Já o escroque ingênuo, esse é uma espécie que merece atenção e cuidadosa
diferenciação diante das outras duas espécies de escroque. Ocorre que, enquanto ideal da escroqueria mais pura, enquanto modelo do sujeito ingênuo que entra em falcatruas por absoluto desconhecimento de causa, por ter sido criado de tal modo que a escroqueria lhe é invisível mesmo quando parte de suas próprias mãos, esse modelo ideal da brasilidade é de tal modo trágico que lembra os mais belos personagens da Literatura, de Édipo a I-Juca Pirama, passando também pelo Jovem Werther, cujo amor puro, forte e sem fronteiras acabou por conduzi-lo ao suicídio. Então, no seu estado puro e ideal, o escroque ingênuo é uma espécie de herói, aquele sujeito que segura a arma do crime por puro acaso, por que lhe pediram que o fizesse, por que vê nos olhos do bandido desesperado certa necessidade humana, certo clamor de liberdade; ou ainda aquele sujeito que transfere os fundos do Bolsa Família a uma conta offshore de um escroque esclarecido, por este ter dito que isso aumentaria a renda das famílias (embora não tenha revelado que era apenas da sua própria...). Enfim, o escroque ingênuo é aquela figura mítica que cai em escroquerias por excesso de credulidade. Esse modelo ideal da brasilidade, contudo, como todo ideal, é raro senão impossível de ser encontrado no dia a dia. O mais comum é vermos misturas de vários gêneros, nas quais, vez por outra, nota-se certo matiz de ingenuidade mesmo na mentira mais deslavada. O comum e ordinário e repetitivo é vermos escroques esclarecidos querendo fazer-se passar por ingênuos, pois que uma das estratégias mais bem elaboradas da escroqueria esclarecida é justamente fazer crer a todo mundo – e às vezes a si próprio; o que ocorre com freqüência – que desconhece qualquer fato ilícito, que jamais ouviu falar disso ou daquilo, e que ele, justamente ele, em hipótese alguma teria suas mãos meladas em coisa tão vergonhosa. Isso já serve para estabelecer um bom diferencial entre os ingênuos e os esclarecidos, pois estes têm perfeita noção da fraudulência, enquanto aqueles fraudulam como quem doa o próprio prato de comida. Mas antes de avançar neste ponto, tentemos entender o que vem a ser propriamente, um escroque ingênuo. Como já vimos nos textos anteriores, ficou algo estabelecido que o brasileiro nutre certa escroqueria fundamental, de base, intransponível no nosso atual momento civilizatório. Por isso a escroqueria poderia ser vista como uma instituição nacional, que em sua imagem mais carnavalesca aparece sob o nome de “jeitinho”. A ingenuidade fica por conta da já citada credulidade, dado que o povo brasileiro é crédulo, às vezes ao limite da idiotice; dado que o brasileiro é povo cordato, às vezes ao limite do cabresto. Quanto aos falsários profissionais, os escroques de carreira, alguns aproveitam a credulidade geral – que no seu formato cínico assume o tom da queixa permanente - para construir a imagem de uma pureza heróica em seus atos. Outros, ao serem desmascarados, revelam seu lado torpe e aceitam de bom grado a pecha de ladrão, assumem as responsabilidades do ilícito e vão satisfeitos à prisão. Claro está que este escroque esclarecido em estado puro é também um ideal praticamente inexistente, uma espécie de sonho do bom ladrão que quase chega a tocar, num raciocínio oriental de complementaridade dos opostos, a figura do escroque ingênuo. Não podemos esquecer que na escola de escroques desenvolve-se com grande maestria as artes cínicas, de modo que alguns escroques esclarecidos são verdadeiros artistas na arte de ludibriar; e representam o papel do ingênuo de tal maneira que acabamos por acreditar que estão livres de máculas, e que, a bem da verdade, somos nós os ladrões bastardos, nós que pagamos regularmente nossos impostos e nos portamos razoavelmente bem. E diante do imenso palco de escroquerias que a vida cotidiana nos fornece, diante do espetáculo diário que a mídia nos apresenta, não cesso de pensar que somos uma nação de artistas...