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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo

Žižek: Sexo em tempos de coronavírus

A pandemia definitivamente deve alavancar a prática de


jogos sexuais sem contato corporal. Com sorte, no
entanto, emergirá disso tudo também uma nova
apreciação pela intimidade física, e lembraremos que o
contato corporal constitui, ele próprio, um caminho para a
espiritualidade.

Publicado em 26/05/2020 // 6 comentários

(h ps://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2020/05/sexo-corona-zizek-boitempo.jpg)

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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo

Por Slavoj Žižek.

* ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO


(h ps://wp.me/pB9tZ-6hT). A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.

O Health Service Executive (HSE) da Irlanda emitiu uma série de diretrizes a respeito da prática de
sexo em tempos de coronavírus. As duas principais recomendações
(h ps://www.sexualwellbeing.ie/sexual-health/sex-and-coronavirus/) do órgão são as seguintes:

“Vale a pena considerar dar uma pausa nas interações físicas presenciais, especialmente se você
geralmente se encontra com seus parceiros sexuais online ou ganha a vida fazendo sexo. Considere
marcar encontros amorosos por videoconferência, praticar sexting* ou participar de salas de bate-
papo virtual. Procure desinfetar os teclados dos computadores e as telas sensíveis ao toque que você
compartilha com outras pessoas. […] A masturbação não disseminará o coronavírus, especialmente
se você lavar as mãos (e quaisquer brinquedos sexuais) com água e sabão por ao menos vinte
segundos, antes e depois.”1

Tratam-se de orientações razoáveis de senso comum para tempos de uma epidemia disseminada por
meio de contatos corporais. Mas vale notar que essas recomendações simplesmente consumam o
processo que já vinha ocorrendo com a progressiva digitalização das nossas vidas: as estatísticas
mostram que os adolescentes de hoje gastam muito menos tempo explorando a sua sexualidade do
que navegando pela internet.

Ainda que eles de fato pratiquem sexo, hoje não é muito mais fácil e mais instantaneamente
gratificante realizá-lo em um espaço virtual (com pornografia explícita, por exemplo)? É por isso que
a nova série televisiva estadunidense Euphoria (2019) – que, segundo a descrição da própria HBO,
“acompanha um grupo de alunos de ensino médio e suas experiências com drogas, sexo, traumas de
identidade, mídias sociais, amor e amizade” –, com sua representação da vida dissoluta dos jovens de
ensino médio de hoje é quase o oposto da realidade atual. Ela está fora de sintonia com a juventude
de hoje e, por esse motivo, se mostra estranhamente anacrônica – revelando ser mais um exercício de
nostalgia de meia-idade a respeito de quão depravadas as gerações mais jovens já foram.

Mas devemos dar um passo além aqui e se perguntar: e se nunca houve nenhum sexo “real”
desprovido de qualquer suplemento virtual ou fantasiado? A definição usual de masturbação é “fazer
você mesmo ao imaginar parceiros”, mas e se o sexo verdadeiro for sempre – até certo ponto –
masturbação com um parceiro real? O que quero dizer com isso? Em sua coluna
(h ps://www.theguardian.com/lifeandstyle/2019/dec/08/rough-sex-and-rough-justice-we-need-a-
greater-understanding-of-consent) no jornal The Guardian, Eva Wiseman cita um dos episódios
narrados em “The Bu erfly Effect (h p://jonronson.com/bu erfly.html)”, uma série em podcast a
respeito dos impactos da pornografia de internet:

“No set de um filme pornográfico, um ator perdeu sua ereção no meio de uma cena – para retomá-la,
desviou seu olhar da mulher nua que se encontrava deitada diante dele, pegou seu celular e deu uma
busca no site PornHub. O que me pareceu vagamente apocalíptico.”2

A colunista então conclui: “Há algo de podre no reino do sexo.” Concordo, mas acrescentaria a
seguinte lição da psicanálise. Há algo constitutivamente podre no reino do sexo: a sexualidade humana
é em si mesma pervertida, exposta a inversões sadomasoquistas e, especificamente, à mistura de
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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo

realidade e fantasia. Mesmo quando estou a sós com meu parceiro ou minha parceira, minha
interação com ele/ela é inextricavelmente interligada às minhas fantasias. Isto é, toda interação sexual
é potencialmente estruturada como uma “masturbação com um parceiro real” – tudo se passa como se eu
me valesse do corpo de meu parceiro como um adereço para realizar/encenar as minhas fantasias.

(h ps://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2020/05/covidsex.jpg)Ilustração: Bri any England

Não podemos reduzir essa lacuna entre a realidade corporal de um parceiro e o universo das
fantasias a uma distorção inaugurada pelo patriarcado, pela dominação social ou pela exploração – a
lacuna já se encontra lá desde o início. Por isso eu até entendo o ator que, para recuperar sua ereção,
deu uma busca no site pornográfico PornHub: ele estava à procura de um apoio fantasmático para a
sua performance. É por esse mesmo motivo que, como parte da relação sexual, um parceiro pede para
o outro continuar falando, geralmente narrando alguma “sacanagem” – até mesmo quando você
segura em suas mãos a “coisa em si” (o corpo nu do parceiro), essa presença precisa ser
suplementada por uma construção fantasiosa verbal…

Isso funcionou para o ator porque ele evidentemente não se encontrava em uma relação amorosa
pessoal com a atriz – para ele, o corpo de sua companheira de cena era mais um robô sexual vivo. Se
estivesse apaixonado por sua parceira, o corpo dela teria importado para ele visto que cada gesto de
tocá-la perturbaria o âmago da subjetividade dela. Quando fazemos amor com alguém que
verdadeiramente amamos, tocar o corpo do parceiro é crucial. Devemos, portanto, virar do avesso o
chavão de senso comum segundo o qual a luxúria sexual é apenas carnal ao passo que o amor seria
espiritual: o amor sexual é mais corporal do que sexo sem amor.

Será, portanto, que a epidemia em curso irá limitar a sexualidade e promulgar o amor enquanto uma
admiração distante do ser amado que permanece longe do alcance do toque? A pandemia
definitivamente vai alavancar os jogos sexuais sem contato corporal. Com sorte, no entanto, emergirá
disso tudo também uma nova apreciação da intimidade sexual, e aprenderemos mais uma vez a lição
de Andrei Tarkóvski, para quem a terra, sua composição inerte, húmida, não se opõe à
espiritualidade, sendo antes seu próprio meio. Na obra-prima do diretor russo, O espelho (1975), seu
pai Arseny Tarkóvski recita os versos de um de seus poemas: “Uma alma sem corpo é pecadora, como um
corpo sem roupa.” A masturbação diante de imagens de pornografia explícitas é pecaminosa, ao passo
que o contato corporal constitui um caminho para a espiritualidade.

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(h ps://www.boitempoeditorial.com.br/produto/pandemia-covid-19-e-a-reinvencao-do-comunismo-
960)

Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo


(https://bit.ly/btzizekcovid19), de Slavoj Žižek

Uma pandemia global assola o planeta. Com a brusca mudança na rotina


de bilhões de pessoas, vivemos em um momento em que o maior ato de
responsabilidade é se manter distante daqueles que amamos. Em treze
ensaios de escrita rápida, afiada e bem-humorada, a obra destrincha
diferentes aspectos do surto provocado pelo novo coronavírus: filosóficos,
psicanalíticos, políticos, sociais, econômicos, ecológicos e ideológicos.

Escrito com seu conhecido estilo irreverente e o gosto do autor por


analogias da cultura pop (Tarantino, Hitchcock e H. G. Wells flertam com
Marx, Hegel e Lacan nestas páginas), este livro fornece fotogramas
concisos e provocativos da crise à medida que ela se alastra e engole
todos nós. Para apresentar a ousada tese que atravessa os ensaios que
compõem esta obra, Žižek não se furta de travar um debate direto com
outros intérpretes contemporâneos da crise causada pela covid-19, como
Giorgio Agamben, Byung-Chul Han, Alain Badiou e Bruno Latour, entre
outros.
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03/06/2020 Žižek: Sexo em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo

O autor abriu mão dos direitos autorais da obra, que serão revertidos à
organização internacional Médicos Sem Fronteiras, dedicada a oferecer
ajuda médica e humanitária a populações em situações de emergência em
todo o planeta. Com tradução de Artur Renzo e edição de Carolina Mercês,
a obra conta ainda com prefácio assinado pelo psicanalista Christian
Dunker.

Pandemia Capital é uma série especial de obras curtas, objetivas e com


preços acessíveis que aborda a crise atual do novo coronavírus e suas
implicações na sociedade, na psicologia e na economia.

(h ps://www.boitempoeditorial.com.br/produto/pandemia-covid-19-e-a-reinvencao-do-comunismo-
960)

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(https://blogdaboitempo.com.br/dossies-tematicos/dossie-
coronavirus/)

O Blog da Boitempo apresenta um dossiê urgente com reflexões


feitas por alguns dos principais pensadores críticos
contemporâneos, nacionais e internacionais, sobre as dimensões
sociais, econômicas, filosóficas, culturais, ecológicas e políticas da
atual pandemia do coronavírus. Confira aqui
(https://blogdaboitempo.com.br/dossies-tematicos/dossie-
coronavirus/) a página com atualizações diárias
com análises, artigos, reflexões e vídeos sobre o tema.

***

Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos
principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência
principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-
modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade
de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos
diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo
ao deserto do Real! (h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Titles/view/bem-vindo-ao-deserto-do-real%21)

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Disponível também em versão e-book nas principais lojas do ramo:

Kobo (https://bit.ly/kobozizek)

Google (https://bit.ly/googlezizek)

Apple (https://bit.ly/zizekcovid19)

Amazon (https://bit.ly/slavojcovid19)

Notas

* Sexting é um anglicismo através da contração das palavras sex (sexo) e texting (troca de mensagens
por celular). O termo refere-se à troca de conteúdos eróticos através de aparelhos celulares. (N. T.)
1 O comunicado completo está disponível no site do programa de saúde sexual do HSE
(h ps://www.sexualwellbeing.ie/sexual-health/sex-and-coronavirus/).
2 Eva Wiseman, “Rough sex and rough justice: we need a greater understanding of consent
(h ps://www.theguardian.com/lifeandstyle/2019/dec/08/rough-sex-and-rough-justice-we-need-a-
greater-understanding-of-consent)”, The Guardian, 8 dez. 2019.

***

Žižek: A eleição de Bolsonaro e a nova direita populista

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(2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (h p://boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?


isbn=85-7559-060-X) (2005), A visão em paralaxe (h p://boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?
isbn=978-85-7559-124-6) (2008), Lacrimae rerum (h p://boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?
isbn=978-85-7559-134-5) (2009), Em defesa das causas perdidas
(h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Titles/view/em-defesa-das-causas-perdidas), Primeiro como tragédia,
depois como farsa (h p://boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-174-1) (ambos de
2011), Vivendo no fim dos tempos (h p://www.boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?isbn=978-85-
7559-212-0) (2012), O ano em que sonhamos perigosamente
(h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/o-ano-em-que-sonhamos-perigosamente)
(2012), Menos que nada (h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/menos-que-nada) (2013),
Violência (h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/violencia) (2014), O absoluto frágil
(h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/o-absoluto-fragil) (2015), O sujeito incômodo: o centro
ausente da ontologia política (h ps://www.boitempoeditorial.com.br/produto/o-sujeito-incomodo-612) (2016) e
Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo (h ps://www.boitempoeditorial.com.br/produto/pandemia-
covid-19-e-a-reinvencao-do-comunismo-960) (2020). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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1 comentário em Žižek: Sexo em tempos de coronavírus

1. Antonio Sidekum // 26/05/2020 às 10:40 pm // Responder


irineulasch@gmail.com

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Publicado originalmente no Blog da Boitempo

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