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Medievalização do mundo urbano e o problema da

violência
Os condomínios-clube e o processo de medievalização das
cidades brasileiras

À medida que cresce nas cidades a sensação de insegurança, o


fenômeno dos condomínios exclusivíssimos ganha mais força no
mercado imobiliário brasileiro. O modelo foi implantado, de início,
nas principais capitais do sul e sudeste do país, e, gradativamente,
vem se espalhando por todas as demais regiões.

Aos poucos, a paisagem urbana vai se re-configurando: as quadras


dão espaço aos muros altos com cercas elétricas, as calçadas
passam a ter pouco ou nenhum movimento de pedestres no
entorno, o comércio se distancia e se concentra em shoppings
centers, ao mesmo tempo em que o volume de carros cresce,
intensificando o trânsito ao redor dessas estruturas.

Pesquisas sobre esse fenômeno já vêm sendo feitas há mais de


duas décadas, uma vez que a questão dos condomínios-clube tem
motivado posicionamentos bastante antagônicos. Por um lado, o
mercado imobiliário identifica o condomínio-clube como uma
tendência, um produto diferenciado de forte demanda, uma vez que
se apresenta como solução para o estilo de vida vigente nas
grandes cidades; por outro, especialistas acreditam que a solução
impõe um processo de medievalização da arquitetura e das
cidades, que dissolve o tecido urbano e compromete de forma
significativa as relações interpessoais.

Loteamento x condomínio

Conceitualmente, loteamento e condomínio diferem. Ambos


resultam do fracionamento de uma área maior. Em linhas gerais,
temos que, no primeiro, os lotes são vendidos separadamente e a
área comum – composta por ruas, calçadas, praças, etc. – é
pública. O loteamento se insere no traçado urbano e é parte
integrante da rede urbana como uma zona de transição, que
interliga o público ao privado e vice-versa. Um espaço antes de
tudo, democrático.

Nos condomínios, a área normalmente resulta de um processo de


reunificação de lotes, gerando uma grande área a qual é murada,
cada unidade habitacional tem sua área privativa e uma fração da
área comum, de forma que tudo o que está dentro do perímetro do
muro pertence exclusivamente ao condomínio. O conjunto se insere
no traçado urbano como um monobloco e o trânsito de pedestres e
de veículos apenas margeia o muro que o envolve.

A linguagem medieval na cidade pós-contemporânea

Os termos medievalização arquitetônica e medievalização urbana


foram forjados ao final dos anos noventa e traduzem a dimensão
exata da sensação de pânico que se instalou em nossas cidades.

A linguagem medieval remete ao sentido de proteção e desenha um


novo padrão funcional e formal de arquitetura. Ela define um
modelo defensivo, densificado e hiperinfra-estruturado, inserido na
malha urbana horizontal ou verticalmente.

De início, havia os condomínios residenciais compostos por


unidades habitacionais dispostas no interior de grandes áreas
muradas, com padrão construtivo que variava de médio a alto luxo,
distribuídos em diferentes bairros das cidades.

Recentemente o produto foi incrementado, o que levou alguns


estudiosos a estabelecerem ligação entre o modelo acastelado
medieval e as estruturas em condomínio-clube. São semelhanças
de ordem física e comportamental.

As semelhanças físicas referem-se basicamente aos elementos de


composição, como as guaritas fazendo as vezes de torres de
vigilância; o monitoramento eletrônico ostensivo, como uma versão
contemporânea das seteiras dos castelos; os altos muros de tijolos,
correspondendo às estruturas colossais em pedra; os portões
duplos e até mesmo a presença de lagos artificiais e cascatas que
nos remetem aos fossos com suas pontes de acesso.
Do ponto de vista comportamental, alguns estudiosos chamam a
atenção para a impessoalidade e para o isolamento do grupo em
relação ao universo citadino exterior. Comparados às vilas das
décadas de 40 e 50 – ruas de pedestres com entorno de habitações
unifamiliares, onde a interação com a vizinhança tinha papel
significativo nas rotinas familiares –, os condomínios-clube primam
pelo exclusivismo de cada unidade e pela utilização rotativa das
áreas comuns. Raramente existe interação entre os vizinhos,
exceção feita às reuniões de interesse comum, normalmente
conflituosas. O que antes era entendido como socialização, hoje
seria interpretado como invasão de espaço pessoal.

Gradativamente essas estruturas comprometem o tecido urbano,


isolam ruas e até mesmo regiões inteiras, ao mesmo tempo em que
cresce o processo de abandono e de guetificação das áreas de
entorno remanescentes.

Segurança que consome bilhões ao ano

Um estudo apresentado em 2002, pela professora Sônia Ferraz da


UFF, intitulado “Arquitetura da Violência ou do Medo ”, alertava para
o fato de que a insegurança e o medo já movimentavam mais de
R$100 bilhões anualmente em nosso país. Segundo ela, uma boa
fatia do mercado imobiliário, da indústria de equipamentos e de
materiais de segurança cresceu na mesma medida em que a
violência e a sensação de insegurança foi se intensificando nos
bairros.

Em janeiro deste ano, foi realizado, no auditório do SIAMFESP, um


evento patrocinado pelo Fórum da Construção que abordou o tema
Condomínio-Clube: Modismo ou Tendência. O encontro serviu para
promover a troca de experiências entre a indústria e os profissionais
da construção civil.

Dentre os assuntos discutidos, os motivos que levaram ao atual


modelo de condomínios-clube. Concluiu-se que os fatores
determinantes para a implantação do citado modelo estão
relacionados ao aumento dos percentuais dos índices de violência
urbana, à especulação imobiliária e à necessidade de lazer
adequado para cada morador. O público-alvo deste tipo de
empreendimento é diferenciado, normalmente famílias com renda
acima de 25 salários mínimos, com 2 ou 3 filhos, ou ainda, casais
cujos filhos já se casaram, passando por solteiros e descasados.

Por essa razão, cada empreendimento chega a oferecer, num


mesmo condomínio, pelo menos 5 modelos diferentes de residência
e mais de 10 opções de serviços, comércio, lazer e entretenimento
a um custo médio de R$4.500 o metro quadrado.

Medievalização como sinônimo de concentração de propriedade

Delfim Sardo, importante filósofo português, acredita que o futuro


das cidades depende das circunstâncias locais de desenvolvimento.
Defensor da popularização das artes, ele é um dos que também
acreditam que vivemos um processo de medievalização das
cidades, que decorre da concentração de propriedades. O
fenômeno é perceptível nas mais diversas áreas, inclusive nas
artes, numa referência à crescente concentração de obras de arte
nas coleções privadas.

Na visão de Sardo, o fenômeno da medievalização se estende à


cultura e, para tanto, o autor cita o exemplo da dominação da língua
inglesa sobre as demais, comparando-a inclusive à supremacia do
latim na Idade Média. Ele afirma que de um ponto de vista cultural,
verifica-se uma pulverização das heterodoxias, que tem como
conseqüência a afirmação do exclusivismo e do individualismo; um
paradigma de efeito paradoxal que aos poucos se consolida,
seguindo a lógica da globalização da globalização.

As cidades são instâncias sociais e sofrem prejuízos em função da


diminuição do convívio humano, na medida em que as pessoas se
fecham em cidadelas muradas, defendendo-se de um mundo
bárbaro e hostil, como já acontecia na Idade Média.

Alguns projetos chegam a minimizar os efeitos do isolamento


implantando o espaço para comércio (lojas) nos arredores dos
condomínios, não só para facilitar a vida diária dos condôminos,
mas também, para garantir que haja fluxo de moradores-
consumidores. Nada são, senão soluções paliativas dentro de
soluções paliativas.

Por ora, proponho trazermos para a ótica urbana, um depoimento


de Sardo no qual faz referência à condição das instituições culturais
contemporâneas: “… A questão que se coloca hoje é como é que
se podem encontrar formas de agregação, de consenso. As formas
societárias de agregação assentam, sobretudo, no lazer e
funcionam em monocultura. É preciso construir formas societárias
de agregação que não assentem exclusivamente no lazer. São as
instituições culturais que podem produzir comunicação interpessoal.

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