podia porvir do próprio Direito positivo,
Como se vê, trata-se de uma concepção que, em alguns aspectos, nem tão-pouco de certos factos, mas sim de algum valor de carácter
coincide com o enfoque argumentativo do Direito; de facto, diver- supra-positivo (Radbruch, 1951). A sua ide ia de Direito contém, na
sos autores que podem ser considerados entre os pioneiros da teoria realidade, três noções de valor: a justiça, a adequação ao fim e a segu-
contemporânea da argumentação jurídica que defenderam uma con- rança jurídica, que se complementam mutuamente, embora também
cepção de raciocínio jurídico contraposta à da lógica formal dedutiva possam entrar em conflito. A adequação ao fim subordina-se às outras
(Reca.séns Siches, Viehweg, Esser, Perelman) consideraram-se a si duas, e os conflitos entre justiça e segurança não podem resolver-se
mesmos, com maior ou menor intensidade, como autores jusnatura- de maneira unívoca, posto que a segurança também é uma forma de
listas. É possível que esse tipo de adscrição se tenha devido, em boa justiça. Estamos, portanto, diante de uma questão de grau: quando
medida, à obscuridade das noções de jusnaturalismo e de positivismo se trata de leis extraordinariamente injustas, essas leis deixam de ser
jurídico e, como consequência, a (falsa) ideia de que o positivismo válidas porque a segurança jurídica garantida pelo Direito, já nada
jurídico representava uma concepção formalista do Direito. Mas em significa praticamente (vid. Radbruch, 1951, pp. 44, 52; e Radbruch,
todo o caso, o que se pode dizer com segurança é que a concepção 1971); mas Radbruch não deixa de reconhecer a possibilidade de que
de Villey (e outro tanto cabe dizer dos outro autores à excepção de uma lei (moderadamente) injusta seja válida, seja Direito (nos casos
Perelman) não constitui uma teoria minimamente desenvolvida da em que o valor da segurança jurídica prevalece sobre o da justiça
argumentação jurídica. No caso de Villey, a principal razão pode 'vid. infra, capo 4, ap 8').
56 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 57

Ora bem, como resulta mais ou menos óbvio, hoje não seria ideia, ao assinalar que o jusnaturalismo é a concepção característica
necessário, para defender essa ideia - a possibilidade de que exis- do Direito da época anterior à modernidade, e que teria sido substi-
tam leis inválidas em razão do seu conteúdo injusto - apelar para tuído pelo positivismo jurídico com o advento do Estado moderno e
o Direito natural, visto que os critérios constitucionais de validade a existência de "um sistema exclusivo e exaustivo de fontes positivas"
incluem a adequação a conteúdos de justiça plasmados nos direitos (Ferrajoli, 1999,p. 17).
fundamentais; na realidade, a peculiaridade dessa concepção tinha Este teria sido o primeiro embate histórico contra o Direito
sido já evidenciada por autores como Legaz, para o qual o sentido natural: embora muitas normas do Direito natural tenham sido
"jusnaturalistaD da obra de Radbruch resultava "bastante atenuado". 12 integradas nas codificações modernas, o resultado foi que o jurista
Este último aponta também para uma questão importante rela- não necessitava do Direito natural como instrumento para operar
cionada com o jus naturalismo (e com o positivismo jurídico): a dentro do Direito; se acaso o Direito natural podia jogar um papel
necessidade de ter em conta as circunstâncias históricas, o contexto, para preencher as lacunas do Direito positivo ou, como se acaba de
para poder ju1gar acerca da adequação dessa concepção de Direito, e ver, para negar validade jurídica às normas que fossem radicalmente
inclusive para poder produzir definições no sentido do que se deve injustas. O segundo ataque (que, em minha opinião, é também
entender por jusnaturalismo e positivismo jurídico. Há muito tempo contra o positivismo jurídico)13 produz-se contra a constituciona-
que González Vicén (1980; vid. Atienza, 1981) distinguiu entre o lização dos sistemas jurídicos, com a passagem do Estado legalista
positivismo jurídico como "facto histórico" (como conceito), isto é, a ao Estado constitucional: para que possam considerar-se como
ideia de que o Direito é um fenómeno social e histórico de sociedades Direito válido, as leis têm que subordinar-se a certos critérios de
concretas; e as diversas teorias (concepções) do positivismo jurídico: o conteúdo que integram ideias de moralidade e de justiça: os direitos
positivismo historicista, voluntarista, realista, etc. Em sua opinião, a fundamentais. De certo, poderia dizer-se também nesta oportuni-
erupção do positivismo jurídico, destronando as outras concepções dade que o constitucionalismo moderno "incorporou grande parte
anteriores que se baseavam na ideia de um Direito natural (universal dos conteúdos ou valores de justiça elaborados pelo jusnaturalismo
e imutável) produz-se na Europa até finais do século XVIII e começos racionalista e ilustrado" (Ferrajoli, 1989). O que pulverizou a tese
do século XIX, quando começam a existir ordenamentos jurídicos com positivista de que o Direito pode ter qualquer conteúdo. Ou que o
sistemas de fontes bem definidas; ou seja, depois que se produziu a papel que antes desempenhava o Direito natural relativamente ao
"positivização'" do Direito. Recentemente, Ferrajoli insistiu na mesma soberano, o desempenha agora a constituição, em relação ao legis-
lador (Prieto, 1999, p. 17). Mas daí, em minha opinião, não resulta
12 "Por isso, para Radbruch a 'natureza da coisa' é um meio de interpretação e
que o constitucionalismo seja uma espécie de neo-jusnaturalismo
de colmatar lacunas. uma 'ultima ratio' da interpretação e da complementação da (nem Dworkin, nem Alexy poderiam qualificá-lo desta maneira,
lei"; não é, pois, uma funte de Direito válida por si mesma, se está em oposição com a não ser que se fale de Direito natural em sentido tão amplo que
o "espírito da lei-.Desse modo, na doutrina de Radbruch, o sentido "jus naturalista" já nada significa praticamente), mas sim, melhor, que a possível
da ideia da "natureza da coisa" resulta bastante atenuado, pois tal conceito fica
todavia muito plÓXimo do relativismo e em rotunda contraposição com o Direito
natural racional que pretende derivar as normas jurídicas, com espírito de igualdade 13 Pelo contrário, para Ferrajoli (1999, p. 19), o constitucionalismo visa

e uniformidade, de princípios superiores da razão (Legaz, 1964, p. 211). "completar o positivismo jurídico".
58 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 59

função do Direito natural se desloca para outro lado: o jusnatu- prática, da abertura do raciocínio jurídico para o raciocínio moral e
ralismo não pode subsistir, ou ressurgir, como tese ontológica do político. O principal objectivo desta teoria do Direito natural não é
Direito mas, em todo o caso, como teoria sobre a fundamentação a afirmação de que as leis injustas não são Direito: segundo Finnis,
do Direito, como deontologia jurídica. E não resulta tão-pouco que o Direito injusto não seria Direito no sentido "focal" do termo, mas
o constitucionalismo tenha aberto definitivamente o caminho ao seria Direito em sentido secundário. A tarefa central do jus natura-
positivismo jurídico. Em minha opinião, o positivismo esgotou o lismo consistiria em explorar as exigências da razoabilidade prática
seu ciclo histórico, como anteriormente tinha acontecido com a em relação ao bem do ser humano, em identificar os princípios e
teoria do Direito natural. Tal como Bloch escreveu uma vez, que os limites do Estado de Direito (a rule oflaw) e em mostrar, de que
a "escola histórica crucificou o Direito natural na cruz da histó- maneira o Direito válido (sound) deriva de certos princípios não
ria" (vid. Gonzalez Vicén, 1979, p. 40), poderia hoje afirmar-se que modificáveis (Finnis, 1980, p. 351).
"o constitucionalismo crucificou o positivismo jurídico na cruz da No mais, o contexto histórico permite explicar também que o
Constituição". De maneira que, das teses clássicas do positivismo Direito natural possa ter desempenhado nos países de common law,
jurídico, a primeira (a das fontes sociais do Direito) morreu, caberia e particularmente nos Estados Unidos, um papel distinto do que
dizer, "de êxito", e a segunda (a da separação entre o Direito e a desempenhou na Europa continental depois do fenómeno da posi-
moral) foi refutada historicamente pelo constitucionalismo. 14 tivização do Direito. Ao fim e ao cabo, num sistema de common law
Esta mudança de função do Direito natural (a passagem de não é tão fácil identificar quais são os textos jurídicos autoritativos,
uma função ontológica para outra, deontológica), a que me acabo e o Direito tende a ser entendido como uma realidade mais fluida e
de referir é mencionada, por exemplo, na obra de Finnis (o autor com fronteiras muito mais flexíveis a respeito da moral, da tradição,
jusnaturalista mais influente nas últimas décadas do século xx), etc., do que costuma ser o caso dos sistemas de Direito legislado.
centrada na consideração do Direito como um aspecto da racionali- Essa cultura proporcionava, caberia dizer, o terreno propício para
dade prática. A concepção do Direito de Finnis pode considerar-se que pudesse desenvolver-se uma tradição que, como a de Lon L.
como um fragmento de uma teoria da argumentação jurídica. Para Fuller, considera o Direito não como um conjunto de normas pré-
ele não interessam particularmente - caberia dizer - as ques- -existentes, mas como um empreendimento guiado pela ideia da
tões de técnica argumentativa do Direito, mas mais a fundamen- razão. A maneira de Fuller entender o Direito - muito influente
tação última do discurso jurídico argumentativo. A sua obra pode nas décadas centrais do século xx - coincide em muitos aspectos
considera-se como uma contribuição a favor da unidade da razão com aquilo que designei por enfoque do Direito como argumenta-
ção e baseia-se explicitamente em ideias jusnaturalistas, embora se
14 O que hoje mantém o "juspositivismo incluente" é que a identificação trate de um jusnaturalismo bastante peculiar e que nada tem que
do Direito não supõe necessariamente uma referência à moral. Todavia, dado ver com a religião.
que os sistemas jurídicos contemporâneos (do Estado constitucional) incluem Qyando se examina a notável polémica, que teve lugar nos anos
como questão de facto, essa referência a critérios morais, a afirmação não tem
cinquenta e setenta, entre Fuller e Hart, não resta dúvida de que há
praticamente consequências (ou seja, é compatível com sustentar que, nos nossos
sistemas jurídicos, não pode falar-se de separação entre Direito e moral). Vid. sobre .~
um aspecto da mesma - digamos, o da precisão e rigor intelectual
este assunto, Atienza e Ruiz Manero, 2006. - em que o vencedor é inegavelmente Hart. Mas Fuller apontava
:. ~-
60 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 61

para uma concepção - anti-positivista - do Direito que, em certo estava - implícito - no seu projecto de trabalho intelectual, e que
sentido, resultava mais profunda que a de Hart, embora haja que Fuller não chegou a realizá-lo simplesmente por falta de tempo ou por
reconhecer que se tratava de uma concepção mais esboçada do que que se antepuseram outras tarefas intelectuais. À primeira vista, esta
propriamente desenvolvida. interpretação pareceria estar avalizada pelo título dado a um dos seus
Em face do conceito (a imagem) positivista do Direito como últimos trabalhos: 7he justiftcation of the legal decision (Fuller, 1972).
um edifício, como uma realidade pré-estabelecida pelo legislador ou Mas se do título se passa ao conteúdo, damo-nos logo conta de que se
pelos juízes (o Direito como um conjunto de normas), Fullder põe trata de uma pista falsa; o próprio autor explica antecipadamente que
a ênfase em que o Direito é um empreendimento, uma actividade; o conteúdo do seu trabalho nada tem que ver com o título, posto sim-
não o edifício construído, mas o edifício em construção; ou melhor, plesmente para "justificar" a respectiva inclusão nas actas de um con-
a tarefa de construir um edifício. Neste sentido, é muito sugestiva a gresso dedicado a este tema. De maneira que, há que procurar noutro
imagem que utiliza numa das suas obras (Fuller, 1940) para criticar lado, as causas que explicam essa relativa falta de interesse de Fuller
Kelsen: a de um carrinho de mão, em que o que conta não é somente pela argumentação jurídica. Na minha opinião caberia encontrá-las
que se trate de um objecto com certas características formais, com nas quatro considerações seguintes: 1) O conservantismo de Fuller,
certa estrutura (esse seria o enfoque kelseniano), mas também o con- que o levou a insistir sobretudo na noção de ordem e a deixar de lado
teúdo, aquilo que se transporta de um lado para o outro; e a direc- a justificação. 2) O anti-formalismo, enquanto característica geral da
ção, a finalidade da actividade que se leva a cabo com esse utensílio. cultura norte-americana, que o levou, como aos realistas, a desdenhar
Para Fuller, os elementos do Direito (as suas partes constituintes) não do papel da lógica no Direito. 3) A sua preferência por análises con-
são - ou não são fundamentalmente - as normas, mas os diversos cretas, preferentemente a elaborar uma teoria geral da argumentação
aspectos ou momentos de uma actividade: a actividade de governar jurídica. No comentário que publicou ao livro de Viehweg Tópica e
a conduta humana mediante normas. Por isso, na sua análise, o que jurisprudência, Fuller (1965) (que tinha uma opinião bastante crítica
predomina não é a anatomia, a estrutura, mas sim a fisiologia, os em relação aos princípios gerais) sugere que, mais importante que ela-
elementos funcionais. Fuller não pretende (como os positivistas nor- borar uma teoria geral da argumentação jurídica, seria estudar como
mativistas) descrever neutralmente um objecto, uma realidade, mas se argumenta em cada um dos ramos do Direito (no Direito dos
sim contribuir para a realização de um empreendimento. Mas não contratos - que era a sua especialidade académica - , no Direito de
concebe o Direito (agora frente aos realistas) em termos puramente responsabilidade civil, etc.). 4) Uma teoria da interpretação jurídica
instrumentais, porque ele não é um céptico no plano axiológico e que o levou a sustentar, como os realistas, que o significado é com-
dedica por isso grande importância, no plano da interpretação, tanto pletamente dependente do contexto. Fuller não teria compreendido
ao carácter teleológico como ao valorativo. a especificidade das regras enquanto premissas do raciocínio jurídico
Dado tratar-se de uma concepção que coincide em muitos aspec- (para usar os termos de Schauer: o seu carácter "entrincheirado" 'vid.
tos de fundo com aquilo a que chamei o enfoque do Direito como Schauer, 1991, p. 212') e essa concepção excessivamente aberta das
argumentação, a pergunta que deveria fazer-se é por que, apesar normas jurídicas (de todas elas) contribuiu também para que não
disso, Fuller não desenvolveu alguma coisa parecida com uma teoria compreendesse o carácter peculiarmente limitado da argumentação
da argumentação jurídica. Uma resposta simples poderia ser que isso jurídica.
62 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 63

8. O cepticismo jurídico a expressão da vontade da classe dominante, mas que a igualdade


perante a lei típica do Direito moderno esconde no seu seio um
A forma mais característica do cepticismo jurídico até finais do efeito de carácter discriminatório, ou seja, elementos desigualitá-
século xx foi o marxismo jurídico. Do mesmo modo que os realistas, rios. O economicismo de outras épocas é substituído pela tese da
os marxistas sublinharam o carácter instrumental do Direito, mas "determinação em última instância" dos elementos supra-estruturais
enquanto que os primeiros nunca colocaram em dúvida a funcio- e ideológicos pela base socioeconómica. Reconhece-se a importância
nalidade desse instrumento, a sua idoneidade como ferramenta de do Direito na transformação social. E, em definitivo, o discurso jurí-
construção e mudança social, os segundos foram cépticos também dico resulta, pelo menos até certo o ponto, reabilitado.
quanto a este segundo aspecto. Em geral, os marxistas tenderam a Aquilo a que nos últimos tempos se chama teoria crítica do·
considerar que a mudança social, a passagem do capitalismo ao socia- Direito ("uso alternativo do Direito", criticaI legal studies, critiqueJuri-
lismo, não era uma empresa em que o Direito pudesse desempenhar dique, "crítica jurídica, etc.) pode considerar-se de certo modo como
um papel importante: o essencial haveria de consistir em transfor- um produto desse marxismo débil, a que se acrescentaram elemen-
mar a base socioeconómica da sociedade, o modo de produção e as tos de outras tradições: a tese da indeterminação radical do Direito
relações de produção, e a luta para isso deveria travar-se, em qual- dos realistas, a crítica ao racionalismo e ao cientismo do pensamento
quer caso, no terreno da política e não do Direito. O Direito (como pós-moderno, o feminismo jurídico, etc. A sua característica central
aparece reflectido no título de uma conhecida obra dos anos setenta (vid. Pérez Lledó, 1996) consiste em adoptar uma perspectiva crítica
'Novoa Monreal, 1975') é visto sobretudo como um "obstáculo para (céptica) do Direito, mas ao mesmo tempo interna, enquanto que o
a mudança social". De maneira que, na matriz teórica do marxismo, Direito é visto pelo jurista crítico como um instrumento que pode
o discurso interno de carácter justificativo, que constitui o núcleo da (deve) usar-se para atingir certas finalidades políticas (emancipató-
argumentação jurídica, não é possível. Mas além disso, enquanto que rias). Dentro dessa perspectiva não existe por isso lugar para a análise
o realismo deixa aberta, em geral, a possibilidade de um uso retórico propriamente justificativa da argumentação jurídica, mas sim para o
(instrumental) do Direito, no caso do marxismo, o que se propugna estudo dos elementos persuasivos e retóricos do Direito.
é mais a substituição do Direito por outra coisa. Por isso, o realismo Um caso interessante a este respeito é o de Boaventura Santos
é compatível com uma teoria limitada (limitada aos seus elemen- que, em vários trabalhos (Santos, 1980; 1998a) distinguiu três com-
tos retóricos e dialécticos) da argumentação jurídica; enquanto que portamentos estruturais dó Direito. O seu ponto de partida é uma
o marxismo conduz mais facilmente à dissolução da argumentação concepção ampla do Direito que opõe ao positivismo jurídico dos
jurídica na argumentação política. séculos XIX e xx; esse positivismo jurídico teria reduzido o Direito
Todavia, o que antecede é válido para aquilo que poderíamos ao Direito estatal. A de Santos é, pois, uma concepção anti-posi-
designar por marxismo clássico, mas não em relação a diversas orien- tivista, segundo a qual as sociedades modernas estão reguladas por
tações de marxismo jurídico que começam a surgir desde finais dos uma pluralidade de ordenamentos jurídicos inter-relacionados e dis-
anos sessenta e que se caracterizam por "debilitar" as teses marxistas tribuídos socialmente de diversas maneiras (inter-legalidade) e onde
tradicionais (vid. Atienza e Ruiz Manero, 1993). Assim, o carácter o Direito estatal não ocupa o lugar central. Define o Direito como
classista do Direito não significa já que o Direito seja simplesmente "um conjunto de procedimentos e padrões normativos regulados, que
64 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 65

se considera exigível ante um juiz ou um terceiro que aplique jus- e do observador interessado basicamente em dar conta de (e em cri-
tiça e que contribui para a criação e a prevenção de disputas, assim ticar) um fenómeno, e não o ponto de vista do participante que quer
como para a respectiva solução mediante um discurso argumentativo contribuir para melhorar uma prática; por isso, o enfoque de Santos
acompanhado da ameaça da força". Tanto a retórica, como a buro- é abertamente poütico, mas a sua proposta poütica consiste em con-
cracia e a violência são vistas por ele como formas de comunicação e vidar a construir a prática sobre outras bases: por isso as suas análises
estratégias de tomada de decisões que se baseiam, respectivamente: não se dirigem propriamente ao participante mas - por assim dizê-
"na persuasão, ou no convencimento por meio da mobilização do -lo - ao "infiltrado" na prática (Santos 1998a, p. 39). A segunda razão
potencial argumentativo das sequências e mecanismos verbais e não é que a visão pós-modernista do Direito, de Santos, tem um carácter
verbais aceites"; "nas imposições autoritárias, realizadas mediante a anti-racionalista que chega a defender versões fortes de cepticismo
mobilização do potencial dos procedimentos regulados e dos padrões epistemológico e de relativismo cultural (vid. Twining, 2000, pp. 204
normativos" e "na ameaça de violência físicá' (Santos, 1998a, p.20). e ss.) que tornam impossível um discurso propriamente justificativo;
Essas componentes estruturais articulam-se de maneiras muito como exemplo deste último pode servir a sua forma de se aproximar
diversas. Por exemplo, o Direito estatal moderno caracteriza-se por dos direitos humanos (Santos, 1998a, pp.180 e ss. E 1998b, capo 10)
uma presença forte da burocracia e da violência e uma presença e a sua proposta de um diálogo intercultural que, de novo, parece
débil da retórica, enquanto que as áreas jurídicas transnacionais que estar construído em termos retóricos e não de um discurso crítico-
surgem com a globalização do Direito (por exemplo, o Direito dos -racional.
grandes escrjtórios de advogados, das empresas transnacionais, das Outro bom exemplo de concepção céptica sobre o Direito é cons-
organizações inter-regionais, da nova lex mercatoria, etc.) supõem, em tituído pela obra de Duncan Kennedy, talvez o mais influente dos
geral, baixos níveis de burocracia, altos níveis de violência e um nível autores críticos dos últimos tempos e que abordou em diversas oca-
de retórica que pode ser alto ou baixo. Santos, esclarece ainda que siões (Kennedy, 1976; 1986; 1997) o problema da aplicação judicial
essas três componentes estruturais se interpretam de maneira que, do Direito (a adjudication) e, portanto, da argumentação jurídica.
por exemplo no estado moderno, "a retórica não só se reduz quantita- A tese central de Kennedy parece ser esta: face à retórica da coe-
tivamente como é 'contaminada' ou 'infiltrada' qualitativamente pela rência e da neutralidade que ele atribui à filosofia "liberal" convencio-
burocracia e a violência dominantes" (ibid., p. 23). nal, o que, em sua opinião, a teoria crítica do Direito deve propor no
Pois bem, como resulta mais ou menos claro do que foi dito (a- seu lugar é a radical indetermination do Direito e o carácter poütico
interessante - obra de Santos padece por vezes de certa obscuridade da administração da justiça.
'vid. Coterrel, 1991; Twining, 2000'), nessa concepção não parece que A explicação que Kennedy deu, em certa ocasião, da indetermina-
possa existir espaço para o discurso jurídico propriamente justifica- ção do Direito (Kennedy, 1976; vid. Pérez Lledó, 1996) tinha como
tivo: Santos, reduz explicitamente a argumentação à retórica (embora base a ideia de que existem sempre duas formas distintas e irrecon-
a sua concepção de "retórica" seja mais ampla do que o sentido mais ciliáveis de entender o mundo: uma individualista e outra altruísta. 15
convencional da expressão). E, segundo creio, as razões para isso são,
basicamente, as duas seguintes. A primeira, é que o ponto de vista a IS A propósito da actual common law dos contratos e com referência à análise

partir do qual Santos elabora a sua teoria do Direito é a do sociólogo levada a cabo por um dos autores "críticos" Robert Gordon, escreve Pérez Lledó
66 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 67

Esta "contradição radical" faz com que o juiz não possa ser neutro e racionalidade e põe o acento no idiossincrático e no subjectivo; no
objectivo: o Direito, cada instituição jurídica, cada acto de interpre- tema que nos ocupa, isso leva-o a situar-se na perspectiva pessoal
tação, pode sempre ser entendido dessas duas maneiras. Todavia, nos do juiz que tem que resolver um caso concreto; mas Kennedy não
seus últimos trabalhos, essa tese parece ter sido substituída pela da somente afasta a perspectiva do observador exterior, como renuncia
construção social da realidade. Não há um mundo exterior que seja à formulação de critérios gerais que poderiam guiar a conduta dos
independente de nós e, portanto, a objectividade em sentido estrito juízes.
é impossível; ou melhor, é uma pretensão que, no caso do juiz, tem a Tudo isto, naturalmente, abona em favor da tese do carácter polí-
função ideológica de ocultar que a sua conduta é simplesmente estra- tico da administração da justiça e permite a Kennedy negar a legiti-
tégica: o juiz não trata de obter a resposta correcta para o caso que midade - a possibilidade - de um discurso jurídico justificativo em
tem que decidir, mas de tentar conseguir concretizar certos projectos sentido estrito. O que se ventila na aplicação judicial do Direito (no
ideológicos, a partir de um material jurídico mais ou menos caótico estabelecimento do Direito por parte dos juízes) é uma questão de
e manipulável ("socio-Iegalidade", como lhe chama Kennedy), que poder. Os juízes ocultam esse poder que exercem e que lhes permite
o juiz vive como um limite. O juiz seria como um artesão que, mui- perseguir os seus interesses sujeitando-se ao critério maioritário que
tas vezes, não pode construir um recipiente delicado com material se expressa nas leis, mediante a linguagem da neutralidade em que,
defeituoso. Frente aos valores ("modernos") da racionalidade cientí- invariavelmente, estão redigidas as suas resoluções. Na opinião de
fica e técnica, Kennedy (e muitos autores críticos influenciados pelo Kennedy, trata-se de uma ocultação deliberada, isto é, os juízes men-
pensamento pós-modernista) revela uma atitude de perda de fé na tem conscientemente e, para essa mentira, pode encontrar-se uma
explicação em termos psicológicos: seria um exemplo da forma típica
(1996, p. 276): "Numa primeira análise, a visão 'individualista' pode ver-se reflectida como as pessoas resolvem a angústia gerada pelas tensões internas
no princípio da autonomia da vontade das partes, a presunção de que estas são (no caso dos juízes, a tensão entre fazer justiça - realizar os seus
competentes para se auto-determinarem e obrigarem racional e livremente, a
projectos políticos - e acatar as normas vigentes), negando as ditas
sujeição estrita aos sinais formais de que essa vontade resulta expressa (a verdadeira
vontade contratual é manifestada pela letra do contrato), a não intervenção estatal tensões. E à pergunta sobre porquê este discurso de ocultação delibe-
nas relações contratuais, etc. A visão 'altruísta' apareceria em princípio em doutrinas rada é aceite pela comunidade jurídica e pelas pessoas em geral, a res-
como as do erro (mistake), fraude (fraude), tergiversação (misrepresentation), ocultação posta é que "querem conservar a imagem do juiz neutro, na medida
(non disclosure), prevalência (undue inftuence), coacção (duress), abuso ou desproporção em que este é o símbolo social por excelência da imparcialidade"
(unconscionabiLity), boa fé (goodfoith), enriquecimento sem causa (injust enrichment),
(Kennedy, 1999, p. 88).
alteração substancial das circunstâncias (algo como a nossa cláusula implícita rebus
sic stantibus), etc., assim como nos argumentos de equidade (equity) e do interesse Assim, pois, como no caso dos realistas, o discurso jurídico justi-
social ou public policy (intervenção pública e regulação do mercado, protecção dos ficativo em sentido estrito é impossível. O que existe é um discurso
consumidores, ordem pública, fins redistributivos, etc.). O interessante deste tipo de que esconde (deliberadamente ou não) as suas motivações reais. E daí
análise de CLS - acrescenta Pérez Lledó - é demonstrar como as fronteiras entre
resulta que faça sentido propugnar, quer pela crítica a esse discurso
os elementos "individualistas" e "altruístas" do Direito dos contratos se encontram
hoje tremendamente esbatidas e embora ambas as categorias continuem a ser úteis
pretensamente justificativo (desvendar as suas verdadeiras motiva-
para dar conta do conflito político-moral de fundo, não servem já para estruturar de ções) quer pelo uso persuasivo dele mesmo dirigido à obtenção de
maneira coerente o conjunto deste sector do Direito." objectivos políticos e ideológicos. A teoria da argumentação jurídica
68 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 69

dos autores críticos, por isso, não pode consistir noutra coisa que não de algum modo, pôr em questão a distinção entre o ser e o dever- ser,
seja retórica, crítica ideológica ou em alguma combinação de ambas entre o discurso descritivo e o prescritivo; ou, talvez melhor, notar
as coisas. que essa distinção só é pertinente sob determinada perspectiva, mas
não de outras; como diria Dewey, é uma distinção e não uma dico-
tomia. Assim, por exemplo, o enunciado interpretativo emitido por
9. O que resta um juiz não descreve algo pré-existente, mas tão-pouco pode ver-se
como uma prescrição, visto que se trata mais exactamente de uma
Este exame sucinto das concepções de Direito mais características do criação peculiar, um desenvolvimento guiado - embora não pré-
século xx tinha por objectivo - como o leitor recordará - mostrar -determinado em todos os seus aspectos - por certos critérios (algo
as razões pelas quais nenhuma delas permite dar conta satisfatoria- intermédio entre criar e aplicar) e que, de certo modo, tem algo de
mente do Direito visto como argumentação e, a contrario sensu, mos- descritivo e prescritivo.
trar também o caminho a seguir para desenvolver essa perspectiva. Face ao positivismo normativista, centrado no sistema do Direito,
Assim, face ao formalismo e á sua concepção fechada, estática no Direito visto como um conjunto de enunciados, o realismo jurí-
e insular do Direito, seria necessária outra mais aberta e dinâmica. dico, o positivismo sociológico põe a ênfase no Direito considerado
O Direito tem de contemplar-se em relação com o sistema social como actividade, como uma prática social. Mas tende a concentrar o
e com os diversos aspectos do sistema social: morais, políticos, eco- seu interesse exclusivamente nos aspectos preditivos (e explicativos)
nó micos e culturais ... A consideração do "contexto" leva necessaria- dessa prática e não nos justificativos. Na consideração do Direito como
mente a abandonar uma concepção demasiado simples do raciocínio argumentação o que importa não é só - ou fundamentalmente - a
jurídico, como é a do formalismo. Todavia, (seria o outro sentido de conduta dos juízes e de outros actores jurídicos, mas também o tipo
"formalismo jurídico"), a abertura do Direito tem que ter um limite; de razões que justificam (e, em parte, também orientam) essas condu-
tem que haver diversos sinais de identidade do Direito (e do raciocí- tas. No mais, o discurso justificativo é incompatível com o emotivismo
nio jurídico) que o distingam de outros elementos da realidade social axiológico defendido pelos realistas; dito de outra maneira, o enfoque
e que confiram algum grau de autonomia ao raciocínio jurídico. Na do Direito como argumentação está comprometido com um objecti-
terminologia de Friedman, poderia dizer-se que o raciocínio jurídico vis mo mínimo em matéria de ética. O realismo jurídico pressupõe uma
tem que ser minimamente "fechado". concepção em diversos sentidos mais ampla que a do positivismo nor-
Acerca do positivismo normativista, talvez o mais importante seja mativista (por exemplo, quanto ao sistema de fontes) e uma concepção
compreender que o direito não pode ser visto simplesmente como dinâmica e instrumental do Direito. Mas reduz o Direito a racionali-
um objecto de estudo, como uma realidade que simplesmente está dade instrumental e estratégica; exclui a deliberação racional sobre os
aí à vista,. pronta para ser descrita. O Direito é (se quisermos, além fins (para os instrumentalistas não há propriamente fins internos pró-
disso) uma actividade, um empreendimento de que se faz parte, no prios do Direito, mas tão-só fins externos) e, por isso, é uma concepção
qual se participa. A função do teórico do Direito não pode limitar- que nega a racionalidade prática, no sentido estrito da expressão.
-se a descrever o que existe; o essencial é, melhor, um propósito de O problema das concepções jus naturalistas é, de certo modo, o
melhoria de essa prática, a valorização do Direito. Isso significa, oposto, a saber, a dificuldade de justificar a noção de racionalidade
70 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 71

prática da qual se parte e de que esta possa compatibilizar-se com a numa espécie de "contradição pragmática) numa concepção que, ao
racionalidade interna do Direito; isso explica a tendência para igno- mesmo tempo que promove o compromisso com a prática, renuncia
rar o Direito enquanto fenómeno social e histórico, ou a apresentá- a estabelecer critérios que possam servir de orientação.
-10 de forma mistificada e ideológica. Um dos aspectos - talvez o Mas parece que o défice que acabo de assinalar, e as mudanças
mais difícil - do enfoque do Direito como argumentação consiste provocadas nos sistemas jurídicos pelo avanço do Estado cons-
em oferecer uma reconstrução satisfatória do raciocínio jurídico que titucional, é o que explica que nos últimos tempos (aproximada-
tenha em conta os seus elementos morais e políticos; dito de outra mente desde finais dos anos setenta do século xx) se esteja gerando
maneira, das especificidades do raciocínio jurídico dentro da unidade uma nova concepção de Direito que não se deixa já definir a partir
da razão prática. dos anteriores parâmetros. Continua-se a falar do positivismo jurí-
Finalmente, o marxismo e as teorias críticas do Direito não podem dico (incluente, excluente, ético, crítico, neo-positivismo, etc.), do
dar conta do discurso justificativo, o qual pressupõe um certo grau mesmo modo que de neo-realismo, neo-jusnaturalismo, etc., mas
de aceitação do Direito. O formalismo jurídico simplifica muito as as fronteiras entre essas concepções parecem ter-se desvanecido
coisas, vê mais ordem do que realmente existe. Mas as teses da inde- consideravelmente, em parte porque o que acabou por prevalecer
terminação radical do Direito da dissolução do Direito na política, foram as versões mais moderadas de cada uma dessas concepções.
etc., impossibilitam que se possa dar conta do discurso inferno do Nesta mudança de paradigma, a obra de Dworkin (apesar das suas
Direito, isto é, não deixam lugar para um discurso que não seja nem ambiguidades) foi talvez a mais determinante, o ponto de referên-
descritivo, nem explicativo, nem puramente crítico. Não cabe, por cia a partir do qual se toma partido em amplos sectores da teoria do
isso, falar nem de método jurídico, nem de argumentação em sentido Direito contemporânea. E, de facto, muitos outros autores prece-
estrito, mas unicamente de uso instrumental ou retórico do Direito. dentes, de tradições filosóficas e jurídicas muito diferentes entre si,
Como dizia, a visão do Direito como argumentação pressupõe um (o positivismo jurídico, o realismo, a teoria crítica, a hermenêutica,
certo grau de aceitação do Direito mas, naturalmente, isso não supõe o neo-marxismo, etc.) defenderam nos últimos tempos teses que, no
a aceitação de qualquer sistema jurídico. Por isso, esse tipo de enfo- fundo, não se diferenciam muito das de Dworkin; penso em autores
que ganha especial relevância em relação ao Direito do Estado cons- como MacCormick, Alexy, Raz, Nino ou Ferrajoli. Entre eles exis-
titucional e pode resultar irrelevante (quando não, ideológico) em tem, desde logo, diferenças que, por vezes, não são despiciendas,
relação a outros tipos de sistemas jurídicos: não só num Direito como mas parece-me que a partir das suas obras podem assinalar-se certos
o do nacional-socialismo, mas, em geral, em ordenamentos jurídicos traços característicos dessa nova concepção. Nenhum desses auto-
que não incluam um sistema mínimo de direitos. O cepticismo com res assume todos os traços que agora assinalei, mas sim a maioria
que muitos autores "críticos" se referem aos direitos fundamentais (ou, pelo menos, um número significativo) dos mesmos que, além
(seguindo de certo modo uma tradição que começa com Marx) mos- disso, estão estreitamente associados ao enfoque argumentativo
tra o seu afastamento do que hoje constitui um sinal de identidade da do Direito. Seriam os seguintes: 1) A importância concedida aos
esquerda (as ideologias de esquerda são as que, nos nossos dias, man- princípios como ingrediente necessário - além das regras - para
têm com maior ênfase a "luta pelo Direito" e a "fé no Direito") e, de compreender a estrutura e o funcionamento de um sistema jurídico.
certo modo, sugere que talvez haja algo de equívoco (pois incorreria 2) A tendência para considerar as normas - regras e princípios -
72 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 73

não tanto sob a perspectiva da sua estrutura lógica, quanto a partir justiça. 11) O esbatimento das fronteiras entre o Direito e o não
do papel que desempenham no raciocínio prático. 3) A ideia de Direito e, com ele, a defesa de algum tipo de pluralismo jurídico. 12)
que o Direito é uma realidade dinâmica e consiste não tanto - ou A importância posta na necessidade de tratar de justificar racional-
nem tão só - numa série de normas ou de enunciados de tipo mente as decisões e, portanto, o raciocínio jurídico - como carac-
diverso, mas - ou também - numa prática social complexa que terística essencial da sociedade democrática. 13) Ligado ao anterior,
inclui, além de normas, procedimentos, valores, acções, agentes, etc. a convicção de que existem critérios objectivos (como o princípio
4) Ligado ao anterior, a importância que se concede à interpretação da universalidade ou o da coerência ou integridade) que conferem
que é vista, mais que como resultado, como um processo racional carácter racional à prática da justificação das decisões, ainda que
e harmonizador do Direito. 5) O enfraquecimento da distinção não se aceite a tese de que existe uma resposta correcta para cada
entre linguagem descritiva e perceptiva e, relacionado com isso, a caso. 14) A consideração de que o Direito não é só um instrumento
reivindicação do carácter prático da teoria e da ciência do Direito, para atingir objectivos sociais, mas que incorpora valores morais e
as quais não podem reduzir-se a discursos meramente descritivos. que esses valores não pertencem simplesmente a uma determinada
6) A compreensão da validade em termos substantivos e não mera- moral social, mas a uma moral racionalmente fundamentada que
mente formais: para que uma norma seja válida, deve respeitar os leva também, de certo modo, a relativizar a distinção entre moral
princípios e direitos estabelecidos na Constituição. 7) A ideia de positiva e moral crítica. 17
que a jurisdição não pode ver-se em termos simplesmente legalis-
tas - de sujeição do juiz à lei - pois a lei deve ser interpretada de
17 A este respeito, por exemplo, escreveu Nino: "Mas tão importante como
acordo com os princípios constitucionais. 8) A tese de que entre o distinguir a moral positiva e a moral ideal é evidenciar os seus pontos de contacto.
Direito e a moral existe uma conexão não só quanto ao conteúdo, Um desses pontos resulta do facto de que sem a formulação de juíz.os acerca de uma
mas de tipo conceitual ou intrínseco; inclusive, ainda que se pense moral ideal não haveria moral positiva. ( ... )
que a identificação do Direito se faz mediante algum critério como ( ... )
Mas também há relações entre a moral ideal e a moral positiva que apontam
o da regra de reconhecimento hartiana, essa regra incorporaria cri-
para outra direcção. Apercebemo-nos disto se centrarmos a atenção numa esfera da
térios substantivos de carácter moral e, além disso, que a aceitação moral positiva que não é constituída por critérios substantivos de conduta, mas pela
da mesma teria necessariamente um carácter moral. 9) A tendên- prática do discurso ou argumentação moral que contribui para gerar tais critérios e que
cia para uma integração entre as diversas esferas da razão prática: constitui uma técnica social para superar conflitos e facilitar a cooperação através do
consenso ( ... ) tais juízos não se formulam no vazio, mas no contexto dessa prática
o Direito, a moral e a política. 16 10) Como consequência do que
social a que subjazem critérios processuais e substantivos de validação, como a
antecede, a ideia de que a razão jurídica não é só razão instrumen- universalidade, generalização e aceitabilidade dos juízos em condições ideais de
tal, mas razão prática (não só sobre os meios, mas também sobre os imparcialidade, racionalidade e conhecimento. Como é evidente, esta prática do
fins); a actividade do jurista não é guiada - ou não é guiada exclu- discurso moral com os seus critérios subjacentes, prática que não é moralmente
sivamente - pelo êxito, mas pela ideia de correcção, pelo desejo de justificável sem divulgação, embora a sua expansão seja casualmente explicável, é
um produto histórico; pode perfeitamente distinguir-se entre a actual prática do
discurso moral, de origem iluminista, e outras que se baseiam na autoridade divina
16 Raz, como é evidente, com a sua tese do pOSltlVlSmO "excluente" não ou na tradição" (Nino, 1989, pp. 33 e 34). Agradeço a Victoria Roca por me ter
subscreve estas duas últimas teses, nem tão-pouco Ferrajoli. chamado a atenção para este eloquente trecho da obra de Carlos Nino.
74 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 75

10. Acerca do pragmatismo jurídico de justificação. 8) A importância da prática como meio de conheci-
mento: aprende-se a argumenta argumentando, etc.
Já assinalei antes que, subjacentes a esta última concepção, estão Entendido desta maneira tão ampla, tanto Ihering como Hol-
pressupostos filosóficos muito diferentes entre si. Mas talvez tenham mes, o realismo jurídico em geral, Dworkin, as teorias críticas do
também algo em comum; ou, dito provavelmente de forma mais Direito ou o movimento da análise económica do Direito cairiam
exacta, aquilo que sob a perspectiva do Direito como argumentação no âmbito do pragmatismo. Trata-se, por isso, de uma noção muito
contribui para unificar esses e outros autores e permite utilizar mui- ampla que vai para além do "instrumentalismo pragmatista" que,
tas das suas contribuições, como se se tratasse de uma concepção uni- na opinião de Summers (1982) caracterizou a corrente principal
tária do Direito, é uma filosofia de tipo pragmatista. EXplicar-me-ei. da filosofia do Direito norte-americana desde finais do século xx.
O Fragmatismo, em relação com o Direito, parece supor a acei- A diferença fundamental- estaria em que este pragmatismo amplo
tação de teses como as seguintes (vid. Posner, 1990; Smith, 1990): não está comprometido com o relativismo axiológico e não leva
1) A necessidade de considerar o Direito e os problemas jurídicos tão-pouco a identificar correcção com eficiência. Dito de outra
relacionados com o contexto. 2) Ter em conta (se quisermos, como maneira, é um pragmatismo compatível com a razão prática enten-
consequência do anterior) que as teorias, ou as doutrinas, são ela- dida no seu sentido forte e a que, por isso, não se aplicaria o sar-
boradas com o propósito de se dirigirem a um determinado auditó- casmo de Chesterton dirigido contra o pragmatismo clássico: "se o
rio. 3) A rejeição de uma concepção demasiado abstracta do Direito; pragmatismo tem que ver com as necessidades humanas, uma das
não significa que se esteja contra os conceitos ou as teorias, mas que primeiras necessidades do homem é a de não ser pragmatista" (vid.
uns e outras devem ser elaborados com o nível de abstracção ade- Menand, 1977, p. XII).
quado.4) Uma visão instrumental e finalista do Direito; o Direito Tudo isto vem a significar que o pragmatismo, assim entendido,
é um instrumento para resolver (ou prevenir, ou tratar) conflitos, não pode considerar-se como mais uma filosofia do Direito. Como
um meio para a obtenção de fins sociais; o que não é razão para Toulmin disse em certa ocasião: "As pessoas falam das atitudes ame-
excluir que possa existir algo assim como "fins internos", próprios do ricanas em relação ao Direito, tal como de muitas outras coisas, como
Direito. 5) A vinculação do Direito a certas necessidades práticas dos atitudes caracterizadas pelo pragmatismo. E algumas pessoas, sob o
homens. 6) A ênfase que se põe nas consequências, no futuro; o que ponto de vista europeu, pensam que isso é um defeito do pensamento
tão-pouco exclui que se tome em consideração o passado, mas sem americano e da prática americana. Pensam que os americanos são
que este seja valorado por si mesmo, e não pela sua contribuição para muito propensos ao compromisso e que não têm uma compreensão
a obtenção de certos resultados futuros.1 8 7) A ideia de que a verdade suficiente dos princípios. Ma creio que dizer isto é entender mal o
(pelo menos no campo da prática) não consiste na correspondência significado do pragmatismo no cenário americano. O pragmatismo
dos enunciados com o mundo, mas em que esses enunciados resul- não é outra teoria mais, para ser discutida pela intlligentsia, o prag-
tem úteis, e daí a importância do diálogo e do consenso como critério matismo é a designação de uma atitude mental em que o valor da
teoria se afere pelo grau em que essa teoria pode pôr-se em prática,
18 Veja-se a argumentação de Smith (1990) justificando que Dworkin também
em que é possível fazer com ela mudanças para bem dos homens"
seria um pragmatista. (Toulmin, 1992, pp. 353-355).
76 o Direito como Argumentação Direito e Argumentação 77

Outra maneira, mais ou menos equivalente de dizer o mesmo enfoque argumentativo do Direito (o que não é exactamente uma
seria esta: O pragmatismo jurídico não é exactamente uma teoria concepção de Direito, mas - digamos - um aspecto precisamente
acerca do Direito, nem tão-pouco necessariamente uma atitude do pragmatismo jurídico) se possa tirar proveito de muitas contribui-
perante o Direito e perante a teoria jurídica. "O pragmatismo jurí- ções pertencentes a essas distintas tradições.
dico entende-se melhor como um tipo de exortação acerca da teo- Assim, não é possível construir uma teoria da argumentação jurí-
ria: a sua função não é a de dizer coisas que os juristas e os juízes dica que cumpra as funções teóricas, práticas e pedagógicas a que
não saibam, mas sim de recordar aos juristas e aos juízes o que já antes se aludiu, se deixarmos de lado uma adequada análise estrutural
sabem mas frequentemente não praticam" (Smith, 1990, p. 2). Este do Direito - se não se pressupõe, por exemplo, uma suficiente teoria
tipo de prédica, naturalmente, é tanto mais importante quanto mais dos enunciados jurídicos - ; se não se toma em consideração a vin-
uma cultura jurídica (a cultura jurídica interna) se esquece de actuar culação dos processos argumentativos ao comportamento dos juízes
como deveria. Em minha opinião, a teoria do Direito, que é costume e outros operadores jurídicos; as relações entre o raciocínio propria-
elaborar nos países latinos (tanto a dogmática como a teoria geral), mente jurídico e o de natureza moral e política - e, em geral, as rela-
sofre precisamente desse defeito: da falta de pragmatismo, de inca- ções entre o Direito e o mundo dos valores - ; os limites (formais)
pacidade para incidir sobre as práticas jurídicas. De maneira que bem do raciocínio jurídico; ou os elementos ideológicos e de poder que,
pode dizer-se que, para nós, a primeira necessidade da teoria é de o como é evidente, se podem achar no Direito e no raciocínio jurídico.
pragmatismo ser levado a sério. Aquilo que o enfoque do Direito como argumentação trata de
Mario Losano escreveu uma vez (Losano, 1985) que nas ciências fazer é relacionar todos esses elementos de análise, a partir de uma
humanas tudo se disse já, pelo menos, uma vez, Se assim é, o papel concepção dinâmica, instrumental e "comprometida" do Direito que
da teoria do Direito não pode ser o de pretender elaborar algo radi- parte da noção de conflito.
calmente original. Do que se trata é mais de contribuir para elaborar O conflito é, com efeito, a origem do Direito, o que leva a vê-lo
uma concepção articulada do Direito, que realmente possa servir para como um instrumento, uma técnica (não necessariamente neutra) de
melhorar as práticas jurídicas e, com isso, as instituições sociais. tratamento (o que nem sempre implica solução) de problemas de
certo tipo. Além disso, uma característica do Direito contemporâneo,
como já se viu, é que as tomadas de decisão em relação com os con-
11. Direito, conflito e argumentação flitos têm que ser sustentadas por razões de certo tipo, por argumen-
tos. O Direito pode ver-se, por isso, (embora essa não seja a única
O pragmatismo, como se acaba de ver é, num certo nível, a única perspectiva possível) como uma instituição complexa orientada para
filosofia do Direito possível; digamos, o substrato último (a atitude a resolução (ou para o tratamento) de conflitos por meios argumen-
meta-teórica) de qualquer teoria do Direito. E, se é compatível tanto tativos e nas diversas instâncias da vida jurídica.
com o neo-marxismo como com a teoria do discurso ou com muitas Assim argumenta, como é evidente, o juiz que tem que resolver
filosofias de cunho analítico, isso deve-se, simplesmente, a que uma e um conflito, tomando uma decisão e motivando-a. Mas também o
outras se movimentam em planos distintos. Essa diferença de planos advogado que trata de persuadir o juiz para que decida num deter-
é o que permite também que, sob a perspectiva do que designei por minado sentido; o que patrocina um cliente para que empreenda a
78 o Direito como Argumentação

acção num determinado sentido; o que negoceia com outro advo-


gado a maneira de dirimir uma disputa. E o legislador que propõe a
elaboração de uma lei para atingir certas e determinadas finalidade,
que defenda que certo artigo tenha este ou outro conteúdo, etc. Na
realidade, não há prática jurídica que não consista, de maneira muito
relevante, em argumentar, incluindo as práticas teóricas. Acaso não CAPíTULO 2
pode ver-se a dogmática jurídica como uma grande fábrica de argu-
mentos postos à disposição daqueles que se ocupam da criação, apli- TRÊS CONCEPÇÕES DA ARGUMENTAÇÃO
cação e interpretação do Direito? E, se a experiência jurídica consiste
de maneira tão proeminente em argumentar, não parece inevitável
que a teoria do Direito tenha que constituir-se em muito boa medida
como uma teoria da argumentação jurídica?
1. Argumentar e decidir

o resultado a que de alguma forma se chegou no capítulo ante-


rior poderia exprimir-se assim. O Direito não pode, naturalmente,
reduzir-se à argumentação, mas o enfoque argumentativo do Direito
pode contribuir de uma maneira decisiva para uma melhor teoria e
uma melhor prática jurídica. Todavia, a teoria geral do Direito, pelo
menos até datas muito recentes, não incluía a "argumentação" como
um dos seus conceitos básicos. Talvez porque, sendo embora um con-
ceito comum a todos os ramos jurídicos, a sua elucidação não suscita
problemas de maior? Mas - se fosse assim - sabemos realmente
com precisão o que devemos entende (ou estamos entendendo) por
"argumentar" cada vez que usamos essa expressão (e outras relacio-
nadas com ela) em contextos jurídicos? E é esse mesmo conceito,
que se maneja nas numerosas disciplinas que, de alguma forma, se
ocupam da argumentação: para além do Direito, da lógica, da psico-
logia, da linguística, da inteligência artificial, da retórica, da ciência,
da moral ... ?
Para começar a clarificar este conceito, verdadeiramente central
na teoria do Direito, um bom ponto de partida pode consistir em
mostrar de que maneira a noção de argumentação está relacionada
80 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 81

com a de decisão. Como vimos também no final do capítulo anterior, numerosas decisões (dos juízes e de outros órgãos públicos) que care-
o Direito pode conceber-se como um empreendimento dirigido à cem de motivação, isto é, decisões não apoiadas por razões (ou, pelo
resolução (ou ao tratamento) de certo tipo de problemas mediante menos, por razões tornadas públicas). A isso caberia objectar que
a tomada de decisões por meios argumentativos. Se a argumentação
é tão essencial no Direito (nos nossos Direitos), é porque o esta- a sua impugnação e o juiz possa valorar adequadamente os motivos da impugnação.
mos a considerar como um mecanismo muito complexo de tomada Pelo contrário, na segunda etapa, às funções endoprocessuais acrescenta-se outra
de carácter "extraprocessual" ou político: a obrigação de fundamentar é uma
de decisões (por parte dos legisladores, dos juízes, dos advogados,
necessidade de controlar democraticamente o poder do juiz.
dos juristas ao serviço da administração, dos dogmáticos do Direito Na realidade, esta "tendência histórica" nada teve de linear e nem sequer se
ou inclusive dos simples cidadãos que vivem integrados num sis- justificaria falar de uma única "linha", como o demonstrou Taruffo (1992), na Europa
tema jurídico) e dos raciocínios que acompanham essas decisões. No continental podem distinguir-se dois modelos de evolução que acabam por convergir,
Direito - caberia dizer - há que argumentar porque há que dizer e embora com origens bem distintas. O "modelo alemão" tem desde a sua origem (no
Codex Fridericianus, em 1748) uma orientação endoprocessual: a sua matriz cultural é
porque não aceitamos que as decisões (particularmente quando pro-
o racionalismo funcionalista e burocrático do despotismo esclarecido (p. 335). Porém,
vêm de órgãos públicos) possam apresentar-se de maneira despida, no caso do "modelo francês", o princípio da obrigatoriedade da motivação é "um
desprovida de fundamentação. De maneira que, se isto é assim, bem resultado autónomo e original da ideologia democrática da justiça que emerge no
poderia dizer-se que a argumentação (a tarefa de fornecer as razões) âmbito da própria revolução" (p. 325). Num trabalho muito conhecido, Sauvel (1955)
mostrou como os philosophes, com a única excepção de Condorcet, parecem não ter
acompanha as decisões como a sombra o corpo: argumentar e decidir
prestado qualquer atenção à motivação (ou à falta de motivação) das decisões judiciais
são facetas da mesma realidade. (o esquema de Muratori é mais complexo que o de Montesquieu: sobre isto vid.
Todavia, basta reflectir um pouco para nos darmos conta de que Zapatero, 1994), apesar da crítica radical ao processo penal no Antigo Regime que se
as coisas não são totalmente assim. encontra, por exemplo, na obra de autores como Voltaire. Só, pois, Condorcet se tinha
"adiantado" ao seu tempo, ao escrever que o Direito natural "exige que todo o homem
que empregue contra os membros da sociedade a força que esta lhe coniiou,preste contas
A) Por um lado parece perfeitamente possível que exista uma
das causas que o determinaram a proceder assim" (Sauvel, 1955, p. 39). Mas, como se
decisão sem argumentação. No caso do Direito, a motivação das sabe, essa ideologia democrática só triunfou no início da revolução. O que acabou por
decisões judiciais, isto é, a prática de argumentar (fundamentar) prevalecer foi a ideologia liberal - ou inclusivamente autoritária - que implicou
as decisões, é uma instituição relativamente recente nos sistemas também a hegemonia da concepção endoprocessual. Não deixa de ser paradoxal que
de tipo continental, enquanto que nos de common law remonta ao no mesmo país em que a Constituição do ano In exigia já a obrigação de motivar as
decisões judiciais, se tenha podido escrever - em 1974 - um artigo reivindicando
século XII;! e em qualquer dos dois sistemas continuam hoje a existir
uma motivação mais explícita das decisões da Justiça, especialmente das do Tribunal
de Cassação, que foi acolhido com escasso entusiasmo por não poucos membros da
1 Pelo que se refere aos Direitos de tipo continental, a obrigação e a prática da comunidade jurídica francesa. Entre outras coisas, Touffait e Tunc escreviam aí que "o
motivação das sentenças começa, caberia dizer, na segunda metade do século XVIII juiz francês, sobretudo no Tribunal de Cssação, não motiva em geral a sua decisão mais
e sofre uma aceleração depois da segunda Guerra Mundial, à medida que se vai do que de uma maneira muito formal. O juiz recusa argumentar" (Touffait e Tunc,
firmando o modelo do Estado constitucional. O que caracteriza a primeira etapa 1974, p. 490). E terminavam comparando o estilo actual da decisão, em particular do
é que nela - e nos seus diversos modelos - predomina o que Taruffo (1992) Tribunal de Cassação, com o da missa em latim (p.507).
designou por concepção "endoprocessual" da motivação: a motivação permite que O processo em França teria sido, em certa medida, inverso ao ocorrido em
as partes se dêem conta do significado da decisão, possam eventualmente requerer Espanha ou, talvez melhor, no Reino de Castela. Todavia em 1778, uma carta régia do
82 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 83

uma coisa é a argumentação explícita e outra coisa é a argumentação acção, então decidir, enquanto acção intencional, parece pressupor
!ou! court: ou seja, que se, por decisão, se entende um tipo de acção se não deliberação em sentido estrito, pelo menos certa presença de
(digamos, uma acção mental) ou uma disposição para realizar uma razões que motivaram a decisão. O juiz que decide não admitir no
processo uma determinada prova (sem que tenha que justificar por-
rei Carlos III estabelecia a proibição de motivar as sentenças para evitar os "prejuízos" quê) não deixa por isso de ter as suas razões, e outro-tanto poderia
que resultam dessa prática, "dando lugar a cavilações dos litigantes e consumindo dizer-se do parlamentar que vota a favor de determinado projecto
muito tempo com a extensão das sentenças" (Ortells, 1977, pp. 902-903). Todavia,
de lei, embora nem sequer conheça o respectivo conteúdo, isto é,
no Reino de Aragão e especialmente nesse reino - como o fez notar Jesús Delgado
- "os juízes tinham que motivar as sua sentenças, e assim o faziam, razão pela não sabe realmente aquilo que está votar: decide votar em determi-
qual as colecções de sentenças da Audiência Real de Aragão imprimiam-se e eram nado sentido, por exemplo, porque essa foi a indicação dada pelo
conhecidas em toda a Espanha, precisamente porque argumentavam, em contraste seu partido. Provavelmente, há decisões (que não tem que ser o caso
com a maior parte dos tribunais do continente. Em Aragão, creio poder assegurar da anterior) que se tomam de maneira irracional (baseando-se em
que os juízes argumentavam ou fundamentavam as suas sentenças definitivas
razões manifestamente erróneas), mas isto, obviamente, não implica
desde a Idade Média, por razões similares às da experiência das Ilhas Britânicas
(os precenetes tinham grande importância - sob a designação de "observâncias"- que não existam razões: tanto existem razões subjectivas (motivos)
embora depressa as coisa tenham mudado ( ... ) em Aragão os juízes tiveram de deixar para a acção, como razões objectivas, isto é, as que fariam com que
de fundamentar as suas sentenças por assim o ter ordenado o decreto designado fosse racional, que estivesse justificado actuar de uma forma ou de
por Novo Plano (1711), que impunha a Aragão a aplicação das leis processuais de outra; se não fosse por pensarmos que existem essas razões (a favor
Castela." Por outro lado - como também assinala Delgado - é importante ter
ou contra a decisão) objectivamente válidas, não faria sentido criti-
em conta que, todavia, "onde e quando os juízes não motivavam as sentenças, nem
por isso deixava de haver argumentação fundamentadora das decisões definitivas. car uma decisão, classificá-la de irracional. Também há decisões (não
Proporcionavam-na os conselheiros ou assessores dos juízes Guízes que podiam não necessariamente irracionais) a favor das quais o agente não pode (ou
saber Direito, nem sequer nos mais altos tribunais, posto que eram antes de tudo um não quer) aduzir qualquer razão que possa resultar convincente; nes-
poder político indiferenciado ou polivalente). E antes dos assessores arrazoavam os
tes últimos casos falamos de "decisionismo" e contrapomos decidir a
advogados ("arrazoadores" se lhes chama em algumas fontes medievais). Em Aragão
( ... ) conservam-se vários milhares de impressos de "Alegações em foro e direito"
(séculos XVI-XVII), peças de argumentação dialéctica que efectivamente foram motivação começa já no século XII e consolida-se no XVI, sem que neste caso
apresentadas em pleitos". caiba falar de momentos de fractura comparáveis aos da Europa continental na
Em qualquer caso, as coisas em Espanha mudaram de forma bastante radical segunda metade do século XVIII e primeiros decénios do XIX (vid, Taruffo, 1992,
(como se assinalou no anterior capítulo), a partir da Constituição de 1978, embora p.350). Mas, por outro lado, essa prática constante não parece ter obedecido a uma
também aqui haja que fazer alguma precisão: para Jesús Delgado, por exemplo, ideologia democrática da justiça, mas a exigências de funcionamento desse sistema
"as sentenças da sala l.a (do cível) do Tribunal Supremo estavam sensivelmente jurídico. Como escreveu Taruffo, "o sistema do stare decisis é possível enquanto o
melhor motivadas (faziam melhor doutrina) nos anos cinquenta e sessenta, que nos precedente não estiver constituído por um dictum não motivado, mas que, pelo
oitenta e noventa", e considera que a explicação tem que ver "com a qualidade dos contrário, contenha a individualização expressa da ratio dicendi em que se baseia a
magistrados, na presidência de Castán e, sobretudo, o número muito inferior de decisão" (p. 347).
recursos e uns requisitos muito mais restritos para aceder à cassação". É interessante, finalmente, assinalar que no projecto da Constituição europeia,
Pelo que se refere à common law, a obrigação e a prática da motivação conheceu a obrigação de motivar e de apresentar razões aparece em muitos artigos, por
modulações um tanto diferentes das do continente. Por um lado, nunca existiu a exemplo, 1-38.2, 1-59.1 ou Il-1Ol.2.c. (Sobre a motivação das sentenças em geral
obrigação - a obrigação explícita - de motivar as sentenças, mas a prática da pode ver-se, recentemente, Igartua, 2003).
o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 85
84

justificar ou argumentar (dos actos de vontade aos actos de razão). quem afirmasse "devo condenar X à pena P, mas não o condeno".
Todavia, uma coisa é não existir (ou não haver obrigação de dar) uma Essa interpretação do raciocínio prático não pressupõe, de qualquer
razão de suficiente peso a favor de uma decisão, e outra é que inexista modo, identificar decisão com argumentação, mas sim com a con-
qualquer razão que, em absoluto, seja aplicável ao caso. Este último clusão de uma argumentação, de um raciocínio: a decisão não seria o
parece muito difícil de aceitar, inclusive num plano puramente sub- argumento, mas apenas uma parte do mesmo.
jectivo, pois se decidir é uma acção intencional, não parece que possa B) Por outro lado, parece também que uma argumentação pode
formar-se uma intenção à margem de qualquer tipo de razão, ainda ter lugar em contextos em que não se trata de decidir. Por exemplo,
que se trate de uma razão para não deliberar, como poderia ser o caso o juiz pode chegar à conclusão de que, dada a presença de X, em tal
do parlamentar do anterior exemplo.2 . dia e a tal hora em tal lugar, a existência de manchas de sangue na
Ora bem, embora a contestação à anterior objecção fosse aceitá- roupa de X, o facto de a análise de ADN ter mostrado que o sangue
vel e, portanto, decidir implicasse sempre, em algum sentido, argu- em questão era de Y, etc., X é o autor da morte de Y. Pois bem, não
mentar, dar razões não quer dizer que argumentar e decidir sejam a parece que faça sentido dizer aqui que, dados esses elementos, o
mesma coisa.. Assim, no caso de uma sentença penal, parece possível juiz decidiu crer (no sentido de convicção) que X matou Y; o natu-
distinguir entre a decisão de condenar X à pena P, e a justificação, ral seria dizer que o juiz decidiu declarar culpado ou condenar X,
a argumentação (explícita ou não) de tal decisão, de tal condena- porque (entre outras coisas) acreditou que X era o autor do homi-
ção, que pode exprimir-se assim: "X praticou o acto H; quem pratica cídio de Y; mas a aceitação, através da correspondente deliberação,
actos como H deve ser condenado à pena P; portanto, H deve ser de que ocorreu um determinado facto não é fruto de uma decisão;
condenado à pena P. Aqui poderia aduzir-se (segundo a tradição do a diferença de decidir fazer alguma coisa, aceitar um facto ou crer
silogismo prático tal como parecem tê-lo entendido Aristóteles ou na existência de um estado de coisas (ter uma convicção) não é
von Wright),3 que a conclusão do anterior argumento (se deve - uma acção intencional. Não decidimos que tal coisa é o caso (que
ou, dito pelo juiz, devo - condenar X à pena P) é uma decisão, ou Fulano matou Cicrano ou que o tabaco causa cancro),4 mas decidi-
seja, que ao afirmar a sério "devo condenar... " se estaria já empreen- mos fazer algo (declarar X culpado, condená-lo a tal pena, deixar de
dendo um decurso de acção ou revelando a disposição de fazê-lo, fumar). E, de qualquer modo, se quisermos falar também de decisão
de maneira que incorreria numa espécie de contradição pragmática quando afirmamos a existência de estados de coisas, parece claro
que estaríamos a utilizar a expressão decidir num sentido distinto:
2 Sobre as relações entre motivação judicial e decisão pode ver-se Comanducci
no primeiro sentido, decidir implica intenção (não posso decidir
(1999, pp. 85 e ss.), o qual propõe uma tripla análise, conforme se adopte uma
sem querer fazê-lo), mas pode nada haver de intencional em ter
perspectiva descritiva, prescritiva ou teórica.
J O esquema do silogismo prático parte da formulação de um desejo (desejo uma convicção sobre como foi, é ou será o mundo. Por último, as
aquecer a cabana) e uma regra de tipo técnico (só acendendo o fogo se pode conclusões dos nossos argumentos (também no Direito) não são
aquecer a cabana) para chegara uma conclusão prática (de acordo como se entenda
o silogismo) de que devo ou empreendo a acção de acender o fogo. Mas a diferente 4 Vid. Oldenquist, 1967, p. 97, onde se distinguem dois sentidos de decidir,

natureza das premissas (que, no caso do "silogismo judicial", se trata de uma norma num dos quais, caberia falar de "decidir que o tabaco causa cancro". Deixo aqui
e de uma proposição fáctica) não altera as coisas para os efeitos que aqui interessam; de parte o debate actual em epistemologia, acerca de se é possível "decidir" crer ou
vid. González Lagier, 1995, pp. 145 e ss.; e infra, capo 3. ap. 8. desejar crer em alguma coisa.
86 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 87

sempre enunciados práticos, mas podem estar integradas por enun- conceptual que costuma consistir em mostrar que existem diversas
ciados teóricos: não só por "deve-se (pode-se, etc.) fazer ... ", mas maneiras de usar esta expressão e em justificar por que se elege um
também por ué o caso de que ... ". (ou mais de um) desse sentidos. Além disso, não é difícil darmo-nos
conta de que essa pluralidade de significados tem que ver com algo
De maneira que, caberia concluir de tudo o que antecede, a argu- que antes foi assinalado: com a existência de diversas disciplinas ou
mentação (ou os argumentos) é algo que acompanha as decisões de diversos campos relacionados com a argumentação. Nos livros de
(embora talvez nem sempre, e ainda que por isso não devamos identi- lógica, a noção de argumento é apresentada como um encadeamento
ficar decidir com argumentar) e também algo que tem lugar em con- de enunciados: argumentar consiste em passar de uns enunciados
textos em que propriamente não decidimos, mas em que temos que para outros, respeitando certas regras. Mas esse é um conceito que
formar uma opinião ou uma convicção sobre algo. A esta alguma coisa resulta insatisfatório (ou talvez melhor, insuficiente) para aqueles que
acerca da qual temos que formar uma crença ou que decidir é aquilo a se interessam pela argumentação no campo das ciências da comu-
que se pode chamar um problema ou uma questão. O que faz com que nicação, da psicologia cognitiva, da linguística, da retórica ou do
surja uma argumentação são problemas, questões (que podem ser teó- Direito. Por exemplo, o advento do que hoje costumamos designar
ricas ou práticas, abstractas ou concretas, reais ou hipotéticas ... ) para as por "teoria da argumentação jurídica", nos anos cinquenta e sessenta
quais há que encontrar soluções, respostas, que terão que ter (segundo do século xx, teve como traço comum a pretensão de construir um
os casos) natureza teórica, prática, etc. Tão-pouco agora caberia identi- conceito de argumentação (para desenvolver, a partir daí, uma teoria)
ficar, sem mais, "argumentação" com "resolução de um problema", mas que se opunha (ou era a superação) à noção de argumento lógico em
por razões distintas das que se aplicam a "decidir". Como se viu, tanto sentido estrito (de argumento lógico-dedutivo). Deste modo, Reca-
é possível decidir sem aduzir argumentos, como argumentar sem deci- séns Siches, inspirando-se em Ortega, contrapôs o logos do racional
dir; pois bem, a resolução de um problema pode não ser argumentativa ao logos do razoável; Viehweg, a concepção dedutiva da argumentação
e, quando o é, normalmente pressupõe algo mais do que argumentar. à tradição dos princípios gerais; Perelman, os elementos dedutivos
Porém, o que parece poder afirmar-se sem excepção é que argumentar ou apodícticos aos retóricos; e Toulmin, a lógica idealizada da tradi-
é algo que tem lugar no contexto da resolução (ou, mais em geral, do ção matemática (geometria) a uma lógica "operativa", adequada aos
tratamento) de problemas. Sem a existência de problemas - ou sem diversos âmbitos da vida em que se argumenta (e que não se circuns-
certo tipo de problemas - não haveria argumentação. crevem aos das ciências formais). E pelo que se refere às teorias mais
desenvolvidas da argumentação jurídica, as que se desenvolvem já a
partir dos anos setenta (MacCormick, Alexy, Peczenik, Aarnio ... )
2. Um conceito complexo poderia dizer-se que aquilo que as caracteriza essencialmente é o
esforço para integrar duas noções distintas de argumentação: a noção
O conceito de argumentação é um conceito complexo, como ine- lógico-formal, vinculada à racionalidade formal, e outra concepção
vitavelmente ocorre com as noções mais básicas que se usam em ligada ao que, em termos gerais, poderia chamar-se racionalidade
qualquer disciplina. Com frequência, o primeiro que se encontra (e prática; por isso, os (bons) argumentos jurídicos devem cumprir os
que se procura) num livro de argumentação é alguma clarificação requisitos da lógica formal (consistência das premissas, respeito pelas
88 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 89

regras de inferência na passagem das premissas à conclusão) e da Por último, todo o argumento prático em sentido normativo estabe-
racionalidade prática (universalidade, coerência, etc.); esse é também lece como se devem avaliar as razões substantivas" (Redondo, 1996, p.
o sentido da famosa contraposição entre o que costuma chamar-se 256; Atienza, 2000, p. 38). Parece-me, todavia, que esta análise resulta
(de acordo com Wróblewsky) a justificação interna (a de carácter insatisfatória, não só porque deixa de fora outros sentidos relevan-
lógico-dedutivo: a passagem das premissas à conclusão) e a justifica- tes de "argumentar" (como em breve se verá), mas sobretudo, porque
ção externa (a justificação das premissas, que parece exigir algo mais entre os diversos sentidos em que se fala de argumentar parece existir
que esse tipo de lógica). alguma unidade que essa análise não apreende. É certo que Redondo
Ora bem, embora possamos aceitar, sem mais, que a noção de assinala que essas três noções de argumentação têm em comum uma
argumentação jurídica é complexa e que não se pode dar conta da mesma referência ao conceito de razão, mas com isso se ganha pouco
mesma sob uma única perspectiva (quer seja a da lógica dedutiva, todas as vezes que, segundo ela, se trata de três significados distintos
quer a dos princípios gerais, da retórica, da racionalidade prática ... ) de razão. Em definitivo, o que parece desacertado na sua análise é
isso não quer dizer, nem muito menos que saibamos com precisão o assumir, sem mais, que as dificuldades do conceito de (ou da expres-
que significa argumentar. Para começar, em que sentido se pode dizer são) "argumentação" provêm simplesmente do seu carácter equívoco. 5
que a noção de argumentação é "complexa"? Em que consiste essa 2. Outra maneira de nos apercebermos da complexidade de
complexidade? "argumentação" (na realidade, uma variante da anterior) seria a
seguinte. Parte-se de que, com efeito, existem diversas noções de
1. Em certas ocaSlOes, um conceito, (ou, se preferirmos, um "argumentação", mas entende-se que uma delas tem um carácter
termo, uma palavra) pode tornar-se complexa, dificil, simplesmente privilegiado. Existirá, portanto, algo assim como um significado
porque é usada de maneira equívoca, isto é, uma mesma expressão próprio ou estrito de argumentação (o que, como é evidente, não
usa -se com significados que nada têm que ver entre si. A tarefa de constitui motivo para supor que se incorra em algum tipo de fim-
esclarecer o conceito (a ambiguidade da expressão) consistirá então darnentalismo linguístico), e ainda significados derivados ou apro-
simplesmente em mostrar essa pluralidade de significados. Isto é o ximativos: a argumentação ou os argumentos - neste sentido
que faz, por exemplo, Cristina Redondo, quando distingue três noções análogo - compartilhariam alguns dos traços (mas não todos)
distintas de argumento judicial enquanto subtipo dos argumentos da argumentação (ou dos argumentos) genuína (os). Esta estra-
práticos: "a) o que reconstitui as etapas dedutivas da justificação, b) o tégia é aquela a que, com grande frequência, recorrem os lógicos
que representa o processo psicológico do juiz e c) o que pretende (a que pode também encontrar-se em Redondo), ao privilegiar a
garantir uma justificação substantivamente correctá'. "Os três esque- noção de argumento dedutivo; mas também costumam proceder
mas de 'raciocínios práticos' - continua Redondo - conservam assim, ainda que em sentido contrário, os partidários dos princí-
uma relação directa com as distinções apontadas acerca dos signi- pios gerais (tópica), da retórica, etc., para os quais, um argumento
ficados de 'razão' (como premissa de um argumento, como motivo lógico-dedutivo seria algo como um vestígio residual extremo, de
e como justificação). Todo o argumento prático em sentido lógico
inclui razões-premissas. Todo o argumento prático em sentido téc- 5 Em termos escolásticos, caberia recordar que um termo pode não ser unívoco,
nico- resconstrutivo, aplicado a uma acção, inclui razões explicativas. nem equívoco, mas análogo.
90 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 91

argumento: em sentido estrito, um argumento não é um argumento da linguagem, que se distingue de outros usos porque para argu-
lógico-dedutivo. 6 Aquilo que aqui caberia objectar é, por um lado, mentar não basta emitir (em determinadas circunstâncias) Um certo
que não se vê porque razão haja que privilegiar um, de entre os enunciado (como acontece com ordenar ou descrever), mas requer,
diversos significados de argumentar; e, por outro lado, que mesmo além disso, que se acrescentem razões (a favor ou contra uma deter-
que houvesse alguma razão para proceder assim, teríamos todavia minada tese ou "pretensão"). Ora bem, embora argumentar seja um
que dar conta de como se relacionam entre si todos esses significa- jogo linguístico e inclusivamente existam diversos jogos argumen-
dos, ou em que sentido um deriva ou está conectado com outro. Por tativos, daí não resulta que esse conceito apresente o tipo de com-
exemplo, porquê partir de que o significado básico de argumento no plexidade que encontramos no de "jogo". A razão fundamental é
caso do Direito é o que é dado pela lógica dedutiva ou pela retórica? que os diversos tipos de argumentação (de jogos argumentativos)
E seria realmente útil para o estudo retórico dos argumentos saber mantêm entre si uma relação muito mais estreita do que aquela
que estes, ou alguns destes, não são considerados como argumentos que existe entre os diversos exemplos de jogos anteriormente recor-
em sentido estrito (no sentido da lógica formal)? dados; como consequência, não se coloca (a sério) o problema de
3. Outra razão (distinta da simples ambiguidade) para que um como distinguir, digamos, a lotaria do futebol (pelo contrário: pode
conceito possa tornar-se complexo é conter alguma forma parti- ser interessante colocar-se porque consideramos ambas as activi-
cularmente complexa de ambiguidade, de maneira que não seja fácil dades como "jogos", apesar de serem tão distintas: o que podem
(ou seja impossível) identificar uma propriedade ou um conjunto ter em comum) mas sim que é um problema separar com nitidez a
de propriedades que se adeqúem a todas as acepções em que se argumentação lógico-dedutiva da de carácter retórico, ou a retórica
emprega o conceito. Um exemplo clássico é o do "jogo"; não é fácil da dialéctica. Dito de outra maneira, os diversos tipos de argumen-
saber o que podem ter em comum actividades tão distintas como tação partilham entre si muito mais do que um certo traço familiar;
o xadrez, a lotaria ou o futebol. Argumentar, de certo, pode ver- não é só o facto de se parecerem em algum aspecto ou combinação
-se também como um jogo, como um jogo de linguagem, e isso de aspectos (como o que faz com que conheçamos alguém pelos
pode ser um ponto de partida interessante para compreender o que seus traços exteriores como pertencente à família Pérez; em alguns
significa argumentar. No famoso trecho de Investigações filosóficas casos será a face arredondada, e noutros certa forma de sorrir, etc.),
em que Wittgenstein (1988, p. 39) enumera, a título de exemplo, a mas sim que, em algum sentido, todos possuem as mesmas carac-
pluralidade de usos da linguagem, de actividades que podem rea- terísticas, pertencem a uma mesma classe definida por uma con-
lizar-se com a linguagem, não inclui argumentar, mas parece claro jugação de propriedades essenciais ou definidoras (como quando
que esse seria um deles. De facto, Toulmin (1958), na peugada de enumeramos tipos de famílias: famílias numerosas, famílias mono-
Wittgenstein, considerou a argumentação como um uso específico parentais, famílias burguesas, famílias de facto, etc.).
4. Outra possibilidade a que se recorreu com fr~quência nos
6 Na realidade, a mesma estratégia a que recorre Finnis (2000, pp. 304 e
últimos tempos, para elucidar o significado de muitas noções de
55.) para definir Direito; segundo ele haveria um significado central ou local de
Direito (o Direito, enquanto ordenação mediante o exercício da autoridade da vida
uso frequente nas ciências sociais é a categoria de conceitos essen-
social dirigida à ordenação do bem comum) e outros significados derivados ou cialmente controvertidos ou impugnados. Segundo o conhecido
secundários. trabalho de Gallie (1998), esses conceitos (exemplos típicos são o
92 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 93

de "democracia" ou o de "justiça social") caracterizam-se por que: Ou a seguida por Rawls 7 em Uma teoria dajustiça; para este último, o
a) são valorativos; b) aquilo a que se atribui valor é a algo inter- conceito de justiça (de instituições justas) inclui as noções de "ausên-
namente complexo; c) que se pode descrever de diversos modos ciade distinção arbitrária" e equilibrio correcto" que ficam em aberto
(contêm, pois, certa ambiguidade; cf) o seu significado modifica-se para que cada um as interprete de acordo com os princípios de justiça
essencialmente segundo certas circunstâncias modificadoras, que que perfilha (Rawls, 1997, p. 22). E no que se refere ao conceito de
não se podem descrever com antecipação (são, pois, conceitos per- positivismo jurídico (como se viu no capítulo anterior), González
sistentemente vagos), e e) o seu carácter controvertido reconhece- Vicén distinguiu o positivismo jurídico, enquanto conceito histó-
-se, enquanto cada grupo social está consciente de que o uso que rico (a ideia de que o Direito é um fenómeno social e histórico de
se faz do conceito é impugnado por outros grupos (por exemplo, sociedades concretas; face à ideia abstracta ou metafísica do Direito
alguém de ideologia socialista sabe que o que entende por "jus- natural) das diversas teorias (ou concepções) do positivismo jurídico,
tiça social" não é aceitável para um conservador ou liberal). Toda- que viriam a ser interpretações distintas desse mesmo conceito: o
via, não parece que o conceito de "argumentação" obedeça a esse positivismo voluntarista, historicista, formalista e realista, etc.
padrão ou, pelo menos, não totalmente: "argumentar" não possui a Pois bem, parece-me que um método de análise semelhante é
carga valorativa que se pode encontrar em "democracia" ou "justiça o que se pode utilizar com proveito para "argumentação", embora
social", e, sobretudo, em relação ao conceito de argumentação não com a seguinte precisão. Tanto ''justiça'' como "positivismo jurídico"
existe uma disputa a que seja impossível pôr fim (como acontece podem considerar-se conceitos essencialmente controvertidos ou,
nos outros casos). A seguir veremos o significado desta última afir- pelo menos, como conceitos com uma forte carga valorativa; essa é
mação. a razão para que a distinção entre conceito e concepção seja uma
5. Por fim, caberia pensar em aplicar ao caso da "argumenta- maneira de encontrar um acordo (a nível do conceito) que resulte
ção" a distinção entre conceito e concepção que se utilizou em algumas compatível com a forte controvérsia que caracteriza o nível das con-
ocasiões para aclarar noções como a de justiça ou positivismo jurí- cepções (cada uma das concepções é, de certo modo, a negação das
dico. A propósito de "justiça", o procedimento consiste em distin- outras). Mas com "argumentação" não acontece o mesmo. Ou seja,
guir entre uma noção muito ampla, um conceito, que possa gozar de por não ser um conceito, parece possível elaborar uma noção (um
um amplo consenso, para construir a partir daí diversas concepções conceito) muito abstracta e, desde logo, distinguir diversas concep-
que viriam a consistir em interpretações distintas dessa formulação ções da argumentação que não teriam razão para ser incompatíveis
geral. Por exemplo, a estratégia seguida por Perelman num trabalho entre si. Digamos que aquilo que explica a pluralidade de concepções
muito influente dos anos quarenta (Perelman, 1945) em que partia em torno de "argumentação" não é o pluralismo valorativo (como
da definição de justiça (a regra formal da justiça) como "tratamento seguramente acontece com "justiça" e "positivismo jurídico"), mas
igual dos indivíduos pertencentes à mesma categoria" para, a par- o pluralismo contextual: não (ou não tanto) que tenhamos diversas
tir daí, distinguir diversas concepções de justiça (diversos critérios
materiais) que dão origem a construir de maneiras distintas as cate-
7 Rawls faz referência a uma passagem de O conceito de Direito de Hart que
gorias de indivíduos (por exemplo: "a cada um o mesmo", "a cada um poderia ser influenciada por Perelman; de facto, Hart escreveu um prefácio para a
segund o a sua categona,. ""a cad a um segund o o seu tra balho", etc. ) . edição inglesa de livro de Perelman que incluía o trabalho antes mencionado. .
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concepções sobre o valor de argumentar, mas que estamos conscien- do conjunto) é o de sustentar (refutar, modificar, etc.) uma tese, uma
tes de que não se argumenta - não se pode argumentar - de igual pretensão, fornecendo argumentos para tanto.
modo em todos os contextos. Esse ter que dar razões (razões formuladas - ou formuláveis -
em linguagem) é o que faz com que possamos distinguir a argumen-
tação de outros processos de resolução de problemas, como os que
3. O conceito de argumentação consistem em recorrer à força. Como é evidente, o recurso à força
pode supor também o uso da linguagem, mas nesse caso a linguagem
Se alguém se situa, portanto, numa perspectiva muito abstracta e trata cumpre, caberia dizer, um papel simplesmente instrumental; pode
de descobrir quais são os elementos comuns presentes em qualquer usar-se a linguagem para proferir uma ameaça, mas o que faz com
ocasião em que tenha ouvido dizer que existe uma argumentação que seja uma ameaça (que o outro a interprete assim) é algo externo à
(quer se trate da noção utilizada pelos lógicos, pelos psicólogos, pelos linguagem (que eu não disponha de certos recursos como força fisica,
linguistas, pelos juristas ou pelas pessoas comuns e vulgares) chega- dinheiro, influência, etc., ou que o outro creia que disponho deles).
ria, em minha opinião, à identificação dos quatro aspectos seguintes: No caso da argumentação, poderíamos dizer que a relação com a lin-
guagem é mais intrínseca: a linguagem não é simplesmente um meio
1. Argumentar é sempre uma acção relativa a uma linguagem. para comunicar uma argumentação, mas que argumentar consiste em
Acabámos de ver que argumentar é um dos jogos, dos usos da lin- usar de certa forma a linguagem: dando argumentos (que, como é
guagem. Também tínhamos visto, a propósito da conexão entre evidente, podem referir-se ao mundo, a factos) a favor ou contra uma
argumentar e decidir, que o sujeito que delibera no seu íntimo para determinada tese.
alcançar uma decisão, em algum sentido também argumenta. Este <l1tanto ao mais, na resolução de quase todos os problemas não
último aspecto não implica, na realidade, qualquer contradição com o só se trata de argumentar mas também, com bastante frequência,
anterior, dada a estreita conexão existente entre o pensamento e a lin- existem quer aspectos argumentativos, quer não argumentativos: por
guagem: não parece que pudéssemos deliberar se não fosse por pos- exemplo, no caso de uma negociação, as posições de poder das partes
suirmos uma linguagem, e por algum "logos" se ter traduzido tanto desempenham um papel decisivo, mas isso não dispensa que também
pela linguagem como pela razão. De qualquer modo, o que aqui nos argumentem; ou no caso da tomada de uma decisão judicial, que é o
interessa é a argumentação (ou os argumentos) na medida em que se produto, não só dos argumentos aduzidos pelas partes, mas também
plasmam_(ou podem plasmar-se) numa linguagem: oral ou escrita. de outros elementos presentes na situação e que não têm carácter
Enquanto uso específico da linguagem, argumentar distingue-se argumentativo (não se traduzem ou exprimem por argumentos).
de outros usos como, por exemplo, prescrever, descrever, perguntar, Além disso, a necessidade da linguagem para a argumentação não
etc. Todavia, isso não impede que numa argumentação apareçam significa que (sempre que se argumenta) seja necessário usar expli-
também esses outros usos da linguagem; isto é, quando alguém argu- citamente a linguagem. Por exemplo, num tribunal, a apresentação
menta costuma também descrever, afirmar, supor, formular pergun- fisica da arma com que presuntivamente se cometeu o homicídio
tas, etc.; se identificamos um conjunto de actos linguísticos como pode entender-se como uma forma de argumentar porque, no con-
argumentação é porque interpretamos que o seu sentido (o sentido texto adequado, isso equivaleria a ter dito (ou poderia reconstituir-se
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linguisticamente como): "a arma com que se cometeu o homicídio argumento? Isto acontece inclusivamente nos casos mais banais
deveria ter as características A, B, C; Esta arma (como pode ver- como o exemplo académico: "todos os homens são mortais; Sócra-
-se) tem essas características; portanto (provavelmente) esta é a arma tes é um homem; portanto, Sócrates é mortal". Aquilo que dá
com que se cometeu o homicídio". Algo parecido com isto é o que sentido ao encadeamento destes enunciados é oferecerem uma res-
ocorre num dos clássicos do cinema jurídico, Doze homens sem Pie- posta à pergunta que alguém possa ter formulado (não importa se a
dade; o protagonista, Henry Fonda, a dado momento da deliberação sério ou não) sobre se Sócrates é mortal. Esta, de certo, não é uma
dos jurados, puxa de uma navalha igual à usada no crime e crava- característica peculiar do uso argumentativo da linguagem; outros
-a espectacularmente sobre a mesa, conseguindo assim a atenção de usos linguísticos (e talvez todos eles) podem ser vistos desta forma,
todos e atacando desta maneira a tese de que a arma homicida era como a resposta a algum problema ou a alguma pergunta prévia
de um tipo muito pouco usado. 8 Outro exemplo (agora, divertido) que alguém possa formular. Mas, em todo o caso, os problemas ou
em que um dos passos da argumentação não é uma acção linguística perguntas de tipo argumentativo têm uma particularidade que não
(mas pode converter-se em linguagem) é proporcionado pelo filme se verifica nos outros casos. Talvez, escrever uma novela ou dar uma
Quando Harry encontrou Sally. Há nele uma cena em que a protago- ordem como a resposta a alguma questão, a algum problema, mas
nista Sally, que está a comer num restaurante cheio de gente com um em sentido distinto do que acontece no caso de argumentar; assim,
amigo, Harry, que lhe está a relatar as suas qualidades como amante, por exemplo, quem está a narrar um facto ou a ordenar-nos que
simula ter um orgasmo. O argumento (um argumento bastante con- façamos determinada coisa, só terá que argumentar (e deixará sim-
tundente, embora o formule sem articular palavra) pode traduzir-se plesmente de narrar ou ordenar) se surge alguma questão do tipo:
linguisticamente (deixando impücita alguma premissa que o leitor por que pensar que foi X que praticou Y?, ou por que devo fazer A?,
não terá dificuldade em suprir) assim: "os orgasmos - como te terás ou seja, perguntas que exigem razões.
dado conta - podem ser simulados; portanto, é possível que não 3. Há duas formas características de ver a argumentação: como
sejas tão bom amante como imaginas". um processo, como uma actividade (a actividade de argumentar) e
2. Uma argumentação (como se indicou já em diversas opor- como o produto ou o resultado da mesma (os enunciados ou as pala-
tunidades) pressupõe sempre um problema, uma questão. 9 O pro- vras em que consiste ou por que se traduz a argumentação: os argu-
blema é o que suscita a necessidade de argumentar, de envolver-se mentos). Esta é uma ambiguidade, de certo modo não eliminável
numa actividade linguística dirigida precisamente a encontrar, pro- do termo "argumentação" (nas páginas anteriores utilizou-se muitas
por, justificar... uma solução, uma resposta ao mesmo. Essas ques- vezes com esse sentido ambíguo), mas da qual convém ter consciên-
tões, como vimos, podem ser de índole muito variada: teórica ou cia. Sob a primeira perspectiva, a argumentação pode considerar-se
prática, real ou hipotética, concreta ou abstracta ... Mas parece que, como toda aquela actividade que ocorre entre um termo a quo, o pro-
em relação a qualquer argumentação, como quer que se entenda, blema, e um termo ad quem, a solução, a resposta ao mesmo. Mas se
sempre é possível perguntar-se: a que questão visa responder o nos situamos na segunda das perspectivas, a argumentação vem a
ser o conjunto dos enunciados (ou, talvez melhor, das entidades) nas
8 Agradeço a Daniel Gonçálvez Lagier ter-me proporcionado este exemplo. quais se deve distinguir sempre três elementos: as premissas (aquilo
9 Por ora, uso como termos sinónimos, "problema" e "questão". de que se parte), a conclusão (aquilo a que se chega) e a inferência
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(a maneira como estão unidas as premissas e a conclusão, a relação no de que sempre existem critérios para avaliar uma argumentação,
que existe entre os dois tipos de entidades). sempre parece fazer sentido perguntar-se se um argumento é bom
Isto significa que um fragmento da linguagem usado exclusiva- ou mau, aparentemente bom mas na realidade mau, melhor ou pior
mente com propósitos descritivos, como acontece com a narração do que outro, etc. Como é evidente, "bom" é utilizado aqui num sen-
dos factos de uma sentença (por exemplo: "F, em tal dia e a tal hora, tido muito geral (se preferirmos, como um conceito), de maneira que
entrou no domicílio de G e ... "), não é, enquanto tal, um argumento, os critérios de bondade (as concepções de bom) não são os mesmos:
se bem que, de outra perspectiva, pode considerar-se como parte, consoante se considerem os argumentos, às vezes "bom" quererá dizer
como a premissa, de um argumento (cuja conclusão poderia ser "F válido (dedutiva ou indutivamente válido), outras vezes sólido, forte,
deve ser condenado à pena P") ou inclusive como a conclusão de um relevante, eficaz, persuasivo, etc.
argumento ("dado o testemunho coincidente de H, de I, etc., deve
concluir-se que F, em tal dia e a tal hora ... "). Ou seja, no uso sim-
plesmente descritivo ou prescritivo da linguagem não pode falar-se 4. Concepções da argumentação
de premissas e de conclusão, mas uma descrição ou uma prescrição
pode (funcionalmente) desempenhar o papel de uma premissa ou de A distinção entre o conceito e as concepções da argumentação
uma conclusão. baseia-se em que os anteriores elementos, presentes em qualquer
Pelas mesmas razões, em princípio tão-pouco podemos considerar tipo de argumentação, podem, não obstante, interpretar-se de diver-
como argumentos, enunciados que simplesmente enunciam verda- sas maneiras, cabe pôr a ênfase em algum dos elementos em vez dos
des lógicas, tautológicas, do tipo de "nenhum casado é solteiro": aqui outros, etc. Por exemplo, relativamente à antes mencionada ambi-
não ocorre qualquer ligação de um enunciado com outro, nenhuma guidade entre a argumentação vista como uma actividade ou como
inferência. Se em certas ocasiões podemos considerá-lo como um produto (a deliberação que tem lugar entre os membros de um tri-
argumento não é tanto, em minha opinião, porque possa dizer-se que bunal é basicamente - ainda que não seja só isso - uma actividade
uma tautologia é um argumento no qual o conjunto de premissas argumentativa, cujo resultado é uma sentença que - embora não só
está vazio (assim continuaríamos sem ter premissas e sem relação - pode ver-se como um argumento ou um conjunto de argumentos)
de inferência), mas porque podemos vê-lo como a conclusão de um há concepções (ou maneiras de contemplar) a argumentação, como a
argumento em que funcionariam como premissas as definições dos da lógica dedutiva, que se centram de maneira preferencial ou exclu-
termos usados ("dado que por 'solteiro' se entende ... e por 'casado' ... , siva na argumentação como resultado, enquanto que as concepções
ninguém casado é solteiro"). A noção de argumento, portanto, é emi- de tipo dialéctico (como a de Toulmin) põem a ênfase na actividade
nentemente funcional: um mesmo enunciado ou conjunto de enun- de argumentar.
ciados pode ver-se ou não como um argumento (ou como parte de Como anteriormente se mencionou, pelo menos nos últimos
um argumento) segundo a maneira como seja utilizado, de acordo tempos, foi frequente contrapor duas maneiras distintas de enten-
com o seu uso. der a argumentação, e essa contraposição foi, além do mais, o que
4. Finalmente, argumentar é uma actividade racional não só no impulsionou o desenvolvimento da teoria da argumentação jurídica.
sentido de que é uma actividade dirigida a um fim, mas também Um dos pólos da mesma parece ser fixo (a lógica formal dedutiva),
100 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 101

enquanto que o outro muda de uns autores para outros: os prin- 2. "Um grupo de ensinanças sobre o método científico e sobre
cípios gerais, no caso de Viehweg, a retórica, no de Perelman ou como a investigação das ciências naturais pode provocar o
a "lógica operativa" - a dialéctica - para Toulmin. Entre estas aumento do nosso conhecimento das leis físicas".
três últimas concepções da argumentação existe sem dúvida certa 3. "Um conjunto de sugestões sobre a arte da argumentação,
semelhança, certo parentesco, mas também diferenças: Viehweg que é a arte de conseguir destruir os argumentos daqueles
põe a ênfase na descoberta das premissas, Perelman na persuasão que não estão de acordo connosco e de impedir que os nossos
do auditório e Toulmin na interacção que tem lugar entre o pro- próprios argumentos fiquem expostos a semelhantes ataques"
ponente e o oponente de um processo argumentativo. Pois bem, a
ide ia que quero defender aqui é que, basicamente, haveria que dis- Pois bem, para obter o quadro completo bastaria acrescentar -
tinguir não duas, mas três concepções ou maneiras de contemplar a nas alíneas 1) ou 2) - a teoria sobre o silogismo prático que Aris-
argumentação; ou, melhor dito, que existem três dimensões da argu- tóteles tratou sobretudo em De motu animalium (quer dizer, fora do
mentação (cada uma delas vinculada - embora não de maneira Organon) onde se desenvolve a sua concepção de raciocínio prático;
exclusiva - a determinado contexto ou situação) que poderão dar e, na alínea 3), os estudos sobre a retórica (que ficaram, em geral,
lugar a outras tantas concepções se cada uma dessas três dimensões também fora do Organon.
- como às vezes acontece - se tratar como se fosse a única ou A Summa Theologica de Tomás de Aquino é um bom exemplo
a fundamental. Em minha opinião, seriam a concepção ou pers- de como podem apresentar-se, magistralmente combinadas, as três
pectiva formal, a material e a pragmática, podendo fazer-se dentro concepções ou dimensões a que antes me referia. A dimensão formal
desta última, uma sub-distinção entre a dialéctica e a retórica. lO está presente através da teoria silogística: a densidade argumentativa
Trata-se, segundo me parece, de uma distinção básica e bastante da Summa é tal que apenas poderia identificar-se algum parágrafo
óbvia, que pode encontrar-se em muitos autores, ainda que neles, em que o leitor não possa reconhecer a forma de algum argumento
talvez, não esteja descrita exactamente da mesma maneira como o lógico. A organização da obra em questões e artigos obedece a um
farei. Darei alguns exemplos disso. esquema dialéctico em que se começa por colocar um problema
Referindo-se aos escritos lógicos de Aristóteles, Nidditch (1980, (por exemplo, o artigo 1 da questão 94: "a lei natural é um hábito?");
p. 13) distingue cinco aspectos. Pondo de parte discussões acerca da assinalam-se logo as objecções (que parecem conduzir a considerá-
linguagem comum e uma série de pontos de vista sobre a correcta -la como um hábito) e as opiniões em sentido contrário; continua-se
organização de um sistema na ciência matemática, o que fica é: com a solução, e termina-se respondendo às objecções e às opiniões
em sentido contrário. Tudo isto é dirigido, naturalmente, à funda-
1. "Uma teoria sobre a forma de raciocínio certo, a que Aristó- mentação material de uma determinada tese, à solução do problema,
teles deu o nome de silogismo". em que desempenha um papel importante a elaboração de distinções
(o hábito - diz-nos Tomás de Aquino - pode entender-se de duas
10 No que segue (assim como nos três capítulos sucessivos) falarei
maneiras: num dos seus sentidos, a lei natural é um hábito; e no
preferentemente de "concepção" mas, por assim dizer, com a "reserva mental" de
que, em minha opinião, cada uma delas teria que ser considerada melhor como outro, não) e ao recurso a conhecimentos provenientes da ciência, da
uma dimensão, que como uma concepção. filosofia, da experiência comum e, sobretudo, da teologia.
102 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação
103

Como é evidente, esta distinção existe também na teoria con- e ser logicamente consistentes (racionalidade L); a racionalidade
temporânea da argumentação. Como exemplo recente e valioso pode entendida como a exigência de que as premissas (o que dá apoio
ser dado o livro de Luis Veja (2003), no qual depois de assinalar que - suport - à conclusão) sejam suficientemente coerentes (racio-
propriamente não existe nos nossos dias "uma teoria" da argumen- nalidade S - de suport), e a racionalidade discursiva, isto é, a racio-
tação, distingue três perspectivas ou enfoques através dos quais se nalidade entendida no sentido em que a conclusão não poderia ser
estudam os argumentos: a perspectiva lógica ou analítica (onde inclui refutada no âmbito de um discurso em que os diferentes indivíduos
tanto a lógica como a metodologia da prova científica), a dialéctica e discutissem de maneira imparcial e objectiva (racionalidade D).12
a retórica. l l Adiante, efectuarei uma primeira caracterização dessas três con-
E, finalmente, entre os autores que elaboraram a chamada "teoria cepções ou dimensões da argumentação centrando-me unicamente
padrão da argumentação jurídica" também podem encontrar-se estas nas suas características fundamentais e nas diferenças que importa
três concepções da argumentação e, de uma maneira muito clara, em assinalar entre elas. Deixo o seu estudo pormenorizado para os ulte-
Summers.Num importante trabalho de 1978, Summers sublinha que riores capítulos deste livro.
o que lhe interessa estudar não é a validade lógica, (a forma dedu-
tiva) dos argumentos, nem tão-pouco (ou, pelo menos, não essen-
cialmente) a força persuasiva dos mesmos: a respectiva capacidade 5. A concepção formal. a concepção material e a concepção
para persuadir as partes, os juízes, etc.; mas a sua força justificativa, pragmática da argumentação
isto é, de que maneira constroem os juízes - os juízes da common
law - as premissas, as razões, que devem servir como justificação 1. A vinculação da argumentação com a noção de problema, com a
das suas decisões: o peso ou a força da justificação não reside, em sua diversidade de situações em que surge a necessidade de argumentar, é
opinião, na lógica ou na retórica, mas no que pode chamar-se (em um a chave para traçar a distinção entre estas três concepções.
dos sentidos dessa expressão ambígua) "o raciocínio prático", isto é, a 1.1. Um primeiro tipo de situação tem que ver com a resolução
deliberação prática, a técnica que consiste em construir e confrontar de problemas formais, como, por exemplo, um problema matemá-
entre si as razões para chegar a uma determinada decisão (vid. Sum- tico ou um problema lógico. Se dizemos que são problemas for-
mers, 1978, p. 712, nota 10). mais é porque, em certo sentido, não têm que ver com a realidade,
Mas também em Peczenik (1989, p. 119). Segundo este último, mas que abstraem de como realmente é o mundo. Vejamos alguns
haveria três exigências de ordem racional que restringem a arbitra- exemplos de problemas que são colocados num livro bem conhe-
riedade do raciocínio moral e do raciocínio jurídico: a racionalidade cido de lógica (o de Copi, '1994') como exercícios para comprovar
lógica e linguística que consiste em que os enunciados morais e jurí- que o leitor compreende as noções lógicas que o respectivo autor foi
dicos possam ser apresentados como a conclusão correcta de uma introduzindo e para desenvolver a capacidade de raciocínio lógico
série de premissas que têm que estar linguisticamente bem formadas

U A tríplice classificação dos raciOCInlOS jurídicos que se encontra em


Mais adiante (cap. 5, ap. 2) referir-me-ei de novo a este triplo enfoque para
11
Kalinowski, a que me referirei no capítulo seguinte, também obedece ao mesmo
o diferenciar daqule que proponho. critério.
104 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 105

dos leitores: 1) identificar as premissas e as conclusões de determi- A solução do problema consiste, em ambos os casos, em assinalar
nadas passagens; 2) distinguir os raciocínios dedutivos dos indu- quais são as regras de inferência dedutiva (distintas em cada exem-
tivos; 3) traduzir cada uma das referidas proposições e a notação plo) que permitem passar das premissas à conclusão, e nada mais.
lógica de funções proposicionais e quantificá-las, e 4) construir uma Além disso, é óbvio que esse tipo de raciocínio pode ser realizado por
prova formal de validade para uma série de raciocínios. um indivíduo isolado. É evidente que se pode estudar um livro de
A resolução de todos estes problemas pressupõe levar a cabo uma lógica acompanhado, e isso pode tornar a tarefa mais divertida, mais
tarefa argumentativa ou, pelo menos, uma tarefa cujo resultado pode estimulante, etc. Mas isso é acessório, no sentido de que a solução
apresentar-se de forma argumentativa. Assim, para resolver o primeiro do problema é a que é, independentemente de quem o aborde, da
exercício, o raciocinador terá de partir do que se lhe explicou que são circunstância, do propósito, etc.
(ou como funcionam) as premissas e as conclusões de um argumento; Essa natureza abstracta dos problemas lógicos (ou matemáticos)
comprovar quais são, nessa fase, as proposições que desempenham cada não significa que essas disciplinas (esses problemas) não estejam
uma dessas funções; e, concluir, por exemplo, dizendo: "a premissa é ... e relacionados com alguma prática social. Como é evidente, a lógica
a conclusão ... ". Ou seja, a sua argumentação viria a ser: "Por premissa (a lógica formal) é em si mesma uma prática em que participam os
entende-se ... e por conclusão ... ; portanto o texto que funciona como lógicos profissionais e também - se quisermos - os estudantes de
premissa é ... e como conclusão ... " O essencial aqui é que para levar a lógica, que se organiza numa comunidade que promove a realização
cabo essa tarefa não necessita de comprometer-se com o que o texto de congressos e outra série de actividades, etc. Mas, acontece que,
em questão diz; assim se se tratasse de um texto do marquês de Sade: além disso - e daí a sua enorme relevância social - o estudo dos
("Mas, sustentam, o homem deseja viver em sociedade; portanto, deve aspectos formais dos raciocínios não interessa unicamente aos lógi-
renunciar a uma parte do seu bem privado em favor do bem público" cos (que fazem dele um fim em si mesmo), mas a todos aqueles que
'Copi, 1994, p. 11') é totalmente indiferente para, resolver este exer- participam em qualquer tipo de actividade que tenha algum aspecto
cício, que quem o faça partilhe ou não dessa filosofia política ou sinta argumentativo. Dito de outra maneira, exercitar-se a resolver proble-
simpatia ou aversão pelo marquês em questão; basta que compreenda mas formais é um bom treino para enfrentar problemas que não são
gramaticalmente o texto e os conceitos da premissa e da conclusão simplesmente formais.
E algo parecido cabe dizer dos outros casos. Por exemplo, se o que se 1.2. Com efeito, a necessidade de argumentar não costuma
pretende é construir uma prova formal (exercício 4) é indiferente que resultar da necessidade de resolver um problema estritamente for-
o problema seja expresso numa linguagem natural ou numa linguagem mal. Surge mais frequentemente em relação a problemas materiais
formal; quer dizer, tanto importa que se trate de "ou bem o gerente como os seguintes: explicar um fenómeno, prever um aconteci-
não observou a mudança, ou bem a aprova. Observou tudo muito bem. mento, averiguar que alguma coisa aconteceu de tal maneira ou que
De modo que deve aprová-la" (p. 342), ou de tem tais e quais características, justificar uma acção, recomendar a
alguém que faça tal acção, etc. Trata-se, como poderíamos dizer,
dos problemas das ciências, das tecnologias, da moral, do Direito ...
e da experiência corrente em que decorre a nossa vida. Poderei dar
alguns exemplos.
106 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 107

Observo que uma substância se dilata quando é aquecida e trato o ladrão não pode ter sido o forasteiro (mas alguém da casa)". E
de explicar o fenómeno; a explicação poderia ser: "dado que os metais se em vez de perguntarmos, como fez Sherlock Holmes para averi-
se dilatam com o calor e que esta substância é metálica, esta é a razão guar quem não tinha sido (e quem tinha sido) o ladrão, fizéssemos
(a explicação) para que se dilate". Também poderia (previamente ou a pergunda de como se explica o facto de os cães não terem ladrado
ao mesmo tempo) fazer-me a pergunta não de como se explica o durante a noite, essa explicação também teria uma forma argumen-
fenómeno que observo, mas de que natureza é a substância em ques- tativa: "os cães costumam ladrar aos forasteiros e dado que quem
tão, de que tipo de objecto se trata; a resposta poderia ser: "dado que roubou o cavalo do estábulo durante a noite não era um forasteiro,
os metais se dilatam de certa forma típica com o calor e que este essa é a explicação para os cães não terem ladrado (de ninguém os ter
objecto se dilata dessa forma típica quando é aquecido, isso significa ouvido ladrar)".
que se trata de um metal". Ou poderia tratar-se de prever algo que No caso da moral, os argumentos não são dirigidos (ou, pelo
ocorrerá no futuro: "dado que os metais se dilatam com o calor e que menos, não centralmente) para explicar, averiguar ou prever, mas
este objecto é um metal, pode assegurar-se que voltará a dilatar-se mais propriamente a justificar (ou a criticar) acções ou a recomendar
no futuro, cada vez que for aquecido". Ou, por fim, sugerir um plano este ou aquele curso de acção. Consideremos um típico exemplo de
de acção: "dado que o instrumento que se pretende construir não problema moral: o de que, se vivemos em países ricos e desfrutamos
deve dilatar-se em presença de altas temperaturas e que os metais se de um alto nível de vida temos ou não obrigação de prestar ajuda
dilatam com o calor, os seus componentes não devem ser metálicos". àqueles que vivem em países pobres e carecem dos meios de subsis-
É fácil reconhecer que cada uma destas explicações, descobertas, pre- tência de carácter essencial. A resposta afirmativa que, num notável
visões ou recomendações reveste a forma de um argumento (cada um artigo, é dada pelo filósofo Peter Singer pode assumir a forma do
desses fragmentos linguísticos é composto de premissas e conclusão), seguinte argumento (de natureza justificativa): "Se podemos evitar
mas isso não quer dizer que explicar, descobrir, prever, ou recomendar que aconteça algo de mau sem sacrificar qualquer coisa de importân-
equivalham simplesmente a argumentar; para além de argumentar cia comparável, devemos fazê-lo; a pobreza absoluta é má; podemos
é necessário observar, medir, fazer experiências, etc., isto é efectuar evitar uma parte da pobreza absoluta sem sacrificar nada de impor-
operações que não têm um carácter (ou não de todo) argumentativo. tância moral comparável; portanto, devemos evitar parte da pobreza
Como é evidente, estas maneiras de argumentar podem encon- absoluta" (Singer, 1984, p. 287)
trar-se não só na ciência (ou na tecnologia), mas em todas aquelas Finalmente, no Direito, a argumentação justificativa desempenha
actividades, em todas aquelas práticas, em que tenham lugar explica- um papel central, mas (segundo os contextos) também têm impor-
ções, descobertas, previsões ... Por exemplo, numa das mais conheci- tância (por vezes podem ser o essencial) os argumentos dirigidos a
das histórias de Sherlock Holmes (Silver Blaze), utilizada em muitos explicar, a averiguar ou a constatar algo, a prever, ou a recomendar
livros de argumentação (vid. MacCormick, 1978; Weston, 2003, p. decursos de acção. Vejamos alguns exemplos.
20) o habilidoso detective "adivinha" que o ladrão do cavalo não pode Certo juiz toma a decisão de condenar X na pena de um ano
ter sido o forasteiro que a polícia tinha detido. A sua descoberta pode de prisão e justifica-a assim: "Qyem comete um crime de tráfico de
assumir a forma de um raciocínio: "ninguém ouviu o ladrar dos cães droga deve ser condenado à pena mínima de um ano de prisão; con-
durante a noite; mas os cães ladram aos forasteiros; de maneira que sidero provado que X cometeu o tipo de conduta que a lei tipifica
108 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 109

como tráfico de drogas; portanto devo condenar X à pena de uma pressupõe a formal. Porém, na concepção material, o assunto não
no de prisão. 13 Um advogado, que examina a cláusula de um con- se esgota aqui, não acaba nas formas, mas o essencial é o conteúdo.
trato que o seu cliente celebrou com um terceiro, prevê que se este Qyem tem que solucionar um problema material não pode adoptar
último intentasse uma acção provavehnente ganharia o pleito; o seu em relação aos enunciados, que funcionam como premissas, uma ati-
argumento poderia revestir esta forma: "X e Y celebraram um con- tude hipotética, descomprometida,14 como aconteceria na concepção
trato com uma cláusula de tipo C; nos contratos que incluem essa formal, mas tem que comprometer-se com a sua verdade ou correc-
cláusula, os juízes, em geral, costumam decidir em sentido favorável ção e, por consequência, com a verdade ou correcção da conclusão.
a quem ocupa a posição Y (de terceiro); portanto, neste caso, é muito Se os metais não dilatassem com o calor, o primeiro conjunto de
provável que os juízes decidam em sentido favorável a Y e contrá- argumentos anteriormente enunciados ficaria prejudicado. E outro
rio a X (o cliente)". Mas também poderia explicar (por exemplo, a tanto ocorreria se fosse possível provar que os cães tanto ladrão aos
um estagiário, que está a iniciar-se na profissão) por que razão isto é forasteiros como às pessoas de casa. Se (no argumento de Peter Sin-
assim: "nos contratos que contêm uma cláusula do tipo C entende- ger) houvesse fundadas razões para pensar que o princípio utilitarista
-se que quem está na posição de Y actuou de boa fé; é um princípio da ética carece de toda a plausibilidade. Se o juiz tivesse dado como
fundamental do Direito que a boa fé deve ser protegida; por isso os provado um facto apoiando-se em elementos probatórios extrema-
juízes protegem Y decidindo a seu favor". Ou poderia, naturalmente, mente débeis. Ou se o advogado tivesse uma opinião equivocada
recomendar ao seu cliente a seguinte actuação: "Dada a existência da acerca do que são e como funcionam as cláusulas de tipo C. Na con-
cláusula contratual C, é altamente provável que se perca o pleito se cepção material da argumentação não se abstrai, pois, do conteúdo,
interpusermos uma acção; existe uma boa expectativa de conseguir, embora sim - pelo menos até certo ponto - das especificidades,
mediante uma negociação, um novo contrato que satisfaça razoa- da situação, de quem argumenta. As verdades são ou não verdades,
vehnente os seus interesses, portanto, a minha sugestão é que não independentemente da maneira como as enuncia Agamemnon ou o
recorramos ao tribunal e tentemos negociar". Como resulta mais ou seu porqueiro. O raciocínio de Sherlock Hohnes estaria igualmente
menos óbvio, exemplos semelhantes poderiam colocar-se a propósito certo, ainda que tivesse ocorrido a Watson e não ao famoso detective
de legisladores, dogmáticos do Direito e outros operadores jurídicos. (mas neste caso a polícia teria seguramente demorado mais a aceitá-
Pois bem, a diferença entre o primeiro tipo de problemas (os pro- -lo). A solidez do argumento acerca da obrigação moral de ajudar o
blemas formais) e estes outros vem a ser a seguinte. A solução argu- terceiro mundo não depende de quem seja o filósofo que o formule. E
mentativa (ou o aspecto argumentativo da solução) de um problema inclusivamente os argumentos dos juízes e dos advogados são relati-
material requer que se use alguma forma de argumento (ainda que vamente independentes de quem os enuncia; de maneira semelhante
não necessariamente uma forma dedutiva), de maneira que poderia ao que aconteceria no caso de Sherlock Hohnes, os mesmos argu-
dizer-se que, nesse sentido, a concepção material da argumentação mentos na boca de um estudante de Direito, em vez de um advogado,

13 A sua justificação teria também que conter as razões por que escolheu essa

pena mínima e não outra; por que entende que se cometeu tal acto, que deve 14 "Descomprometida" em sentido material: Como é evidente, a premissa

qualificar-se de tal maneira, etc. Mas ponhamos de momento essas complicações "p 1\ q", por exemplo, compromete (formalmente) a asserção de "p" e de "q"
de lado. separadamente.
110 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 111

têm a mesma solidez, mas resultariam, em princípio, menos convin- o debate forense, em que as partes lutam dialecticamente entre si e
centes; e, no caso da justificação judicial, a diferença entre aquilo que tratam, ao mesmo tempo, de persuadir os juízes e os jurados.
enuncie o juiz (competente para resolver ocaso) ou qualquer outra Em todos estes contextos em que se produzem argumentações, os
pessoa, não reside no respectivo rigor material, mas nos efeitos que elementos formais e materiais desempenham o seu papel, mas o essen-
produz devido à posição institucional que o juiz ocupa. Mas, com cial não é que o argumento revista certa forma ou que os conteúdos, as
este último exemplo estamos a apontar, na realidade, a outra dimen- teses do orador ou de cada parte, sejam fundados, tenham força expli-
são ou concepção da argumentação, a de carácter pragmático. cativa, justificativa, etc. O decisivo é que alguém fique persuadido, que
1.3. Com efeito, existe um terceiro tipo de problema, de situação, aceite algo, que a argumentação produza determinados efeitos. Refuo-
que gera a necessidade de argumentar e que não pode classificar- -me à concepção "pragmática" precisamente porque central, aqui, são
-se nem como formal, nem material. Trata-se de situações em que os efeitos que produzem as argumentações e porque se tem em conta,
interactuamos com outro (ou com outros) porque se nos apresenta o de maneira essencial, as circunstâncias, os papéis e as acções daqueles
problema de como persuadir sobre alguma coisa ou de como defen- que argumentam. Assim como na concepção formal e também, até
der ou atacar uma tese e, por consequência, temos de conseguir que certo ponto, na material, a argumentação podia ver-se como uma acção
outros aceitem as nossas posições ou, pelo menos, que tenham que individual, agora a argumentação é necessariamente uma acção social,
aceitá-las se forem observadas certas regras que regem a discussão. algo que não pode fazer-se isoladamente (a não ser que o sujeito se
Existe aqui, por sua vez, necessidade de fazer uma distinção entre "desdobre" em dois ou mais agentes que argumentam entre si: daí a
dois tipos de situações, conforme o "outro", com quem tem lugar a bela definição - em termos dialécticos - do pensamento de Teeteto
argumentação, assuma um papel mais ou menos activo na mesma. de Platão '190a': um diálogo da alma consigo mesma).
Mas, sem entrar todavia em detalhes sobre esta distinção (na rea- Como antes assinalava, do mesmo modo que existe certa conti-
lidade uma sub-distinção) há muitos exemplos que podem dar-se nuidade (e certa sobreposição) entre os problemas formais e mate-
desse tipo geral de situação: discussões "de café" em que todos nos riais, também se justifica dizer o mesmo entre os problemas materiais
envolvemos de vez em quando; o diálogo socrático; debates entre (e formais) e os pragmáticos: o juiz que justifica a sua decisão trata
candidatos a uma eleição, por exemplo num canal da TV; discussões também de ser persuasivo para as partes (ou para os respetivos advo-
em comissões mais ou menos técnicas ou em assembleias políticas; gados ou para outro juízes ou para a comunidade jurídica em geral),
um discurso parlamentar; um sermão; hábitos sociais Gogos) como os e algo semelhante pode dizer-se dos moralistas, dos cientistas ... Mas
que existiam na Grécia clássica e que parece ter sido o contexto real o que agora interessa assinalar é a existência de situações "típicas".
em que se insere a teoria aristotélica dos Princípios Gerais e da Refu- Colocarei dois exemplos de argumentos (ou de actividade argumen-
tações do sofistas; exercícios escolares como nas sabatinas da Idade tativa) independentes, para dar resposta ao tipo de situação que agora
Média ou os torneios dos colleges americanos;lS e, como é evidente, nos interessa; mais exactamente, o primeiro seria um exemplo de
argumentação dialéctica e o segundo de retórica.
1S Existem ligas de debate com regulamentações muito minuciosas nas quais se

estabelece quem faz parte do júri, a duração de cada uma das fases, as penalizações
a aplicar, etc. O sistema já foi introduzido em Espanha: como exemplo pode 1) A e B são membros de uma Comissão de Bioética da qual tam-
indicar-se a "Liga de debate universitário do Instituto Joan Lluís Vives". bém fazem parte outras pessoas. Discutem sobre se deve permitir-se
112 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 113

ou não (se a Comissão deve pronunciar-se a favor ou contra) utilizar, com diversas enfermidades ou características para poder utilizá-las
para efeitos investigação, pré-embriões humanos que sobraram de um em investigação.
tratamento de fertilidade. O que provoca a discussão é basicamente B: O que acabas de dizer surpreende-me porque não passa de
que a lei que têm como objectivo interpretar (a lei espanhola sobre uma falácia, a do "plano escorregadio". Talvez que, em outro contexto
Reprodução Humana Assistida, de 1988) refere num dos seus artigos pudesse servir (poderia ser um argumento válido), mas não neste
que esse tipo de investigação só pode fazer-se com "pré-embriões não caso, simplesmente porque ambos pensamos que não há razões éti-
viáveis". Um trecho da discussão poderia ser o seguinte: cas que justifiquem proibir a investigação com os pré-embriões que
sobram. Lembro-te que aquilo que estamos a discutir não é se é cor-
A: Qyando a lei fala de "pré-embriões não viáveis" refere-se recto ou não investigar com esses pré-embriões (ambos já aceitámos
exclusivamente à não viabilidade por razões biológicas. Os debates a respectiva admissibilidade moral), mas o que fazer, visto que a lei
parlamentares que antecederam a aprovação da lei mostram também não previu este caso.
que esse foi o propósito do legislador.
B: O critério interpretativo que sugeres não é adequado a este Observe-se que, como não podia ser de outra forma, o que carac-
caso. Entre outras coisas, porque o legislador não estava consciente teriza um diálogo, a concepção dialéctica da argumentação, é que
do problema que ia suscitar-se com a acumulação de embriões que cada um dos intervenientes se apoia no que o outro disse (ou no que
iam sobrar. Além disso, as normas devem interpretar-se de acordo se depreende que o outro disse). A atitude de cada um dos interve-
com os fins e com os valores que visam alcançar ou assegurar, e a nientes pode ser propriamente dialogante (a cooperação na procura
interpretação ampla que proponho é a que melhor se ajusta a esses da verdade ou da correcção) ou estratégica (ganhar a contrario) ou
valores: evita que dê prioridade à destruição dos embriões em alter- pode consistir em alguma dessas duas atitudes básicas.
nativa ao respectivo uso para fins de investigação sérios. Passemos à segunda situação:
A: Mas isso pressupõe um desvio do que diz a lei. Até o Tribunal
Constitucional, na sentença em que aborda a eventual inconstitucio- 2) Em Fevereiro de 2002 16 foi divulgado um relatório da
nalidade da lei, utiliza uma interpretação exclusivamente biológica Câmara dos Lordes sobre a investigação com óvulos fecundados (ou
da viabilidade. embriões). Tratava-se de uma questão, então (e agora) extremamente
B: Está certo o que dizes sobre o Tribunal Constitucional, mas controversa e que se relaciona com o problema visto antes: A conclu-
nessa sentença não se aborda o problema que aqui nos ocupa, o de são a que chegava a comissão é que, sob certas condições, devia ser
se saber se é possível ou não investigar mediante a utilização dos permitida essa investigação e que a mesma podia fazer-se utilizando
embriões que sobram. Se o tribunal o tivesse apreciado, creio que os embriões que sobravam de tratamentos de infertilidade, ou ainda
teria tido uma opinião semelhante à minha. com embriões criados para esse efeito mediante clonagem (clonagem
A: Isso é impossível de saber, por isso não vem aqui ao caso. Por não reprodutiva ou terapêutica). Dada a previsível rejeição que essa
outro lado, a tua perspectiva é muito perigosa: se começa por consi- conclusão liberal provocaria em muitos sectores da opinião pública
derar como não viáveis embriões que, todavia, têm viabilidade bio-
lógica, isso acaba por nos conduzir a considerar não viáveis pessoas 16 Stem Cell Research Report (de 13 de Fevereiro de 2002)
o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 115
'1.14

QJ:extó.foiredigido com vista a obter um máximo de adesão: para possam sentir-se tristes pela perda natural dos embriões precoces
persuadir os indecisos e neutralizar na medida do possível os senti- antes da implantação, não existe um cerimonial de luto associado com
nientosadversos daqueles - que se sabia - não seriam persuadidos o facto, nem tão-pouco isso acontece pela perda dos embriões que
pela proposta. A propósito da questão (central para a discussão) da sobram num tubo de ensaio, após um tratamento de fertilização".
situação do embrião, pode ler-se o seguinte:
Note-se que tanto neste exemplo como no anterior é óbvia a pre-
"'4.2 (c)' Qy.ando o desenvolvimento do embrião alcança apro- sença dos elementos formais e materiais que caracterizam as outras
ximadamente as 100 células (e, contudo, é mais pequeno do que a duas concepções de argumentação. Mas há algo mais e algo que é
cabeça de um alfinete) é designado por blastócito. O blastócito é uma nuclear. Precisamente porque o objectivo essencial da informação é
pequena bola oca de células relativamente indiferenciadas. Muitas persuadir, ela mesma se apoia em ideias ou crenças que - supõe-se
das células do blastócito vão dar origem a tecidos não embrionários - transmitem aos destinatários a informação e os respectivos auto-
como a placenta ou o cordão umbilical C.•• ). Enquanto fonte de célu- res; ou seja, neste caso, não se abstrai, em absoluto, das condições que
las matriciais, o blastócito é o foco primário de grande parte do debate rodeiam quem participa na argumentação, mas pelo contrário: para
sobre o uso de embriões em investigação com células matriciais ( ... ) persuadir os destinatários, o auditório, o argumento central apro-
'(d)' ( ... ) Uma percentagem elevada de embriões precoces - mui- veita-se de sentimentos (diferentes) que as pessoas costumam ter em
tos cálculos elevam o número até 75% - perde-se de modo natural relação aos bebés e aos pré-embriões; e ao evidenciar que o blastócito
antes da implantação ( ... ). é mais pequeno que uma cabeça de alfinete, contribui-se para afirmar,
'4.11) Os argumentos de que o embrião é uma pessoa desde o ou justificar, poderosamente essas diferenças; além de que, embora
momento da fecundação são dificeis de conciliar com o ponto de vista não esteja expresso no texto, factores exteriores ao mesmo, com o
padrão acerca da identidade humana e pessoal. Embora a capacidade facto do presidente da Comissão ter sido o bispo - anglicano - de
mental de um bebé ainda não esteja desenvolvida, existe uma conti- Oxford servem sem dúvida para mostrar que com a Informação não
nuidade de identidade entre o bebé e o adulto que virá a ser. Assim, se tratava de impor uma ideologia contrária à concepção religiosa da
dizemos, ao olhar para uma fotografia "Este era eu em bebé". Qy.ando vida: e mais, ele constitui seguramente um argumento muito mais
se trata de células indiferenciadas do blastócito, todavia, tal continui- poderoso - eficaz - que qualquer outro que pudesse usar-se, por
dade de identidade é menos plausível. Essas células formam também muito formalmente correcto e materialmente justificado que fosse.
a placenta e o cordão umbilical. Além disso, podem dividir-se e dar A argumentação dos Lordes não pode entender-se, caso se deixem
origem a gémeos verdadeiros. Visto não existir a mesma continuidade de lado todas estas circunstâncias.
de identidade, é mais natural a referência a essas células indiferenciadas
como uma pessoa potencial, melhor do que como uma pessoa. 2. Pois bem, uma vez delimitados os três tipos de situações, de
( ... ) problemas que fazem surgir a necessidade de argumentar, resulta
'4.13' Um ponto de vista gradualista do desenvolvimento do mais ou menos claro em que sentido cada uma dessas três mencio-
embrião resulta também compatível com o modo como culturalmente nadas concepções leva a interpretar de maneira diferente os outros
se reage à perda de embriões precoces. Embora os candidatos a pais aspectos do conceito de argumentação.
1.16
o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 117

'." 2.1. :Assim, para a concepção formal, as premissas e a conclusão formal. Mas o fim abstracto - o fim último - é sempre o mesmo:
são enunciados não interpretados ou, caso se prefira, interpretados reconstruir, reconhecer ou aplicar esquemas argumentativos; pois,
num sentido puramente abstracto: na lógica padrão - proposicio- desde a concepção formal, o que há não são propriamente argumen-
nal - uma proposição é um enunciado que pode ser verdadeiro ou tos, mas esquemas argumentativos. Como consequência disso, os
falso; e as variáveis proposicionais - conjunção, disjunção, etc. - critérios de correcção com que se opera têm também um carácter
são definidas precisamente em função desses valores. Mas, como exclusivamente formal: não nos permitem dizer que tal argumento
se viu, não importa qual seja o seu significado concreto; importa a é um bom argumento sem mais, mas tão-só um argumento válido,
forma, a estrutura. Por isso pode dizer-se que a ênfase se coloque no no sentido de que o esquema a que obedece assegura (ou, conforme
aspecto sintáctico da linguagem (se quisermos, também na semân- os casos, torna provável) que se as premissas são verdadeiras ou váli-
tica formal ou abstracta) e na noção de inferência: o que importa das, então a conclusão também o será. Os critérios de correcção, por
não é a verdade ou a correcção das premissas e da conclusão, mas outras palavras, são dados pelas regras de inferência, mas entendida
quais são os esquemas formais que permitem dar - ou justificar - a expressão em sentido formal: as regras que permitem passar de uns
a passagem das premissas à conclusão; alguns deles são os esque- enunciados para outros consideram exclusivamente a forma, a estru-
mas dedutivos, os que asseguram que se as premissas são verdadeiras tura, dos mesmos: de maneira que, por exemplo, o modus ponens é
ou válidas, então também o será necessariamente a conclusão; mas uma dessas regras, mas não o é a que estabelece que, num raciocínio
não são os únicos: também se argumenta quando essa passagem não prático, o que deve fazer-se é o que resulta do balanço das razões, ou
tem esse carácter de necessidade (em termos gerais, quando não se que a validade de uma analogia - um tipo de indução - depende de
argumenta dedutivamente, mas indutivamente). De qualquer modo, que entre os casos a respeito dos quais se estabelece a analogia exista
o centro de uma concepção formal da argumentação é a lógica dedu- uma "identidade de razão".
tiva, ou seja, a dedução desempenha aqui um papel de modelo por- 2.2. Na concepção material, as premissas e a conclusão são
que: 1) nos argumentos dedutivos, a forma lógica é o único critério enunciados interpretativos, isto é, enunciados aceites pelo que argu-
de controlo, enquanto que nos outros a correcção, a força ou a solidez menta como verdadeiros ou correctosY Assim, o juiz do exemplo
depende também de outros elementos que não são formais (o que não argumenta dizendo algo assim como "se fosse válida a norma
torna válida uma indução não é só uma questão de forma); 2) os que estabelece que ... " ou "se for o caso de X ter realizado a acção
argumentos não dedutivos podem sempre converter-se em dedutivos Y ... ", mas compromete-se, respectivamente, com a validade da
se forem acrescentadas certas premissas (se se "saturam"), de maneira norma (aceita que é uma norma de um sistema e que tem a obri-
que os esquemas dedutivos podem usar-se - pelo menos até certo gação de a aplicar) e quanto à validade dos factos (assume que
ponto - como mecanismos de controlo; assim, pode perguntar-se:
em que medida é plausível a premissa que faz falta acrescentar para 17 Com isto creio que se exprime a mesma ideia formulada por Raz quando

que determinado argumento - por exemplo, um argumento por diz que as premissas - as razões - dos argumentos são factos, entendendo
por tal "aquilo em virtude do qual os enunciados verdadeiros ou justificados são
analogia - seja dedutivamente válido?
verdadeiros ou justificados"; para ele, a conclusão é um argumento prático em que
Como anteriormente se mencionou, podem-se perseguir pro- existe uma razão para que o agente realize uma acção ou que um agente deve
pósitos muito variados ao levar a cabo uma argumentação de tipo realizar tal acção (Raz, 1991, pp. 17 e 28).
118 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 119

verdadeiramente X realizou Y). Só assim é possível que a conclusão Também aqui podem reconhecer-se múltiplas (infinitas) finali-
seja também um enunciado comprometido (embora, todavia, não o dades concretas, propósitos para os quais se realizam argumentações
seja a decisão): "devo condenar X à pena P". Urna importante con- materiais: explicar tal facto, justificar tal decisão, recomendar deter-
sequência de tudo isto é que a distinção entre argumentos teóricos minado trâmite de acção ... Mas a finalidade abstracta - a finalidade
e práticos só tem pleno sentido desde a concepção (ou considerada última - dessas explicações, justificações, etc., parece que há-de
a dimensão) material (e pragmática) da argumentação; a distinção consistir correctamente, na formação de urna convicção adequada
não é só (ou não centralmente) urna questão de forma, mas tem que acerca de como foi, é e será o mundo (raciocínio teórico), ou melhor
ver com a interpretação (com as diversas atitudes proposicionais) em esclarecer qual deva ser (ou qual deveria ter sido ou qual deveria
das premissas da conclusão. ser no futuro) a decisão a tomar ou a acção a empreender, uma vez
O que antecede explica que o centro de gravidade da concep- verificadas determinadas circunstâncias (raciocínio prático). Se nos
ção material esteja nas premissas, e portanto na conclusão, e não fixamos exclusivamente na argumentação justificativa (um tipo de
já na inferência (entendida no sentido estrito antes assinalado: raciocínio prático), compreende-se por que não pode dar-se conta da
corno inferência formal). No caso da justificação judicial é possí- mesma através de uma perspectiva exclusivamente formal; justificar
vel que a dificuldade (de existir; ou seja, caso se trate de um caso uma acção implica uma perspectiva de compromisso (como explicar
difícil) radique na premissa normativa ou na premissa fáctica. Se, ou recomendar o trâmite de uma acção ... ), mas a lógica formal, a
por exemplo, se trata de urna dificuldade de prova, referida pois à única coisa que oferece é um esquema de justificação (o que não é o
premissa menor - fáctica - o juiz deverá fornecer as razões por mesmo que urna justificação).
que considera que X praticou a acção Y; essas razões poderiam ser Os critérios de correcção das argumentações materiais, ou seja,
constituídas pelo testemunho de T e, digamos, por urna máxima o que faz com que algo possa considerar-se como urna boa explica-
de experiência de acordo com a qual os testemunhos que possuem ção ou justificação, etc., não é, simplesmente, que possamos pô-las
as características que tiveram o de T são fidedignos. Pois bem, por de uma determinada forma lógica. O que importa são os critérios
vezes diz-se que essa máxima de experiência, ou o que leva a uti- que utilizamos - máximas de experiência, leis científicas, regras da
lizá-la (a fundamentação da mesma), é uma regra de inferência técnica, princípios morais, etc. - e os fundamentos para validar a
mas, corno antes dizia, esse é um conceito não formal de regra de verdade, em sentido amplo, das premissas. Ou seja, se os exemplos
inferência; tratar-se-ia (para usar a terminologia de Toulmin) da que, em dado momento, se deram de argumentos materiais são bons
garantia ou do apoio de um argumento, o que é muito diferente argumentos, isso é assim porque temos razões para confiar na lei de
do esquema de um raciocínio dedutivo (por exemplo, um modus que os metais se dilatam com o calor, na máxima de experiência de
ponens) ou de um raciocínio indutivo (por exemplo, da inferência que os cães só ladram aos forasteiros e não aos conhecidos, no carác-
probabilística). Ou seja, o argumento cuja conclusão é "X praticou ter justificativo de um determinado princípio ético, ou na cláusula
a acção Y" será, sob a perspectiva da concepção formal, um modus contratual a que antes se fazia referência.
ponens ou algum tipo de indução; as "regras de inferência" mate- 2.3. As premissas e as conclusões, na concepção pragmática da
riais, sob a perspectiva formal, não seriam outra coisa que premis- argumentação não são nem enunciados por interpretar, nem enun-
sas (v. infra, capo 4, ap.l). ciados interpretados como verdadeiros e correctos, mas enunciados
121
Três concepções da Argumentação
o Direito como Argumentação
120
tomem a iniciativa (digamos que o juiz supervisiona melhor do que
aceites. A argumentação, num diálogo, só pode prosseguir, na medida
dirige a contenda). Por outro lado, essas regras processuais podem
em que se produz essa aceitação. E outro tanto pode dizer-se da
reger discussões que têm lugar de facto (no contexto das instituições
argumentação retórica: as premissas, os pontos de partida, dependem
antes mencionadas e em muitas outras), ou podem colocar-se como
de que sejam aceitáveis para o auditório. A ênfase, portanto, recai
regras de um procedimento mais ou menos idealizado que cabe usar
agora sobre os elementos pragmáticos da linguagem (e não na sintaxe
como método para estabelecer ou descobrir o que pode entender-se
e na semântica) e no resultado obtido: o que importa é a aceitação
por verdadeiro ou correcto: é o caso da teoria processual idealizada
de uma determinada tese por outra pessoa, através de um diálogo
por Rawls (1997) para chegar aos princípios da justiça (quem discute
ou a aceitação pelo auditório (em geral, os efeitos que produzem em
aqui são seres fictícios - os situados na "posição originária" - e as
outros) e não (ou não centralmente) a validade lógica da inferência
regras são ideais); ou por Habermas (1987) como critério da verdade
ou o cará.cter verdadeiro ou fundamentado das premissas.
em sentido amplo (as regras aqui são ideais - as regras do discurso
Também neste caso, os fins concretos de uma argumentação
racional- mas aqueles que discutem seriam seres humanos tal como
pragmática podem ser variadíssimos: convencer os membros de uma
realmente são - com os seus interesses, necessidades, etc. - 'vid.
comissão para que votem em determinado sentido, ganhar um pleito,
Alexey, 1997a, pp. 109 e ss.').
persuadir a opinião pública dos benefícios de uma medida, ganhar
Todavia, no caso da retórica, não pode falar-se - ou não é obvio
uma eleição, aprender a arte da dialéctica, conseguir a aprovação de
que possa falar-se - de regras de processo; aqui não há dois conten-
determinada lei ou inclusivamente apurar a verdade. Enquanto que
dores que participam num jogo de acordo com certas regras, mas um
a finalidade abstracta é sempre a mesma: a aceitação por parte dos
orador que constrói um discurso para conseguir persuadir o audi-
outros, a persuasão, que é a maneira de solucionar o problema de que
tório; não são, portanto, regras processuais, mas, mais exactamente,
provinha a argumentação.
regras técnicas que, por assim dizer, só se aplicam a uma parte, o
Os critérios de correcção, se nos situamos no plano da dialéctica,
orador, e cuja não observância tem como consequência, simples-
têm carácter essencialmente processual, no seguinte sentido. O ven-
mente, a ausência de persuasão, ou seja, que não se consiga o efeito
cedor dos debates atenienses, por exemplo, era o que conseguia que
pretendido. O descrédito da retórica está associado precisamente a
o seu opositor incorresse em contradição, balbuciasse ou começasse
essa falta de regras. Ou seja, se a considerarmos simplesmente como
a falar sem sentido ... mas sempre e quando se tivessem respeitado
uma técnica, como uma arte de persuasão através da palavra, então a
certas regras de foir play (responder às perguntas que deviam ser res-
retórica converte-se num puro instrumento difícil de distinguir, por
pondidas. etc.). As disputas medievais eram também estritamente
outro lado, da simples propaganda ou das técnicas de manipulação
regulamentadas. O mesmo ocorre hoje com os torneios nos colleges
das consciências. A reivindicação da retórica, por isso, parece que tem
dos Estados Unidos. E, como é evidente, nos debates forenses; um
de estar ligada à ideia de que essas regras técnicas têm também algum
modelo particularmente relevante de argumentação dialéctica é o
limite moral e político, isto é, que a argumentação retórica não é, em
debate no contexto de um procedimento contraditório, no qual o juiz
definitivo, exclusivamente guiada por regras técnicas: a retórica não
adopta uma atitude essencialmente passiva: deve evitar que se usem
seria simplesmente a arte de persuadir, mas a arte de persuadir do que
certos argumentos indevidos, conseguir que se respeitem determi-
nados procedimentos, etc., mas permitindo que sejam as partes que é bom e verdadeiro.
122 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 123

6. Concepções da argumentação e argumentação jurídica concepção material: a argumentação retórica e a dialéctica precisam
de certos pontos de conformidade, (lugares comuns, princípios, pre-
As três concepções de argumentação que foram apresentadas na missas) sem os quais não se pode argumentar. Mas essa relação tam-
parte anterior prendem-se, como vimos, com problemas, ou desíg- bém se verifica em sentido oposto, ou seja, a dialéctica funcionou, em
nios, reais a que estão associados os seres humanos. Mas também ceras ocasiões, como o modelo a partir do qual se constrói uma teo-
poderia dizer-se que têm algumas características ideais, no sentido de ria lógica (uma concepção formal da argumentação): a concepção da
que as argumentações realmente existentes não obedecem, em geral, lógica de Lorenzen ou de Rescher (e muitas outras) poderiam assim
a um só desses tipos puros. Este último aspecto deve-se, por sua vez, interpretar-se como um propósito de formalizar a dialéctica. E a con-
a duas razões distintas. cepção de verdade ou de correcção que pode encontrar-se em auto-
Uma delas deriva de que essas três concepções não são incompa- res como Habermas, Rawls e muitos outros (as teorias processuais)
tíveis entre si ou não o são necessariamente. Assim, a validade for- podem considerar-se como uma tentativa de construir os critérios
mal dos argumentos é (ou costuma ser) condição necessária, embora da racionalidade (da argumentação) material, a partir da racionali-
normalmente não suficiente, da sua solidez ou correcção material. dade que se exprime através de modelos argumentativos (idealiza-
Ou, dito de outra maneira, a racionalidade formal, a racionalidade de dos) de carácter dialético-retórico; a ideia, como se sabe, é que uma
tipo lógico, é um pressuposto da racionalidade material, entendida proposição é verdadeira ou correcta se pode ver-se como a conclu-
esta última como a racionalidade de crenças (teórica) ou de deci- são a que chegariam por consenso agentes racionais que seguissem
sões e acções (prática) e embora se trate, no segundo caso, de uma certas regras de discussão; esse modelo é basicamente dialéctico no
racionalidade técnica ou instrumental (de meios) ou ética (também caso de Habermas e no de Rawls (o discurso supõe a existência de
de fins). A argumentação é, caberia dizê-lo, uma das maneiras como diversos actores que actuam entre si e se influenciam mutuamente),
se manifesta a razão humana enquanto faculdade ou capacidade de mas é óbvio o parentesco existente entre a habermasiana "situação
resolver problemas. A terceira concepção da argumentação aponta, ideal de diálogo" ou o rawlsiano consenso a que chegam os entes da
por isso, para uma nova (relativamente à formal e à material) dimen- posição originária com a noção elaborada (no contexto de uma con-
são da racionalidade: a racionalidade como capacidade de persuadir cepção retórica da argumentação) por Perelman, nos anos cinquenta
os outros, para interactuar linguisticamente com os demais e chegar a do século xx, de "auditório universal", vinculada por sua vez com os
acordos respeitando certas regras, por isso se lhe possa chamar racio- modelos do espectador racional que remontam, pelo menos, a Adam
nalidade processual18 ou política. Esta última dimensão da raciona- Srnith (vid. Muguerza, 1977).
lidade (ou concepção da argumentação) não se opõe necessariamente Outra razão importante para que as argumentações que se pro-
às outras duas. Assim, a correcção formal dos argumentos é, com duzem de facto não obedeçam a um só desses modelos é que, com
frequência, um instrumento efectivo para conseguir persuadir um frequência, "as empresas racionais" (para empregar uma expressão de
auditório, e, desde logo, mostrar a incorrecção formal de um argu- Toulmin) em que os seres humanos se vêem envolvidos têm uma
mento é uma poderosa arma dialéctica. Outro tanto caberia dizer da certa vocação de totalidade, ou seja, os fins e valores desses empreen-
dimentos não são exclusivamente formais, ou materiais ou prag-
18 Num sentido amplo de "processo"; vid. sobre isto Gianformaggio (1987). máticos (de prossecução de objectivos), mas correspondem a uma
124 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 125

combinação desse três tipos. Parece-me que pode observar-se uma em contextos diferentes, faz com que os critérios de avaliação das
tendência nessa direcção com o aparecimento no campo da lógica mesmas não possam ser idênticos. Por exemplo, em algumas ocasiões
das chamadas "lógicas divergentes" (ou seja, que divergem em relação produzem-se num contexto fortemente institucionalizado, como
à lógica clássica): a ideia, de certo modo, é abandonar o campo da é o caso de uma sentença judicial; isso pressupõe limites que não
lógica puramente formal e construir lógicas sensíveis ao contexto e existiriam noutro caso: aqui a argumentação tem que partir necessa-
que tenham em conta, de facto, como se argumenta (ou seja, não se riamente de certas normas (as normas válidas do sistema), tem que
renuncia aos elementos materiais e pragmáticos da argumentação). considerar como provado unicamente o conhecimento obtido de
No caso da argumentação científica (das ciências não formais), certa forma, etc. Outras vezes, a argumentação bioética pode ter lugar
embora o valor central da ciência seja naturalmente a verdade e, por numa comissão de bioética, o que significa que os limites institucio-
isso, a argumentação científica cabe plenamente na concepção mate- nais, embora existindo, são menos fortes: dado que as comissões não
rial, os elementos formais da ciência são obviamente fundamentais: costumam emitir opiniões vinculativas, apenas formulam sugestões,
as teorias científicas têm uma certa estrutura formal e muitas vezes propõem mudanças ou, simplesmente, tratam de orientar a opinião
é precisamente esse o aspecto que interessa destacar; e os elementos pública e/ou os profissionais, as suas argumentações podem ser mais
retóricos e dialécticos foram muito sublinhados nos últimos tempos: livres: não estão necessariamente sujeitas - ou estão-no menos - a
desempenham um papel central em concepções como a dos para- normas previamente estabelecidas, pois muitas vezes trata-se de que
digmas científicos de Kuhn, e atingem uma importância desmesu- seja precisamente a comissão a elaborar o critério que permita resol-
rada (desmesurada por ser em detrimento das componentes formais ver um problema, outras vezes o que faz é sugerir que uma lei devia
e materiais) no pensamento pós-moderno; esta última concepção do ser alterada noutro sentido, etc. E, por fim, há argumentações sobre
conhecimento - como recordaremos (vid. supra, cap 1, ap. 8) - era questões de bioética que não têm outros limites para além dos que
um dos elementos que levavam autores como Santos ou Kennedy a derivam do que costuma designar-se por discurso prático racional:
reduzir a argumentação jurídica à retórica ou à dialéctica. por exemplo, quando na opinião pública ou em foros especializados
No caso da argumentação moral, parece óbvio que as três concep- da "sociedade civil" (o espaço público não estatal) se discute acerca
ções ou dimensões desempenham um papel considerável. Tomemos da justificação ou não de proibir a clonagem de seres humanos (ou
como exemplo a bioética. Aqui entram em jogo normalmente as três de proibir em determinados casos), a investigação com embriões ou
concepções mencionadas, embora talvez - dependendo do contexto a escolha do sexo.
- haja alguma - ou algumas - que desempenham um papel de Finalmente, o Direito é, em minha opinião, um claro exemplo de
maior importância. Este último aspecto deve-se a que nas argumen- construção racional em que as três concepções ou dimensões apare-
tações de tipo moral estão em jogo, tanto valores de carácter formal cem combinadas de maneira que, no raciocínio jurídico, não é pos-
(as nossas opiniões morais têm que ser consistentes entre si) como sível prescindir de qualquer delas. Uma exemplificação rápida que
material (essas opiniões devem estar bem fundadas quanto ao essen- pode dar-se deste fenómeno é que cada uma dessas três concepções
cial) e político (têm a pretensão de ser aceites pelos demais e, digamos, está intimamente relacionada com algum valor básico dos sistemas
de solucionar problemas ao alcançar um certo consenso). Além disso, jurídicos: a certeza, com a concepção formal (basta recordar a ideia
a circunstância de as argumentações de carácter bioético terem lugar weberiana da racionalidade formal do Direito moderno que, como
126 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 127

vimos, poderia considerar-se agora como unilateral, redutora); a ver- evidentemente, um critério importante, mas não é (ou não neces-
dade e a justiça com a concepção material: e a aceitabilidade e o sariamente) o critério último; as sentenças devem ser motivadas de
consenso, com a concepção pragmática. O ideal da motivação judicial acordo com o Direito, ou seja, segundo critérios de racionalidade
poderia exprimir-se, por isso, dizendo que se trata de pôr as boas característicos da teoria das fontes, da teoria da interpretação, da
razões na forma adequada para que a persuasão seja possível. validade, etc., que não podem prescindir da noção de verdade ou de
Ora bem, embora a argumentação jurídica, falando em geral, correcção (embora sem colocar-lhes certos limites).
consista numa combinação peculiar de elementos provenientes des-
sas três concepções ou dimensões da argumentação isso não impede
que, dentro da mesma, possamos distinguir diversos campos (diver- 7. Algumas consequências
sas perspectivas) nos quais uma e outra dessas concepções desempe-
nham um papel preponderante. Por exemplo, a argumentação dos A distinção entre estas três concepções ou dimensões não pretende
advogados parece ser essencialmente de carácter dialéctico (quando - como já se disse repetidas vezes - ser original. É algo mais óbvio,
se contempla sob a perspectiva da luta que tem lugar entre partes mas ter a consciência de certas coisas óbvias pode, em certas ocasiões,
que defendem interesses contrapostos) e retórico (se a considerarmos ser extremamente útil: pode servir para evitar polémicas estéreis ou,
como discussões dirigidas a persuadir o juiz ou os jurados relativa- para compreender melhor, problemas interessantes. Permite, por
mente a determinadas teses): A concepção formal presta-se bem para exemplo, entender que não há qualquer razão para pensar que deve-
justificar o trabalho de alguns teóricos do Direito que se centram nas mos optar por uma dessas concepções da argumentação: por uma
sentenças dos juízes vistas não como actividade, mas como resultado do tipo das que os lógicos costumam apresentar (centrada nos - ou
(o texto da mesma, a motivação expressa), com propósitos básica ou limitada aos - elementos formais); em vez de uma do tipo das que
exclusivamente teóricos e descritivos. E a concepção material consti- foram propostas por autores como Dworkin, Summers ou Raz que
tui o núcleo da argumentação - a justificação -levada a cabo pelos se interessam muito fundamentalmente pelos elementos materiais,
juízes. A obrigação que o juiz tem de motivar uma sentença não se embora circunscrevendo-se à justificação judicial; ou pela concepção
satisfaz simplesmente mostrando que a sua decisão (ou o enunciado retórica ou dialéctica ao estilo de Perelman ou de Toulmin. Essa é,
de dever: "devo condenar... ", "devo declarar... ", etc.) pode construir- simplesmente, uma distinção falsa: cada um desses enfoques destaca
-se (ou reconstruir-se) seguindo um esquema válido de acordo com um aspecto importante da prática jurídica argumentativa, mas cada
a lógica dedutiva; a lógica - a lógica formal - na realidade nada um deles por si mesmo resulta insuficiente, conduz a uma perspectiva
justifica, porque não se ocupa propriamente de argumentos, mas redutora e unilateral. A verdadeira questão é, pois, a de como com-
de esquemas de argumentos. E tão-pouco se satisfaz essa obriga- binar os ingredientes dessas três tradições no estudo das argumenta-
ção mostrando que a decisão é aceitável (para outros juízes, para os ções, de maneira que se construa uma teoria plenamente desenvolvida
juristas em geral, para a opinião pública); se pensarmos que a decisão da argumentação jurídica. E a distinção em questão permite também,
melhor justificada é a que obtém um maior consenso (maior con- - parece-me - abordar com muito maior clareza que a habitual
senso fáctico), então não poderia explicar-se a prática (enquanto alguns problemas centrais da argumentação jurídica. Referir-me-ei
prática racional, justificada) das opiniões dissidentes; a aceitação é, agora, com algum detalhe, a dois desses problemas: a distinção entre
128 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 129

o contexto de descoberta e de justificação, e o conceito de argumento causal - a decisão do juiz e constitui também uma premissa da
falacioso. sua justificação); e a mesma distinção (entre razões explicativas e
justificativas), de resto, depende em certo sentido de que se assuma
o ponto de vista de um terceiro (na perspectiva de um juiz, poderia
7.1. Contexto de descoberta e contexto de justificação não existir tal distinção; adiante se voltará a este aspecto 'vid, infra,
capo 4, ap. 2'). Além disso, é importante darmo-nos conta de que
A teoria padrão da argumentação jurídica parte da distinção entre a distinção entre o contexto de descoberta e o de justificação não
o contexto de descoberta e o contexto de justificação das decisões coincide exactamente com a que pode fazer-se entre o discurso des-
judiciais. C21rer dizer, uma coisa seria o processo psicológico, socio- critivo e prescritivo: pois tanto podemos descrever como os juízés
lógico, etc., mediante o qual o juiz (ou um conjunto de juízes: um chegam a tomar uma decisão (quais são os factores determinantes),
tribunal) chega a tomar uma decisão acerca de um determinado como também prescrever como deveriam fazê-lo; e, no plano da
caso, e outra coisa a fundamentação que oferece (de maneira mais justificação, é possível descrever as razões justificativas que os juízes
ou menos explícita) a decisão. Para alguém que não tivesse que deram, assim como prescrever quais deveriam ter sido essas razões.
estudar esse fenómeno, uma coisa seria encontrar as razões que Em qualquer caso, a distinção, no âmbito da teoria padrão da
permitem explicar por que um determinado juiz (ou os juízes em argumentação jurídica, foi utilizada para situar a teoria exclusi-
geral) tomou (tomaram) tal decisão acerca de tal caso: razões expli- vamente no contexto da justificação: o propósito de autores como
cativas (motivos da acção) podem sê-lo a convicção do juiz de que Macormick, Aarnio, Peczenik, Alexy, etc., não é o de estudar como
essa é a decisão justa, o seu sentimento de vinculação ao sistema se tomam ou deveriam tomar as decisões, mas de como se justificam
jurídico dentro do qual actua, o desejo de que a sua decisão não (e/ou como deveriam justificar-se); mais concretamente, esses auto-
seja revogada pelas instâncias superiores, a sua convicção de que res costumam ter propósitos reconstrutivos: oferecem modelos de
com essa decisão se promovem objectivos a que o juiz adere, etc. E como devem fundamentar-se as decisões judiciais, a partir de como
outra coisa é analisar as razões que possam justificar aquela decisão, de facto se fundamentam.
que permitam considerá-la como correcta, aceitável ou devida: por A origem da distinção vinha de mais longe e de outro lado. Na
exemplo, a justificação de uma decisão condenatória seria o facto de realidade, trata-se de uma adaptação ao âmbito da decisão judicial de
alguém ter praticado uma acção com determinadas características, uma distinção típica da filosofia neo-positivista da ciência. A distinção
associado à circunstância de que essa acção se enquadra em um dos em questão pode expor-se deste modo: "No contexto da descoberta
tipos de delito previstos numa norma válida do sistema de aceitação envolve a produção de uma hipótese e de uma teoria, a descoberta
do sistema jurídico. A diferença entre as razões explicativas e as jus- e a formulação de uma ideia, a invenção de um conceito, tudo isso
tificativas é, antes do mais, uma questão de perspectiva: algo pode relacionado com circunstâncias pessoais, psicológicas, sociológicas,
valer como uma razão explicativa, sem ser por isso justificativa (o políticas e até económicas ou tecnológicas que pudessem ter gravi-
desejo de que a sua sentença não seja anulada), mas pode acontecer tado na gestação da descoberta ou influído na sua aparição. A isso se
que uma razão explicativa tenha também força justificativa (o facto oporia, por contraste, o contexto de justificação que aborda questões
de N ser uma norma válida do Direito D explica - é um factor de validação: como saber se a descoberta realizada é ou não autêntica,
130 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 131

se a convicção é verdadeira ou falsa, se uma teoria é justificável, se as juízes não tratam de justificar as suas decisões, mas simplesmente de
evidências apoiam as nossas afirmações ou se realmente se aumentou as racionalizar. 22
o conhecimento disponível" (Klimowsky, 1994, p. 29).19 Em qualquer caso, a distinção entre o contexto de descoberta e o
Pois bem, o primeiro que transpôs a distinção para o campo da justificação foi abandonado ou, pelo menos, foi muito atenuado
jurídico foi Wasserstrom, num livro de 1961,20 com o propósito de na filosofia da ciência há já muitas décadas. Talvez se pudesse dizer
combater a tese dos realistas (que logo seria adoptada pelos autores que a opinião mais comum nos últimos tempos é a que é expressa
"críticos") a que se fez referência no anterior capítulo. Os realistas por autores como Brown (1983), para o qual: 1) não existe uma linha
contestavam que a teoria dedutivista fosse uma descrição correcta demarcada que separe ambos os contextos: não nos referimos a uma
da decisão judicial; para eles, o factor crucial para entender o pro- proposta como uma descoberta, a menos que existam suficientes pro-
cesso de decisão encontrar-se-ia melhor na intuição (Hutcheson), vas, e 2) justifica-se falar de uma "lógica da descoberta" se a lógica
na personalidade do juiz (Frank) ou nos seus desejos e preferências
22 Anderson (1995) sustentou recentemente que Wasserstrom e muito outros
(Stoljar). Wasserstrom acusa todos estes autores (incluindo Holmes)
autores interpretaram mal os realistas e que a aproximação a estes últimos é
de cometer a falácia irracionalista, ou seja, de passar da constatação da preferível à dos "positivistas". Segundo Anderson, para estudar o processo de tomada
utilidade limitada da lógica formal, a afirmar que a decisão judicial é de decisões dos juízes, os realistas não se basearam na distinção entre o proceso
por inerência arbitrária;21 e de não ter distinguido entre o processo de de descoberta e o da justificação, mas distinguiram os cinco elementos seguintes:
"(1) meditar e problematizar (brooding and puzzling) sobre os factos de um caso e
descoberta, no qual os realistas podem ter razão, e o processo da justi-
interrogar-se "qual é a solução justa deste caso?", (2) avançar com uma tentativa de
ficação. Wasserstrom, de certo, não nega que existam conexões entre palpite ou de intuição acerca do que é justo em relação ao caso, (3) testar ou pôr à
ambos os contextos e confere certa prioridade lógica aos critérios prova o palpite ou a intuição com as normas e princípios relevantes e com o que
para avaliar os processos de descoberta, enquanto que não poderia é considerado como boa solução para este e outros casos semelhantes que possam
verificar-se uma relação em sentido inverso. Precisamente, o cerne surgir no futuro, (4) alcançar um juízo, uma decisão ou uma solução, (5) apresentar
ou expor o juízo, a decisão ou a solução na forma consagrada" (Anderson, 1995,
da crítica que faz a Frank consiste em evidenciar a existência de uma
p. 334). Pois bem, em minha opinião, é possível que se tenha interpretado mal os
ambiguidade neste último: por um lado, Frank reconhece que há cri- realistas, na medida em que não se prestou suficiente atenção ao facto de que eles
térios que levam o juiz ou qualquer decisor a modificar as suas pri- acreditavam que existia algo semelhante a uma "lógica" de descoberta e, desde logo,
meiras conclusões (o que parece implicar o reconhecimento de que Anderson tem razão ao insistir em que o processo "real" da tomada de decisão deve
existem critérios de justificação) mas, por outro lado, afirma que os ser investigado em si mesmo, de maneira muito mais detalhada do que se tem feito
até agora. Mas, por sua vez, este último autor não presta suficiente atenção ao facto
19 A origem da distinção consta de um trabalho de Hans Reichenbach de de que a abordagem realista não permite dar conta do discurso jurídico justificativo
1938: Experiência e predição (Reichenbach, 1965). e exagera, em minha opinião, as coisas quando afirma que Wasserstrom e os
20 Wasserstrom não cita Reichenbach nem qualquer filósofo da ciência, mas representantes da teoria padrão da argumentação fizeram "uma distinção rígida
sim Kantorowicz (o qual colheria uma distinção básica da filosofia da ciência) entre descoberta e justificação" (p. 344) ou quando qualifica a postura de um desses
Também assinala que muitas das distinções que ele prpõe se encontram em Hart autores, MacCormick, de "positivista formalista" (p. 342).
(no seu trabalho A separação entre o Direito e a moral'Hart, 1962'). Por outro lado, Dan Simon realizou uma série de estudos empíricos acerca dos
21 "Confunde-se a questão de saber se um argumento é formalmente válido, processos de decisão judicial, e uma das suas conclusões é que tanto os positivistas
com a questão de se pode haver boas razões para crer que uma proposição é como os realistas interpretaram mal o processo mediante o qual os juízes tomam as
verdadeira ou falsa" (pp. 23-24). decisões (vid. Sirnon, 2002 e 2004; e Amaya, 2006, capo 5 ap. 5.3).
132 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 133

não se identifica com a lógica dedutiva, mas sim com a racionalidade: formula a sério uma hipótese (ou seja, o primeiro dos dois sentidos de
ou seja, a descoberta das teorias não é (ou não é na totalidade) uma "descobrir" não pode ser o que resulta de interesse para a ciência -
operação arbitrária ou casual, mas que, também neste caso, existem ou para o Direito -). Mas, além disso, releva ressaltar que existe uma
certos critérios de racionalidade. 23 importante diferença entre o que é descobrir uma exacta observância
O abandono ou relativização da distinção no campo da filosofia de regras, uma lei científica, e decidir empreender uma sequência de
da ciência parece que teria que levar a fazer outro tanto no campo acção (por exemplo, condenar alguém). Descobrir não é decidir, mas
do Direito (no da decisão judicial) embora convenha não esquecer apenas encontrar algo, digamos um acto de conhecimento, embora
que a distinção nunca (ou raramente) tinha sido feita (a começar para encontrar esse algo seja necessário tomar certas decisões. E deci-
por Wasserstrom) de maneira radical. Mas em Direito existe ainda dir é realizar uma acção, portanto, um acto da vontade, se bem que a
uma dificuldade adicional (vid. Mazzarese, 1996) pois "descobrir" e decisão haja que basear-se em determinadas descobertas relativas ao
"justificar" não têm exactamente o mesmo sentido no contexto das mundo (que Fulano esteve tal dia em tal lugar, que deu uma punha-
teorias científicas e no das decisões judiciais. A propósito de "des- lada a Cicrano, etc.). No que se refere ao outro termo da dicoto-
cobrir", González Lagier (2003, ap. 3) distinguiu dois sentidos da mia, "justificar" uma teoria científica não é exactamente o mesmo
expressão: num sentido fraco abrange qualquer ideia que surja na que "justificar" uma decisão; sem ir mais longe, a justificação de uma
mente de um cientista (ocupado em fazer ciência), ou seja, abrange decisão supõe assumir um raciocínio prático (de que pelo menos uma
também as tentativas de formular hipóteses que talvez nunca che- das premissas é uma norma, um desejo, etc., quer, dizer, uma entidade
guem a ser aceites como tal; enquanto que em sentido forte se refe- que tem um sentido de adequação do mundo à mente), enquanto
rirá à decisão de aceitar uma determinada hipótese. A conclusão do que, no caso da ciência, se trata de um raciocínio teórico (as pre-
seu argumento é que a distinção entre descoberta e justificação só missas - incluindo as leis científicas - são enunciados descritivos,
pode sustentar-se com nitidez se o termo "descoberta" for entendido estão orientados da mente para o mundo).
no primeiro dos dois sentidos. Ora bem, essa opinião, na realidade, Ora bem, tudo o que antecede, não significa, todavia, que a dis-
vem a significar a negação da distinção entre contexto de descoberta tinção contexto de descoberta!contexto de justificação, deva pôr-se
e de justificação: simplesmente porque o contexto de descoberta das completamente de parte, por inútil. Parece-me que continua a servir
teorias científicas não se pode considerar completo enquanto não se para o propósito que teve inicialmente: para criticar os realistas jurí-
dicos e, em geral, quem tiver uma concepção céptica a respeito da
23Javier Echeverría (1994) considera que a distinção é inútil "na medida em possibilidade de justificar as decisões judiciais: que os juízes chegam
que a filosofia da ciência queira ocupar-se da ciência como actividade e não só
às suas decisões de uma determinada forma (não partem das normas
como procura do conhecimento" (p. 288). Em sua opinião, a filosofia da ciência,
não deve restringir-se à ciência clássica, mas deve tomar como objecto de estudo aplicáveis para depois subsumirem nelas os factos, mas que começam
"o conhecimento e a actividade tecno-científica" (p. 289), e propõe, por isso, quatro com uma tentativa de decisão que depois submetem à prova, isto é,
contextos (fortemente interrelacionados) da actividade tecno-científica: o contexto curam de ver se a mesma se pode justificar, se a redacção da motiva-
do ensino; o contexto da inovação (retoma o antigo contexto da descoberta, mas
ção "funciona") é algo diferente de a mesma estar ou não justificada.
vai mais longe, pois agora inclui a descoberta de teorias, mas também as invenções
de engenheiros e técnicos); o contexto de avaliação (que corresponde ao anterior
A possibilidade de justificar uma decisão não resulta negada pelo
contexto de justificação, mas também aqui ampliando-o), e o contexto de aplicação. facto de a lógica não oferecer uma descrição adequada (tão pouco
134 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 135

o pretende) do processo de decisão. E as coisas tornam-se bastante considerar-se justificado (aceitável) à luz do conhecimento cientí-
claras se associarmos a distinção em questão às concepções de argu- fico disponível, dos métodos adoptados pela ciência, etc. Pois bem,
mentação anteriormente examinadas. Em minha opinião, a distinção outro tanto pode dizer-se em relação aos juízes: por exemplo, a
entre o contexto de descoberta e o contexto da justificação das deci- hipótese de que F tenha sido o homicida exclui-se - consideremos
sões Gudiciais ou não), pode manter-se com nitidez se nos situamos o caso - porque não poderia justificar-se, de acordo com os ele-
no plano da concepção formal da argumentação, mas não quando se mentos probatórios disponíveis.
passa a outras concepções. Por último, na concepção pragmática da argumentação, a distin-
Na concepção formal, a aceitação da distinção não levanta pro- ção entre o contexto da descoberta e da justificação simplesmente
blemas pois, como se viu, o que trata de captar não é o processo, mas não tem sentido, precisamente porque aqui o centro é constituído
o resultado da argumentação. A lógica dedutiva padrão não pretende pelo processo da argumentação. A inventio,24 o achado, da matéria da
oferecer um modelo que descreva como alguém, de facto, argumenta, argumentação, das premissas, é uma operação retórica essencial, parte
mas melhor como deve argumentar, ou melhor ainda, oferece um do processo dirigido a conseguir a persuasão. E no caso da dialéctica,
modelo para controlar a qualidade dos argumentos; por isso é óbvio a justificação - a correcção - depende da aceitação que se vá pro-
que tem um valor simplesmente justificativo, embora se trate de uma duzindo entre aqueles que argumentam: a descoberta (e a aceitação)
justificação insuficiente: como se disse repetidamente, uma decisão de pontos comuns entre o proponente e o oponente, o defensor e o
não está justificada simplesmente porque se apresenta sob uma forma contradito r de uma tese, é o que torna possível a argumentação e o
dedutivamente válida. Em definitivo, reconstruir o esquema formal que proporciona a mesma, em última análise, os critérios de justifica-
(lógico) da motivação de uma decisão judicial (de uma sentença) ção: justificar não pode significar neste caso algo diferente de aceitar
é uma operação que se desenvolve exclusivamente no contexto da (aceitar de facto o que deveria ser aceite).
argumentação: argumentar formalmente e analisar essa argumenta- Como bem assinalou Aguiló (2003), as instituições da indepen-
ção, são operações que podem fazer-se perfeitamente abstraindo do dência e da imparcialidade mostram claramente a impossibilidade de
contexto de descoberta (de como se chegou à decisão). separar, no processo real da motivação judicial, o contexto de desco-
Mas as coisas não são já assim quando nos situamos no plano berta e o da motivação. A obrigação de motivar as decisões significa
da concepção materiaL Aqui, como se viu, argumentar pressupõe em princípio a obrigação de justificá-las. Mas o Direito - através
aceitar a verdade e/ou a correcção das premissas Gá não se trata de dessas instituições e de muitas outras - pretende regular também o
esquemas de argumentos, mas de argumentos) e essa aceitação, por contexto de descoberta, de tomada da decisão; per isso não faz muito
exemplo em relação aos enunciados fácticos, pode pressupor uma sentido situar-se exclusivamente no contexto da justificação: ambos
combinação de descoberta e de justificação: numa conhecida obra os momentos, na realidade, estão ligados. A independência significa
A hélice dupla, Watson (2000) (um dos descobridores da estrutura essencialmente que o juiz só pode utilizar como razões para basear
do ADN) relata como na formulação ou na rejeição de certas hipó- a sua decisão (como premissas do seu raciocínio justificativo) as que
teses (até chegar àquela em que se baseou a descoberta do hélice
dupla) desempenharam um papel de destaque factores de muitos 24 Inventio não significa exactamente inventar, criar algo novo, mas descobrir
tipos (desde o acaso à estética), incluindo a ideia do que poderia alguma coisa pré-existente: os lugares comuns ou princípios.
136 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 137

provêm do Direito (se quisermos: as autorizadas pela regra de reco- léctica, porque a imparcialidade e a independência judiciais contri-
nhecimento do sistema). A imparcialidade (ou independência do juiz buem para que o "debate" no interior de um tribunal adopte a forma
em relação às partes e frente ao objecto do processo) não se refere de discussão racional.
a que razões podem funcionar como premissas, mas a certa atitude Por outro lado, fazer uma distinção dicotómica entre o contexto
que assegure que o juiz não se incline para uma das partes. Por isso, a da descoberta e o da justificação (para deixar de fora de análise
imparcialidade está ligada a outras instituições como a abstenção e a o contexto da descoberta) desempenha, sem dúvida, uma função
rejeição, e a independência com a auto-restrição, com a obrigação de ideológica, isto é, contribui para oferecer uma visão distorcida da
não se situar para além do Direito. realidade. Pensemos na deliberação efectuada pelos juízes no con-
Pois bem, é óbvio que todas estas instituições não têm muito que texto de um órgão colegial. A deliberação (o processo da delibera-
ver com a concepção formal da argumentação. Precisamente, as difi- ção) resulta amputado da fundamentação explícita (que é a única
culdades que às vezes existem para fazer compreender aos juízes (e, que se tem em conta quando se considera o contexto da justifica-
em geral, aos juristas práticos) a distinção conceptual entre o plano ção). Mas sem ela nem sempre pode entender-se - e, no momento
da descoberta, da chegada à decisão, e o da justificação poderiam adequado, criticar-se - a fundamentação, a motivação em ques-
ser devidas a que os juízes não concebem a justificação em termos tão. Imaginemos que, por exemplo, se tratava de um caso que tinha
puramente formais. 25 Para eles, as razões que explicam o processo dado lugar a uma decisão adoptada por maioria do tribunal, com
de tomada de decisões são também as razões justificativas (a inde- alguns votos discordantes. No momento de avaliar a força justifi-
pendência e a imparcialidade significam precisamente isso); e por cativa de ambas as motivações (a da maioria e a da minoria), não
isso, como disse Aguiló (2003), o ideal da motivação é que as razões deveria deixar-se de parte - tomemos por hipótese - a circuns-
explicativas e as justificativas coincidam. Aquilo com que essas insti- tância de os magistrados discordantes terem trabalhado, no âmbito
tuições têm que ver é com a concepção material e com a concepção do processo de deliberação, para que a fundamentação maioritária
pragmática (retórica e dialéctica). Com a concepção material, porque resultasse "enfraquecida" (com vista a alcançar um acordo unânime
as referidas instituições se dirigem, em certo sentido, a que aumente a que finalmente não se conseguiu).
probabilidade de que o juiz justifique materialmente as suas decisões:
que só use as razões de Direito e que faça bom uso delas. Com a con-
cepção retórica, porque essas instituições contribuem também para 7.2. Argumentação e falácias
aumentar a credibilidade das decisões, para que resultem aceitáveis e
persuasivas: por isso o juiz deve abster-se de decidir um caso não só Outro importante aspecto da argumentação que pode esclarecer-se
quando haja alguma causa objectiva para isso, mas também quando a partira das três concepções anteriores é o que tem que ver com as
possa existir uma aparência de que ela exista. E com a concepção dia- falácias. Num capítulo posterior deste livro (cap. 5, ap. 7) voltar-se-á
a este tema. Por ora tratarei unicamente do conceito e de um princí-
pio de classificação das mesmas.
25 Muito teóricos do Direito criticaram os juízes - incluindo o Tribunal
Constitucional espanhol - por não estarem conscientes dessa diferença. Vid. Como definição de falácia pode servir a que deu Aristóteles no
Igartua, 1995, pp. 147 e ss. primeiro livro que é conhecido sobre o tema (Refutações sofísticas):
138 o Direito como Argumentação Três Concepções da Argumentação 139

um argumento que parece bom sem o ser.26 O essencial das falácias maneira, que o conceito de argumento falaz pressupõe que há argu-
é, por assim dizer, um elemento de engano, de aparência, que pode mentos bons e, portanto, critérios de bondade, critérios de correcção.
ser intencional ou não, por parte de quem argumenta. Do mesmo Numa secção anterior deste capítulo vimos que a existência de
modo que a ideologia não equivale simplesmente a erro (as ideo- critérios de correcção era um elemento que existia sempre que fazia
logias reflectem também em parte a realidade, falam da realidade, sentido falar de argumentação, embora de maneira distinta; ou seja,
embora de uma forma distorcida), os argumentos falaciosos não são os critérios de bondade são diferentes em cada concepção da argu-
simplesmente os maus argumentos que, pela sua semelhança com os mentação. Pois bem, na medida em que a noção de falácia está rela-
bons (têm, pois, algo em comum com os bons argumentos) podem cionada com esses critérios, isso que dizer que haverá diferentes tipos
confundir, enganar os destinatários dos mesmos e inclusive quem os de falácias, de acordo com o s critérios que se adoptem como base
emite; quem constrói um discurso ideológico pode não ter qualquer para emitir o juízo de que um argumento tem a aparência de possuir
intenção de provocar engano (ele participa sinceramente dessa visão uma característica que na realidade não possui. Ou, dito de outra
ideológica - deformada - do mundo), e o mesmo acontece com o maneira, as falácias pressupõem que se infrinja alguma regra da argu-
que argumenta falaciosamente: ele próprio pode ser uma vítima do mentação, de cada concepção da argumentação, e daí que possa falar-
seu argumento falacioso. Por isso, o que gera as falácias não são só -se não unicamente de falácias formais e não formais (esta é, talvez,
o que Bentham designava por "interesses sinistros" (equivalente ao a classificação mais habitual),27 mas de falácias formais, materiais e
interesse de classe na teoria marxista da ideologia), mas também cer- pragmáticas (retóricas e dialécticas).
tas dificuldades cognitivas dos seres humanos (no caso da ideologia, a Uma falácia formal ocorre quando parece que se utilizou uma
falsa consciência), a incapacidade para compreender a complexidade regra de inferência válida, mas na realidade não é assim: por exemplo,
do mundo. a falácia da afirmação do consequente (que iria contra uma regra da
Dado que a chave para compreender o conceito de falácia é uma lógica dedutiva), ou a da generalização precipitada (contra uma regra
noção eminentemente gradual, a de aparência, é inevitável que exista da indução).
uma ampla zona de ambiguidade: a aparência (de ser um bom argu- Nas falácias materiais, a construção das premissas foi levada a
mento) pode ser tão débil que não tenha capacidade para enganar cabo utilizando um critério só aparentemente correcto; exemplos
alguém (neste caso não será uma falácia, mas simplesmente um mau típicos são a falácia da ambiguidade ou da falsa analogia.
argumento), ou pode ser tão intensa que seja difícil de distinguir dos E nas falácias pragmáticas, o engano produz-se por ter sido
bons argumentos (poderia tratar-se simplesmente de um argumento infringida, de forma mais ou menos oculta, uma das regras que
com algum defeito sanável, em virtude do qual não teria sequer capa- regem o comportamento daqueles que argumentam no contexto de
cidade enganosa: o destinatário, por exemplo, pode suprir as defi- um discurso retórico ou dialéctico. Esta definição pressupõe certa
ciências e convertê-lo num bom argumento). Mas mais importante, dificuldade em falar de "falácia retóricà' (vid. infra, cap 5, ap. 7).
todavia, que perceber a ambiguidade do conceito é apercebermo-nos A prática de uma falácia retórica não pode significar simplesmente
de que a noção de aparência pressupõe a de realidade. Ou, dito de outra
27 Um estudo detalhado - e já clássico - das diversas classificações das
26 Sobre o conceito de falácia, vid. Pereda, 1986. falácias que se têm proposto desde Aristóteles pode ver-se em Hamblin, 1970.
140 o Direito como Argumentação

que o argumento não resultou eficaz, persuasivo (pois nesse caso tra-
tar-se-ia, simplesmente de um mau - em sentido técnico - argu-
mento retórico), mas que se usou (com alguma eficácia persuasiva)
um procedimento contrário às regras da boa retórica: por exemplo,
quando se faz um uso abusivo do argumento da autoridade. Uma
falácia dialéctica pressupõe ter-se infringido (mas de maneira não CAPíTULO 3
completamente evidente) uma das regras do debate: por exemplo,
por que se evita a questão e não se responde a uma questão surgida A CONCEPÇÃO FORMAL
durante o debate, quando existia a obrigação (dialéctica) de fazê-lo.
Por fim, como resulta mais ou menos óbvio, é perfeitamente pos-
sível (e na prática, frequente) que se verifiquem situações complexas,
ou seja, que um argumento seja falaz por alguma combinação de ele-
mentos formais, materiais e pragmáticos. Se uma teoria (completa- 1. A lógica formal
mente desenvolvida) da argumentação exige que se tenha em conta
essas três dimensões ou concepções, outro tanto haveria que dizer em Já foi sublinhado que a concepção formal da argumentação é a que
relação à teoria das falácias. se encontra, de maneira paradigmática, nos livros de lógica, de lógica
formal, e foi também referido que essa concepção (como as outras
duas) em parte tem correspondência com uma certa prática social (a
da ciência lógica ou matemática), mas poderia ver-se também como
uma dimensão ou um aspecto da argumentação que tem lugar no
contexto de outras práticas. Se a concepção - ou a análise - formal
dos argumentos é importante para a prática jurídica, não é porque o
Direito seja uma parcela da lógica - que não é - , mas porque os
argumentos jurídicos apresentam uma dimensão formal e a análise
lógica resulta, por consequência, de interesse.
Todavia, não é tão fácil precisar em que consiste esse aspecto
formal dos argumentos, como tão pouco o é a tarefa de delimitar o
objecto e as finalidades da lógica. Ao contrário do que por vezes se
pode pensar (do que costuma pensar-se vista de fora), a lógica não é
uma disciplina extraordinariamente polémica (para além de extraor-
dinariamente complexa) e nem sequer existe acordo entre os seus
cultores acerca de qual seja a sua natureza. De facto, nem sequer se
pode dizer que haja uma só lógica, mas que há muitas, muitíssimas

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