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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA

EIS PÉROLAS QUE OS SEUS OLHOS FORAM: UMA LEITURA DE THE


WASTE LAND

Rodrigo Abecasis

Mestrado em Teoria da Literatura

2013
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA
EIS PÉROLAS QUE OS SEUS OLHOS FORAM: UMA LEITURA DE
THE WASTE LAND

Rodrigo Abecasis

Mestrado em Teoria da Literatura

Dissertação Orientada pelo Professor António Feijó

Lisboa
2013

1
Agradecimentos

Gostava de expressar a minha gratidão para com os colegas que fizeram comigo o Seminário
de Orientação I no Programa em Teoria da Literatura, pelos seus comentários e sugestões enquanto
fui desenvolvendo a ideia que exponho nesta tese. Gostaria de agradecer à minha mãe, pela
paciência que teve ao rever a primeira parte do meu trabalho, e ao Professor António Feijó pelo seu
trabalho de orientação e pelas sugestões inestimáveis que me deu. Gostaria ainda de agradecer ao
Professor Miguel Tamen pela influência que teve e continua a ter no meu desenvolvimento
intelectual.

2
Esta tese é dedicada ao Jijó.

3
Esta tese é sobre The Waste Land, de T.S. Eliot, e o argumento que exponho é desenvolvido a partir
de um comentário do próprio Eliot em que este disse sobre o seu poema “To me it was only the
relief of a personal and wholly insignificant grouse against life, it is just a piece of rhythmical
grumbling”. A tese está dividida em duas partes, e cada uma dessas partes está dividida em
subcapítulos. Na primeira parte estou preocupado com a estrutura do poema. Para tentar descrevê-la
começo por fazer uma crítica do poema “Death by Water”, de onde retiro várias características que
serão importantes para o resto da minha tese; de seguida pondero o significado de “rhythmical
grumbling” enquanto descrição de um poema, o que por sua vez me levará a argumentar que a
estrutura de The Waste Land é cíclica ou circular. Esta deliberação é acompanhada do ensaio “The
Three Voices of Poetry”, do qual aproveito certas palavras e certas descrições para salientar aquilo
que Eliot, enquanto poeta, faz com The Waste Land, e assim ilustrar o meu argumento. Na segunda
parte estou preocupado com o significado ou o conteúdo do poema. Começo com uma análise de
dados biográficos numa tentativa de isolar o que pode ser considerado um estímulo para a escrita do
poema; de seguida procuro demonstrar a relevância de várias referências que em The Waste Land
são feitas à peça The Tempest de Shakespeare, ligando-as à reflexão biográfica anterior; depois
segue-se a proposta que a peça The Family Reunion é uma resolução daquilo que considero obscuro
e inconclusivo no poema The Waste Land.

This thesis is on T.S. Eliot’s The Waste Land. My argument follows a comment on the poem by
Eliot himself, where he remarks “To me it was only the relief of a personal and wholly insignificant
grouse against life, it is just a piece of rhythmical grumbling”. The thesis is divided into two parts,
each in turn divided into subchapters. In the first part I address the structure of the poem. In my
effort to describe it I begin with an analysis of the poem “Death by Water”, of which several
characteristics I mention will be key throughout my hypothesis; following this I ponder the choice
of “rhythmical grumbling” as a description of a poem, which in its turn will lead to the argument
that the structure of The Waste Land is cyclical or circular. These deliberations are supplemented by
the essay “The Three Voices of Poetry”, wherefrom I retain certain words and descriptions in order
to stress what it is that Eliot, as a poet, is doing in The Waste Land, thus illustrating my argument. In
the second part I consider the meaning or content of the poem. I begin with an analysis of
biographical data in an attempt to isolate what can be considered as stimuli for the writing of the
poem; I then try to demonstrate the importance of several references made in The Waste Land to
Shakespeare’s The Tempest. These I connect with the prior biographic excursus. Finally, I propose
that Eliot’s play The Family Reunion solves what I consider to be the inconclusive and obscure in
The Waste Land.

4
Phlebas – Resmunguices – Claridade – Auto-deprecação – Ardil

5
ÍNDICE

PARTE I – RESMUNGUICES RITMADAS

1. Phlebas, marinheiro fenício 7

2. ”I wasn’t even bothering whether I understood what I was saying” 14

3. Voz, mascaras e poesia dramática 20

4. The Waste Land = Hamlet 24

PARTE II – RESMUNGUICES CONTRA A VIDA

1. ‘Ir ao leme e olhar a barlavento’ 32

2. ”Full fathom five thy father lies”’ 38

3. ”I am always surprised by the bull-dog in the Burlington Arcade” 47

4. Conclusão 58

Bibliografia 64

6
I. RESMUNGUICES RITMADAS

1. Phlebas, marinheiro fenício

a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more;
Macbeth, acto V, cena iii, vv. 25-25

O quarto poema no conjunto de poemas que constituem The Waste Land termina com a
seguinte admonição

Gentile or Jew
O you who turn the wheel and look to windward
Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you1.

Tal como uma característica comum a vários epitáfios que chamou especialmente a atenção de
William Wordsworth, a admonição final deste poema dirige-se para quem o está a ler, ao jeito de
"Stop here! or gently pass"2, que o poeta romântico inglês imagina inscrito numa lápide ao longo de
um trilho que atravessa um cenário campestre3. De entre os restantes poemas de The Waste Land, o
quarto, "Death by Water", destaca-se por várias características: é substancialmente mais curto; todo
o poema é dominado por uma só voz e aquilo de que essa voz fala é facilmente perceptível.
"Death by Water" é um poema mortuário que relata a decomposição do cadáver de um
marinheiro fenício chamado Phlebas, cujo corpo é dilacerado pelos elementos inanimados do fundo
do mar. Mas quem era Phlebas, o que há na sua história que traga especial relevância para a
admonição que no final do poema é expressa? Na tentativa de responder a esta pergunta ocorre-me
uma característica importante que Wordsworth nota nos seus Essays Upon Epitaphs. Segundo
Wordsworth, um epitáfio deve estabelecer uma relação particular entre o estado emocional da voz
que dita o epitáfio e o defunto cuja morte o epitáfio lamenta. Entende-se deste modo que é
necessário que algo próprio ao defunto, à sua vida, à sua personalidade, sobreviva e seja expresso
na inscrição mortuária4. Permitam-me demorar-me um pouco neste ponto, ilustrando como esta

1
T.S. Eliot, The Waste Land, ed. Michael North, Norton Critical Editions, n.p., 2001, vv. 319-321, p. 16. Todas as
citações de The Waste Land referem-se a esta edição.
2
C.f. William Wordsworth “The Solitary Reaper”, em William Wordsworth, The Selected Poetry and Prose of
Wordsworth, ed. Geoffrey F. Hartman, New American Library, n.p., n.d., p.158.
3
4
William Wordsworth, Selected Prose, ed. John O. Hayden, Penguin Books, Suffolk, 1988, p. 332.

7
necessidade se encontra naquele tipo de poesia que dizemos ser um epitáfio.
Irei usar dois exemplos, um tirado de In Memoriam de Tennyson, outro tirado da edição
Penguin de The Greek Anthology. Ora repare-se na seguinte quadra:

A life that all the Muses deck'd


With gifts of grace, that might express
All comprehensive tenderness,
All subtilising intellect5

A tendência é claramente elegíaca, e de facto aquilo que In Memoriam faz, quando consideramos
esta obra uma obra que deve ser entendida como um todo, é afirmar um humor elegíaco. Tennyson
glorifica o seu amigo Hallam, atribuindo-lhe qualidades que pensamos serem um pouco exageradas,
mas este tipo de exagero é comum quando nos deparamos com poemas mortuários que fazem uma
elegia do defunto. Quer as qualidades que o poeta atribui a Hallam correspondam ou não às
qualidades deste enquanto vivo é todavia menos importante, de facto nem é importante de todo para
o leitor de poesia. O que importa é haver um esforço por parte do poeta em transmitir a imagem que
tem em mente da personalidade do defunto, uma imagem daquilo que lhe era singular. Ao fazer isto,
Tennyson certifica-se que o sentimento de perda que sente é algo que o leitor identifica como tendo
um fundo real – que é algo com o qual o leitor se pode identificar. Apenas através da menção
daquilo que era próprio à individualidade e singularidade da pessoa que morreu é possível ao leitor
entender o quanto se perdeu.
Olhemos agora para o outro exemplo:

Powder-light let dust lie


On Musa, who had blue eyes,
Who made bird-sweet music,
Who, silent now, stone-still,
Here lies.6

Ao contrário da quadra de Tennyson, que louva a compaixão e o intelecto, este epitáfio louva
características físicas como os olhos e a voz. Mesmo assim, é inegável que algo da pessoa que
partiu permanece nos versos; enquanto leitores entendemos que é a ausência daquilo que é louvado

5
Tennyson, In Memoriam, ed. Robert H Ross, Norton, New York, 1973, vv. 45-48, p. 51-52
6
Jay, Peter (ed.), The Greek Anthology, Penguin Books, n.p., 1981, p. 240.

8
que informa a dor expressa pelo lamento. Tanto neste epitáfio quanto na quadra de Tennyson existe
uma unidade entre aquilo que se perdeu e o estado de quem lamenta. O estado emocional do poeta é
justificado quando o poeta mostra qual é o objecto da sua dor. O leitor tem ao seu dispor aquilo de
que necessita não só para entender o porquê do poeta se lamentar, mas também para se identificar
com o lamento deste.
Se mantivermos estes exemplos em mente e ponderarmos o caso de um poema mortuário
que termina com uma admonição, certamente pensaremos o seguinte: o poeta lamenta a morte de
alguém, mas não se fica pelo lamento; há uma outra motivação por detrás da escrita, sendo essa a
tentativa de extrair uma lição sobre a vida e a morte através da vida e da morte do defunto. Até aqui
está tudo bem, podemos até lembrar-nos de vários episódios do Inferno de Dante, incluindo aquele
que Eliot usou como epígrafe para o seu celebrado poema The Love Song of J. Alfred Prufrock.
Nesse episódio Guido da Montelfeltro conta a Dante a história de como a sua vida o levou ao
inferno, o que resulta na possibilidade de extrairmos uma lição através da queda e condenação de
Guido. Se de seguida olharmos para "Death by Water", somos assolados por um sentimento
estranho, pois na verdade embora a linguagem que nos relata a decomposição do cadáver do
marinheiro fenício nos seja clara, ficamos sem saber exactamente o que fazer da admonição que é
feita no memento mori.
Esta incerteza parece-me importante para que possamos tentar compreender, ou explicar,
The Waste Land, mas antes de avançar para esse tipo de deliberações é necessário entender em
primeiro lugar o que provoca essa incerteza. Se colocarmos "Death by Water" lado a lado com os
dois exemplos que acima citei, notaremos que aquela unidade referida por Wordsworth e que tentei
ilustrar com a elegia a Hallam e o epitáfio de Musa está ausente. Eis o que o poema diz do defunto

Phlebas the phoenician, a fortnight dead


....
O you who turn the wheel and look to windward
Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you7.

É notória a falta de uma personalidade e a falta de características que eram próprias ao defunto. Ser-
se 'tão alto e belo quanto tu' fica sem dúvida muito atrás de 'tinha olhos azuis e fazia doce música
como os pássaros'. "Death by Water" não nos dá muita informação sobre o defunto; enquanto
Tennyson e o anónimo que escreveu sobre Musa se esforçam por manter algumas das características
do defunto que lhes eram mais queridas, Eliot não parece muito preocupado em fazer o mesmo.

7
The Waste Land, vv. 313-231, p.16.

9
Aquilo que é dito sobre Phlebas é insuficiente para que o leitor seja capaz de visualizar alguém ou
sentir uma presença. O que é dito sobre Phlebas é que este foi um marinheiro fenício, alguém que
morreu no mar: Phlebas é um marinheiro de uma civilização antiga que morreu afogado, é isso e
apenas isso. Phebas é alguém que foi esquecido pela História.
"Death by Water" é um poema mortuário mas Eliot não lamenta a morte do defunto nem
sequer mostra simpatia alguma perante este. O ambiente do poema é admonitório, dele retiramos
um sentido da natureza perecível de todas as coisas. O interesse de Eliot não incide particularmente
sobre Phlebas, o foco não é posto no defunto mas é antes posto na morte. Esta tendência ganha
força através da imagem do cadáver em decomposição. A incorporação nos monumentos mortuários
da imagem do cadáver que apodrece era costume no final da Idade Média, onde a ênfase dada ao
lado terreno da morte era feito em detrimento de um sentimento autenticamente religioso. As
palavras de Huizinga sobre este costume parecem-me apropriadas

A visão macabra não representa as emoções de ternura e consolação. A nota elegíaca


falta completamente. No fundo o sentido macabro é egoísta e terreno. Mal se descobre a
dor pela ausência dos que morrem; é, sim, o medo da própria morte e essa vista como o
pior dos males.8

A falta de uma nota elegíaca e o macabro interesse pela decomposição do cadáver fazem com que a
morte em si ocupe mais espaço no poema do que o marinheiro esquecido e afogado. Apesar da
admonição feita no memento mori conter o nome do defunto, o significado desta escapa-nos e
parece ser auto-reflexivo. O poeta teme a morte, e a morte é vista como um ser-se esquecido. Ser-se
esquecido, entende-se, é o pior dos males; para um poeta certamente significa que falhou naquilo
através do qual quis fazer a obra da sua vida.
Na nota ao verso 407 de The Waste Land, Eliot reporta o leitor para o acto V, cena vi, da
peça The White Devil de Webster, e cita

they'll remarry
Ere the worm pierce your winding-sheet, ere the spider
Make a thin curtain of your epitaphs.9

De novo Eliot mostra-se interessado na decomposição de um cadáver, mostrando-se também


preocupado com a ideia de esquecimento que nos versos de Webster é capturada na ocultação
8
Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, trad. Augusto Abelaira, Editora Ulisseia, Viseu, 1996, p. 156.
9
The Waste Land, p. 25.

10
gradual pelas teias de aranha. Com esta nota Eliot pretende elucidar o sentido dos seguintes versos

By this, and this only, we have existed


Which is not to be found in our obituaries
Or in the memories draped by the beneficent spider
Or under seals broken by the lean solicitor10

A passagem de Webster serve para mostrar o que Eliot pretende com "memories draped by the
beneficient spider", indicando que se trata de "your epitaphs". Tal como no poema "Death by
Water", os versos de Webster focam-se no lado terreno da morte, esta associada ao ser-se esquecido.
Se considerarmos os versos que precedem a passagem de "What the Thunder Said" que acabei de
citar, há uma característica importante à qual me parece que devemos prestar atenção. Irei citar
longamente, repetindo os versos já citados para que fique claro aquilo que pretendo tirar deles

My friend, blood shaking my heart


The awful daring of a moment's surrender
Which an age of prudence can never retract
By this, and this only, we have existed
Which is not to be found in our obituaries
Or in the memories draped by the beneficent spider
Or under seals broken by the lean solicitor
In our empy rooms11

O verso "By this, and this only, we have existed" executa uma transição entre uma tentativa
de justificação e o reconhecimento de que aquilo que nos é mais próximo e importante, dando
significado à nossa existência, é incomunicável. Em primeiro lugar, devemos notar que o poeta
sente a necessidade de se justificar, mesmo que não saibamos exactamente o que é aquilo do qual
ele se quer justificar. Um sentimento de culpa governa os versos, e a tentativa de justificação
apresenta-se mais como uma desculpa – "The awful daring of a moment's surrender/ Which an age
of prudence can never retract". Este verso é uma variação de uma passagem de The Revenger's
Tragedy que chamou especialmente a atenção de Eliot

Are lordships sold to maintain ladyships

10
The Waste Land, vv. 405-408, p. 19.
11
Idem, vv. 403-40o, pp. 18-19.

11
For the poor benefit of a bewildering minute?12

Note-se que os versos de Tourneur apresentam um contraste entre uma emoção positiva e uma
emoção negativa. É curioso, neste sentido, notar o que Eliot faz destes mesmos versos no poema
Ash-Wednesday

Because I do not hope to know again


The infirm glory of the positive hour13

Como se nota, a variação que Eliot faz de Tourneur no poema Ash-Wednesday contém uma emoção
positiva, embora esta seja negada antes mesmo de ser expressa. Mas esse elemento positivo está
totalmente ausente da variação dos versos de Tourneur que Eliot faz em The Waste Land, o que faz
sobressair a emoção negativa e, como disse, um sentimento de culpa. O contraste está ausente. O
poeta é alguém que falhou e agora se desculpa, não como Othello no seu último discurso, tentando
animar-se, mas como alguém que se assume culpado e se verga perante o peso da sua culpa.
Creio que os versos referentes aos obituários, a aranha e o solicitador não podem ser
considerados em separado daquilo que o poeta sente necessidade de justificar. Sobre o que está
atrás, aquilo que informa tal necessidade, o poeta apenas diz "By this, and this only, we have
existed", tentando demonstrar nos versos que se seguem como esse 'isto' não pode ser posto em
palavras. Compreendemos que terá alguma coisa a ver com a rendição de um momento, como uma
direcção adoptada num determinado momento que agora já não pode ser desfeita, mas não
compreendemos que direcção é essa nem para que objecto se dirige.
Considerando a relevância que os versos de Webster trazem para esta passagem, aquilo que
Eliot está a fazer nessa nota é apontar para "Death by Water", o poema mortuário de The Waste
Land, e dizer que este é um epitáfio que tenta pôr em palavras o 'por isto, e isto apenas, temos
existido'. O mais próximo que chega de conseguir dizer tal coisa é o verso "O you who turn the
wheel and look to windward", mas de novo somos assolados por um sentimento de incerteza. O
verso é demasiado geral, demasiado vago, e o nome que poderia acrescentar alguma informação que
nos deixasse chegar a uma conclusão é incapaz de o fazer. A tentativa é uma tentativa falhada.
Aparentemente o poeta tem alguma coisa para dizer, uma coisa que lhe é importante o suficiente
para a relacionar com o sentido, o significado ou a direcção, da sua vida. O que resulta da tentativa
por parte do poeta em dizer aquilo que tem para dizer é contudo a evidência de que esse 'algo' que
12
Cyril Tourneur, The Revenger’s Tragedy, ed. R.A. Foakes, Manchester University Press, Manchester, 1980, acto III,
cena v, vv. 74-75. Não cito literalmente, como Eliot fez substituo a palavra “bewitching” pela palavra “bewildering”.
13
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 89.

12
procura não se encontra nas palavras que foi capaz de dizer – o "by this, and this only" permanece
aquilo "which is not to be found".
Eliot tenta dizer uma coisa e logo de seguida dá um passo atrás e diz 'não é isto'. É difícil
escapar à noção de que aquilo que o poeta quer dizer continuamente nos foge, e é igualmente difícil
escapar à sensação de que o próprio poeta não sabe o que é aquilo que tem para dizer, embora este
saiba que quer dizer alguma coisa. Este movimento, creio, domina todos os poemas de The Waste
Land, e até em "Death by Water" o encontramos. Não é somente a admonição feita, pela falta de um
conteúdo que possamos associar ao nome "Phlebas", que me leva a pensar assim, mas também as
duas descrições que são feitas do estado post-mortem do marinheiro

Forgot the cry of gulls and the deep sea swell


And the profit and the loss.
A current under sea
Picked his bones in whispers. As he rose and fell
He passed the stages of his age and youth
Entering the whirpool.14

O esquecimento notado no primeiro instante é negado pela rememoração que caracteriza o segundo.
Do percurso traçado podemos dizer que se trata de uma tentativa de chegar a algum lado seguida
por outra tentativa que lhe é idêntica embora vá na direcção oposta. Esta tendência é semelhante ao
que Eliot faz com Phlebas, dando-lhe um nome mas recusando-se a dar-lhe características que
façam de Phlebas uma pessoa. Para mais, tendo em conta a nota em que Eliot faz referência a
Webster, é forçoso notar que a tentativa de apontar para "Death by Water" e dizer que este poema é
um epitáfio marca também a incerteza do poeta. Devido à falta de unidade entre o estado emocional
e o defunto, devido até à presença de um cadáver em detrimento de uma personalidade, ou uma
pessoa, "Death by Water" dificilmente se qualifica como um epitáfio.
Apesar da presença de um cadáver, a descrição deste poema como um cenotáfio é mais
adequada. O cadáver não é o núcleo do poema, é um elemento decorativo. Aquilo que importa de
Phlebas não é a pessoa que este foi mas apenas o facto de ser alguém que foi esquecido pela
História. Do mesmo modo que quando olhamos para um memorial erigido em memória dos
soldados caídos numa guerra, o nome "Phlebas" não nos diz nada de particular para além da certeza
que temos de que o nome outrora pertenceu a alguém que já não se encontra entre os vivos. Phlebas
não acarreta consigo significado especial para a admonição que é feita no final do poema.

14
The Waste Land, vv. 313- 318, p. 16.

13
2. “I wasn't even bothering whether I understood what I was saying”

Headpiece filled with straw. Alas!


The Hollow Men, I

Embora não o tenha afirmado directamente, tudo o que disse até aqui avança para uma
descrição de The Waste Land que não considera esta obra um poema longo e unificado. Há um
episódio de The Simpsons em que o taberneiro Moe Szyslak se torna um poeta de renome com a
ajuda de Lisa Simpson. O papel desta é fundamental, pois sem a sua ajuda Moe nem saberia que era
capaz de escrever poesia. Lisa vê uma série de frases desconexas inscritas em papéis que Moe
pendurou na parede da sua sala. Interessada pelas frases, Lisa experimenta várias ordenações
possíveis destas até conseguir juntá-las num poema. A ideia de Lisa é, como afirma, fazer um
poema épico através de fragmentos como T. S. Eliot havia feito com The Waste Land. Mas The
Waste Land parecerá muito diferente se em vez de considerarmos que se trata de um todo unificado
que progride de acordo com um plano estipulado pela mente do poeta, percepcionarmos os seus
poemas como um conjunto que se sobrepõe a um estímulo muito mais cru.
A versão fac-simile, editada por Valerie Eliot, precede a transcrição das várias versões que
antecederam a forma final do poema com um comentário de Eliot em que este fala do significado de
The Waste Land

Various critics have done me the honour to interpret the poem in terms of criticism of the
contemporary world, have considered it, indeed, as an important bit of social criticism. To
me it was only the relief of a personal and wholly insignificant grouse against life, it is
just a piece of rhythmical grumbling.15

É difícil harmonizar a noção de que um poema expressa uma crítica com a noção de que a sua
estrutura é caracterizada por uma série de resmunguices contra a vida postas em ritmo. Uma
resmunguice não é um discurso coerente e organizado na perspectiva de transmitir uma mensagem;
é, por outro lado, um falar entre dentes, um falar baixinho e com rabugice. Uma série de
resmunguices é como bradar aos céus.
Encontramo-nos perante duas concepções de The Waste Land, mas essas duas concepções
não parecem darem-se bem uma com a outra. Por um lado há a descrição do poema como uma série
de resmunguices ritmadas, por outro a descrição do poema como uma crítica da vida que lhe era

15
T.S Eliot, T.S Eliot, The Waste Land: a facsimile & transcript of the original darfts including the annotations of Ezra
Pound, ed. Valerie Eliot, Faber and Faber, London, 1971, p. 3.

14
contemporânea. Essa crítica, entende-se, trata-se de uma condenação ou censura da era, o que
pressupõe que o poema formula argumentos. A concepção de The Waste Land como uma crítica
associa-se à ideia de um poema longo e unificado que, num itinerário através da desolação da
Europa do pós-primeira guerra, executa um movimento. Que movimento é esse, e por onde passa, é
uma questão que a crítica ainda não foi capaz de responder satisfatoriamente, mas talvez não seja
preciso considerar que algo se encontra em movimento para sabermos que nos encontramos perante
um poema.
A própria ideia de que um poema serve para fazer uma crítica é insatisfatória, até para
aquela poesia que dizemos ser satírica, pois dizer que esta se subsume numa crítica não lança luz
sobre tudo aquilo que constitui o poema satírico. Os poemas não servem para fazer críticas. Quando
consideramos The Waste Land, esta ideia torna-se ainda menos encantadora, mostrando-se incapaz
de explicar a sua substância e a sua natureza. The Waste Land é um poema cheio de rupturas e
quebras, um poema que não é governado por uma só voz, um só local ou um sujeito unitário. Isto
faz com que The Waste Land não consiga estabelecer a unidade necessária para haver um enredo e,
através do enredo, haver uma progressão. Aquilo que nos chama a atenção em The Waste Land e
nos faz olhar para este conjunto de poemas como uma obra que contém uma unidade própria não é
uma acção que os poemas avançam, mas um tom inconfundível que está por detrás de todos os
poemas e lhes confere um pathos comum.
William Empson, ao comentar o episódio de Marie no poema "The Burial of the Dead", que
interpreta como sendo uma censura, afirma algo interessante

The difference is that Dickens had a plot, which allowed him to show adequate reasons for
his scolding; it is true that the plot is often perfunctory – no admirers of Oliver Twist would
try to detail the itinerary of the villain; but to scold without even a residual plot is bound to
feel self-regarding.16

Não há necessidade de detalhar o itinerário do vilão no romance de Dickens porque a sua existência
é evidente, ninguém duvida dela ou tenta negá-la. O mesmo se pode dizer de Os Lusíadas, pois
ninguém duvida que as naus partem de Lisboa e que chegam às Índias; até mesmo com outros
poemas de Eliot poderíamos falar nestes termos – Prufrock passeia pela rua, o sujeito de Ash-
Wednesday sobe uma escada. Com The Waste Land, contudo, uma afirmação positiva de um
itinerário traria de imediato vários problemas ao de cima. Poderíamos perguntar quem é que
percorre o itinerário, onde começa e onde acaba, por onde passa, e nenhuma dessas questões seria

16
William Empson , Using Biography, “My God, man, there’s bears on it”, The Hogarth Press, London, 1984, p. 191.

15
respondida univocamente. The Waste Land não mostra grandes evidências de um itinerário
percorrido. Neste caso poderíamos concordar com Ezra Pound, dizendo com ele que a arte é tanto
uma crítica da vida quanto o ferro em brasa é uma crítica do fogo. Pobre Matthew Arnold. Resta-
nos algo que "is bound to feel self-regarding".
Ao comentar a admonição feita no final do poema "Death by Water" falei do poeta que tem
alguma coisa para dizer mas que ao mesmo tempo não sabe exactamente o que é que tem para dizer.
Intuímos que de algum modo isso relaciona-se com descrever a estrutura e o significado de um
poema como sendo uma série de resmunguices ritmadas, intuímos também que se relaciona com a
falta de um itinerário. Mas uma intuição por si só não chega, é insatisfatória e apenas mostra aquilo
que poderá ser o início de uma explicação. Irei agora aprofundar esta questão, tentando demonstrar
como se estabelece uma ligação entre escrever um poema quando não se sabe exactamente o que se
tem para dizer e escrever um poema que é uma série de resmunguices onde nenhum itinerário pode
ser identificado. Esta deliberação irá servir de alicerce para voltar a atenção para algumas passagens
de The Waste Land.
No ensaio "The Three Voices of Poetry" Eliot faz uma descrição do processo de génese de
um poema. Eliot diz que, em primeiro lugar e numa primeira instância, o poeta não se preocupa
com questões que se relacionam com uma audiência, quer seja da existência desta ou da
compreensão que possa ter daquilo que o poeta tem para dizer. Por outro lado, o que preocupa o
poeta e ocupa a sua mente parece ser uma preocupação de dever, pois o poeta é oprimido por um
fardo do qual a única forma de alívio possível é através da escrita de um poema, não um poema
qualquer, mas o único poema capaz de expiar o mal que o atormenta. Deste processo, que acarreta
em si um forte elemento de necessidade e de catarse, Eliot diz o seguinte

he [o poeta] is haunted by a demon, a demon against which he feels powerless, because in


its first manifestation it has no face, no name, nothing; and the words, the poem he makes,
are a kind of exorcism of this demon.17

O poeta sente a necessidade de pôr algo em palavras, mas o que esse algo é, aquilo que o
caracteriza, o poeta não sabe, nem tem outro modo de saber excepto através da escrita. A escrita
constitui a tentativa de delinear o conteúdo que tanto atormenta o poeta. Este só sabe aquilo que tem
para dizer depois de o ter dito, e o esforço que o levou a escrever um poema não foi motivado por
querer dizer alguma coisa a alguém, mas por precisar de se aliviar de um desconforto agudo. Não
posso deixar de notar que, numa entrevista para a Paris Review, ao responder a Donald Hall sobre

17
T.S. Eliot, On Poetry and Poets, “The Three Voices of Poetry”, Faber and Faber, n.p., 1957, p. 98.

16
as suas intenções quando escreveu The Waste Land, Eliot tenha dito

I wonder what an "intention" means! One wants to get something off one's chest. One doesn't
quite know what it is that one wants to get off the chest until one's got it off. But I couldn't
apply the word "intention" to any of my poems. Or to any other.18

Embora seja compreensível manter que a palavra "intenção" é problemática no contexto de uma
tentativa de explicar um poema, devemos no entanto admitir que certos poemas evidenciam de
modo particular uma intenção, mesmo que nunca deixem perfeitamente claro o que essa intenção é.
Dizemos isso de poemas cujo conteúdo, pelo menos em parte, encontramos à superfície. Existe uma
diferença entre Fra Lippo Lippi de Browning e Ode to a Nightingale de Keats, entre Os Lusíadas e
The Cantos de Pound, entre A Divina Comédia e The Waste Land. Não estou muito preocupado com
a palavra "intenção" no sentido em que o poeta procura provocar um determinado efeito concreto
no leitor com o seu poema, mas no sentido em que a sua poesia evidencia um esforço por parte do
poeta em entender aquilo que tem para dizer – independentemente dos efeitos que achamos que Os
Lusíadas provocam, sabemos que Camões pensou no seu conteúdo, sabemos que Camões pensou
sobre qual seria a forma ou estrutura mais indicada para o actualizar poeticamente. Considerando os
primeiros casos de poesia que apresentei, este esforço e deliberação são notórios; nos segundos
casos o esforço parece ser para "get something off one's chest".
Ainda no ensaio "The Three Voices of Poetry" Eliot fala daquilo que deve ser o primeiro
trabalho do poeta, dizendo que este é verificar que o pensamento e o estímulo que o impulsionam a
escrever um poema são-lhe claros. É neste sentido que Eliot fala de poesia obscura, que para ele é
apenas um sintoma da falta deste primeiro trabalho: um poema é obscuro quando o poeta não foi
capaz de se expressar a si mesmo para si mesmo; a forma mais maltrapilha de poesia resulta do
poeta que se quis convencer ter alguma coisa para dizer quando na verdade nada tinha. Voltando aos
'dois casos' de poesia que mencionei, torna-se evidente que enquanto aquele a que chamei 'o
primeiro caso' exige que este trabalho seja começado antes da escrita do poema, no 'segundo caso'
isso já não é possível, pois terá de ser simultâneo à escrita do poema. No que toca este tipo de
poesia, para mais, podemos ainda imaginar a total ausência de claridade do poeta perante si mesmo
e perante o seu poema. O olhar retrospectivo de Eliot sobre The Waste Land indica precisamente
esta falta de claridade, e as palavras de Eliot subentendem que Eliot considerava The Waste Land

18
The Paris Review, “T. S. Eliot, The Art of Poetry No. 1”, consultado em
<http://www.theparisreview.org/interviews/4738/the-art-of-poetry-no-1-t-s-eliot>.

17
um poema obscuro. Veja-se o que Eliot disse a Donald Hall

By the time of the Four Quartets, I couldn't have written in the style of The Waste Land. In
The Waste Land I wasn't even bothering whether I understood what I was saying. These
things, however, become easier to people with time. You get used to having The Waste Land,
or Ulysses, about.19

Neste comentário Eliot não apenas assume não ter sabido exactamente o que estava a fazer quando
escreveu The Waste Land, mostrando-se negligente naquilo que mais tarde disse ser o primeiro
trabalho do poeta, mas indica que o estilo de The Waste Land é inseparável da falta desse trabalho.
Aquilo que para Eliot informa e justifica o estilo de The Waste Land é a falta de claridade do poeta
para si mesmo; The Waste Land é uma mera etapa no árduo percurso do poeta em aprender como
usar a linguagem. Segundo a definição que Eliot faz de poesia obscura, e de acordo com o que o
poeta disse do seu poema, The Waste Land é um poema obscuro.
O processo descrito por Eliot deixa muito espaço para dúvidas. Em primeiro lugar,
considerando que após a escrita e o trabalho sobre o poema o poeta consegue alcançar alguma
claridade perante si mesmo, nada garante que essa claridade seja transmissível a outro. Em segundo
lugar, tendo em conta que a única ferramenta disponível ao poeta para isolar e assim entender o
demónio que o atormenta são as palavras, devemos entender que a expressão mais perfeita desse
estímulo é uma sequência específica e concreta, inalterável, de palavras; é um determinado arranjo
destas em que cada uma se encontra no seu lugar próprio e devido. O problema reside em saber se
as palavras e a ordenação destas encontradas pelo poeta são de facto as mais adequadas, visto que se
o poema é motivado por um estímulo que lhe é anterior, esse estímulo deverá permanecer imóvel e
imutável. Apenas a poesia que concorda em absoluto com esse estímulo é capaz de o exprimir na
sua totalidade, de o exorcizar. Eliot reconhece esta dificuldade, e diz que por vezes o poema que
resulta deste processo pode ser apenas as palavras ordenadas segundo a melhor disposição que o
poeta foi capaz de encontrar, o que não significa que é a melhor disposição ou a mais correcta. O
maior problema é que num processo desta natureza existe uma melhor e uma pior expressão, existe
correcto e existe errado mesmo que não disponhamos das ferramentas para o avaliar.
Chamo a atenção para isto pois parece-me que no que toca o tipo de poesia que se coaduna
com o processo descrito por Eliot, aquilo que o poema é e o seu significado parecem estar
intimamente ligados com a génese do poema. É por isso que Eliot relaciona o estilo de The Waste

19
The Paris Review, “T. S. Eliot, The Art of Poetry No. 1”, consultado em
<http://www.theparisreview.org/interviews/4738/the-art-of-poetry-no-1-t-s-eliot>.

18
Land com o facto de não ter sabido muito bem o que estava a dizer quando escreveu The Waste
Land; é por isso que Eliot descarta a ideia de uma crítica do mundo contemporâneo e afirma "To me
it was only the relief of a personal and wholly insignificant grouse against life; it is just a piece of
rhythmical grumbling".
Chamo a atenção para o facto de a caracterização da poesia que tenho vindo a desenvolver, e
que Eliot descreve como o exorcizar de um demónio, é referente a casos particulares e não à poesia
na sua generalidade. Não procuro de modo algum neste trabalho tecer considerações sobre tal
generalidade, nem procuro um conhecimento do geral. O que me interessa é meramente aquele tipo
de poesia que se coaduna com o processo de génese de um poema descrito por Eliot, em especial
como The Waste Land se ajusta a essa descrição.
Se a escrita de um poema é a procura pela expressão de algo que se desconhece, a tentativa
de explicar um poema através da ideia de um plano que lhe é prévio, de uma intenção perceptível,
cai por terra. Resta-nos outro modo de tentar explicar um poema, e esse terá de passar pela
identificação do discurso próprio e único que caracteriza o poema. Tal como acontece na génese de
um poema, o crítico deverá entender como algo é dito antes de procurar depurar o seu conteúdo. De
certo modo o crítico terá de emular o processo de criação pelo qual o poeta passou: não de um
modo histórico e temporal, tentando descobrir o máximo de informação possível sobre a vida do
poeta no período específico em que escreveu determinado poema, mas no sentido em que o crítico
se encontra perante a mesma dificuldade que o poeta teve de enfrentar quando escrevia o poema.
Por outras palavras, a crítica apenas poderá avançar para considerações sobre o conteúdo e o
significado de um poema quando for capaz de identificar como o poema tenta dizer aquilo que não
sabe o que é. A poesia, vista deste modo, não é um esforço consciente para um significado; é uma
necessidade inerente de alívio. Assim, aquilo a que chamamos o significado de um poema, ou
aquilo que tentamos depurar quando tentamos explicar um poema, é aquilo que o poema faz, como
se agisse, não aquilo que o poema diz. Se isto é assim, uma crítica que consiga identificar, isolar e
justificar aquilo que o poema é, aquilo que o poeta está a fazer com ou no poema, será talvez uma
explicação viável do poema, ou pelo menos aquilo que de mais próximo com uma explicação
poderemos almejar. É neste sentido que o comentário de Eliot em que este descarta a ideia de The
Waste Land como uma crítica é relevante, e é também este sentido que se encontra por detrás do
comentário em que Eliot deflaciona por completo as notas a este poema, lamentando "having sent
so many enquirers off on a wild goose chase after Tarot cards and the Holy Grail" 20, à caça de
gambuzinos.

20
Citado em: ed. Lawrence Rainey, The Annotated Waste Land with Eliot’s Contemporary Prose, Yale University Press,
New Haven, 2006, p. 38.

19
3. Voz, máscaras e poesia dramática

The mere fact that he is assuming a role, that he is speaking through a mask, implies the presence of an audience: why
should a man put on a fancy dress and a mask only to talk to himself?

The Three Voices of Poetry

Esta deliberação sobre a génese de um poema liga-se ao tema de "The Three Voices of
Poetry". Neste ensaio Eliot procura identificar e distinguir aquilo que considera ser as três vozes da
poesia. A primeira voz é a voz do poeta que fala para si mesmo ou para ninguém; a segunda voz é a
do poeta que se dirige para uma audiência; a terceira voz é a do poeta que tenta criar uma
personagem que fala em versos. As duas primeiras vozes são as mais comuns com que nos
deparamos sempre que abrimos um livro de versos; a terceira voz é aquela que informa a acção de
personagens que se movem num palco.
Tendo em conta o tipo de poesia sobre o qual tenho vindo a falar, destas três vozes aquela
que se adequa melhor é a primeira. No entanto, pensando em The Waste Land, certamente me
diriam que a forte componente dramática deste poema deveria fazer da sua voz algo sobre o qual
não diríamos 'neste poema o poeta parece estar a falar consigo mesmo, e se não é consigo que fala,
ora, então está a falar para ninguém!'. Contudo, parece-me que falar de The Waste Land em termos
da primeira voz é o mais apropriado, e irei demonstrar o porquê de pensar deste modo. A questão
está em entender a natureza da tendência dramática de The Waste Land, que em larga medida é
semelhante à tendência dramática geral de toda a poesia de Eliot, embora não exactamente
semelhante. Será necessário em primeiro lugar ponderar aquele tipo de poesia que muitas vezes se
chama "monólogo dramático", ou nas palavras de Robert Browning "poesia dramática de expressão
lírica".
Esta é uma poesia que dizemos ser "dramática", mas não é uma poesia que foi escrita para o
palco. O que o poeta faz é pôr palavras na boca de uma personagem, fazendo com que essa
personagem fale para alguém. Todo o poema é, contudo, um monólogo, e nele não há espaço para
outra acção importante que não seja feita pelas palavras. Tipicamente, um monólogo dramático, por
mais carregado de energia que possa ser, é algo que permanece estático, que carece do dinamismo
de uma narrativa. Isto dá-se porque num monólogo todo o interesse recai para a palavra e para a
expressão, não para a acção. Uma peça pode chegar a um momento de clímax num monólogo, mas
o seu enredo não pode ser resolvido por um monólogo – o enredo apenas pode ser resolvido pela
acção.
Para Eliot, esta característica do monólogo dramático, i.e. o ser estático, traz consigo uma

20
implicação importante: ao contrário de uma peça de teatro, o monólogo dramático não dispõe
daquilo que é necessário para criar uma personagem. Uma personagem é feita na acção, na sua
interacção com outras personagens, e não no momento único de um monólogo. Segundo Eliot, o
poeta que fala na sua própria voz não é capaz de criar uma personagem, mas é capaz de imitar uma.
Usando Caliban como exemplo, Eliot diz que em várias passagens de The Tempest aquele que
ouvimos falar é Caliban, mas se lermos o poema Caliban Upon Setebos, de Robert Browning,
aquele que ouvimos não é Caliban mas Browning a falar através de Caliban. É por isto que,
enquanto da poesia dramática de Browning Eliot diz que se trata da segunda voz, onde o poeta fala
para uma audiência, da poesia nas peças de teatro de Shakespeare Eliot diz que se trata da terceira
voz. Aquilo que normalmente se ouve no monólogo dramático são as palavras de um poeta que
colocou uma máscara e finge ser uma personagem vinda da História ou vinda da ficção. Com este
tipo de poesia é esperado que o leitor identifique a personagem – ou a personagem tipo – antes de o
poeta começar a falar.
Compare-se agora o início do poema The Love Song of J. Alfred Prufrock

Let us go then, you and I,


While the evening is spread out against the sky
Like a patient etherized upon a table;21

com o início do poema "The Burial of the Dead", primeiro poema de The Waste Land

April is the cruellest month, breeding


Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.22

Em relação ao primeiro exemplo devemos notar duas coisas. Em primeiro lugar, apesar de o poeta
nos propor um monólogo dramático cuja máscara desconhecemos, o título do poema dá-nos um
nome, – que à medida que avançamos pelo poema se nos torna mais precioso – dando-nos também
alguma informação sobre o que devemos esperar do seu poema com "The Love Song". Estes
elementos são importantes pois demonstram a necessidade que o poeta sentiu de compensar a sua
escolha de usar como máscara alguém que não conhecemos. Em segundo lugar, o primeiro verso

21
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 13.
22
The Waste Land, vv. 1-4, p.5.

21
evidencia que o discurso do poeta, através da máscara, está destinado para uma audiência.
Se agora considerarmos o que dei como segundo exemplo, será forçoso notar que não
encontramos nenhuma destas características. Tal como acontece com Prufrock, "The Burial of the
Dead" é posto na boca de uma personagem que não sabemos quem é, mas desta vez o poeta não se
preocupa em arranjar um nome que possamos associar com essa personagem. É verdade que alguns
versos à frente o poeta parece indicar que a personagem se chama "Marie", mas alguns versos
depois já é alguém que se auto-denomina "Hyacinth girl" que fala, e ainda um pouco depois muda
de novo e a voz parece pertencer a um homem. Isto leva-me a crer que um nome carrega em si tanta
importância quanto o cadáver no poema "Death by Water". Para mais, para quem se dirige o poeta
neste caso? Ao mesmo tempo que nada nos indica que o monólogo se dirige para outra personagem
imaginária, nada nos indica que o poeta se dirige para os seus leitores. O caso parece ser diferente
de The Love Song of J. Alfred Prufrock.
Quando nos deparamos com passagens como

He said, Marie
Marie, hold on tight. And down we went.
In the mountains, there you feel free.
I read, much of the night, and go south in the winter.23

ou

-yet when we came back, late, from the hyacinth garden,


Your arms full and your hair wet, I could not
Speak, and my eyes failed, I was neither
Living nor dead, and I knew nothing,
Looking into the heart of light, the silence.
Oed' und leer das Meer.24

sentimos que estamos a ouvir palavras que não nos são destinadas, temos a sensação de estar a
escutar alguém por detrás de uma porta. Apesar de The Waste Land ser um poema com tendência
para privilegiar o monólogo dramático, aquilo que entendemos da voz que governa os seus poemas
adequa-se melhor àquela que Eliot diz ser a primeira voz da poesia, ou seja o poeta que fala para si
mesmo ou para ninguém.

23
The Waste Land, vv. 15-18, p. 5.
24
Idem, vv. 37-42, p. 6.

22
Pensar na obra de Browning é de novo útil e ajudará a entender a particularidade da voz de
The Waste Land. Browning usa-se de personagens históricas e de personagens vindas da ficção e
fala através delas. Assumimos que a voz que se ouve é a de Browning, mas entendemos que o uso
da máscara por parte do poeta é algo que foi deliberado, tal como também entendemos a forma
como o monólogo pressupõe e se dirige para uma audiência. Pensando na máscara de Eliot,
contudo, não conseguimos identificar um original – Prufrock, por exemplo, não vem da História e
não vem de nenhuma ficção – e por isso o caso é por força diferente do de Browning. Este, apesar
de falar na sua voz, imita alguém; Eliot, por outro lado, fala apenas na sua voz. Quando lemos The
Waste Land é como se estivéssemos a escutar por detrás de uma porta.
Aquilo que vimos acontecer com o nome "Phlebas" quando perguntámos qual seria a
relevância deste nome para a admonição que é feita no memento mori de "Death by Water", fazendo
deste poema um cenotáfio sobre a morte, vemos agora acontecer com a incapacidade do monólogo
dramático em criar uma personagem, o que faz com que os vários monólogos do poema comecem e
acabem no poeta. Isto é importante porque, como notámos, nomes como "Marie", "hyacinth girl" ou
"Phlebas" não parecem conter em si um elemento de significado que clarifique o poema, sendo
antes apenas sintomas da auto-reflexividade do poema e do poeta.
É preciso notar que, apesar de considerar que a voz que se ouve quando se lê The Waste
Land é a voz de Eliot, e de considerar que Eliot fala para si mesmo, o poeta faz questão de usar uma
máscara. Essa máscara pode não nos ser identificável como uma personagem histórica ou fictícia, e
no entanto está lá. De Robert Browning, mestre da segunda voz, dizemos que é um ventríloquo. De
Shakespeare, génio da terceira voz, dizemos que é mestre de marionetas. De The Waste Land,
contudo, seremos forçados a dizer algo estranho: Eliot veste um trajo e coloca uma máscara para
falar consigo mesmo.
O uso da máscara por parte de Eliot, aparentemente, apenas serve para acentuar a nossa
apreensão do carácter auto-reflexivo do poema, e na verdade a única personalidade sobre a qual nos
podemos debruçar é a do poeta. O que o Eliot disse do seu poema foi descrevê-lo como uma série
de resmunguices ritmadas contra a vida. Nesta primeira parte da minha tese não estou preocupado
com o que Eliot quis dizer com "grouse against life", mas irei tentar demonstrar que a estrutura de
The Waste Land é algo que devemos descrever como uma 'estrutura circular' ou 'estrutura
reiterativa', fazendo assim justiça à afirmação de que The Waste Land é uma série de resmunguices
postas em ritmo.

23
4. The Waste Land = Hamlet
O dear Ophelia, I am ill at these numbers.
I have no art to beckon my groans;

Hamlet, acto II, cena ii, vv.119-118

Qualquer edição crítica de The Waste Land nota que o poema "A Game of Chess" começa e
acaba com uma referência a Shakespeare. O que não é tantas vezes notado é que todo o primeiro
diálogo deste poema, que vai do verso 111 ao verso 138, é reminiscente do diálogo entre MacBeth e
Lady MacBeth após o assassínio de Duncan, no acto II, cena i, da peça MacBeth. "A Game of
Chess" é um poema que pode ser dividido em três blocos, e em cada um desses a emoção
predominante procura um correlato com uma obra de Shakespeare.
O primeiro bloco é uma longa estrofe que nos convém um sentido de opulência sensual,
onde os sentidos são afogados em odores profusos. O correlato que Eliot vai buscar a Shakespeare
vem de Antony and Cleopatra, acto II, cena ii, onde Enobarbus relata a Agrippa o intenso momento
em que pela primeira vez Cleópatra viu António. O segundo bloco é um diálogo entre o que
presumimos ser um casal, e como afirmei o correlato que Eliot vai buscar a Shakespeare desta vez
vem de MacBeth, tornando-se esta referência mais evidente com o verso "Pressing lidless eyes and
waiting for a knock upon the door". Este verso alude ao final da cena em que Lady MacBeth e o seu
marido lavam o sangue de Duncan, o rei, das suas mãos. Enquanto estes estão ao pé do poço, ouve-
se várias vezes alguém a bater no portão do castelo de Macbeth. O terceiro bloco é o relato de uma
conversa num Pub. O último verso é uma citação de Hamlet, mais precisamente das palavras de
Ofélia no acto IV, cena v, onde esta enlouqueceu por saber que o seu pai foi morto pelas mãos do
homem que ama.
Parece de certo modo haver uma progressão de alusões a Shakespeare, e creio que este é um
elemento ao qual devemos prestar atenção. No ensaio "Hamlet", de 1919, Eliot fala de Antony and
Cleopatra, lado a lado com Coriolanus, como os sucessos artísticos mais fortes do bardo inglês.
MacBeth é louvado pela sua capacidade de alcançar aquilo a que Eliot chama "objective
correlative". Este termo Eliot usa para definir "a set of objects, a situation, a chain of events which
shall be the formula of that particular emotion; such that . . . the emotion is immediately evoked".
Por outras palavras, podemos dizer que a capacidade de encontrar os objectos, a situação, ou a
cadeia de eventos que sirva de fórmula para uma emoção é uma mostra da capacidade do poeta de
se esclarecer perante si mesmo. Contudo, enquanto Antony and Cleopatra e MacBeth são os dois
reverenciados por Eliot, o mesmo estatuto não é atribuído a Hamlet.
Eliot fala desta peça como um falhanço artístico, uma peça cujo impulso é um horror tão

24
violento que o dramaturgo foi incapaz de encontrar o objecto que lhe serviria de fórmula, de
correlato. Eliot diz

Hamlet is up against the difficulty that his disgust is occasioned by his mother, but that this
other is not an adequate equivalent for it; his disgust envelops and exceeds her. It is thus a
feeling which he cannot understand; he cannot objectify it, and it therefore remains to
poison his life and obstruct action.25

No poema "A Game of Chess" Eliot começa com aquilo que considera ser o sucesso de
Shakespeare, passando de seguida pela peça que é capaz de exprimir uma determinada emoção com
precisão milimétrica através do objecto adequado, e termina com a peça que considera um falhanço
artístico. É interessante que Eliot tenha escolhido as palavras de Ofélia. De acordo com a descrição
que Eliot faz de Hamlet, parece-me correcto afirmar que de todas as personagens Ofélia é a única
que reage de um modo compreensível perante a natureza excessiva e perturbada de Hamlet, perante
um horror que ultrapassa todos os objectos: Ofélia enlouquece e suicida-se.
É nesta subtileza, creio, que se encontra a relevância destas referências a Shakespeare,
relevância essa que vai para além de procurar o correlato shakespeariano para a emoção, ou o
estímulo, o demónio, que o poeta procura objectivar. Tal como acontece com Antony and Cleopatra,
MacBeth e Hamlet, a emoção é uma espécie de terror, e em The Waste Land vários são os
momentos em que Eliot procura objectivar esse terror. No poema "A Game of Chess", o momento
de maior intensidade é aquele em que o poeta tenta exactamente isso. A tentativa mais marcante,
desta vez, não é feita através de uma alusão a Shakespeare mas através da referência ao mito de
Filomela e Tereus, na seguinte passagem

Above the antique mantel was displayed


As though a window gave upon the sylvan scene
The change of Philomel, by the barbarous king
So rudely forced; yet there the nightingale
Filled all the desert with inviolable voice
And still she cried, and still the world pursues
"Jug Jug" to dirty hears.26

No mito grego Filomela foi violada por Tereus, marido da sua irmã Procne. Para impedi-la de

25
T.S Eliot, Selected Essays, “Hamlet”, Faber and Faber, London, 1969, p. 145.
26
The Waste Land, vv. 97-103, p. 8.

25
alguma vez revelar o seu crime, Tereus corta-lhe a língua; mas Filomela conta a história do seu
infortúnio num manto que tece e envia para a sua irmã. Resgatada por esta, Filomela vinga-se de
Tereus ao matar o seu filho, Itys, cuja carne coze e lhe dá a comer. Quando lhe é revelado que
acabou de comer a carne do seu filho, Tereus enraivecido tenta matar as duas irmãs, mas estas
conseguem fugir, Filomela transformando-se num rouxinol, Procne numa andorinha.
Várias são as passagens que nos transmitem um violento sentimento de horror perante a
sensualidade e o acto sexual. Talvez nenhuma dessas passagens seja tão eficiente em transmitir um
arrepio como são os versos que mencionam Filomela. No poema "The Fire Sermon" Eliot volta a
debruçar-se sobre este mito, e lê-se o seguinte

Twit twit twit


Jug jug jug jug jug jug
So rudely forc'd.
Tereu27

A diferença entre a passagem de "A Game of Chess" e a passagem de "The Fire Sermon" que acabei
de citar encontra-se somente no facto de esta última ser mais condensada. O arrepio, o
estremecimento que os versos nos provocam é idêntico, tal como é idêntico o conteúdo das duas
passagens.
Se pensarmos que através da alusão ao mito de Filomela Eliot encontra aquilo que diz ser
um "objective correlative", tendo em conta que The Waste Land é um poema desprovido de enredo,
seremos forçados a perguntar: o poema continua porquê? Embora a reposta seja evidente, nada faz
com que não seja pertinente ou relevante. O poema continua porque o poeta não está satisfeito,
porque o poeta não alcançou qualquer alívio. Como acontece com o Hamlet de Shakespeare aos
olhos de Eliot, o objecto é insuficiente e é incapaz de reproduzir a emoção de modo adequado – a
emoção concreta não é imediatamente evocada. Apesar de sentirmos a força da passagem, apesar de
sentirmos um arrepio subir-nos as costas, não conseguimos alcançar a particularidade da emoção. O
poeta é forçado a procurar outro objecto, e a sua procura leva-o a imaginar várias 'personagens':
Marie, hyacinth girl, a tipógrafa do episódio de "The Fire Sermon" que é relatado por Tirésias.
Neste sentido, tal como Eliot afirma nas notas a The Waste Land, "all the women are one woman".
O que causa esta identificação extrema, contudo, não é um plano prévio e deliberado, mas a
incapacidade do poeta em alcançar alguma clareza perante si mesmo.
Da mesma forma que o horror que ultrapassa qualquer objecto impossibilita o avançar da

27
The Waste Land, vv. 203-206, p. 12.

26
acção na peça Hamlet, o mesmo se passa com The Waste Land: o poema não pode prosseguir, e por
isso volta a debruçar-se sobre si mesmo na busca de um objecto que seja capaz de reproduzir
satisfatoriamente o demónio que atormenta o poeta.
O poeta, "stuffed with tradition to the point of bursting"28 rodeia-se de vários fragmentos
literários nos quais procura um objecto que seja capaz de capturar e evocar de imediato a emoção da
qual se procura aliviar. Encontrando-a, esclarece-se perante si mesmo e é capaz de "at least set my
lands in order"; se não a encontra o poeta percorre o caminho que Harry descreve na peça The
Family Reunion

when I had felt sure


That every corridor only led to another,
Or to a blank wall; that I kept moving
Only so as not to stand still.29

A voz de The Waste Land, que é a voz do poeta debruçada sobre si mesma, assemelha-se na
sua comunicação com aquilo que Eliot diz caracterizar o 'romantic drama' no ensaio "Philip
Massinger" – "a direct communication through the nerves". A sua natureza é excessiva e o excesso
pode ir em qualquer direcção. The Waste Land é excessivo no sentido em que é governado por uma
emoção que excede e ultrapassa qualquer tentativa do intelecto para impor ordem. A emoção excede
sempre o objecto. Curiosamente, de todos os poemas de The Waste Land aquele que evidencia uma
maior presença do intelecto é "Death by Water". Mas, como vimos, este poema mortuário falta em
humor elegíaco e é incapaz de estabelecer uma unidade entre aquilo que é dito e o que era particular
ao defunto. Da admonição feita entendemos que é auto-reflexiva, e o poeta parece temer a morte
como uma forma de esquecimento. Phlebas, o nome que serve de objecto para esse tremor é no
entanto tão oco quanto "Marie", e de novo a emoção não é capturada. Esta não conseguimos
entender inteiramente, apenas especular sobre ela, pois é uma emoção que não podemos objectivar.
Visto deste modo, The Waste Land é um poema que carece de progressão, e é semelhante ao
percurso labiríntico que leva a lado nenhum que Harry descreve na peça The Family Reunion. No
início desta apresentação falei da admonição feita no memento mori de "Death by Water" e associei-
a com aquilo que disse ser uma tentativa de justificação no poema "What the Thunder Said". Será
curioso notar como, à imagem do que vimos com o mito de Filomela, estes dois episódios reiteram-
se um ao outro. Compare-se

28
Ed. Lawrence Rainey, Modernism: An Anthology, “The Lesson of Baudelaire”, Blackwell, Singapore, 2005, p. 157.
29
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 310.

27
O you who turn the wheel and look to windward
Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you30

com

The awful daring of a moment's surrender


Which an age of prudence can never retract31

A ousadia terrível da rendição de um momento reitera a ideia de estar ao leme e olhar a barlavento.
Na verdade, tal como acontece com as duas referências ao mito de Filomela e Tereus, estes dois
momentos nada acrescentam um ao outro. Pelo contrário, dizem a mesma coisa, mudando apenas as
palavras que usam para o dizer.
O excesso de The Waste Land é constituído pela hegemonia da emoção sobre o intelecto, e
dá-se como uma 'comunicação directa através dos nervos'. Lembremo-nos que Eliot vestiu um trajo,
colocou uma máscara sem traços distintivos sobre a sua cara, para falar de si para si. Esta
hegemonia da emoção ocupa todo o poema; o poeta vai-se reiterando, procurando o objecto que
capture e evidencie a particularidade, a singularidade, da emoção. Ora, se este é o movimento
reiterativo que dizemos ser a estrutura de The Waste Land, e se é a sobreposição da emoção ao
intelecto que dizemos ser a série de resmunguices ritmadas, o modo como essa estrutura se
actualiza, então será forçoso demonstrar como o final do poema "What the Thunder Said", que
termina The Waste Land, é incapaz de resolver a incapacidade do poema em sair do estado de
paralisia que o caracteriza.
Os últimos versos de The Waste Land foram muitas vezes considerados como uma resolução
de tudo aquilo que lhes antecede. Essa resolução é vista em termos religiosos, e diz que as três
palavras vindas do sânscrito, "datta, dayadhvam, damyata" (dar, simpatizar, controlar) marcam uma
tendência ascética que afasta o sujeito dos círculos infindáveis e irresolúveis da memória e do
desejo, permitindo-lhe controlar as suas emoções. Este tipo de interpretação parece-me ter sofrido
um feitiço, pois mostra-se incapaz de olhar realmente para aquilo que o final do poema "What the
Thunder Said" faz. O tom deste último poema não parte de um sentido de calma ou paz interior, é
antes violento e excessivo em várias direcções, tal como os outros poemas o são. O poeta parece
delirar, consumido já pela frustração que é provocada pela sua incapacidade de compreender o seu

30
The Waste Land, vv. 320- 321, p. 16.
31
Idem, vv. 403-404, p. 18.

28
poema. Com The Waste Land Eliot amontoa vários fragmentos literários e faz deles algo rico e
estranho, mas não algo que esteja completo em si mesmo no sentido em que se resolve; a estranheza
de The Waste Land é irresolúvel.
Cito então a última estrofe de The Waste Land, para de seguida comentá-la

I sat upon the shore


Fishing, with the arid plain behind me
Shall I at least set my lands in order?
London Bridge is falling down falling down falling down
Poi s'ascose nel foco che gli affina
Quando fiam uti chelidon – O swallow swallow
Le Prince d'Aquitaine à la tour abolie
These fragments I have shored against my ruins
Why then Ile fit you. Hieronymo's mad againe.
Datta. Dayadhvam. Damyata.
Shantih shantih shantih32

A partir do verso "Shall I at least set my lands in order" Eliot começa uma longa série de citações
que vão desde lengalengas infantis, passando pelo Purgatório de Dante, o poema latino, de autor
anónimo, Peruigilium Veneris, Tennyson, um soneto de Nerval intitulado "El Desdichado", um
drama de Thomas Kyd, até que chega às palavras que terminam formalmente uma Upanishad.
Entrecortando a série de citações o verso "These fragments I have shored against my ruins"
responde à pergunta que o poeta colocou a si mesmo – e nenhuma ordem é imposta, nenhuma
claridade é alcançada. De todas as citações, a referência a Thomas Kyd é especialmente
interessante.
Eliot cita de The Spanish Tragedy, cujo subtítulo é Hieronymo Is Mad Againe. Hieronymo
foi levado à loucura pelo assassínio do seu filho. Na cena que Eliot cita, é-lhe pedido que escreva
uma peça para entreter a corte, e Hieronymo persuade aqueles que mataram o seu filho a actuarem
na sua peça. Tudo é um esquema de vingança. Crucial, contudo, é notar o pedido de Hieronymo

Each one of us must act his part


In unknown languages,
That it may breed the more variety.
As you, my lord, in Latin, and I in Greek,

32
The Waste Land, vv. 426-430, pp. 19-20.

29
And you in Italian, and for because I know
That Bel-imperia hath practised the French,
In courtly French shall all her phrases be.33

Ora, isto é exactamente o que Eliot faz com The Waste Land, falando em várias línguas e
usando várias máscaras na tentativa de encobrir a sua voz. O que é alcançado não é uma ordem
alternativa, e certamente não é 'a paz que ultrapassa o nosso entendimento', mas sim o que Balthazar
responde à proposta de Hieronymo

But this will be a mere confusion,


And hardly shall we all be understood.34

É óbvio que a incompreensão que resulta de uma peça deste género é sintomática do engodo que a
actuação é, fazendo esta parte do plano de vingança de Hieronymo. Com The Waste Land o que
resulta é parecer, constantemente, que o poema esconde alguma coisa, alguma coisa que não temos
muitos indícios do que possa ser.
No que toca ao "shantih" final, parece-me pertinente chamar a atenção para uma passagem
de Ash-Wednesday, poema escrito por Eliot em 1930 e que não aparenta os vários problemas que fui
notando com Waste Land. Neste poema o sujeito sobe uma escada, e esse cenário serve para marcar
um movimento de progressão espiritual. Perto do final do segundo poema lê-se

Terminate torment
Of love unsatisfied
The greater torment
Of love satisfied
End of the endless
Journey to no end
Conclusion of all that
Is inconclusible
Speech without word and
Word of no speech35

33
Thomas Kyd, The Spanish Tragedy, acto IV, cena I, consultado em <
https://scholarsbank.uoregon.edu/xmlui/bitstream/handle/1794/3945/kyd1.pdf?sequence=1 >
34
Idem, ibidem.
35
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 92

30
Lembrando-me de tudo o que disse sobre The Waste Land e lembrando-me das palavras de
Harry em The Family Reunion, tudo me leva a crer que a 'viagem interminável sem fim' e 'aquilo
que é inconclusivo' descreve de um modo adequado The Waste Land. A incapacidade de alcançar
uma resolução faz do poema uma série de resmunguices ritmadas – o poema avança com uma série
de tentativas falhadas e a voz do poeta é auto-reflexiva. Curioso será notar que "Speech without
word and/ Word of no speech", uma imagem do divino na mente de Eliot, é o inefável, é aquilo que
não pode ser pronunciado e que não se tenta pronunciar. The Waste Land termina com "shantih",
mas certamente essa não é a palavra sem palavra, não é o inefável.
Aquilo que o poeta faz neste último momento é de natureza diferente de uma resolução; é na
verdade uma forma de desistir, uma apreensão por parte do poeta que aquilo que tanto o
atormentava é afinal apenas um poema. Mas quando este já foi escrito o poeta, que não conseguiu
esclarecer-se ou exorcizar o demónio que o fez escrevê-lo, pode finalmente dizer

Go away! Find a place for yourself in a book – and don't expect me to take any further
interest in you.36

36
T.S. Eliot, On Poetry and Poets, “The Three Voices of Poetry”, Faber and Faber, n.p., 1957, p. 98.

31
II. RESMUNGUICES CONTRA A VIDA

1. ‘Ir ao Leme e Olhar a Barlavento’

look no more upon't,


But cast it to the ground regardlessly:
Let the common sewer take it from distinction.

The Changeling, acto III, cena iv

A divisão em duas partes que dou à minha tese é também uma divisão do comentário de
Eliot sobre o significado de The Waste Land: considero “rhythmical grumbling” uma descrição da
sua estrutura; “grouse against life” uma descrição do seu conteúdo. Esta segunda parte será uma
deliberação sobre esse conteúdo que, como se pode ver nas palavras de Eliot, é meramente ‘uma
resmunguice contra a vida’. A questão que coloco é a seguinte: tantas resmunguices porquê? E
sobre o quê?
Uma resposta que a crítica avançou por várias vezes para esta pergunta é o primeiro
casamento de T.S. Eliot, particularmente infeliz e particularmente famoso na sua infelicidade. No
entanto a introdução de Valerie Eliot à edição fac-simile de The Waste Land contradiz essa
interpretação, e certamente o entusiasmo de Vivienne, primeira mulher de T.S. Eliot, com o poema
“A Game of Chess”, acompanhado da notória contribuição desta (“What you get married for if you
don’t want children?”37), parece mostrar que o casamento, aquando a escrita de The Waste Land,
não se encontrava num estado assim tão avançado de decomposição38. Creio ser necessário procurar
uma outra causa que justifique a famosa série de resmunguices postas em ritmo contra a vida.
Em Janeiro de 1922 Eliot chegou a Paris, vindo de Lausana na Suíça, onde havia consultado
o doutor Roger Vitoz, designado ‘especialista dos nervos’ numa carta a Julian Huxley de 26 de
Outubro de 192139. Consigo trouxe os rascunhos manuscritos e dactilografados que mais tarde, em
1971, seriam publicados por Valerie Eliot na edição fac-simile de The Waste Land. Eliot entregou a
Ezra Pound os rascunhos e pediu-lhe ajuda para os organizar num poema. O que resultou foi “one
of the greatest acts of editorial intervention on record”40: os cinco poemas ordenados segundo a

37
T.S Eliot, The Waste Land: a facsimile & transcript of the original drafts including the annotations of Ezra Pound, ed.
Valerie Eliot, Faber and Faber, London, 1971, p. 14-15.
38
C.f. “My god, man, there's bears on it”, em Using Biography, The Hogarth Press, London, 1984, pp.188-200, onde
William Empson propõe o mesmo.
39
Ed. Valerie Eliot, The Letters of T.S. Eliot Volume 1 1898-1922, Faber and Faber, London, 1988, p.480.
40
Ed. Lawrence Rainey, The Annotated Waste Land with Eliot’s Contemporary Prose, Yale University Press, New
Haven, 2006, p. 23.

32
ordem que hoje conhecemos, com o título The Waste Land e dedicados a Pound, designado “il
miglior fabbro”41.
Se é verdade que o poema foi dado por completo e publicado em 1922, tanto em Inglaterra
como nos E.U.A., é inegável que sem a intervenção de Pound o mesmo não teria sucedido. Eliot por
si só não teria sido capaz de acabar o poema nesse mesmo período, talvez mesmo nunca, pelo
menos não com a firmeza de estilo (que constitui a eloquência nervosa de The Waste Land) que
resultou da revisão de Ezra Pound. Da mesma forma que Eliot consultou um ‘especialista dos
nervos’ enquanto homem esgotado que necessitava de repouso e terapia, Eliot consultou “il miglior
fabbro” enquanto poeta desesperado que necessitava de claridade e de um poema, de um bom
poema. Se por um lado a intervenção de Pound não foi o suficiente para tornar o poema menos
obscuro, por outro lado melhorou consideravelmente a qualidade deste. Como alternativa a recorrer
a Ezra Pound, a Eliot restava apenas reconhecer-se como poeta falhado. Isso, claro, seria desistir do
projecto de ser poeta, considerar que todos os seus planos até então haveriam sido infrutíferos, o
que por sua vez o levaria a reconhecer-se como alguém que à imagem de Phlebas está condenado a
ser esquecido pela história.
A 26 de Junho de 1915 Eliot casou-se com Vivienne Haigh-Wood, decidindo instalar-se
permanentemente em Londres e tentar prosseguir uma carreira literária. Esta decisão implicava
prescindir da possibilidade de se tornar professor de filosofia em Harvard, onde se havia licenciado
e onde havia continuado a estudar filosofia. Os pais de Eliot não ficaram satisfeitos com a situação,
por um lado com o casamento do seu filho com uma mulher sobre quem nada sabiam, por outro
lado com a ideia de Eliot desistir do seu doutoramento e assim largar quaisquer prospectos de um
dia se tornar professor como esperavam que se tornasse. Da breve viagem de Eliot nesse mesmo
ano aos E.U.A. resultou o seguinte compromisso: Eliot terminaria a sua tese, décadas mais tarde
publicada como Knowledge and Experience in the Philosophy of F.H. Bradley, e faria ainda os
exames finais, formando-se assim doutor de filosofia. O compromisso, aceite por T.S. Eliot, foi-lhe
imposto pela sua família, e Eliot aceitou-o para agradar os seus pais e assim suavizar o
descontentamento destes.
O casamento de Eliot, creio, encontra os seus motivos num sentimento de inferioridade e
fracasso, por um lado devido à falta de publicações, por outro lado devido ao crescente
descontentamento com o prospecto de se tornar professor de filosofia e regressar a Harvard. Querer
ser poeta tornou-se, cedo na sua vida, uma obsessão, e o casamento de Eliot com Vivienne deve ser
pensado neste contexto. Como Bertrand Russell parece intuir na sua descrição do casal “She

41
Ver The Waste Land, p. 3.

33
[Vivienne] says she married him to stimulate him, but finds she can’t do it. Obviously he [Eliot]
married her in order to be stimulated. I think she will soon be tired of him”42. O estímulo que Eliot
procurava era um estímulo que lhe permitisse escrever novas coisas de uma maneira diferente, não é
algo que apenas pertence à libido.
Em 1915 Eliot encontrava-se bastante desiludido com o seu contacto com a filosofia, estando
também bastante incrédulo em relação ao que poderia fazer enquanto filósofo. Ao informar os seus
professores em Harvard que tinha decidido reescrever a sua tese, Eliot reconhece que prefere fazer
crítica a construir sistemas filosóficos. O seu descontentamento não se devia unicamente ao seu
trabalho enquanto aluno de filosofia mas era também devido à importância, cada vez menor, que
conferia à filosofia. A situação tornou-se tão crítica que Eliot chegou a duvidar da existência de
algo a que se chama ‘filosofia’, como se pode ver na carta de 6 de Janeiro para Norbert Weiner

The only reason why relativism does not do away with philosophy altogether, after all, is that
there is no such thing to abolish! There is art, and there is science. And there are works of
art, and perhaps of science, which would never have occurred had not many people been
under the impression that there was philosophy.43

O desejo de se fixar em Londres, largar os seus estudos filosóficos e dedicar-se à literatura era forte
o suficiente para Eliot achar que se devia casar de forma a realizar a sua ambição literária. Casar-se
há de lhe ter parecido a forma mais segura de ficar permanentemente em Londres e não regressar
para os E.U.A. Sem dúvida há algo de muito estranho nisto tudo, pois em princípio ninguém se casa
para arranjar uma desculpa para não voltar mais a casa, e certamente ninguém se casa para se fazer
poeta. Em princípio, digo, mas os princípios nem sempre se seguem e nem sempre se verificam na
realidade. A ambição de Eliot era certamente obsessiva; o seu ano em Paris, 1910-1911, tal como a
sua deslocação a Londres para alegadamente estudar filosofia, encontram os seus reais motivos nos
interesses literários de Eliot e não no prospecto de uma carreira académica (o que não quer dizer
que por um tempo Eliot não tenha levado a sério esse futuro). Creio que o mesmo se aplica ao seu
primeiro casamento.
Como parece ser largamente aceite pelos vários autores que se aventuraram a fazer uma
biografia de T.S. Eliot, a intervenção de Ezra Pound parece ter sido fundamental para que Eliot se
houvesse casado com Vivienne. Esta informação parece-me relevante pois afasta o casamento de
qualquer descrição que se possa relacionar com a palavra “amor”, e embora certamente alguma

42
Em James E. Miller Jr., T.S. Eliot – The Making of an Amecican Poet, The Pennsylvania State University Press,
Pennsylvania, 2005, p.226.
43
Ed. Valerie Eliot, The Letters of T.S. Eliot Volume 1 1898-1922, Faber and Faber, London, 1988, p 81.

34
paixão ou enfatuação sensual tivesse existido, a palavra que melhor descreve este casamento é
“conveniência”. Isto, claro, não é novidade nenhuma.
Numa carta datada de 8 de Junho de 1915, Ezra Pound dirige-se a Henry Ware Eliot, pai de
T.S. Eliot. Esta é a carta mais extensa do primeiro volume da correspondência do poeta. Apesar da
extensão da carta Pound não diz muito, apresentando uma vaga e confusa apologia da vida literária
londrina e do talento de T.S. Eliot, que associa a vários autores, entre eles Robert Browning e até o
próprio Pound. Enquanto uma apologia a carta não parece muito eficiente, e é difícil imaginar que
esta possa, de algum modo, ter mitigado o descontentamento e a apreensão de Henry Ware Eliot.
Igualmente difícil será pensar que as várias referências literárias mencionadas por Ezra Pound
tenham oferecido ao pai de T.S. Eliot algum alento em relação ao futuro do seu filho. Das cinco
páginas que a carta ocupa na edição de Valerie Eliot, a primeira frase parece-me ser a mais
importante:

Your son asked me to write this letter, I think he expects me to send you some sort
of apologia for the literary life in general, and for London literary life in
particular.44

Apesar de a carta não mencionar o casamento com Vivienne, é preciso notar que foi escrita
apenas dois dias após o evento. A insistência de Pound na primazia de Londres como o local ideal
para fazer literatura evidencia o lugar que a literatura ocupava entre os motivos que levaram Eliot a
casar-se. Parece-me relevante que a carta não tenha sido escrita por Eliot, mas antes por Pound a
mando de Eliot. Eliot havia avisado os seus pais que se tinha casado e que tinha mudado de planos
em relação ao seu futuro, e no entanto deixou para Pound a tarefa de justificar e de fazer uma
apologia das suas escolhas, não o fez na primeira pessoa. Isto demonstra que a necessidade sentida
por Eliot em se justificar e em mostrar aos seus pais que sabia o que estava a fazer afligia-o de
modo particular e intenso. Embora seja verdade que, ao agir como agiu, passou de súbito a haver
um casamento apressado e bizarro a necessitar de uma explicação, aquilo que Eliot queria realmente
justificar, e aquilo que sentia necessidade de justificar, era o seu desejo de ser o poeta que
imaginava poder ser: e para isso era necessário ficar em Londres.
Uma leitura da correspondência de Eliot no ano 1915 mostra-o extremamente insatisfeito
com a poesia que produz, fazendo várias referências a The Love Song of J. Alfred Prufrock como o
momento mais alto da sua criatividade, momento que teme não ser capaz de igualar ou superar. É
curioso notar como, numa carta para o seu irmão a 2 de Julho, Eliot descreve este poema e Portrait

44
Ed. Valerie Eliot, The Letters of T.S. Eliot Volume 1 1898-1922, Faber and Faber, London, 1988, p 99.

35
of a Lady como “My assets up to date”45. Isto é relevante especialmente quando temos em conta que
nesse ano Eliot foi capaz de escrever cerca de 17 poemas, um bom número para um poeta cuja
qualidade reside na intensidade não na extensão da sua produção. Não devemos esperar que a
situação não se tivesse agravado nos anos que se seguiram. Pelo contrário, esta parece ter-se
intensificado, o que resultou num sentimento de derrota, um sentimento de que se havia iludido da
sua capacidade para escrever poesia. Isto é algo que não devemos descurar e considerar de menor
importância no que toca ao estímulo que motivou a escrita de The Waste Land.
Em 1918 a necessidade de se provar perante os seus pais havia-se tornado mais urgente.
Note-se o que Eliot disse numa carta a John Quinn “But it is time I had a volume in America, and
this is the only way to do it”46. A ansiedade de Eliot deve-se a um livro que preparava por essa
altura, e que tencionava enviar a Alfred Knopf para publicação. O volume consistia numa
miscelânea de versos e prosa. Em 1919, após receber as provas do volume, Knopf mostrou-se
interessado em publicar os poemas, mas não juntamente com a prosa. Infelizmente, o número e a
extensão dos poemas pareciam-lhe insuficientes para justificar uma publicação. A 6 de Janeiro,
novamente numa carta para John Quinn, Eliot queixa-se da situação e acrescenta

it is important for me that it should be published for private reasons. I am coming to America
to visit my family some time within the summer or autumn, and I should particularly like to
have it appear first. You see I settled over here in the face of strong family opposition, on the
claim that I found the environment more favourable for the production of literature. This
book is all I have to show for my claim – it would go toward making my parents contented
with conditions and toward satisfying them that I have not made a mess of my life, as they
are inclined to believe. The sooner it is out therefore the better, especially in view of my
approaching visit47

“This book is all I have to show for my claim” é revelador. Ser poeta e viver da literatura
permanecia uma possibilidade, mas não era ainda uma actualidade. Passados 20 dias, Eliot volta a
dirigir-se a Quinn, dizendo: “my father has died, but this does not weaken the need for a book at all
– it really reinforces it – my mother is still alive . . . . But a great deal hangs on it for me, and it was
already a pressing matter several months ago”48.

45
Ed. Valerie Eliot, The Letters of T.S. Eliot Volume 1 1898-1922, Faber and Faber, London, 1988, p. 105.
46
Idem, p. 245.
47
Idem, p. 266.
48
Idem, p. 269

36
Por mais distante que seja a relação entre um pai e o seu filho, ou por mais formal que esta
seja, não devemos menosprezar o impacto que é perder um pai, para mais quando é aparente a
necessidade sentida pelo filho em provar-se perante este. Eliot sentia-se um fardo, especialmente
em termos financeiros, e a morte do seu pai veio intensificar o sentimento auto-depreciativo que
Eliot tinha em relação a si mesmo como poeta. Para mais, o testamento de Henry Ware Eliot deixa
absolutamente claro qual era a sua posição em relação a Vivienne: caso algo aconteça a T.S. Eliot e
este perca a vida, a herança de família não é transferida para a esposa mas antes reverte para os
irmãos do poeta. A desavença entre Eliot e os seus pais é o motivo da urgência do poeta em ver-se
publicado em território americano, sendo esta a forma que tinha de se provar perante a sua família e
de justificar as suas escolhas. Todavia, o seu pai faleceu antes de aparecer o pequeno volume de
versos que Eliot, com a ajuda de Quinn e Knopf, conseguiria publicar na América em 1920. Apesar
deste pequeno sucesso, não devemos de maneira alguma minimizar o impacto emocional e
psicológico que terá sido para T.S. Eliot perder o pai antes de ver a sua primeira publicação na
América. Para mais, a publicação de 1920 não satisfez o poeta como este talvez tenha pensado que
iria satisfazer. Era preciso mais.
Em 1915 Eliot casa-se, e apesar do compromisso que faz com os seus pais em terminar o
doutoramento, as suas intenções são claras: largar a filosofia para fazer literatura. Embora
timidamente, Eliot ‘pegou no leme e olhou a barlavento’, tal como Phlebas na admonição final do
poema “Death by Water”; mas o barco não respondeu alegremente, a mão não parecia “expert with
sail and oar”49. O desejo de ser poeta, aliado à frustração que terá sido ver-se incapaz de publicar
antes de perder o seu pai, gerou o estado emocional que deu fôlego a The Waste Land. Este estado
emocional é o que justifica o tom admonitório de “Death by Water”; é como se Eliot, pensando que
havia falhado naquilo que até à data havia sido o mais importante da sua vida, dissesse a si mesmo
“Tom, é apenas poesia”. Mas esta ideia nunca poderia tranquilizar o homem obcecado em ser poeta,
fixado em inscrever os seus poemas no mural onde a grande poesia permanece. Para Eliot poesia
nunca seria um “apenas”. Ao recordar o seu pai, Eliot faz-se Ferdinand e diz «”This music crept by
me upon the waters”»50. Como é óbvio, a referência é a The Tempest de Shakespeare, cujo maior
elemento dramático advém, nas palavras de William Empson, “from the doubt whether the all-
powerful father will chose to revenge himself, while he makes arrangements about the marriage of
his child”51.

49
C.f. The Waste Land, “What the Thunder Said”, vv. 418-422, p. 19.
50
The Waste Land, “The Fire Sermon”, v. 257, p. 14.
51
William Empson , Using Biography, The Hogarth Press, London, 1984, p. 194.

37
2. “Full fathom five thy father lies”

. . . to secure some small remission of the penalty of oblivion


“Rudyard Kipling”

A marcada presença de alusões a The Tempest no poema de Eliot (que através de citações
directas ou alusões aparece nos cinco poemas, cf. vv. 48, 125, 192, 257, 316, 423) leva-me a
concordar com Empson quando este diz que o símbolo central de The Waste Land é sobre um pai
que morreu, o que por sua vez o leva a afirmar “Eliot wanted to grouse about his father”52. Se o
caso é realmente assim merece contudo ser questionado. Segundo me parece, a ênfase não deveria
ser colocada no conteúdo mas antes no meio pelo qual o conteúdo é expresso: Eliot não escreveu
The Waste Land porque queria resmungar sobre o seu pai; as resmunguices do poeta antes servem
como um pretexto para escrever poesia, mesmo que Eliot não se tenha apercebido disso. Por outras
palavras, Eliot resmungou sobre o seu pai porque tinha de escrever um poema, e não ao contrário.
Relembrando a resposta que Eliot deu quando foi questionado sobre as suas intenções ao escrever
The Waste Land (“I wonder what an intention means”53), é forçoso considerar, se a descrição que
tenho feito deste poema de facto se adequa ao objecto que pretende descrever, que The Waste Land
é um poema ao qual a palavra ‘intenção’ se torna problemática de aplicar. Não é a pensar em
possíveis falácias que digo isto; digo-o porque The Waste Land, sendo um poema obscuro
caracterizado na sua estrutura pela falta de clareza em relação ao que é dito, é um poema cuja única
intenção detectável é a de escrever um poema. Este argumento, que parece circular, não me
perturba, até me parece o mais adequado. Note-se que ao dizer “I wonder what an intention means”
Eliot esvazia por completo o conteúdo da palavra ‘intenção’: isto, num contexto em que se fala de
The Waste Land, é apropriado e dotado de uma honestidade que por vezes é rara naqueles que
escrevem versos. Creio que Sócrates, ouvindo o comentário de Eliot, talvez dissesse algo do género
“aquilo que fazes, essa poesia, não demonstra qualquer conhecimento, e no entanto pareces saber
alguma coisa sobre não saber o que se faz”.
Um dos momentos da peça de Shakespeare que chamou especialmente a atenção de Eliot foi a
canção de Ariel (The Tempest, acto I, cena ii, vv.396-404). Irei citar esta canção para facilitar a

52
William Empson , Using Biography, The Hogarth Press, London, 1984, p. 197.
53
Em The Paris Review, “T. S. Eliot, The Art of Poetry No. 1”, consultado em
<http://www.theparisreview.org/interviews/4738/the-art-of-poetry-no-1-t-s-eliot>.

38
compreensão da discussão que se segue, visto estar envolvida de uma forma especial com a escrita
de “Death by Water”54

Full fathom five thy father lies;


Of his bones are coral made;
Those are pearls that were his eyes;
Of him nothing that doth fade
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange.
Sea-nymphs hourly ring his knell:
Burden. Ding-dong.
Hark! now I hear them – Ding-dong bell.55

Quem canta é Ariel, espírito da ilha, feito invisível a seu bel-prazer, servidor de Prospero.
Este é um momento dramático importante para a peça de Shakespeare, pois a ideia que está só numa
ilha deserta e que acabou de perder o seu pai irá tornar Ferdinand mais susceptível aos encantos de
Miranda e ao jogo de Prospero. Nesta canção há um elemento inegável de gozo que Ariel tira ao
entregar ao príncipe Ferdinand uma imagem do cadáver de Alonso, o rei seu pai
Os últimos três poemas da edição fac-simile de The Waste Land são as primeiras versões do
quarto poema na sequência final. Como já argumentei antes, o poema “Death by Water” é, de entre
os restantes poemas, aquele que mostra uma maior presença do intelecto. É útil ponderar a evolução
deste poema, pois creio que deste modo será possível salientar aquilo que considero ser as suas duas
características mais importantes: ser auto-reflexivo e auto-deprecatório.
Os primeiros dois rascunhos de “Death by Water” têm o título “Dirge”. Não vale a pena
comentá-los separadamente pois um apenas emenda as rasuras do outro. “Dirge” não é apenas uma
variação da canção de Ariel, mas é também, acima de tudo, uma expansão considerável do gozo de
Ariel

Full fathom five your Bleistein lies


Under the flatfish and the squids.
Graves’ Disease in a dead jew’s eyes!

54
É verdade que este poema é em larga medida uma tradução do poema em francês “Dans le Restaurant”. A leitura da
edição fac-simile de The Waste Land mostra contudo uma evolução na escrita de “Death by Water” que radicalmente
altera o contexto do excerto que foi traduzido do francês. O ‘destino terrível’, como é dito no poema “Dans le
Restaurant”, é semelhante nos dois poemas, mas o poema mais antigo não aparenta a dificuldade de identificação
própria do cadáver de Phlebas que é característico de The Waste Land.
55
The Complete Works of Shakespeare, Harper Collins Publishers, Glasgow, n.d., p. 9.

39
When the crabs have eat the lids
Lower than wharf rats dive
Though he suffer a sea-change
Still expensive rich and strange

That is lace that was his nose


See upon his back he lies
(Bones peep through the ragged toes)
With a stare of dull surprise
Flood tide and ebb tide
Roll him gently side to side
See the lips unfold unfold
From the teeth, gold in gold
Lobsters hourly keep close watch
Hark! now I hear them scratch scratch scratch56

O gozo é feito a partir da profanação do cadáver pelos animais do fundo do mar, e é algo muito
diferente do cenotáfio a Phlebas por uma razão: “Still expensive rich and strange”, quando já se viu
no terceiro verso que o cadáver é de um judeu, faz do nome “Bleistein” algo que o nome “Phlebas”
não consegue ser – um estereótipo, uma personagem tipo. Como diz Empson, “Dirge” faz de
Bleistein um inimigo, e do inimigo faz-se troça pela profanação do seu cadáver. Uma versão mais
próxima daquilo que hoje conhecemos como “Death by Water” são os últimos versos transcritos na
edição fac-simile, sem título:

Those are pearls that were his eyes. See!


And the crab clambers through his stomach, the eel grows big
And the torn algae drift above him,
And the sea colander.
Still and quiet brother are you still and quiet.57

Esta sequência de cinco versos é feita de um gozo menos personalizado, e por isso está mais
próxima da versão final. Apesar da aproximação, a canção de Ariel continua a ser traduzida para
The Waste Land meramente como uma profanação do cadáver, e os versos continuam a ser uma

56
T.S Eliot, The Waste Land: a facsimile & transcript of the original darfts including the annotations of Ezra Pound, ed.
Valerie Eliot, Faber and Faber, London, 1971, p. 121.
57
Idem, p. 123.

40
invectiva contra o inimigo. Note-se, como indica Valerie Eliot, o possível eco de Othello, acto I,
cena iii, vv.94-100

A maiden never bold,


Of spirit so still and quiet that her motion
Blush’d at herself; and she – in spite of nature,
Of years, of country, credit, everything –
To fall in love with what she fear’d to look on!
It is a judgment maim’d and most imperfect
That will confess perfection so could err58

Mas podia de facto errar, e errou, e amou o mouro e pelas mãos do mouro morreu. “Still and quiet
brother are you still and quiet” está carregado de ironia e de desprezo.
Como é notório, há uma diferença considerável entre estas duas versões e “Death by Water”.
Um dos elementos que marca essa diferença é a aparente ausência deste género de troça. O cadáver
de Phlebas não é alvo de gozo; a decomposição não é tanto vista como uma profanação mas, de um
modo estranho que já comentei, é associada a dois movimentos contraditórios da memória. Esta não
mais aparece como o devorar do cadáver pelos animais submarinos; são antes os elementos
inanimados do fundo do oceano que se ocupam do cadáver. Creio que esta alteração é o suficiente
para alterar a natureza do poema. Empson afirma que a progressiva despersonalização entre estas
versões, aliada à ausência dos animais em “Death by Water”, não são suficientes para eliminar o
gozo que o poeta tira do destino do cadáver, afirmando ainda que um pouco da tendência anti-
semita que em cima associei a Bleistein permanece na versão final. Neste ponto, a meu próprio
risco, discordo com Empson. Segundo o crítico inglês é

a current under sea


Picked his bones in whispers59

que garante a permanência do gozo. Contudo, Empson simultaneamente descreve estes versos como
um “graceful regret for”60, o que me parece mais adequado. A questão está em considerar que há
um imperecível apelo a memento mori no poema “Death by Water”. Sendo este um poema que não
contém em si os elementos necessários para ser uma elegia, também não me parece que os tenha
58
William Shakespeare, Othello, The Moor of Venice, acto I, cena iii, vv.94-100 em The Complete Works of
Shakespeare, Harper Collins Publishers, Glasgow, n.d., p. 1175.
59
The Waste Land, “Death by Water”, vv. 315-316.
60
William Empson , Using Biography, The Hogarth Press, London, 1984, p. 1175.

41
para ser uma sátira. Em boa verdade, que sobra de Phlebas em características pessoais das quais se
possa fazer troça? O resultado parece, forçosamente, auto-reflexivo e auto-deprecatório.
Admitindo que os versos acima citados esforçam-se por dar ênfase à decomposição do
cadáver, creio no entanto que a direcção do poema já não é mais satírica como o foi nas duas
versões anteriores, mas sim feita de algo muito mais rico e muito mais estranho. Parece-me haver
alguma utilidade em regressar a Huizinga neste ponto, mais concretamente a um passo de O
Declínio da Idade Média em que o historiador comenta os costumes mortuários, em especial a
dança macabra

A personagem dançante que é descrita como voltando quarenta vezes para conduzir
os vivos, originalmente não representava a própria morte mas um cadáver: o homem vivo tal
como ele será. Nas estâncias o homem que dança é chamado «o morto» ou «a morta». É uma
dança dos mortos e não da morte . . . . O infatigável dançarino é o próprio homem vivo na
sua forma futura, um duplo horrendo da sua pessoa. «És tu mesmo», diz a horrível visão a
cada um dos espectadores.61

Creio que o mesmo se passa com “Death by Water”: “És tu mesmo”, diz Phlebas ao poeta. Eis o
elemento de estranheza que garante ao poema uma profundidade rica – Phlebas o fenício, esquecido
pela História, é ao mesmo tempo a presença do pai de Eliot no poema, como núcleo central em
torno do qual se resmunga, e é também uma apreensão particular, por parte do poeta, da sua própria
mortalidade. Digo particular porque não me parece que esta apreensão seja tanto uma aflição de
morrer quanto é uma preocupação de posteridade. Essa posteridade não é a da carne, dos ossos e do
sangue, mas sim a da mente intelectual e sensível; é a posteridade do artista. Ser-se esquecido, neste
contexto, equivale à profanação do cadáver pelas aves e pelos cães vadios como esta era vista pelos
antigos gregos: a derradeira infâmia, a ignomínia da memória.
Stephen Dedalus diz a Cranly “I will try to express myself in some mode of life or art as
freely as I can and as wholly as I can”62. A primeira opção seria inaceitável para Eliot; a segunda
opção a única possível. Ou arte ou nada, e o nada é aterrador. Para a alcançar Eliot pagou o preço de
ter de escrever The Waste Land; houve uma recompensa, e essa recompensa parece até hoje
contribuir para a posteridade do nome “T.S. Eliot”, mas o poeta não seria capaz de imaginar tal
consequência, ou imaginando realmente acreditar nela. De algum modo, enquanto escrevia The
Waste Land, a antiga tensão familiar e a relação com o seu pai vieram ao de cima como um eco de

61
Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, trad. Augusto Abelaira, Editora Ulisseia, Viseu, 1996, p. 153.
62
James Joyce, A Portrait of the Artist as a Young Man, ed. Chester G. Anderson, Penguin Books, n.p., n.d., p. 247

42
The Tempest, e Eliot prontamente identificou-se com Ferdinand, príncipe cujo rei jaz morto no
fundo do mar. Não duvido contudo que esta identificação fosse inconsciente, e não creio que Eliot
tenha imediatamente entendido o seu conteúdo. Pelo contrário, Eliot não foi capaz de o entender,
mas isso não o impediu de se deixar guiar pelo impulso, o estímulo que não compreendia e no
entanto fazia-o escrever. Com a ajuda de Ezra Pound este estímulo foi cristalizado num poema. Não
o foi todavia enquanto estímulo que o poeta contemplou e manipulou para fazer arte. O processo
parece ter sido o inverso, e a arte que resultou foi uma arte eloquente na desordem emocional, uma
arte que não é capaz de mostrar clareza.
Deste modo a insistente recorrência da peça The Tempest no poema The Waste Land mostra-
-se como um indício do conteúdo ou do significado do poema. Esse conteúdo é algo estranho, que
tanto se relaciona com uma apreensão aguda, por parte do poeta, de algo fútil na sua vida, de uma
direcção pela qual optou e que mais tarde duvidou seriamente, como se relaciona com a perda do
seu pai, que o poeta sabia ter falecido considerando que Eliot havia feito “a mess of [his] life”.
É neste ponto que o elemento auto-deprecatório entra. A morte de Henry Ware Eliot foi um
golpe duro. Eliot apercebeu-se, de uma forma aterradora, do tempo perdido, da sua obra inexistente,
do muito fraco prospecto que lhe garantia posteridade na história da literatura. Assim sendo não
devemos separar o evento da morte de Henry desta apreensão, pois é a sua morte que potencia o
reconhecimento por parte do poeta. A morte do pai de Eliot tornou mais urgente a necessidade de
publicar um livro de poemas na América; antes de o seu pai falecer Eliot queria provar-se perante
os seus parentes, mas depois de o seu pai ter morrido Eliot queria provar que este estava errado, e
que o poeta iria realmente ser poeta. Apesar da vontade de querer provar que não havia feito as
escolhas erradas, não creio que Eliot ao escrever The Waste Land tenha sentido este poema capaz de
o fazer. Este, creio, é o fundamento mais pessoal de “Phlebas”, como também é aquilo que informa
a notável falta de personalidade e de traços pessoais que caracterizam o marinheiro fenício.
A preocupação de Eliot, enquanto crítico literário, em recuperar aqueles autores que com o
passar do tempo passaram à história traz algum peso a este argumento. Um ensaio característico,
“The Metaphysical Poets”, abre logo com esse género de preocupações: “By collecting these poems
from the work of a generation more often named than read, and more often read than profitably
studied . . . .”63.
O que motiva Eliot a dizer isto é o desejo de recuperar aquilo que as gerações antigas têm
ainda para dizer às novas gerações, em particular aquilo que os poetas metafísicos podiam dizer aos
poetas que hoje chamamos modernistas. Basta olhar para o índice de Selected Essays para

63
T.S Eliot, Selected Essays, Faber and Faber, London, 1969, p. 281.

43
vislumbrar a dimensão do empreendimento: deixando de parte Shakespeare, Marlowe e Dante,
ainda sobra Ben Jonson, Thomas Middleton, Thomas Heywood, Cyril Tourneur, John Ford, Philip
Massinger e John Marston, e isto é apenas no que toca aos dramaturgos. Talvez se ache um pouco
exagerado que eu descreva Ben Jonson como um “autor esquecido pela História”. Em minha defesa
especifico que o sentido da expressão permite alguma expansão do seu significado mais literal e que
pode acomodar posições como a seguinte

The reputation of Jonson has been the most deadly kind that can be compelled upon the memory
of a great poet. To be universally accepted; to be damned by the praise that quenches all desire
to read the book; to be afflicted by the imputation of the virtues which excite the least pleasure;
and to be read only by historians and antiquaries – this is the most perfect conspiracy of
approval.64

O autor que é apenas lido pelos historiadores e pelos coleccionadores de antiguidades é um autor
cuja comunicação com as novas gerações está bloqueada. A relevância da sua obra, do seu livro, foi
perdida. Parte do trabalho do crítico, como Eliot se esforçou por fazer, é recuperar aquilo que os
autores de gerações passadas trazem de relevante para a actualidade (note-se que não pretendo com
‘actualidade’ referir-me meramente a questões sociais e políticas, antes uso o termo num sentido
mais vasto); é despertar o interesse pela obra desses autores. Este foi um trabalho que Eliot levou
muito a sério, e é o receio de ser incapaz de produzir algo que mereça ser lido e relido que digo ser
a intenção por detrás da escrita de The Waste Land. Para Eliot “appreciation is akin to creation, and
the true enjoyment of poetry is related to the stirring of suggestion, the stimulus that a poet feels in
his enjoyment of other poetry”65. Esta é a posteridade negada a Phlebas.
Outros dois ensaios demonstram uma preocupação com o esquecimento que é semelhante à
que Eliot expressa em relação a Ben Jonson: “In Memoriam” e “Rudyard Kipling”. Nos dois casos
Eliot pega num autor que toda a gente conhece mas que pouca gente realmente lê, e através da
leitura de alguns poemas tenta salientar aquelas características que garantem ao autor “some small
remission from the penalty of oblivion”66. A intenção é fazer exactamente o oposto daquilo que
Eliot se queixa terem feito com o génio e a obra de Ben Jonson. Segundo me parece não devemos
considerar estas preocupações como algo que pertença meramente à crítica. Eliot, sendo também
um poeta, pensa na sua obra ao mesmo tempo que procura transmitir aquele estímulo que sente
quando aprecia os versos de outros autores. A questão pode ser vista como uma tentativa por parte

64
T.S. Eliot, Selected Poems, Faber and Faber, London, 1969, p. 147.
65
Idem, ibidem.
66
T.S. Eliot, A Choice of Kipling’s Verse, Faber and Faber, London, 1941, p.19

44
de Eliot em identificar a tradição em que quer ser inserido pelas gerações vindouras, uma tradição
que tenta manter viva para a posteridade, também, da sua obra. O diálogo com o passado é uma
projecção para o futuro.
Se pensarmos na obra de outro autor que também tenha sido poeta e crítico e que acima
disso demonstrou um grande interesse em escrever sobre a vida e a obra de outros autores,
certamente o nome Lionel Johnson virá à cabeça. O seu Lives of the English Poets é uma obra
ímpar e carregada de uma perspicácia aguda. Chamo a atenção para a obra de Johnson para
estabelecer uma diferença que me parece reveladora entre a crítica e a biografia deste e a apreciação
de autores individuais por parte de Eliot. Quando Eliot pondera um dado biográfico e se usa dele,
nunca o faz de um modo totalmente separado de uma consideração sobre a poesia, sobre uma
determinada característica poética que pretende isolar e comentar. Um exemplo notório é o ensaio
“Hamlet”: Eliot procura descrever esta peça como motivada por um terror que está para além de
qualquer expressão, e propõe que esse terror está de algum modo relacionado com os pais de
Shakespeare67; o seu interesse não se debruça no homem Shakespeare e na sua vida mas sim na
peça Hamlet. De certa maneira é como se para Eliot apenas houvesse o poeta, sendo o homem que
viveu para que o poeta pudesse escrever um mero apêndice deste último.
Com Lionel Johnson não posso dizer que o mesmo seja próprio do seu pensamento. Ao ler
este poeta e crítico partilhamos do seu interesse genuíno pelo poeta e pelo homem: estes são na sua
obra a unidade fundamental de cada capítulo; primeiro Johnson descreve a vida do homem, de
seguida comenta a obra do poeta. Não creio todavia que o interesse tão marcadamente cerrado que
T.S. Eliot nutre pela poesia e pelo poeta em detrimento do homem e das suas experiências seja
indicativa daquilo que a crítica e a teoria, principalmente nos E.U.A., acabou por fazer da sua obra.
Não vejo a questão como uma evidência de uma posição teórica que condena a especulação
biográfica e a deliberação sobre intenções (este último algo que Eliot enquanto crítico fazia
bastante), mas sim como mais um sinal daquilo que para Eliot era o mais importante. Um ensaio
como “Tradition and the Individual Talent” não é tanto um esboço de uma teoria sobre a arte ou
sobre a literatura quanto é uma exortação ao artista para que este “stick to his job; it never was and
never can be valid for the spectator, reader or auditor”68. Todo o interesse que pode haver pelo
homem está no que a vida deste pode dizer sobre a sua poesia, naquilo que a sua personalidade e as
suas experiências possam revelar de sentidos ocultos nos seus versos. O que Eliot disse de
Shakespeare aplica-se a si mesmo

67
C.f. William Empson, Using Biography, “In September 1919 Eliot wrote his essay on Hamlet, saying that Shakespeare
had experienced the ‘inexpressibly horrible’, and seeming to presume it was about his parents (as usual, Eliot has
foresuffered all)” , p. 197.
68
T.S Eliot, Selected Essays, Faber and Faber, London, 1969, p. 392.

45
Shakespeare, too, was occupied with the struggle – which alone constitutes life for a poet – to
transmute his personal and private agonies into something rich and strange, something universal
and impersonal.69

A ênfase deve ser colocada em “which alone constitutes life for a poet” e não na palavra
“impersonal”. É como se Eliot dissesse, de si e dos outros,

By this, and this only, we have existed70

69
T.S. Eliot, Selected Essays, Faber and Faber, London, 1969, p. 137.
70
The Waste Land, v. 405, p. 405.

46
3. “I am always surprised by the bull-dog in the Burlington Arcade”

—If you want to know what are the events which cast their shadow over the hell of time of King Lear, Othello, Hamlet,
Troilus and Cressida, look to see when and how the shadow lifts.
—A father, Stephen said, battling against hopelessness, is a necessary evil.

Ulysses, capítulo IX

The Waste Land é um poema que oculta o seu núcleo de significado. A sua natureza é pouco
clara. A dificuldade que se sente na tentativa de desvendar as suas profundezas é aumentada pela
incapacidade do poema em alcançar um “objective correlative” que capte na sua totalidade e de
imediato a emoção que anima as resmunguices do poeta. No capítulo anterior falei do estímulo por
detrás de The Waste Land como sendo uma tendência auto-deprecatória que se relaciona com uma
frustração poética, tendo essa frustração sido intensificada com a morte do pai do poeta. A presença
nos cinco poemas do cadáver do pai de Eliot é posta através das várias alusões a The Tempest, visto
todas elas se referirem à canção de Ariel, que é uma descrição do cadáver de Alonso, e à desolação
de Ferdinand quando crê ter perdido o seu pai num naufrágio.
William Empson faz algo curioso ao comentar a referência que no poema “The Fire
Sermon” é feita a The Tempest. Os versos de Eliot são os seguintes

Musing upon the king my brother’s wreck


And on the king my father’s death before him71

E aludem ao solilóquio de Ferdinand onde se lê “weeping again the king my father’s wreck”72. Eis o
que diz Empson:

In Eliot’s poem . . . an heir to the fisher kingdom has to come to an island engaged in some
kind of cultural quest, ‘musing upon the king his father’s death’ (the death of the king his
brother as well was presumably added merely for camouflage)73

O que me chama a atenção neste passo é a descrição de “the king my brother” como uma mera
camuflagem. Entende-se por isso que Empson quer dizer algo como ‘serve apenas para desviar a
atenção do peso que “my father’s death” traz para o poema’, o que nos permite pensar em The
Waste Land como um poema que faz esta espécie de truques. Ao comentar a canção de Ariel notei

71
The Waste Land, vv. 191-192, p. 11.
72
William Shakespeare, The Tempest, act I, cena ii, v. 390 em The Complete Works of William Shakespeare, Harper
Collins Publishers, Glasgow, n.d., p. 9.
73
William Empson, Using Biography, The Hogarth Press, London, 1984, p. 194-195.

47
que esta se trata de um ardil, e agora proponho que esta tendência para o logro é um dos elementos
mais característicos de The Waste Land e que, tal como Ferdinand ao ouvir a canção entoada a meio
ar, corremos o risco de nos deixar enganar por um ardil quando lemos The Waste Land.
Já nos tínhamos deparado com algo semelhante a esta noção de ardil, ou de um poema que
funciona através do logro, na primeira parte desta tese. Refiro-me a “Why then Ile fit you”74 e o
final de “What the Thunder Said”, onde Eliot recorre às palavras de Hieronymo quando este prepara
o engodo que lhe permitirá vingar-se daqueles que mataram o seu filho. Como notei, o plano
engenhoso de Hieronymo consiste em matar os assassinos do seu filho enquanto actua, com a ajuda
de Bel-Imperia, uma peça de teatro perante a corte, sendo-lhe assim possível acabar com a vida de
Lorenzo e Balthazar e apenas revelar que realmente os matou no final da actuação. Este momento
da peça de Thomas Kyd e a canção de Ariel são ardis que ocultam o seu verdadeiro significado por
detrás da sua aparência: a peça de Hieronymo sobre a vingança de um pai é uma farsa (no sentido
literal da palavra) que oculta a real vingança de um pai; a canção de Ariel é uma mentira que oculta
o plano de Prospero para manipular o filho do seu inimigo. O elemento enganador nos casos é
semelhante: aquilo que dão mais directa e prontamente. Creio que algo desta mesma natureza é
próprio de The Waste Land, e creio também que o ardil deste poema, aquilo que desvia a atenção, é
feito através da sensualidade e do horror perante esta. Falo de “A Game of Chess” e “The Fire
Sermon”, e em especial refiro-me à reiteração do mito de Filomela e ao relato feito por Tirésias.
O leitor suficientemente familiarizado com The Waste Land haverá de se ter perguntado
como é possível um poeta que não sabia o que era que estava a dizer ter afirmado o seguinte nas
suas notas ao poema

Tiresias, although a mere spectator and not indeed a ‘character’, is yet the most important
personage in the poem, uniting all the rest . . . . What Tiresias sees, in fact, is the substance
of the poem.75

Eliot trai-se na pretensão de que é capaz de mostrar clarividência sobre o seu poema. Se Tirésias
não é “indeed a ‘character’” isso implica que algures no poema haja alguma, e isso é bastante
duvidoso. Proponho que esta nota, a par com a primeira que menciona o livro From Ritual to
Romance, não só é a que mais levou a crítica a falar de The Waste Land como um todo organizado,
ou seja a que provocou mais danos, mas que é a nota que melhor demonstra a falta de claridade do
poeta e a forma como este tenta desviar a atenção daquilo que é realmente o núcleo central de The

74
The Waste Land, v. 429, p. 20.
75
Idem, p.23.

48
Waste Land. A forma como Eliot faz isso é ao apontar para a passagem mais explicitamente
carregada de desconforto e horror perante a sensualidade e a sexualidade. Se isto fosse ‘de facto, a
substância do poema’ então Eliot deveria apontar para o mito de Filomela, mais intenso e violento
que o relato de Tirésias. Mas nem este mito nem Tirésias são a substância do poema, antes são o
logro que se esforça por ocultar o estímulo para o qual o poema de Eliot não encontra o objecto
adequado. Esta ocultação é o resultado de um objectivar da emoção no objecto que não é capaz de a
capturar satisfatoriamente, subvertendo o seu real conteúdo na tentativa de o captar.
Em 1939 Eliot estreou a sua segunda peça de teatro, The Family Reunion. Note-se como
começa esta peça, utilizando-se da linguagem de “The Burial of the Dead” para estabelecer uma
relação com The Waste Land que nada tem de superficial

Will the spring never come? I am cold.


Agatha. Wishwood was always a cold place, Amy.
Ivy. I have always told Amy she should go south in the winter.
Were I in Amy’s position, I would go south in the winter.76

Ao começar The Family Reunion desta maneira Eliot não está meramente a tentar chamar
espectadores através de reminiscências do seu poema mais famoso; antes está a fazer algo mais
difícil e mais perigoso, pois está a propor esta peça como uma resolução do movimento que The
Waste Land é incapaz de executar. Uma peça de teatro requer um tipo de planeamento que a escrita
de um poema não requer necessariamente, e no entanto Eliot, ainda no início de The Family
Reunion, esforça-se por mostrar uma maior maturidade poética quando brinca com o verso “I read,
much of the night, and go south in the winter”77. Logo após a fala de Ivy que acabei de citar, Eliot
põe as suas personagens, que de facto são personagens que falam e se mexem num palco, a falar
sobre as suas opiniões em relação a viajar para o sul quando chega o Inverno. A linguagem de The
Waste Land é revisitada em The Family Reunion, uma peça sobre a incapacidade de ver certas
coisas com clareza e a súbita mudança que traz luz, ilumina os problemas e radicalmente altera a
percepção. Desta vez Eliot queria mostrar a face do demónio.
A peça trata do reencontro de uma família na propriedade de Wishwood, onde Amy a
matriarca vive. Esta organizou o reencontro, e sabendo-se débil de saúde, vivendo apenas da
vontade de viver, tem como plano deixar a Harry, o mais velho dos seus três filhos, a
responsabilidade de tratar de Wishwood e de manter a família unida. Harry é uma personagem

76
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 285.
77
The Waste Land, v. 18, p. 5.

49
perturbada que carrega em si um peso enorme que na primeira parte da peça é associado à morte da
sua esposa. Esta morreu, anos antes da acção da peça, num acidente bizarro a bordo de um cruzeiro,
caiu ao mar e perdeu-se; Harry sente-se culpado pela sua morte, e se é ou não responsável pelo que
aconteceu não é deixado absolutamente claro na peça. Harry é perseguido pelas Eumenides.
A presença das Eumenides na peça é curiosa. Num primeiro momento somos levados a crer
que se deve à morte da esposa de Harry, e à medida que a peça avança o seu papel vai-se tornando
mais claro e despido de equívocos. A sua presença deve-se a uma trama que é ainda mais difícil de
acompanhar que o mistério que envolve a morte da mulher de Harry, e apenas o desenrolar desta
trama permite o avançar da acção. Amy e Agatha são irmãs, e quando Amy estava grávida de Harry
o seu marido tentou matá-la, tendo sido impedido no seu intento por Agatha. Desde então as duas
irmãs viveram distantes uma da outra, Amy acusando Agatha de a ter privado do marido. As
Eumenides, que vão aparecendo em cena, servem como um catalisador para Harry conhecer o
passado; apenas quando conhece o passado e vê toda a sua vida em função do que aconteceu antes
de ter nascido, é Harry capaz de realmente ver as Eumenides (antes apenas sente a sua presença e
vê-as de relance) e compreender o significado da sua aparição.
Antes de alcançar esta clarividência Harry pensa ser perseguido por fantasmas e está
convencido que esses fantasmas de algum modo se relacionam com o passado; esse passado
contudo é a história do seu casamento e a morte da sua mulher, e é nesse momento da sua vida que
Harry projecta toda a negatividade que caracteriza o seu estado mental. Harry é uma espécie de
Hamlet, perto da loucura na absoluta obstrução da acção. Veja-se o que diz quando as Eumenides
aparecem pela segunda vez em palco

I must face them.


I must fight them. But they are stupid
How can one fight with stupidity?
Yet I must speak to them.78

As Fúrias não estão lá para falar, e estupidez é uma qualidade que não tem qualquer significado
associado às três irmãs. A incompreensão de Harry é aguda. A presença das irmãs não requer um
combate, nem requer que Harry as enfrente. O que é necessário para entender o porquê da sua
aparição é antes uma clareza que Harry neste momento da peça não dispõe. O que se passa com
Harry é na verdade o que Eliot critica em Hamlet: é assolado por um horror tal que é incapaz de
compreendê-lo e projectá-lo no objecto adequado. Ao pensar que esse violento desconforto se deve

78
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 312.

50
ao afogamento da sua mulher, à culpa que sente em relação ao evento, Harry está a cair num ardil
que ele próprio monta sem se aperceber. A função das Eumenides não é fazer justiça como Harry
teme, mas sim mostrar-lhe o caminho que deve seguir, que é o caminho da redenção.
Harry é assolado por um sentimento de culpa que o faz alguém incapaz de viver no mundo
em que os membros se mexem debaixo do sol. Harry diz “It is not my conscience,/ Not my mind,
that is diseased, but the world I have to live in”79; Eliot diz “a personal and wholly insignificant
grouse against life”80. O estado mental de Harry é caracterizado por uma fundamental falta de
clareza que funciona como uma espécie de cegueira, impedindo-o de enxergar a redenção para a
qual as Eumenides o pretendem guiar. Esta cegueira é como um veneno que o impede de
contemplar aquilo que realmente importa, fazendo-o objectivar o que sente no objecto desadequado,
a enfatuação sensual que o levou a um casamento do qual, pouco tempo depois, se arrependeu. Não
se deve contudo a este evento o horror que sente, mas a uma relação específica entre pai e filho. A
situação é muito semelhante à da vida de Eliot, tirando o facto de Harry falar em versos em vez de
os escrever. Em ambos os casos a sensibilidade perturbada vê a vida e o mundo como algo
insuportável do qual seria preferível escapar, ou antes nunca ter entrado. Aquilo que sentem, o
horror que os faz olhar para a vida e para o mundo como algo odioso, corresponde ao sentimento
expresso pela Síbila de Cumas quando lhe perguntaram ‘Que desejas tu?’ – αποθανειν θελω81.
O sentimento que se expressa como um ódio profundo da vida em si é também o conteúdo
da epígrafe que Eliot, antes de optar por esta passagem do Satyricon que menciona a Síbila de
Cumas, pensava ser “somewhat elucidative”82

Did he live his life again in every detail of desire, temptation, and surrender during that
supreme moment of complete knowledge? He cried in a whisper at some image, at some
vision – he cried out twice, a cry tat was no more than a breath –
‘The horror! the horror!’83

É curioso notar que no ensaio “Cyril Tourneur”, de 1930, o argumento de Eliot é semelhante àquele
que havia expresso no seu ensaio “Hamlet”, de 1919, acrescentando contudo algo que me parece ser
muito importante:

79
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 295.
80
T.S Eliot, The Waste Land: a facsimile & transcript of the original darfts including the annotations of Ezra Pound, ed.
Valerie Eliot, Faber and Faber, London, 1971, p. 1.
81
The Waste Land, p.3, “Quero morrer”.
8282
Ed. Valerie Eliot, The Letters of T.S. Eliot Volume 1 1898-1922, Faber and Faber, London, 1988, p. 504.
83
T.S Eliot, The Waste Land: a facsimile & transcript of the original darfts including the annotations of Ezra Pound, ed.
Valerie Eliot, Faber and Faber, London, 1971, p. 3.

51
The cynicism, the loathing and disgust of humanity, expressed consummately in The
Revenger’s Tragedy, are immature in the respect that they exceed the object. . . . its motive is
truly the death motive, for it is the loathing and horror of life itself. To have realized this
motive so well is a triumph; for the hatred of life is an important phase – even, if you like, a
mystical experience – in life itself.84

Do ódio pela vida em si Eliot diz que se trata de uma emoção demasiado violenta para que seja
possível capturá-la num objecto, quer este seja um só verso ou uma peça de teatro inteira. Sendo
este um ódio por tudo, pela totalidade das coisas que constituem a vida, nenhum objecto particular
pode ser suficiente para expressar a totalidade de um sentimento tão violento e tão extremo, tão
amplo. O comentário em que Eliot descreve The Waste Land como “a grouse against life” inscreve-
se nesta mesma linha de interpretações (“Hamlet”, “Cyril tourneur”), e creio ser isso que Eliot tinha
em mente ao descrever The Waste Land deste modo. Chamo a atenção para outra passagem de The
Family Reunion, onde este ódio é de novo evidenciado pelas palavras de Harry

so long as I could think


Even of my own life as an isolated ruin,
A casual bit of waste in an orderly universe.
But it begins to seem just part of some huge disaster,
Some monstrous mistake and aberration
Of all men, of the world, which I cannot put in order.85

É preciso notar que considerar The Waste Land um poema constituído por um ódio e terror
profundos pela vida em si, como expresso em cima através da boca de Harry, não nos impede de
ponderar qual será a origem deste sentimento extremo. De facto, como a citação mostra, o seu
começo é algo próprio da vida particular, uma ruína isolada. A falta de informação sobre a vida de
William Shakespeare e a vida de Cyril Tourneur, sobre os homens que estes dois foram, é algo que
felizmente não se põe em relação à vida de T.S. Eliot: temos muita da sua correspondência, e
embora não haja uma biografia oficial muitos foram os autores que se aventuraram a fazer
biografias sobre T.S. Eliot, o que por si só demonstra quanta informação sobre este está disponível.
Contudo, mesmo entendendo que a origem ou estímulo deste tipo de poesia está na vida pessoal e
privada, é forçoso também reconhecer que o problema, quando é feito em algo como The Waste

84
T.S. Eliot, Selected Essays, “Cyril Tourneur”, Faber and Faber, London, 1969, p. 190.
85
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 326.

52
Land, é um problema literário, e assim deve ser encarado. Com isto quero dizer que, embora haja
interesse em sondar a vida do poeta na tentativa de entender a origem de uma reacção tão extrema, é
necessário regressar ao poema e entender que a vida do poeta foi feita algo que não é particular ou
privado, mas que é um poema, e que por isso não pode ser explicado só pela biografia ou pela
especulação biográfica.
A coisa mais horrível na peça The Family Reunion é a incerteza não resolvida em relação à
mulher de Harry: ele empurrou-a ou não borda fora? As restantes personagens, apesar de
comentarem o evento, não parecem muito interessadas em saber a verdade, e a peça acaba sem que
um possível assassinato não seja resolvido. Na verdade, toda a dúvida em relação ao evento é posta
de lado assim que o enredo avança, quando Harry começa a fazer perguntas sobre o seu pai. A
facilidade com que este elemento da peça é posto de lado é reminiscente da ‘facilidade’ com que
Eliot, após se separar de Vivienne, a ignorou. A função da dúvida que é colocada sobre a inocência
ou culpa de Harry é a de servir como o elemento que impede a progressão inicial da acção, e
enquanto esta não é posta de lado tudo está preparado para repetir Hamlet. Mas Eliot desta vez
queria avançar, não queria ficar parado e repetir a poesia da paralisia.
A paralisia de The Waste Land, na peça The Family Reunion, é posta através de uma
afinidade de linguagem e é característica do estado mental de Harry enquanto este se crê preso
numa sequência de corredores que não leva a lado nenhum. Repare-se na seguinte passagem como
Eliot associa esse estado mental a The Waste Land

Spring is an issue of blood


A season of sacrifice
And the wail of the new full tide
Returning the ghosts of the dead
Those whom the winter drowned
Do not the ghosts of the drowned
Return to land in the spring?
Do not the dead want to return?86

Estes versos aludem ao final de “The Burial of the Dead”, um poema que começa com uma
afirmação da crueldade da Primavera e que termina com a sugestão que os mortos podem brotar do
solo como as flores:

86
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 310.

53
‘That corpse you planted last year in your garden,
‘Has it begun to sprout? Will it bloom this year?
‘Or has the sudden frost disturbed its bed?
‘O keep the Dog far hence, that’s friend to men,
‘Or with his nails he’ll dig it up again!87

O cadáver que The Waste Land esconde nunca vem realmente à superfície, ou totalmente, e estes
versos demonstram o receio do poeta em enfrentar o demónio que estimula o poema. O cão seria de
facto amigo se ao desenterrar o cadáver desse a entender ao poeta que não se trata de

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Jug jug jug jug jug jug
So rudely forc’d.
Tereu88

mas de outra coisa, inteiramente diferente. O fantasma dos que morreram afogados, na fala de Harry
acima citada, é o fantasma da sua mulher, esse que Harry pensa persegui-lo sob a forma de três
vultos. Esta crença é um desvio das emoções, e na verdade o cadáver da sua mulher esconde o
cadáver do seu pai.
O ponto central de The Family Reunion é a hereditariedade, em especial a hereditariedade do
pecado. O pecado passou do pai para o filho, e ao filho compete expiar o pecado do pai. Quando
Harry entende isto, entende também a presença das Eumenides, e sabe que a propriedade da família
é algo que pode recusar, o que faz; mas o pecado da família é aquilo que Harry não pode rejeitar.
Apenas quando Harry alcança esta clarividência pode falar como fala na segunda parte da peça:

To and fro.
Until the chain breaks.
The chain breaks,
The wheel stops, and the noise of machinery,
And the desert is cleared, under the judicial sun
Of the final eye, and the awful evacuation
Cleanses.
...

87
The Waste Land, vv. 71-75, p.7.
88
Idem, vv. 203-206, p.12.

54
O my dear, and you walked through the little door
And I ran to meet you in the rose garden.89

Esta passagem está profundamente envolvida com a linguagem e o ambiente de The Waste Land. O
‘jardim das rosas’ é o que The Waste Land está condenado a não contemplar, sendo este um poema
que não é capaz de ‘quebrar a corrente’. Esta ideia de uma prisão da qual não se pode escapar
precede no poema “What the Thunder Said” a cacofonia de citações às quais o poeta não consegue
impor ordem

We think of the key, each in his prison


Thinking of the key, each confirms a prison90

O “shantih” final, como já comentei, não se trata de uma resolução do poema mas é antes mais uma
resmunguice. Harry, tal como os cinco poemas de The Waste Land, é um monte silencioso e contido
de medo e paralisia. Creio que uma forma adequada de demonstrar como The Family Reunion
emula as resmunguices de The Waste Land é através da maneira como Harry, na primeira parte da
peça, fala com as outras personagens

Agatha. I think, Harry, that having got so far –


If you want no pretences, let us have no pretences:
And you must try at once to makes us understand,
And we must try to understand you.
Harry. But how can I explain, how can I explain to you?
You will understand less after I have explained it.
All that I could hope to make you understand
Is only events: not what happened.
And people to whom nothing has ever happened
Cannot understand the unimportance of events
....
you are all people
To whom nothing has happened, at most a continual impact
Of external events. You have gone through life in sleep,
Never woken to the nightmare. I tell you, life would be unendurable
If you were awake. You do not know
89
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 335.
90
The Waste Land, vv. 413-414, p.19.

55
The noxious smell untraceable in the drains,
Inaccessible to the plumbers, that has its hour of the night; you do not know
The unspoken voice of sorrow in the ancient bedroom
At three o’clock in the morning. I am not speaking
Of my own experience, but trying to give you
Comparisons in a more familiar medium. I am the old house
With the noxious smell and the sorrow before morning,
In which all past is present, all degradation
Is unredeemable. As for what happens –
Of the pas you can only see what is past,
Not what is always present. That is what matters.91

Citei longamente para que se entenda o quão intratável Harry é e a que dimensões chega o seu
bradar, que sem uma extensão considerável pode não parecer tão presunçoso e irritante. Agatha
pede a Harry que se explique, que ao menos se tente explicar, mas este responde com uma série de
resmunguices que ao invés de explicarem o que quer que seja tentam apenas mostrar o quão
impossível é compreendê-lo. Na verdade Harry nunca tenta explicar-se, optando sempre por
resmungar em vez. Da mesma forma que Harry fala e fala sobre o quão impossível é compreendê-
lo, pensando que aquilo que tem para explicar é a culpa que sente em relação á morte da sua esposa,
Eliot resmunga e resmunga fazendo-nos crer que é a sexualidade que o aflige. A ineptidão em falar
com clareza, que se pode descrever como um falar que parte directamente dos nervos, advém de
uma projecção equivocada dos sentimentos ou emoções nos objectos que lhes não são próprios.
Falar é necessário, mas igualmente necessário é falar bem, falar da coisa certa, entender o que se
diz; falhar o alvo leva apenas a mais palavras e a mais resmunguices.
Em The Family Reunion Harry tem de indagar sobre o passado, e é somente ao enfrentá-lo
que a acção pode ser levada a um desfecho. Eliot, enquanto escrevia The Waste Land, sentiu a
presença das Eumenides, um ‘demónio’ na linguagem de “The Three Voices of Poetry”, mas foi
incapaz de as olhar nos olhos e reconhecer as suas feições. O que me parece mais revelador na peça
de 1939 é a necessidade de enfrentar o passado para nele descobrir a figura paterna. A presença do
pai, mesmo após a sua morte, é algo do qual não se pode escapar; é, na verdade, aquilo que é
fundamental, não se trata de um desvio das emoções como uma forma particular de ocultação. Se
considerarmos The Family Reunion como um texto que enfrenta os problemas e as dificuldades de
The Waste Land, deveremos também assumir que a resolução proposta descreve “’Jug Jug’ to dirty

91
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 293-294.

56
ears” como aquilo que obstrui a acção e envenena o entendimento. Tal como com a encenação de
Hironymo na tragédia de Kyd e a canção de Ariel na comédia de Shakespeare, encontramo-nos
perante um ardil, o ardil de The Waste Land.
Muito perto do final de The Family Reunion o tio de Harry, de nome Charles, diz algo que
me parece apropriado não só enquanto uma descrição da subita mudança que se operou em Harry e
na própria peça, como também me parece apropriado para descrever o argumento que tenho vindo a
desenvolver. Charles diz

It’s very odd,


I am beginning to feel, just beginning to feel
That there is something I could understand, if I were told it.
But I am not sure that I want to know. I suppose I’m getting old:
....
I thought that life could bring no further surprises;
But I remember now, that I am always surprised
By the bull-dog in the Burlington Arcade.92

Esta apreensão extraordinária da parte de Charles é também a reacção de Eliot perante a


clarividência que anos após a escrita caótica de The Waste Land alcançou sobre o seu poema. O
bulldog é algo comum, Charles sabe muito bem como ele é, e no entanto não deixa de ficar
surpreendido cada vez que o vê em Burlington Arcade: esta é a sensação que The Waste Land
produz, e o estremecimento que o poema provoca advém largamente da apreensão que há nele algo
que poderíamos entender se ao menos nos fosse dito. Na verdade foi dito, mas não é The Waste
Land que o diz, antes foi o poeta anos mais tarde que o disse. Se prestarmos atenção às suas
palavras certamente partilharemos a surpresa de Charles, e entenderemos que o poema esconde um
cadáver. Por outras palavras, The Waste Land é um poema mortuário.

92
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 345-3466.

57
4. Conclusão

-Young fool. Only now, at the end, do you understand…


Darth Sidious, Star Wars Episode VI: Return of the Jedi

Eliot escreveu um poema, um poema constituído por cinco poemas que se fazem um todo
devido a um pathos que lhes é comum, o que faz de The Waste Land em larga medida um poema
patético, uma ‘comunicação directa através dos nervos’. Desse todo eu disse, pegando nas palavras
de um jovem Eliot, que se trata de uma série de tentativas falhadas em alcançar o “objective
correlative” adequado que fosse capaz de capturar a emoção que serviu de estímulo à escrita do
poema. Esta procura pelo “objective correlative” adequado mostra-se todavia uma fuga do
“objective correlative” adequado, sendo esta uma tendência que caracterizei como o ardil, o logro, o
engodo de The Waste Land. A variação entre estes termos, mais entre ardil e logro do que entre
ardil e engodo, denota a minha incerteza em encontrar o termo apropriado para designar aquilo que
creio ser o equívoco fundamental de The Waste Land, tão fundamental que até o poeta foi enganado
por ele, apercebendo-se do engano anos mais tarde. Que Eliot se tenha apercebido desse ardil não
muda no entanto o facto de que os comentadores de The Waste Land foram maioritariamente
levados ao engano. No início desta tese aproveitei-me das considerações sobre a falta de uma
narrativa para refutar a ideia de que este poema é uma crítica da sociedade que lhe era
contemporânea. Este tese data das primeiras leituras de The Waste Land e não me parece que hoje
em dia tenha muito peso. Apesar disso o ardil, ou seja o desvio da atenção daquilo que é o núcleo
central ou a substância do poema, permanece algo de que a crítica não se apercebe: a ideia de uma
censura da sociedade foi simplesmente substituída por outros modos de ler o poema que, a meu ver,
tanto caem no ardil quanto esta outra.
Ao dizer isto tenho em mente uma tese particular, a de James E. Miller Jr., intitulada
Personal Waste Land: Exorcism of the Demons. Antes de avançar para um comentário directo deste
livro parece-me contudo útil recapitular alguns pontos da minha tese.
No primeiro capítulo comentei um excerto do poema “What the Thunder Said” que disse
tratar-se de uma tentativa de justificação. Disse que aquilo do qual o poeta sentia necessidade de se
justificar era algo ao qual, através do poema, devido à obscuridade que advém da falta de claridade
do poeta perante si mesmo, não temos acesso. À luz do que desde então desenvolvi, parece-me que
disponho do suficiente para me aventurar numa tentativa de identificar o que é realmente aquilo do
qual o poeta se tenta justificar e do qual o poeta se desculpa. Eliot, em primeiro lugar, queria
justificar-se perante si mesmo da escrita de um poema que sabia não compreender, um poema que

58
não podia assim deixar de ser pessoal e obscuro. O que Eliot diz – ‘por isto, e isto apenas, temos
existido’ – é na verdade algo que anos mais tarde iria pronunciar novamente ao comentar a obra de
Shakespeare, afirmando que a transformação das agonias privadas do homem particular que escreve
na riqueza estranha e despersonalizada da poesia é aquilo que, ‘somente, constitui a vida para um
poeta’. O empenhamento do poeta na sua arte, na mente de Eliot, é total; é algo absoluto que
subsume todas as partes da sua vida. Em segundo lugar, Eliot parece querer desculpar-se,
assumindo culpa por certas escolhas que fez, e diz “The awful daring of a moment’s surrender/
Which an age of prudence can never retract”. Note-se que escolho, neste caso, a palavra “desculpar-
se” em detrimento da palavra “justificar-se”, esperando salientar deste modo a ideia que Eliot se
refere a um fracasso e que sente arrependimento.
Eliot arrepende-se das escolhas que, motivadas pelo querer ser poeta, semearam a discórdia
na sua família, em concreto entre si e os seus pais. O próprio casamento de Eliot com Vivienne
Haigh-Wood parece-me algo que foi feito num tal impulso que a única motivação que vejo para este
evento inesperado (pois continua a sê-lo quase um século depois) é novamente o ‘querer ser poeta’.
Este desejo é algo que eu entendo como uma obsessão. Dois dias após Eliot desposar Vivienne e
ousadamente agir em função de se fixar em Londres, Ezra Pound envia uma carta a Henry Ware
Eliot que é na verdade uma apologia das escolhas feitas por T.S. Eliot. A carta foi escrita por Pound
a pedido de Eliot, e a apologia é uma apologia literária.
Em 1922 Eliot acaba de escrever The Waste Land, ou melhor, Eliot acaba de escrever os
rascunhos de The Waste Land. Sabendo-se perante um poema que é incapaz de compreender, Eliot
pede a “il miglior fabbro” que o ajude na edição do poema. Sabendo que não iria exorcizar o
demónio, aliviar-se do desconforto agudo que o tinha feito escrever, Eliot quis ao menos ficar com
um poema como compensação pelas suas dores de parto. O que resultou foi um poema onde os
sentimentos se sobrepõem de tal maneira ao entendimento que este dificilmente consegue entender
a natureza do objecto rico e estranho que tem à sua frente. Felizmente, o trabalho de compreensão
sobre este estranho objecto foi feito pelo próprio poeta, embora não tenha sido feito de um modo
directo.
Em primeiro lugar há o ensaio “Hamlet”, onde Eliot expõe a base do poema que acabaria por
escrever três anos depois; curiosamente, a ênfase colocada neste ensaio na emoção extrema que não
consegue encontrar o objecto adequado que a capture e a expresse, é vista por Eliot como estando
relacionada com os pais de Shakespeare. Podendo isto parecer irónico, na verdade não o é – 1919
foi o ano em que Henry Ware Eliot faleceu, e “Hamlet” é a primeira reacção.
Depois segue-se The Waste Land, uma aparente cacofonia de vozes que na verdade são
tentativas por parte do poeta em esconder-se por detrás de uma máscara, uma poesia eloquente na

59
sua desordem emocional e extrema na sobreposição das emoções sobre o intelecto. Será curioso
notar de novo como Eliot, no poema “A Game of Chess”, repete através de alusões a Shakespeare a
mesma gradação de várias obras do bardo que havia feito no ensaio “Hamlet” – Antony and
Cleopatra, MacBeth, Hamlet, este último um falhanço artístico ainda mais bem sucedido que The
Waste Land. Devido à natureza extrema deste poema, que se complica com a tentativa inconsciente
de ocultar o verdadeiro estímulo da sua desordem, The Waste Land acaba por funcionar através do
logro, e esse logro foi ouvido e ouvido vezes sem conta sem que aqueles que o ouvem se tivessem
apercebido do ardil que lhes toldava o entendimento daquilo que ouviam. Esta é a segunda reacção
à morte de Henry Ware Eliot.
A vida de Eliot prosseguiu, e como podemos constatar pela sua poesia, o estado emocional
do qual The Waste Land foi gerado o poeta acabou por ultrapassar: se não o tivesse feito, poemas
como Ash-Wednesday ou The Four Quartets nunca teriam sido escritos. Em 1939 Eliot regressa a
The Waste Land e desta vez, tendo resolvido consigo mesmo as dificuldades que o haviam levado a
escrever The Waste Land como uma forma de procurar alívio (parece-me importante dizer que a
resolução teve de ser privada e vivida e não poética e escrita), decide levantar o pano e mostrar a
face do demónio. Um demónio poético, digamos. The Family Reunion, revisitando The Waste Land
através de uma afinidade de linguagem e fazendo da personagem Harry, na primeira parte da peça,
alguém que vive no estado de paralisia que caracteriza The Waste Land, apresenta uma saída desta
mesma paralisia que se mostra de cariz religioso. Esta consiste, num primeiro momento, na
necessidade do contacto com o passado para que a clareza requerida para reconhecer a face do
demónio seja alcançada; aquilo que se descobre quando o passado é enfrentado é, não o horror
perante a sensualidade e a sexualidade como estes aparecem na peça sob a forma da mulher de
Harry, morta por afogamento, mas sim a presença do pai. Esta é a terceira reacção à morte de Henry
Ware Eliot, e não é mais um lamento que é feito por meio de resmunguices mas sim um apaziguar,
um fazer contas, um resolver daquilo que é preciso enfrentar e resolver.
Por último, em 1953, o ensaio “The Three Voices of Poetry” é a demonstração que Eliot
aprendeu alguma coisa com tudo isto: e o que aprendeu foi uma lição poética.93 A obsessão é uma
obsessão para toda a vida. Esta é, de qualquer maneira, a sua natureza: algo desregrado e intenso,
algo que invade todo o intelecto todas as emoções e que acaba por ser aquilo pelo qual ‘temos
vivido’ (o que Eliot diria e disse dos poetas).
Quando acabei de escrever a primeira metade deste trabalho, o meu orientador disse-me que
o argumento exposto abria caminho para validar a tese de Miller. Confesso que até então nunca a

93
Falo apenas daquilo que posso falar; outro lado, creio, do que Eliot aprendeu terá de ser visto na sua conversão à
igreja anglicana e no movimento que o levou à conversão e que foi aprofundando durante o resto da sua vida.

60
havia lido, e apesar de saber que a tese propunha a existência um elemento homo-erótico latente na
amizade de Eliot com Jean Verdenal, talvez consumado, talvez nunca consumado, nada mais sabia.
Surpresa a minha foi, ao pegar em Personal Waste Land: Exorcism of the Demons, entender que o
argumento de Miller era uma identificação de Phlebas como Jean Verdenal, “mort aux
Dardanelles”94, numa descrição do poema “Death by Water” como um epitáfio. Segundo esta tese,
Phlebas, através de uma transformação que é própria da imaginação poética, é na verdade Jean
Verdenal. Miller procura aprofundar esta identificação especulando sobre a estadia de Eliot em
Paris entre 1910 e 1911, e analisando a correspondência entre Verdenal e o poeta.
Muito importante para o desenvolvimento da sua tese é uma especulação particular sobre a
possível existência de jacintos num jardim que Verdenal e Eliot visitaram juntos e ao qual Verdenal
se refere numa carta marcada por um forte saudosismo. Miller pretende identificar Eliot com a
“Hyacinth girl” do poema “The Burial of the Dead”. Segundo o meu argumento, Eliot será de facto
a “Hyacinth girl”, mas não o é por causa de uma tendência homo-erótica recalcada, mas
simplesmente porque esta é uma máscara sem traços distintivos que o poeta usa para ocultar a sua
voz. Não me parece haver necessidade de especular muito sobre a vida de Eliot para entender a
natureza de The Waste Land, pois embora este poema seja um reflexo de um período difícil da vida
do poeta, o problema de The Waste Land é em primeiro lugar um problema literário. Esse problema
é semelhante àquilo que Eliot identifica e condena como o sinal do falhanço artístico de
Shakespeare no ensaio “Hamlet”, e é também semelhante ao que Eliot louva na peça The
Revenger’s Tragedy. Miller não me parece aproveitar muito bem a crítica de Eliot para entender a
poesia de Eliot; serve-se do ensaio “The Three Voices of Poetry” e do comentário que na edição
fac-simile de The Waste Land precede os rascunhos, mas destas duas fontes conclui apenas que o
poema é um poema pessoal, não avança a ideia para onde esta pode ser levada e não entende como
estas duas fontes descrevem adequadamente a estrutura de The Waste Land. Para Miller, The Waste
Land é um poema que exorciza o demónio, mas esta asserção parece-me descabida: se a cacofonia
final de citações não chega para mostrar que demónio algum foi exorcizado, The Family Reunion
deveria ser o suficiente para afirmar que o não faz com certeza. Miller quer fazer de The Waste
Land um poema que nada mais é que uma reflexão pessoal sobre o passado individual disfarçada.
Isto, creio, é um mau entendimento do poema.
A ideia de Miller de uma transformação da experiência pessoal, “a submerged biography, a
combining of disparate experiences that somehow concealed the original experiences at the same
time it absorbed them”95, é vaga e não me parece o suficiente para enfrentar e justificar as

94
T.S. Eliot, The Complete Poems and Plays, Faber and Faber, n.p., 2004, p. 11.
95
James E. Miller Jr., Personal Waste Land: Exorcism of the Demons, The Pennsylvania State University Press,

61
dificuldades de um poema como The Waste Land. Miller, na verdade, parece crer que à excepção da
palavra “impersonal” The Waste Land é uma demonstração inflacionada das teorias que Eliot tinha
sobre a poesia, ao contrário de olhar para este poema como algo que demonstra as dificuldades de
se pensar sobre a literatura e sobre poemas como estas aparecem ao longo da obra crítica de Eliot.
O que mais me desagrada na tese de Miller é o modo como este tenta explicar um poema, que
é um poema denso e obscuro, sem que em primeiro lugar faça uma descrição satisfatória da sua
estrutura e da sua natureza. Miller não chega realmente a fazer a pergunta ‘mas afinal que tipo de
animal é este?’. Em segundo lugar aborrece-me o facto de que na sua tentativa de explicar o poema
Miller recorra sempre àquilo que não só não faz parte do poema, ou seja que está fora dele, mas
também àquilo que apenas é acessível através da especulação. Não tenho particulares objecções à
ideia de que podemos entender melhor um texto recorrendo a informação que é exterior a esse
texto, o que nem sequer está aqui em causa; tenho por outro lado resistência a uma retórica que
insiste nesses elementos exteriores para retirar do texto aquilo que quer encontrar, não de modo a
clarificar o que o texto diz, mas de modo a fazer o texto dizer aquilo que se quer que ele diga. Em
relação a esta característica retórica a tese que supõe a homossexualidade de Eliot, consumada ou
não, parece-me de menor importância.
Para clarificar esta objecção, cito um excerto de Personal Waste Land: Exorcism of the
Demons

Of course Eliot was not a child but a young man when he encountered Jean Verdenal; still
the experience seems clearly to have been one that “no subsequent experience abolished or
exceeded,” and one in which he “found meanings” far beyond our reach when we confine
ourselves to the “facts”. (ênfase de Miller)96

Todo este excerto é muito escorregadio. Miller diz “the experience seems clearly to. . .”, mas eu
pergunto: parece claramente a quem? O uso da palavra “clearly” evidencia o artifício retórico. Logo
de seguida Miller insiste que, sendo uma experiência tão evidentemente forte que nada a foi capaz
de exceder, o significado que teve para Eliot está para além da compreensão que podemos ter dos
“factos”. Isto é muito conveniente, mas nada garante que realmente assim o seja. Onde se encontra
tamanha evidência é uma questão a que Miller poderia apenas responder: na especulação. Mas a
especulação de uma pessoa não é algo que “clearly seems” para outras pessoas, e a tese de Miller é
em grande medida um encadeamento de especulações. Veja-se outro exemplo:

University Park, 1978, p. 37.


96
James E. Miller Jr., Personal Waste Land: Exorcism of the Demons, The Pennsylvania State University Press,
University Park, 1978, p 30.

62
Given all the links of association and the implications and suggestiveness, we might reasonably
assume that for Eliot the line from Ariel’s song – “Those are pearls that were his eyes” – was
connected profoundly with the depths of his feeling with the devastating death of Jean Verdenal in
1915.97

A referência à canção de Ariel, passo de Shakespeare que Miller cita no capítulo “Burial of the
Dead” (com uma gralha), é dada como uma das evidências da presença de Jean Verdenal. Miller, no
entanto, não pensa sobre o contexto da citação, e não repara no cadáver de Alonso que pelas
palavras de Ariel é profanado, como também não repara que a própria canção de Ariel é um ardil.
Miller não dá conta, também, da natureza auto-reflexiva e auto-deprecatória do poema “Death by
Water”, que diz ser um epitáfio sem que isso o leve a ponderar como aquilo que caracteriza um
epitáfio se aplica ao poema. A presença de um cadáver que é dilacerado pelos elementos
inanimados do fundo do mar leva-me a pensar Phlebas como um duplo. ‘És tu mesmo’, diz, e a
morte é vista como um modo particular de esquecimento. O filho rememora a sua vida; o pai, que
faleceu julgando ver o filho a percorrer o caminho errado, faz a admonição.
The Waste Land é um poema mortuário, uma espécie de memento mori alargado; o seu tema,
ao contrário do desejo e da memória como Miller aceita sem qualquer tipo de reserva, é antes a
morte, visto este ser um poema que demonstra um horror e ódio profundos da vida em si. Perante tal
ódio, não admira que a sexualidade seja encarada com um terror particular, mas achar que esta é o
ponto central do poema é simplesmente falhar o alvo. Tamanho ódio pela vida é algo demasiado
violento e vasto para que um objecto particular seja capaz de o capturar. Harry fala do mundo em
que tem de viver como algo doente, e Eliot descreve The Waste Land como uma série de
resmunguices contra a vida, colocando-se deste modo lado a lado com Shakespeare e Tourneur
enquanto autor que tentou exprimir o horror inexprimível. Miller, incapaz de ver tudo isto, é na
verdade como Ferdinand. Ao ouvir uma canção entoada a meio ar, sem corpo aparente que a cante,
acredita naquilo que dizem as suas palavras e deixa-se enganar pelo ardil.

97
James E. Miller Jr., Personal Waste Land: Exorcism of the Demons, The Pennsylvania State University Press,
University Park, 1978, p 41.

63
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64
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