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O impacto da conformação do novo

Código de Processo Civil à Constituição


Federal no direito material da interdição
e sua eficácia normativa

Ana Carolina Brochado Teixeira


Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Professora de
Direito de Família e Sucessões do Centro Universitário UNA. Advogada.

Anna Cristina de Carvalho Rettore


Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada.

Beatriz de Almeida Borges e Silva


Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito
Milton Campos. Advogada.

Resumo: O novo Código de Processo Civil foi sancionado em 2015 e entrou em vigor em 18 de março
de 2016, tendo como objetivo expressamente traçado em sua exposição de motivos o de se alinhar às
diretrizes constitucionais. Buscou-se demonstrar, por meio do presente artigo – decerto que sem pretensão
de exaurir o estudo –, que, pelo menos no que diz respeito ao procedimento de interdição, os avanços
dessa recente legislação foram significativos, com consequências substantivas, inclusive sobre o direito
material. A partir de um cotejo do novo texto com seu correspondente no Código anterior, percebeu-se
uma con­ formação da norma positivada com um tratamento mais existencialista dado à pessoa, em
atenção ao atual paradigma político-jurídico (reforçado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei
nº 13.146/2015),1 que vai além do objetivo puro de proteção patrimonial do indivíduo e de terceiros.

1
Cabe aqui uma ressalva a respeito dessa lei, quanto à interpretação de que ela teria suprimido a interdição das
pessoas com deficiência, de modo que elas estariam sujeitas à curatela, mas não à interdição, abrindo espaço
para se pensar na existência de curatela sem interdição. Isso porque a interdição é o procedimento através do
qual se busca a decretação da incapacidade de alguém e, no rol dos artigos 3º e 4º (modificados) do Código
Civil, não mais constam as pessoas com deficiência, limitando-se os incapazes aos menores de idade, ébrios
habituais, viciados em tóxicos, aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua
vontade e os pródigos. “Eventualmente, as pessoas com deficiência podem ser tidas como relativamente
incapazes, em algum enquadramento do art. 4º do Código Civil, também ora alterado. E mesmo em casos
tais, não haverá propriamente uma interdição, mas uma instituição de curatela, diante da redação dada ao art.
1.768 do Código Civil pelo mesmo Estatuto. Todavia, cabe frisar que o Novo Código de Processo Civil revoga
expressamente esse artigo do CC/2002 e trata do processo de interdição (art. 747), havendo a necessidade
de edição de uma norma para deixar clara tal questão. Em outras palavras, será necessária uma nova lei
para definir se ainda é cabível a ação de interdição ou se somente será possível uma ação com nomeação
de curador” (TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. 12. ed. rev. atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Forense, 2016, p. 130). Posicionando-se pelo fim da interdição, Paulo Lôbo afirma que “[a]ssim, não
há que se falar mais de “interdição”, que, em nosso direito, sempre teve por finalidade vedar o exercício,

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Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

Afirma-se, contudo, que dessa positivação expressa não dependia a aplicação dessa perspectiva pelo
operador do direito, que já era capaz de extraí-la de princípios constitucionais, dotados por si só de força
normativa; mas é de se convir que a adequação textual da lei representa melhor direcionamento ao
intérprete para a aplicação da norma à realidade social, sendo esse um inegável avanço. Esclarece-se, por
fim, que o novo texto representa, em sua grande maioria, o que Fredie Didier Jr. chama de pseudonovidades
normativas para assim demonstrar que, nesse tocante, tratam-se de normas positivadas que já vigoravam
desde o período de vacatio legis do CPC/2015.
Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil. Direito material da interdição. Jurisdição voluntária.

Sumário: 1 Introdução – 2 Breve histórico da curatela e panorama atual – 3 Jurisdição voluntária e seu
escopo na atual perspectiva da interdição – 4 Cotejo do tratamento da matéria dado pelo CPC/1973 e
pelo CPC/2015 – 5 O impacto do CPC/2015 no direito material da interdição – 6 A eficácia do novo texto
normativo da interdição – 7 Notas conclusivas – Referências

1 Introdução
“O processo civil constitucionalizou-se”,2 como expressamente consagrado pela
exposição de motivos do novo estatuto processual, sancionado no ano de 2015
e com entrada em vigor em 18 de março de 2016. Tanto é assim que foi traçado
como objetivo primordial da codificação o de “estabelecer expressa e implicitamente
verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal”.3
É certo que a nova legislação, conquanto processual, não restringe seu alcance
a aspectos meramente procedimentais. Isso porque um sistema processual em
consonância com as diretrizes constitucionais dá condições de possibilidade a um
ordenamento jurídico realmente efetivo. “De fato, as normas de direito material se
transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo
empírico, por meio do processo.”4

pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação de
seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos”. Assim, entende que, “em
situações excepcionais, a pessoa com deficiência mental ou intelectual poderá ser submetida à curatela, no
seu interesse exclusivo e não de parentes ou terceiros. Essa curatela, ao contrário da interdição total anterior,
deve ser, de acordo com o artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, proporcional às necessidades e
circunstâncias de cada caso ‘e durará o menor tempo possível’. Tem natureza, portanto, de medida protetiva
e não de interdição de exercício de direitos”. (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Com avanços legais, pessoas com
deficiência mental não são mais incapazes. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-
familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes>. Acesso em: 26 maio 2016). Seja como for,
tudo indica que segue havendo concordância no sentido de que as peculiaridades do caso concreto poderão
reclamar que, através de um processo judicial, seja nomeado um curador, razão pela qual se concorda com a
afirmativa de que “[é] o fim, portanto, não do ‘procedimento de interdição’, mas sim, do standard tradicional
da interdição” (GAGLIANO, Pablo Stolze. É o fim da interdição? Disponível em: <http://pablostolze.com.br/>.
Acesso em: 26 maio 2016).
2
OLIVEIRA JR., Arnaldo. Novo Código de Processo Civil: Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Editado por
Arnaldo Oliveira Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 23.
3
OLIVEIRA JR., Arnaldo. Novo Código de Processo Civil: Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Editado por
Arnaldo Oliveira Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 26.
4
OLIVEIRA JR., Arnaldo. Novo Código de Processo Civil: Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Editado por
Arnaldo Oliveira Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 24.

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O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

O sistema jurídico brasileiro passou por uma mudança de paradigma político-


jurídico a partir da Constituição Federal de 1988, reestruturando-se dentro de uma
perspectiva mais existencial e humanizada, não só direcionada a aspectos patri­
moniais. A pessoa passou a ocupar o centro da ordem jurídica, o que convida à
reflexão “sobre as variadas formas de efetividade de sua tutela, em todas suas
dimensões, peculiaridades e vulnerabilidades”.5
A legislação infraconstitucional, do ponto de vista textual, contudo, não acom­
panhou esse avanço paradigmático, como examinado adiante – exigindo um esforço do
intérprete no sentido de constitucionalizar os institutos –, tendo a primeira mostra de
evolução somente agora, com o novo Código de Processo Civil e o Estatuto da Pessoa
com Deficiência,6 ao positivar, expressamente, essas diretrizes constitucionais.
Exemplo desse avanço é o tratamento dado ao procedimento de interdição.
O instituto da curatela, a princípio dotado de caráter marcadamente patrimonial,
vê positivadas normas que dão a atenção merecida ao seu viés existencial, em
verdadeira personalização expressa do referido instituto. O avanço legislativo tarda,
mas não deixa de ser merecedor de aplausos, vez que o tema é repleto de implicações
práticas e atuais.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE aponta, em dados dis­
ponibilizados em 2012, que atualmente há uma pessoa de 60 anos ou mais de
idade para cada duas pessoas de menos de 15 anos. Assim, certo é que o enve­
lhecimento da população e, por consequência, o aumento do número de doenças
neurodegenerativas tem convidado o operador do direito a uma releitura do instituto
da curatela e, sob a perspectiva processual, do correspondente procedimento de
interdição.
Exemplifica-se, neste sentido, que, de acordo com o Instituto Alzheimer Brasil,
a estimativa é de que 1,2 milhões de pessoas sofram do mal de Alzheimer – que
é a causa mais frequente de demência –,7 o que representaria cerca de 100 mil
novos casos por ano. Além disso, acredita-se que, fora dos centros urbanos e dentre
as classes menos favorecidas, a doença seja subdiagnosticada,8 donde se dessu­me
que o número de pessoas acometidas pelo mal seja ainda maior.

5
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a
realidade. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 23.
6
O novo CPC foi publicado em 16 de março, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência em 06 de julho, ambos no
ano de 2015; esclarece-se que, conquanto sejam substantivas as alterações trazidas pelo Estatuto, o enfoque
do presente artigo são as alterações processuais que, por si, têm impacto sobre o direito material.
7
Disponível em: <http://www.institutoalzheimerbrasil.org.br/demencias-detalhes-Instituto_Alzheimer_Brasil/
33/entendendo_a_doenca_de_alzheimer__da__atraves_de_estudos_realizados_com_populacoes__
epidemiologia>. Acesso em: 24 mar. 2015.
8
CALLIGARIS, Contardo. Para sempre Alice. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 mar. 2015. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2015/03/1601377-para-sempre-alice.shtml>.
Acesso em: 24 mar. 2015.

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Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

Sendo tão expressiva a estatística e reconhecida a necessidade de valorizar


os espaços de autonomia do ser humano, inclusive daquele que teve sua curatela
declarada judicialmente, verifica-se a necessidade de adaptar o regramento referente
à matéria, sejam materiais ou processuais, à principiologia constitucional, voltada
ao pleno desenvolvimento do interdito e de sua própria noção de vida digna,9 o que
parece ter acontecido no CPC/2015.

2 Breve histórico da curatela e atual panorama


O instituto da curatela importa a representação legal dos incapazes maiores
de idade10 que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para os atos da vida civil. Trata-se, portanto, de “um encargo conferido
a alguém, para ter sob a sua responsabilidade uma pessoa maior de idade, que não
pode reger sua vida sozinha e tampouco administrar seus bens”.11
A decretação da curatela reclama reconhecimento pela via judicial,12 por meio
de uma ação de interdição. Exige-se a demonstração do nexo causal entre a doença,
como categoria médica, percebida em suas manifestações sociais, e o pronuncia­
mento judicial para que, então, se consubstancie a instituição de mecanismo de
proteção para a pessoa portadora de alguma deficiência.13

9
É preciso sublinhar, ademais, que a decisão judicial de interdição atinge, frontalmente, alguns valores constitu­
cionalmente preservados em favor da pessoa, como a liberdade e a intimidade. É por isso que afirmamos não
ser possível considerar a interdição a pura e simples existência da patologia mental. É necessário atentar que
a medida judicial atinge os direitos e as garantias fundamentais e, por via oblíqua, o exercício da cidadania
do interditado. Daí a compreensão de que toda e qualquer interdição tem de estar fundada na proteção da
dignidade do próprio interditando, e não de terceiros, sejam parentes ou não (FARIAS, Cristiano Chaves de;
ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 890).
10
Renata de Lima Rodrigues, mencionando Rodrigo da Cunha Pereira e Zeno Veloso, destaca a possibilidade
de pessoas menores serem interditadas, ficando, portanto, sujeitas à curatela, a exemplo do adolescente
deficiente mental ou viciado em tóxico (RODRIGUES, Renata de Lima. A proteção dos vulneráveis: perfil
contemporâneo da tutela e da curatela no sistema jurídico brasileiro. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de;
MATOS, Ana Carla Harmutiak (Org.). Direito das famílias por juristas brasileiras. São Paulo: Saraiva, 2013,
p. 641.
11
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2013, p.
1.192.
12
Sobre o pronunciamento judicial exigido para que se possa configurar a interdição, vale registrar que a doutrina
diverge com relação à natureza da sentença. Pelos que defendem a natureza declaratória da sentença
de interdição, menciona-se Caio Mário da Silva Pereira, para quem o pronunciamento judicial não cria a
incapacidade, mas apenas reconhece/declara uma situação psíquica já existente (PEREIRA, Caio Mário da
Silva. Instituições de direito civil. v. 5: Direito de família. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 510). Em
sentido oposto, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero defendem que “a demanda visa a constituir o estado
de interdição. Trata-se de providência constitutiva. O juiz decreta a interdição. A demanda por tem objetivo
decretar a incapacidade de alguém” (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil
comentado artigo por artigo. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 970).
Também pelo caráter constitutivo da sentença de interdição, Maria Berenice Dias afirma que “ainda que a
incapacidade preceda à sentença, só depois da manifestação judicial é que passa a produzir efeitos jurídicos:
torna a pessoa incapacitada para os atos da vida civil” (DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias.
7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 620).
13
As alterações no regime das incapacidades promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência têm resultado
em intensos debates na comunidade jurídica, muitos dos quais fogem ao escopo deste artigo, que se propõe

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O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

Sobre o regime jurídico das incapacidades e o instituto da curatela, vale a nota


de que, muito embora eles tenham sido concebidos como um sistema que visava à
proteção daqueles que têm déficit ou supressão de discernimento, certo é que, na
prática, numa ordem jurídica há pouco centrada na proteção de direitos de cunho
patrimonial, mostraram-se inapropriados para a efetiva promoção desses indivíduos.
Tanto assim que, tradicionalmente, o instituto da curatela não visava ao resguar­
do dos aspectos existenciais do curatelado.14 Ao revés, sua finalidade era a admi­
nistração do patrimônio do incapaz e, como razão última, a estabilidade jurídica na
circulação de riquezas. Preocupava-se, então, não com a pessoa do interdito, mas
com a segurança das relações jurídicas patrimoniais, o que se evidencia pelo próprio
conceito dado à interdição:

Interdicção é o acto pelo qual o juiz retira, ao alienado, ao surdo-mudo ou


ao prodigo, a administração e a livre disposição de seus bens. Deve ser
decretada por sentença, depois de verificada a necessidade da medida
(art. 450). Na mesma sentença, em que decretar a interdição, deverá
o juiz nomear o curador, que represente o interdicto e lhe administre
os bens.15

a analisar o impacto das normas processuais positivadas no CPC/2015 no direito material da curatela,
notadamente no que diz respeito aos aspectos existenciais. Apesar disso, é importante anotar vertentes
doutrinárias que vêm se destacando a respeito da possibilidade ou não de os portadores de deficiência mental
ou intelectual serem enquadrados no rol dos relativamente incapazes. Dito de outra forma, a possibilidade
de a falta de higidez mental ser tratada como impossibilidade de exprimir a vontade a fim de que sobre os
portadores de deficiência mental e intelectual possa incidir a hipótese prevista no art. 4º, III, do Código Civil.
Parece-nos que, para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, a mudança de paradigma promovida pelo Estatuto
inviabiliza que os portadores de deficiência sejam considerados incapazes, ainda que relativamente. “Em
outras palavras, a partir de sua entrada em vigor, a pessoa com deficiência – aquela que tem impedimento
de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do art. 2º – não deve ser
mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma
legal, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa” (GAGLIANO, Pablo
Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. v. 1. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2016, p. 146). Por sua vez, Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald, entendendo que o alto
comprometimento de discernimento ocasionado pela deficiência mental ou enfermidade poderia equivaler à
impossibilidade de exprimir a vontade, defendem que “[s]eria o caso de um a pessoa privada totalmente de
discernimento mental. É certo que determinadas doenças ou estados psicológicos do organismo humano
reduzem a capacidade de compreensão da vida e do cotidiano, impossibilitando a manifestação de vontade.
Daí a opção legislativa de reconhecer tais pessoas como incapazes relativamente” (FARIAS, Cristiano Chaves
de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. v. 1. 14. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm,
2016, p. 335). Para Mariana Lara e Fábio Queiroz Pereira, “considerar um deficiente mental ou intelectual
como relativamente incapaz (em consonância com art. 4º, III, do Código Civil) é hipótese que se deve admitir
somente de modo excepcional, para situações como a de uma pessoa com paralisia cerebral severa ou a de
um indivíduo portador de mal de Alzheimer, em seu estágio final, tendo em vista que os referidos sujeitos
não têm efetivamente a possibilidade de exprimir qualquer vontade” (LARA, Mariana Alves; PEREIRA, Fábio
Queiroz. Estatuto da Pessoa com Deficiência: proteção ou desproteção? In: PEREIRA, Fábio Queiroz; MORAIS,
Luísa Cristina de Carvalho; LARA, Mariana Alves (Org.). A teoria das incapacidades e o estatuto da pessoa com
deficiência. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p. 129).
14
Brevíssima exceção a essa afirmação é o art. 451 do Código Civil de 1916, cuja dicção é a seguinte:
“Pronunciada a interdição do surdo-mudo, o juiz assinará, segundo o desenvolvimento mental do interdito, os
limites da curatela”.
15
BEVILAQUA, Clovis. Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. 5. ed. v. 2. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1936, p. 449.

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Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

O avançar do estágio civilizatório da sociedade, ao identificar e absorver reno­


vadas formas de tutela de situações jurídicas existenciais, permitiu mudanças e
avanços no tratamento conferido ao curatelado, chancelando a sua possibilidade de
auto­de­terminação e respeitando sua autonomia para agir no mundo jurídico tanto
quanto possível.
Sem descurar do aspecto patrimonial, reconheceu-se o interdito como titular
de direitos existenciais, cuja personalidade deve ser promovida, a despeito do
reconhecimento da incapacidade civil e, nesse sentido, o instituto da curatela e,
repita-se, seu correlato processual, que é a ação de interdição, devem velar pela
intersubjetividade do incapaz ao invés de aprisioná-lo.16
Esse reconhecimento, contudo, não se fez notar na legislação infraconstitucio­
nal correlata à matéria, de maneira que passou a haver um descompasso entre o
paradigma hermenêutico que norteia o operador do direito desde a Constituição de
1988 e o texto da lei. Significa dizer, portanto, que o regramento do instituto, no
texto do direito material, permanecia calcado na retrógrada lógica de que ao Direito
somente seria dado preocupar-se com as situações patrimoniais.
O atual Código Civil já nasceu velho. Seu projeto foi, pela primeira vez, con­cluído
e publicado em 1972, tendo se iniciado sua tramitação em 1975, com uma série
de emendas ao longo de quase 30 anos até sua promulgação em 2002.
É possível dizer, no tratamento das incapacidades e da curatela, que, con­
quanto cronologicamente posterior ao advento da Constituição, a legislação civil
não encampava, positivadamente, toda a sua principiologia, atendo-se a ideias do
paradigma anterior eminentemente patrimonialista, com alguns momentos, entre­
tanto, de lucidez existencial.
Ainda que tenha havido uma adequação semântica do Código Civil de 2002
em relação ao Código de 1916 (alterando-se, por exemplo, a expressão “loucos de
todo o gênero” para “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o
necessário discernimento para a prática desses atos”), a perspectiva patrimonia­
lista não foi abandonada, podendo-se afirmar que houve, no que tange ao regime
das incapacidades e à curatela, praticamente uma reprodução dos dispositivos.17

16
Isso porque “o excesso de proteção por parte do ordenamento jurídico para com o incapaz pode redundar na
verdadeira supressão da subjetividade deste na medida em que decisões sobre o desenvolvimento de sua
própria personalidade fiquem a cargo de terceiros” (RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no
novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 26).
17
As únicas reais alterações foram (na versão prévia ao Estatuto da Pessoa com Deficiência): a) o art. 1.767
e 1.769, I, do CC/2002 teve a mesma alteração semântica vista no regime das incapacidades (art. 3º e 4º),
suprimindo do rol os surdos-mudos; b) art. 1.772, do CC/2002 impôs a fixação de limites da curatela para os
relativamente incapazes; c) art. 1.775, caput, do CC/2002 acrescentou o companheiro ao rol daqueles que
podem exercer a curatela; d) os §§1º e 2º, do art. 1.775, do CC/2002 excluíram a preferência do filho mais
velho e do homem quanto à mulher no exercício da curatela; e) instituiu-se, pelo art. 1.780, do CC/2002, a
curatela especial para enfermos ou portadores de deficiência. Como se observa, as alterações, conquanto
substanciais, em nada disseram respeito ao tratamento existencial do curatelado.

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O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

Por sua vez, o próprio Código Civil de 1916 não inova em relação à legislação
imediatamente anterior – as Ordenações Filipinas, que datam de 1603 –, seguindo
a mesma tônica patriarcalista, individualista e patrimonialista, não obstante o lapso
temporal de mais de 300 anos e a óbvia evolução do momento histórico, político,
econômico e social.18
Em síntese, na perspectiva legislativa, até o ano de 2015 não ocorreu alteração
substancial no regramento das incapacidades, tampouco da curatela, desde as
primeiras codificações vigentes em nosso território. Houve, sim, e em virtude da
recente mudança de paradigma político, um esforço hermenêutico por parte dos
operadores do direito para interpretar conforme a Constituição uma legislação que,
textualmente, não se conformava a ela.
O que se busca demonstrar é que o novo Código de Processo Civil, sob “a
promessa de realização dos valores encampados pelos princípios constitucionais”,19
rompeu, positivadamente, com a lógica estritamente patrimonial que predominava
nos regramentos anteriores, bem como que, embora o novo paradigma hermenêutico
se veja positivado em um estatuto de direito processual, a alteração, longe de ser
meramente procedimental, impacta, substantivamente, o direito material da curatela.
A mudança, conquanto não seja arrojada, também não pode ser vista como
tímida, figurando, sob o aspecto textual, como um dos embriões20 do viés existencial
da curatela, a qual não pode corresponder à completa e irrefletida perda de voz,
vontade e autonomia do incapaz, tornando-o um cidadão incompleto.21

3 Jurisdição voluntária e seu escopo na atual perspectiva


da interdição
A interdição é um procedimento de jurisdição voluntária, a qual se trata de
atividade estatal de integração e fiscalização,22 considerando que: i) há alguns efeitos
jurídicos advindos da vontade humana que não podem prescindir da integração desta
vontade perante o Estado-juiz, feita após a fiscalização dos requisitos legais para
tanto; ii) visa à proteção de um interesse público, justamente por meio da ativi­
dade fiscalizatória do magistrado e, por fim, iii) sendo os casos sujeitos à jurisdição

18
RODRIGUES, Renata de Lima. Incapacidade, curatela e autonomia privada: estudos no marco do Estado
democrático de direito, 2007, 201f. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte, 2007, p. 32.
19
OLIVEIRA JR., Arnaldo. Novo Código de Processo Civil: Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Editado por
Arnaldo Oliveira Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 26.
20
A proteção do exercício dos direitos da personalidade – rectius, dos aspectos existenciais do interdito – passa
a ser ponto forte, inclusive no Estatuto da Pessoa com Deficiência, na medida em que prevê expressamente,
em seu art. 85, que a curatela atingirá apenas atos patrimoniais e negociais.
21
MEDEIROS, Maria Bernadette de Moraes. Interdição civil: uma exclusão oficializada, 2006, p. 18. Disponível
em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/viewFile/1021/801>. Acesso em: 27
fev. 2015.
22
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhe-
cimento. 16. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 128.

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Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

volun­­tária passíveis de se tornarem conflituosos, reclamam a intervenção do Poder


Judiciário.
Nesse sentido, pacífico é o caráter inquisitorial da jurisdição voluntária na me­
dida em que se autoriza que o juiz tome decisões contra a vontade dos interessados:
há uma margem maior de discricionariedade, tanto na condução do processo quanto
na prolação da decisão. Admitem-se, ainda, decisões fundadas em equidade (art.
723, parágrafo único do CPC/2015), notadamente porque “a atividade jurisdicional
não é uma atividade de mera reprodução do texto da lei, há criatividade judicial”.23
As duas características da jurisdição voluntária apontadas pela doutrina
possibilitam que o magistrado, atento à roupagem civil-constitucional da curatela
e tendo em vista que, na interdição, o interesse público é a proteção do incapaz,
conduza o procedimento dentro dessa perspectiva, sem se descurar de que a doença
mental incapacitante que autoriza a decretação da interdição não equivale à perda
da condição de pessoa humana, cujos direitos existenciais devem ser respeitados.
Reconhecido que o interesse público presente na ação de interdição é a pro­
teção àquele que não tem condições de exercer pessoalmente os atos da vida civil,
soa intuitivo que o maior poder conferido ao magistrado tem a função primordial de
promover a pessoa do incapaz, preservando a defesa de seus interesses, cuidando
de tudo que diga respeito ao seu bem-estar.
Ou seja, o julgador deve ter em mira a situação que melhor se amolde aos inte­
resses do interdito, motivo pelo qual o ordenamento jurídico o mune de prerrogativas,
ainda que a contrário de interesse de terceiros particulares, para garantir de forma
imperativa o resguardo do vulnerável.
Desse modo, tem-se que as características marcantes dos procedimentos
de jurisdição voluntária, a saber, a possibilidade de decisões fundamentadas em
equidade e o caráter inquisitorial, estão em consonância com o marco político vigente,
que busca equilibrar interesses individuais e coletivos e, por via reflexa, asseguram
que o procedimento de interdição cumpra seu desígnio de zelar, efetivamente, pelos
interesses do incapaz.
Nesse sentido, seria de todo indicado que o regramento processual direcio­
nasse o juiz em sua atividade inquisitorial e fiscalizatória, o que parece ter tido início
no novo Código de Processo Civil, como se examinará adiante.

4 Cotejo do tratamento dado à matéria pelo CPC/1973 e


pelo CPC/2015
Sem qualquer pretensão de exaurir a investigação sobre o tema e sendo intenção
deste estudo dissecar os novos dispositivos que atentam aos direitos existenciais

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de
23

conhecimento. 16. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 129.

18 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016
O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

do interdito, passa-se a, por questões didáticas e visando à organização, sistematizar


o cotejo por meio dos quadros adiante.

Lei nº 5.869/1973 Lei nº 13.105/2015


Art. 1.177. A interdição pode ser Art. 747. A interdição pode ser
promovida: promovida:
I - pelo pai, mãe ou tutor; I - pelo cônjuge ou companheiro;1
II - pelo cônjuge ou algum parente II - pelos parentes ou tutores;
próximo; III - pelo representante da entidade em
III - pelo órgão do Ministério Público. que se encontra abrigado o interditando;
IV - pelo Ministério Público. (...)

Legitimar a entidade em que se encontra abrigado o interditando para promover


a interdição significa proteger, inclusive existencialmente, o incapaz que não pode
contar com a família para fazê-lo e, ainda, desafogar o Ministério Público desta atri­
buição. Trata-se de norma nova que não se podia depreender nem mesmo da prin­
cipiologia constitucional.
Registre-se que o art. 1.768 do Código Civil foi revogado pelo Código de Pro­
cesso Civil de 2015, pois o regramento da legitimidade para a propositura da ação
de interdição é, com efeito, mais apropriado no estatuto processual.
Não obstante, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (cuja publicação é poste­
rior, mas a entrada em vigor deu-se antes do Código de Processo Civil), ignorando a
revogação do art. 1.768 do Código Civil, acrescentou-lhe um inciso (IV) para permitir
que o próprio interditando promova a interdição.
Para Fredie Didier Jr., tomando por postulados interpretativos i) a sintonia de
propósito das leis e ii) a promoção de coerência ao sistema, é de se considerar que
a revogação promovida pelo CPC/2015 levou em conta o texto do Código Civil à
época da elaboração do estatuto processual, na qual ainda não constava a possi­
bilidade de o próprio interditando requerer a interdição. Ou seja, para o processualista,
continua havendo a possibilidade de autointerdição.

A Lei n. 13.146/2015 claramente quis instituir essa nova hipótese de


legitimação, até então não prevista no ordenamento – e, por isso, não
pode ser considerada como “revogada” pelo CPC. O CPC não poderia
revogar o que não estava previsto. Assim, será preciso considerar que
há um novo inciso ao rol do art. 747 do CPC, que permite a promoção da
interdição pela “própria pessoa”.24

DIDIER JR., Fredie. Estatuto da Pessoa com Deficiência, Código de Processo Civil de 2015 e Código Civil: uma
24

primeira reflexão. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-187/>. Acesso em: 26


maio 2016.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016 19
Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

Lei nº 5.869/1973 Lei nº 13.105/2015


Art. 1.181. O interditando será citado Art. 751. O interditando será citado
para, em dia designado, comparecer para, em dia designado, comparecer
perante o juiz, que o examinará, perante o juiz, que o entrevistará
interrogando-o minuciosamente acerca minuciosamente acerca de sua vida,
de sua vida, negócios, bens e do mais negócios, bens, vontades, preferências
que lhe parecer necessário para ajuizar e laços familiares e afetivos e sobre o
do seu estado mental, reduzidas a auto que mais lhe parecer necessário para
as perguntas e respostas. convencimento quanto à sua capacidade
para praticar atos da vida civil, devendo
ser reduzidas a termo as perguntas e
respostas. (...)

Identifica-se que o CPC/1973 priorizou o enfoque patrimonial (o que se justifica


pelo contexto histórico em que foi elaborado) na medida em que referenciou, prepon­
derantemente, negócios e bens do interditando. Quanto aos aspectos existenciais,
mencionou apenas vida, o que dá margem para ilações genéricas sobre as aspira­
ções do interdito.
Comparativamente, no novo Estatuto Processual, constata-se um rol existen­
cial mais expressivo a fim de nortear a entrevista do interditando pelo juiz: além
das questões acerca da sua vida, também se consagra a observância às vontades,
preferências e laços familiares e afetivos do interdito.
Tal perquirição, que, pela Constituição, já deveria ser o principal escopo do
magistrado, dá a ele maior embasamento tanto para definir a escolha do curador,
levando em conta a afinidade do interditando, quanto para definir os limites da
curatela em respeito à sua autonomia.
Além disso, vê-se que o que figurava como interrogatório passou a ser tratado
como entrevista, alteração semântica que denota tratamento mais humanizado e
cuidadoso com o vulnerável.

Lei nº 5.869/1973 Lei nº 13.105/2015


Art. 1.183. Decorrido o prazo a que Art. 753. Decorrido o prazo previsto no
se refere o artigo antecedente, o juiz art. 752, o juiz determinará a produção
nomeará perito para proceder ao exame de prova pericial para avaliação da
do interditando. Apresentado o laudo, o capacidade do interditando para praticar
juiz designará audiência de instrução e atos da vida civil.
julgamento. §1º A perícia pode ser realizada por
Parágrafo único. Decretando a equipe composta por expertos com
interdição, o juiz nomeará curador ao formação multidisciplinar.
interdito. §2º O laudo pericial indicará
especificadamente, se for o caso, os
atos para os quais haverá necessidade
de curatela.

Ainda que o Código de Processo Civil de 1973 já permitisse ao juiz, por meio
do art. 431-B, nomear mais de um perito no caso de perícia complexa abrangendo

20 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016
O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

mais de uma área do conhecimento, trazer às disposições específicas da interdição


a possibilidade de uma perícia multidisciplinar equivale ao reconhecimento de que
os contornos da interdição vão muito além da questão médica, envolvendo, poten­
cialmente, psicólogos e assistentes sociais.25
Positivar a possibilidade de uma perícia multidisciplinar nas seções do novo
Código que versam sobre a curatela direciona a atividade judicial ao tornar forçoso
ao juiz motivar, quando assim entender, a decisão pela dispensa da análise do inter­
ditando por uma equipe.
Ao nosso sentir, o grande avanço desse novo Código na proteção do incapaz
está em, expressamente, modular a curatela de acordo com a incapacidade daquela
pessoa concreta, resguardando a autonomia do interditando tanto quanto possível.
Assim, o §2º inova ao obrigar o especialista ou a equipe multidisciplinar a
minudenciar o laudo apresentado e, por conseguinte, o próprio exame no incapaz,
estabelecendo, segundo parâmetros técnicos, o que o interditando tem ou não
condições de fazer autonomamente em sua vida.
Dessa forma, franqueia-se ao juiz elementos especializados para a fixação dos
limites da curatela – interpretação constitucionalizada do referido dispositivo, como
adiante será reafirmado.

Lei nº 5.869/1973 Lei nº 13.105/2015


Art. 1.183. Decorrido o prazo a que Art. 755. Na sentença que decretar a
se refere o artigo antecedente, o juiz interdição, o juiz:
nomeará perito para proceder ao exame I – nomeará curador, que poderá ser
do interditando. Apresentado o laudo, o o requerente da interdição, e fixará os
juiz designará audiência de instrução e limites da curatela, segundo o estado e
julgamento. o desenvolvimento mental do interdito;
II – considerará as características
Parágrafo único. Decretando a pessoais do interdito, observando suas
interdição, o juiz nomeará curador ao potencialidades, habilidades, vontades e
interdito. preferências.
§1º A curatela deve ser atribuída a quem
melhor possa atender aos interesses do
curatelado. (...)

Consolidando o que já se podia inferir da Constituição, enquanto no CPC/1973


o comando legal era apenas no sentido de determinar a nomeação do curador, a nova
legislação destrincha o que deve constar do pronunciamento judicial. Define-se que

APELAÇÃO CÍVEL. INTERDIÇÃO. PERÍCIA MÉDICA. NECESSIDADE. NULIDADE DA SENTENÇA. ESTUDO SOCIAL.
25

PERTINÊNCIA. AVALIAÇÃO DA APTIDÃO DA PLEITEANTE PARA SER CURADORA. A decretação da interdição não
pode estar embasada apenas em atestado médico e entrevista ao interditando, por depender de conhecimentos
técnicos específicos hábeis a identificar, com segurança, a incapacidade da pessoa, sua causa, extensão e
se definitiva ou não. [...] Recurso provido. (TJMG. Apelação Cível 1.0024.07.664095-2/001, Rel. Des. Heloísa
Combat, 7ª Câmara Cível, julgamento em 15.7.2008, publicação da súmula em 12.9.2008).

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016 21
Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

o magistrado deverá tanto nomear o curador quanto fixar os limites da curatela com
base: i) no estado e desenvolvimento mental do interdito; ii) nas suas características
pessoais, iii) suas potencialidades, iv) habilidades, v) vontades e, por fim, vi) suas
preferências.
A fixação de limites é positivada de forma genérica, em consonância com os
ditames do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Esclarece-se que já era preocupa­
ção dos operadores do Direito fixar esses limites sempre que cabível, qualquer que
fosse a condição do interditando.26

Lei nº 5.869/1973 Lei nº 13.105/2015


Art. 1.186. Levantar-se-á a interdição, Art. 756. Levantar-se-á a curatela
cessando a causa que a determinou. quando cessar a causa que a
(...) determinou.
(...) §2º O juiz nomeará perito ou equipe
multidisciplinar para proceder ao exame
do interdito e designará audiência
de instrução e julgamento após a
apresentação do laudo.
(...) §4º A interdição poderá ser
levantada parcialmente quando
demonstrada a capacidade do interdito
para praticar alguns atos da vida civil.

O CPC/2015 positiva, em seu art. 756, §4º, a possibilidade de levantamento


parcial da curatela – que não prescindirá, assim como no caso da sua decretação, da
análise de equipe multidisciplinar –, previsão textual inexistente no Código anterior.
Trata-se de corolário lógico da previsão genérica de fixação de limites da cura­tela,
ao permitir que a pessoa, mediante melhora ou em virtude de tratamento, contudo,
ainda sem condições de autogovernar-se por completo, possa buscar o levanta­mento
parcial nos limites de seu discernimento e autonomia. Outra conclusão não é pos­
sível senão a de que a interdição deve ser, sempre, modulada às condições particu­
lares do interdito. Ela deve ser móvel e revista sempre que a incapacidade sofrer
quaisquer mudanças. O Estatuto também determina que a curatela, exatamente pela
sua excepcionalidade, deve durar o menor tempo possível, razão pela qual a mudança
do contexto fático deve receber a respectiva modulação dos limites da interdição.27

26
É louvável o reconhecimento de que devem ser fixados limites da curatela em todos os casos possíveis, vez
que “aproximadamente o 87% dos portadores tem limitações apenas leves das capacidades cognitivas e
adaptativas e a maioria deles pode chegar a levar suas vidas independentes e perfeitamente integrados na so-
ciedade. Os 13% restantes pode ter sérias limitações, mas em qualquer caso, com a devida atenção das redes
de serviços sociais, também podem integrar-se na sociedade” (BALLONE, G. J. Deficiência mental. Disponível
em: <http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=29>. Acesso em: 16 abr. 2015).
27
Art. 84, §3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária,
proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.

22 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016
O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

Lei nº 5.869/1973 Lei nº 13.105/2015


Art. 758. O curador deverá buscar
tratamento e apoio apropriados à
conquista da autonomia pelo interdito.

Não há dispositivo legal correlato na atual legislação processual civil. Neste


ponto, vale destacar o fundamento principiológico para o exercício do múnus:

O curador, como decorrência do Princípio da Solidariedade, torna-se a


principal via e o mais eficaz escudo na promoção da dignidade da pessoa
do interditando, tendo como propósito garantir a qualidade de vida e a
recuperação de sua saúde.28

Dentro desse panorama de reconhecimento de que a interdição não deve ser


encarada como forma de exclusão, mas, ao revés, de proteção e promoção do inter­
dito, o novo Código de Processo Civil traz avanços, positivando disposições que
visam, nitidamente, priorizar aspectos existenciais do interditando, adequando a
matéria à principiologia constitucional.29
De acordo com a nova legislação processual, o instituto da curatela deve ser
funcionalizado ao resgate do suposto incapaz e de sua autonomia – principalmente
pelo curador –, o que é fundamental para os parâmetros personalistas contemporâ­
neos, vez que a leitura feita da curatela tem como objetivo a proteção, não a exclusão
do incapaz dos laços sociais. Por essa razão, é imprescindível que sejam pre­ser­va­
dos os espaços de autonomia, delimitando-se os atos que o interdito pode e os que
não pode praticar.

5 O impacto do novo CPC no direito material da interdição


Afirma Humberto Ávila – sendo tal afirmação um dos marcos teóricos de que
parte o presente artigo – que texto normativo e norma não se equivalem, na medida
em que normas se referem à construção interpretativa que resulta da análise do
conjunto de textos normativos. Sua linha de pensamento é semelhante à do renomado
constitucionalista alemão Friedrich Müller, segundo o qual

28
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ESTEVES, Rafael. In: ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Código das famílias
comentado: de acordo com o estatuto das famílias (PLN n.º 2.285/07). Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 664.
29
Marcos Ehrhardt Jr. faz importante reflexão envolvendo o cotejo dos Princípios da Solidariedade e da Dig­
nidade em texto intitulado O princípio constitucional da Solidariedade e seus reflexos no campo contratual,
disponível em: <http://www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/artigo/2010/06/06/o-principio-constitucional-
da-solidariedade>, acesso em: 23 abr. 15. A vida em sociedade – especialmente no núcleo familiar – implica a
irradia­ção de deveres mútuos derivados da corresponsabilidade (rectius, da solidariedade) e é nesse contexto
em que se situa a curatela.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016 23
Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

O texto da norma não “contém” a normatividade e sua estrutura material


concreta. Ele dirige e limita as possibilidades legítimas e legais da concre­
tização materialmente determinada no âmbito de seu quadro. Conceitos
jurídicos em textos de normas não possuem “significado”, enunciados
não possuem “sentido”. Muito pelo contrário, o olhar se dirige ao tra­
balho concretizador ativo do “destinatário” e com isso à distribuição fun­
cional de papéis que, graças à ordem jurídico-positiva do ordenamento
jurídico e constitucional, foi instituída para a tarefa da concretização da
constituição e do direito.30

Nesse sentido, é possível que a existência de normas prescinda da existência


de texto correspondente ou que de um único texto emane uma série de normas
(= interpretações normativas). Isso porque o direito deve ser construído a partir do
diálogo entre fato e norma e deve ser sempre interpretado segundo a principiologia
constitucional.
Ainda como marco teórico, figura a assertiva de Daniel Sarmento no sentido
de que, do atual panorama da teoria jurídica, desenvolvido sob a égide da Consti­
tuição Federal de 1988, despontam o “reconhecimento da força normativa dos
prin­cí­pios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do
Direito” e a “constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores
cons­titucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os
ramos do ordenamento”.31
É que o atual paradigma hermenêutico, além de reconhecer força normativa
à Constituição – deixando de encará-la como uma compilação de promessas e
intenções para vê-la como um veículo normativo de “eficácia imediata e indepen­
dente, em muitos casos, de intermediação legislativa”32 –, também evoluiu na teoria
dos princípios, de maneira que “o princípio deixa de ser técnica de integração do
Direito e passa a ser uma espécie de norma jurídica”.33
Significa, portanto, no que diz respeito à interdição, que a ausência de texto
infraconstitucional que direcionasse o tratamento da matéria na perspectiva exis­
tencial do curatelado não implicava a inexistência de norma para observância, pelo
magistrado, desse viés.
Isso porque, constituindo-se a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da
CF/88), a autonomia privada,34 o pluralismo (art. 1º, V, e art. 3º, IV, da CF/88) e

30
MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 41.
31
SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: NOVELINO, Marcelo (Org.).
Leituras complementares de direito constitucional: teoria da constituição. Salvador: JusPodivm, 2009, p.
31-32.
32
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhe-
cimento. 16. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 28.
33
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhe-
cimento. 16. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 29.
34
Do ponto de vista institucional e estrutural, dominante na teoria geral do direito, a autonomia privada constitui-
se em um dos princípios fundamentais do sistema de direito privado num reconhecimento da existência de um

24 R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016
O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

a igualdade (art. 5º, caput, da CF/88) princípios fundamentais, confere-se a eles


eficácia normativa de observância cogente.
Por isso, verifica-se que já havia a preocupação em resguardar o interditando
existencialmente, a despeito da inexistência de texto infraconstitucional expresso
nesse sentido, encontrando-se respaldo para tanto na principiologia constitucional:

A interdição que não analisa as potencialidades mentais de cada cura-


telado, porque presa às categorizações legais, formuladas ex ante,
agride dispositivos constitucionais. O regramento da curatela deve ser
fle­xi­bilizado em todas as hipóteses fáticas de aplicação, permitindo, em
princípio, uma ampla possibilidade de interdição parcial, considerando o
efetivo discernimento do sujeito, para preservar e promover as possibili-
dades de afirmação de sua autonomia.35

Ainda que a inserção textual quanto à tutela existencial do interditando tenha


sido inaugurada no Código de Processo Civil (acompanhado pelo Estatuto da Pessoa
com Deficiência), há repercussões materiais advindas de alterações pontuais no pro­
cedimento – a exemplo da realização de entrevista, que materialmente equivale à
busca pela promoção da autonomia e escolhas do curatelando –, assim como se
nota a presença de texto com conteúdo material, como no caso do art. 758, que, a
rigor, é atinente ao direito civil.
Sem pretender minimizar o papel do processo, fala-se de sua instrumentali­
dade, no sentido de que as regras processuais devem ser erigidas com o escopo de
emprestar efetividade ao direito material afirmado:

Ao processo cabe a realização dos projetos do direito material, em uma


relação de complementaridade que se assemelha àquela que se estabe-
lece entre o engenheiro e o arquiteto. O direito material sonha, projeta;
ao direito processual cabe a concretização tão perfeita quanto possível
desse sonho.36

Muito embora a tutela existencial do interditando pudesse prescindir da positi­


vação infraconstitucional da matéria, uma vez reconhecida a necessidade de revisar
a legislação processual como um todo, seria recomendável que se assentasse, em
texto, o que já era consagrado normativamente, como de fato foi feito, cumprindo o

âmbito particular de atuação com eficácia normativa (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6. ed. rev.,
atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 346).
35
RODRIGUES, Renata de Lima. Incapacidade, curatela e autonomia privada: estudos no marco do estado de-
mocrático de direito, 2007, 201f. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte, 2007, p. 137.
36
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhe-
cimento. 16. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 28.

R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30, maio/ago. 2016 25
Ana Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore, Beatriz de Almeida Borges e Silva

objetivo de estabelecer expressamente sintonia com a Constituição, tal qual colocado


na exposição de motivos do novo Código.

6 A eficácia do novo texto normativo da interdição


Classificando as normas presentes no CPC/2015, Fredie Didier Jr. diz haver,
dentre elas, as chamadas pseudonovidades normativas e normas jurídicas novas.
São pseudonovidades os

(...) enunciados normativos, que, embora novos, nada inovam normati­


vamente no direito processual civil brasileiro. São textos normativos
novos, mas deles não decorrem normas jurídicas novas. (...) A observa­
ção ratifica que o novo CPC está em consonância ao que já se havia
consagrado, normativamente, no direito processual civil brasileiro, ainda
que à mingua de texto normativo. (...) Esses enunciados normativos
novos reforçam, ratificam, confirmam, corroboram etc. a compreensão
atual do direito processual civil brasileiro, construída antes da vigência
do novo CPC.37

As normas jurídicas novas, a seu turno, são aquelas que realmente inovam o
ordenamento, majoritariamente reforçando ou superando tendências doutrinárias e
jurisprudenciais já consolidadas.
Evidenciou-se, pelo cotejo do texto do CPC/2015 com as normas já construídas
no que toca à interdição, que se tratam, em sua maioria, de pseudonovidades nor­
mativas, com algumas normas novas positivadas nos arts. 747, III, e 753, §2º.
Ainda de acordo com Didier, “há o risco de que, no período de vacatio, alguém
considere que essas pseudonovidades sejam realmente novidades; assim, decida
somente aplicá-las a partir da vigência do novo Código”. Não se poderia admitir que
a edição de textos normativos novos que apenas confirmam normas prévias impli­
casse o diferimento da aplicação de seus comandos, pois se trataria de “fonte
normativa do retrocesso”.38
Daí porque o novo texto concernente à interdição já era eficaz, quase em sua
totalidade, desde o período de vacatio legis, à exceção dos artigos que constituíam
normas jurídicas novas, cuja eficácia ficou condicionada ao início da vigência do
novo Código.39

37
DIDIER JR., Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Disponível em:
<http://www.frediedidier.com.br/artigos/eficacia-do-novo-cpc-antes-do-termino-do-periodo-de-vacancia-da
-lei/>. Acesso em: 10 abr. 2015.
38
DIDIER JR., Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Disponível em:
<http://www.frediedidier.com.br/artigos/eficacia-do-novo-cpc-antes-do-termino-do-periodo-de-vacancia-da
-lei/>. Acesso em: 10 abr. 2015.
39
(...) enunciados normativos novos deste tipo exercem, no período da vacatio, uma função persuasiva, como
instrumento retórico-argumentativo para convencimento do acerto dogmático de propostas doutrinárias ou

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O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil à Constituição Federal no direito material da...

7 Notas conclusivas
Na contemporaneidade, o principal objetivo da curatela e, por conseguinte, do
procedimento através do qual esse múnus será conferido a alguém – a ação de
interdição – é o cuidado e a promoção do indivíduo e, num segundo plano, a gestão
patrimonial.
O novo enfoque coaduna-se com a atual proposta de tutela pelo ordenamento
jurídico a direitos da personalidade e situações existenciais e, dentro desta pers­
pectiva existencialista e humanizada, a interdição deixa de ser encarada apenas
como instrumento apto a conferir segurança às transações patrimoniais para se
funcionalizar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana.
A redefinição do objetivo do instituto da curatela resultou, invariavelmente,
numa atuação distinta do Estado-juiz frente ao interdito na medida em que, abando­
nando as categorias abstratas e apriorísticas que desconsideravam o ser humano
concreto – que “não é a pessoa como abstrato sujeito, mas é a pessoa de carne e
osso, em sua concretude e em suas circunstâncias”40 –, passou o magistrado a ter
de investigar a melhor forma de maximizar a preservação dos espaços de autonomia
e subjetividade do incapaz.
A nova legislação processual civil vem ao encontro do atual delineamento do
instituto ao positivar a função promocional da curatela, assegurando ao interditado
a titularidade e o exercício de todas as searas de sua vida que sejam compatíveis
com a sua situação psicofísica.41
Reafirma-se, portanto, desde já, o poder-dever do Estado-juiz de, dentro dessa
perspectiva existencialista e humanizada do direito, consagrada desde 1988 e
que norteia a legislação infraconstitucional, presidir o procedimento de interdição
buscando a promoção do incapaz. Desse modo, resguarda-se que o avanço legislativo
seja concretamente observado na rotina forense, isto é, na realidade social, a serviço
da qual está a ciência jurídica.

decisões judiciais ou para demonstrar a necessidade de superação imediata de entendimento jurispruden-


cial consolidado (DIDIER JR., Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei.
Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/artigos/eficacia-do-novo-cpc-antes-do-termino-do-periodo-de-
vacancia-da-lei/>. Acesso em: 10 abr. 2015).
40
MARTINS-COSTA. Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres. In: MARTINS-COSTA, Judith;
MOLLER, Letícia Ludwing (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 326.
41
Entendendo terem sido tímidas as mudanças operadas pelo legislador, a Profa. Dra. Joyceane Bezerra de
Menezes sustenta que “O projeto do Novo CPC mantém uma perspectiva muito mais ‘substitutiva’ da vontade
do interditado do que propriamente ‘integrativa’ do curatelado à sociedade, sustentando uma postura que
já está ultrapassada. Não integra o sujeito, resgatando o respeito ao seu livre desenvolvimento. Continua
propondo a morte civil da pessoa que perde a sua vontade para o curador. A ordem internacional de proteção aos
direitos humanos propõe o reconhecimento da capacidade de agir da pessoa com deficiência intelectual e/ou
psíquica, em igualdade com os demais. Disso se deduz, o respeito às suas possibilidades e potencialidades.
As restrições à capacidade de agir servem para integrar as pessoas com limitações e não para excluí-las”.
(Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=029b50deea7a25c4>. Acesso em: 19 mar.
2015).

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TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; SILVA, Beatriz
de Almeida Borges e. O impacto da conformação do novo Código de Processo Civil
à Constituição Federal no direito material da interdição e sua eficácia normativa.
Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 5, n. 12, p. 11-30,
maio/ago. 2016.

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