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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo
O Health Service Executive (HSE) da Irlanda emitiu uma série de diretrizes a respeito da prática de
sexo em tempos de coronavírus. As duas principais recomendações
(h ps://www.sexualwellbeing.ie/sexual-health/sex-and-coronavirus/) do órgão são as seguintes:
“Vale a pena considerar dar uma pausa nas interações físicas presenciais, especialmente se você
geralmente se encontra com seus parceiros sexuais online ou ganha a vida fazendo sexo. Considere
marcar encontros amorosos por videoconferência, praticar sexting* ou participar de salas de bate-
papo virtual. Procure desinfetar os teclados dos computadores e as telas sensíveis ao toque que você
compartilha com outras pessoas. […] A masturbação não disseminará o coronavírus, especialmente
se você lavar as mãos (e quaisquer brinquedos sexuais) com água e sabão por ao menos vinte
segundos, antes e depois.”1
Tratam-se de orientações razoáveis de senso comum para tempos de uma epidemia disseminada por
meio de contatos corporais. Mas vale notar que essas recomendações simplesmente consumam o
processo que já vinha ocorrendo com a progressiva digitalização das nossas vidas: as estatísticas
mostram que os adolescentes de hoje gastam muito menos tempo explorando a sua sexualidade do
que navegando pela internet.
Ainda que eles de fato pratiquem sexo, hoje não é muito mais fácil e mais instantaneamente
gratificante realizá-lo em um espaço virtual (com pornografia explícita, por exemplo)? É por isso que
a nova série televisiva estadunidense Euphoria (2019) – que, segundo a descrição da própria HBO,
“acompanha um grupo de alunos de ensino médio e suas experiências com drogas, sexo, traumas de
identidade, mídias sociais, amor e amizade” –, com sua representação da vida dissoluta dos jovens de
ensino médio de hoje é quase o oposto da realidade atual. Ela está fora de sintonia com a juventude
de hoje e, por esse motivo, se mostra estranhamente anacrônica – revelando ser mais um exercício de
nostalgia de meia-idade a respeito de quão depravadas as gerações mais jovens já foram.
Mas devemos dar um passo além aqui e se perguntar: e se nunca houve nenhum sexo “real”
desprovido de qualquer suplemento virtual ou fantasiado? A definição usual de masturbação é “fazer
você mesmo ao imaginar parceiros”, mas e se o sexo verdadeiro for sempre – até certo ponto –
masturbação com um parceiro real? O que quero dizer com isso? Em sua coluna
(h ps://www.theguardian.com/lifeandstyle/2019/dec/08/rough-sex-and-rough-justice-we-need-a-
greater-understanding-of-consent) no jornal The Guardian, Eva Wiseman cita um dos episódios
narrados em “The Bu erfly Effect (h p://jonronson.com/bu erfly.html)”, uma série em podcast a
respeito dos impactos da pornografia de internet:
“No set de um filme pornográfico, um ator perdeu sua ereção no meio de uma cena – para retomá-la,
desviou seu olhar da mulher nua que se encontrava deitada diante dele, pegou seu celular e deu uma
busca no site PornHub. O que me pareceu vagamente apocalíptico.”2
A colunista então conclui: “Há algo de podre no reino do sexo.” Concordo, mas acrescentaria a
seguinte lição da psicanálise. Há algo constitutivamente podre no reino do sexo: a sexualidade humana
é em si mesma pervertida, exposta a inversões sadomasoquistas e, especificamente, à mistura de
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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo
realidade e fantasia. Mesmo quando estou a sós com meu parceiro ou minha parceira, minha
interação com ele/ela é inextricavelmente interligada às minhas fantasias. Isto é, toda interação sexual
é potencialmente estruturada como uma “masturbação com um parceiro real” – tudo se passa como se eu
me valesse do corpo de meu parceiro como um adereço para realizar/encenar as minhas fantasias.
Não podemos reduzir essa lacuna entre a realidade corporal de um parceiro e o universo das
fantasias a uma distorção inaugurada pelo patriarcado, pela dominação social ou pela exploração – a
lacuna já se encontra lá desde o início. Por isso eu até entendo o ator que, para recuperar sua ereção,
deu uma busca no site pornográfico PornHub: ele estava à procura de um apoio fantasmático para a
sua performance. É por esse mesmo motivo que, como parte da relação sexual, um parceiro pede para
o outro continuar falando, geralmente narrando alguma “sacanagem” – até mesmo quando você
segura em suas mãos a “coisa em si” (o corpo nu do parceiro), essa presença precisa ser
suplementada por uma construção fantasiosa verbal…
Isso funcionou para o ator porque ele evidentemente não se encontrava em uma relação amorosa
pessoal com a atriz – para ele, o corpo de sua companheira de cena era mais um robô sexual vivo. Se
estivesse apaixonado por sua parceira, o corpo dela teria importado para ele visto que cada gesto de
tocá-la perturbaria o âmago da subjetividade dela. Quando fazemos amor com alguém que
verdadeiramente amamos, tocar o corpo do parceiro é crucial. Devemos, portanto, virar do avesso o
chavão de senso comum segundo o qual a luxúria sexual é apenas carnal ao passo que o amor seria
espiritual: o amor sexual é mais corporal do que sexo sem amor.
Será, portanto, que a epidemia em curso irá limitar a sexualidade e promulgar o amor enquanto uma
admiração distante do ser amado que permanece longe do alcance do toque? A pandemia
definitivamente vai alavancar os jogos sexuais sem contato corporal. Com sorte, no entanto, emergirá
disso tudo também uma nova apreciação da intimidade sexual, e aprenderemos mais uma vez a lição
de Andrei Tarkóvski, para quem a terra, sua composição inerte, húmida, não se opõe à
espiritualidade, sendo antes seu próprio meio. Na obra-prima do diretor russo, O espelho (1975), seu
pai Arseny Tarkóvski recita os versos de um de seus poemas: “Uma alma sem corpo é pecadora, como um
corpo sem roupa.” A masturbação diante de imagens de pornografia explícitas é pecaminosa, ao passo
que o contato corporal constitui um caminho para a espiritualidade.
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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo
(h ps://www.boitempoeditorial.com.br/produto/pandemia-covid-19-e-a-reinvencao-do-comunismo-
960)
O autor abriu mão dos direitos autorais da obra, que serão revertidos à
organização internacional Médicos Sem Fronteiras, dedicada a oferecer
ajuda médica e humanitária a populações em situações de emergência em
todo o planeta. Com tradução de Artur Renzo e edição de Carolina Mercês,
a obra conta ainda com prefácio assinado pelo psicanalista Christian
Dunker.
(h ps://www.boitempoeditorial.com.br/produto/pandemia-covid-19-e-a-reinvencao-do-comunismo-
960)
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(https://blogdaboitempo.com.br/dossies-tematicos/dossie-
coronavirus/)
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos
principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência
principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-
modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade
de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos
diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo
ao deserto do Real! (h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Titles/view/bem-vindo-ao-deserto-do-real%21)
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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo
Kobo (https://bit.ly/kobozizek)
Google (https://bit.ly/googlezizek)
Apple (https://bit.ly/zizekcovid19)
Amazon (https://bit.ly/slavojcovid19)
Notas
* Sexting é um anglicismo através da contração das palavras sex (sexo) e texting (troca de mensagens
por celular). O termo refere-se à troca de conteúdos eróticos através de aparelhos celulares. (N. T.)
1 O comunicado completo está disponível no site do programa de saúde sexual do HSE
(h ps://www.sexualwellbeing.ie/sexual-health/sex-and-coronavirus/).
2 Eva Wiseman, “Rough sex and rough justice: we need a greater understanding of consent
(h ps://www.theguardian.com/lifeandstyle/2019/dec/08/rough-sex-and-rough-justice-we-need-a-
greater-understanding-of-consent)”, The Guardian, 8 dez. 2019.
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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo
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5. ZIZEK: SEXO EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS
Boitempo Editorial
R. Pereira Leite, 373
Sumarezinho // 05442-000
São Paulo // SP // Brasil
(55 11) 3875-7285/50
Publicado originalmente no Blog da Boitempo
https://blogdaboitempo.com.br/2020/05/26/zizek-sexo-em-tempos-de-coronavirus/ 9/9