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UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Boletim
da
Faculdade de Direito
VOL.LXXIV

COIMBRA
1998
ENTRE O «LEGISLADOR», A •SOCIEDADE• E O ~UIZ»
OU ENTRE «SISTEMA», •FUNÇÃO» E «PROBLEMA•
- OS MODELOS ACTUALMENTE ALTERNATIVOS
DA REALIZAÇÃO JURISDICIONAL DO DIREITO

1. a) O poder judicial, a função judicial ou, sobretudo e melhor,


a jurisdição tomaram-se um tema e um problema centrais no universo
jurídico dos nossos dias. E não certamente apenas no âmbito estrito
desse universo, pois que o seu relevo se projecta com uma importância
aguda e a muitas dimensões no mundo global da prática comunitária.
É vocação do judicium exorcisar o poder só como poder e mais ainda
a força arbitrária impondo razões de validade e críticas à acção na inter-
-acção, e o nosso tempo, que tem feito experiências cruéis, e regressi-
vas, desse poder e dessa força, sente profundo e urgente o apelo à razão
contra a atávica irradonalidade. Depois, se o nosso tempo é também
tempo de mutações em todos os domínios, não sendo as do direito, no
seu sentido e problemático relevo, as menos extensas, nem de menor
importância, não há que estranhar, por tudo isto, que a recompreensão
- e valorização, diga-se desde já - do poder jurisdicional, da juris-
dição e do papel do juiz, avulte no núcleo da ordem do dia e se diga,
justificadamente, que ao juiz há que «dar-se-lhe o poder e o papel que
exige a nossa modernidade» (LENOBLE). Mas sob que pressupostos, em
atenção a que dimensões, com que sentido e com que consequências?
É ao que gostaria de responder nesta minha exposição, mas a vastidão
da problemática não me permitirá senão propor algumas coordenadas,
alguns tópicos de reflexão.
E comecemos por reconhecer que a situação se nos oferece, como
já geralmente se observa, em termos paradoxais, na sua aparente con-
tradição. Por um lado, alarga-se o domínio e sobe a importância da
intervenção institucionalizada, ou pretendida, das instâncias judiciais
na sua função interpretativo-integradora - tenham-se presentes, desde
2 ENTRE 0 •lEGlSLADORo. A ~IIDADI'.~ E O 3

logo, a jurisdição dos tribunais constitucionais internos e, para nós mente sustenta. Dai também que uma crise só possa ser superada por
europeus, do Tribunal de Justiça da União Europeia, jurisdição a que, urna crítica, i. é, por urna reflexão refundadora de um novo sentido.
embora constitucionalmente vinculada, compete determinar o con- Pois bem; se assim é, há que diferenciar os problemas e distinguir
teúdo decisivo dessa mesma vinculação e dos seus desenvolvimentos o que sobretudo importa.
integrantes; por outro lado, dá-se conta de uma inegável, e de gravi- b) Isto nos obriga a uma sumária e selectiva análise da problemá-
dade não minimizável, insatisfação, inclusive de urna crítica generalizada tica em causa. Há, com efeito, que considernr: de um lado, os problemas
(há quem fale mesmo de •ressentiment0>) de que a função judicial se estruturais ou «externoS»; de outro lado, o problema intencional ou «in-
tornou objecto. Nem é difícil dizer porquê: revelar-se-ia ela normati- terno• - e a pôr este o problema do sentido.
vamente inadequada (nas respostas ou soluções pedidas por novas a) São problemas estruturais, em primeiro lugar, os problemas di-
questões a que é chamada, respostas ou soluções que ela verdadei- rectamente político-constitucionais, seja o problema institu<ional (de
ramente não daria) e não menos institucionalmente ineficaz (na sua organização, de •governo» e este, enquanto ternatiza o autogoverno do
estrutural funcionalidade e na própria capacidade de resposta, na sua poder judicial, a provocar uma polémica que no nosso país neste
judicativa capacidade decisória ou sequer de absorção dos conflitos). momento, como noutros também, está vivamente aberta), seja o prc-
Daí os •circuitos de derivação• que progressivamente se formam blema da legitimatão decisória, não menos discutido. Em segundo lugar,
ii margem e em recusa da jurisdição. É como se o próprio apelo e im- o problema estatutário a referir o •estatuto dos juizes> e em que avulta
portância atribuídos à jurisdição em gernl viesse a revelar na jurisdição no primeiro plano a índole e as garantias da sua independência (deste
existente a falta da jurisdição para que se apela. E então, se são diversos problema me ocupei também noutra oportunidade), mas igualmente
os problemas que assim se suscitam e se multiplicam, agudos e comple- os não menos actuais problemas tanto do seu contróle como da sua
xos, fundamental é reconhecer que, importantes embora os problemas responsabilidade específica, nas suas modalidades (disciplinar, criminal
estruturais, o decisivo é todavia o problema do sentido, do sentido da e civil, mesmo constitucional) e na sua extensão (refira-se como im-
jurisdição hoje. portante contributo para estes pontos as reflexões comparativas de
Por isso se fala, e bem, de •crise do juiz», de •crise da justiça.. E bem, ALESSANDRO GIULIANJ e NJCOLA PICARDI, La responsabilità de/ giudice,
porque cabe à situação referida, com as implicações a que se acaba de 1987; também RuooLF WASSERMANN, Die rit:hterliche Gewalt, Macht
aludir, correctamente a conceitualização de crise. Desse conceito se têm und Verantwortung des Richters ín der modernen Gesell.sch'!fi, 1985, 22, ss.;
ocupado muitos: THOMAS KuHN na epistemologia, EDGAR MORlN na e P. C. BACELAR DE VASCONCELOS, Te&ria geral de controlo juridico do
sociologia, eu próprio (se me é permitida a auto-invocação) no pen- poder público, 181, ss., 194, ss.). Em terceiro lugar, o problema que direi
samento jurídico. Também a reflexão pós-moderna quanto à própria funcional ad hoc, e que tem a ver com o modo como os homens e a
razão - de já múltiplas expressões, dentre as quais recordarei o ciclo sociedade do nosso tempo (os •consumidores de justiça>) esperariam
de conferências realizado em 1996, no Rio de Janeiro e em São Paulo, que os tribunais funcionassem, com as expectativas culturais, políticas
sob o terna justamente •A crise da razão». e técnicas a que os tribunais deveriam corresponder, p. ex., no uso soft
E numa palavra, dir-se-á que a crise não traduz apenas o negativo da autoridade, na transparência, na abertura comunicativa e à comu-
circunstancial, a quebrn anómica que se sofre e lamenta, mas sobretudo nicação. Deste problema se ocupam preferentemente, como bem se
a consumação históríco-<:ultural de um sistema, a perda contextual de compreende, os jornalistas, posto que ele exorbite sem dúvida esse
sentido das referências até então regulativas o paradigma que vigorava túvel (v. R. WASSERMANN, ob. dt., 23, ss.; dele tem tratado também
esgotou-se, um novo paradigma se exige. E o essencial dos sistemas e o nosso Procurador Geral da República).
dos paradigmas não está na estrutura, mas no sentido: a estrutura orga- De novo direi, contudo, que, se todos estes problemas -são eviden-
niza e permite o funcionamento, mas só o sentido funda e constitutiva- temente de importância relevante, não deixam de ser externos ao exer-

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ENTRE O •LEGTSLl\l)OJU, A •SOCIEDADE~ E O •JUi7_...

c~cio da função judsdicional qua tale: consideram o poder, a organiza- a) Consideremos, efectivamente, e num elenco sumário, dentre
çao, a responsabilidade e o modo desse exercício, mas não referem a esses fenómenos superadores, os seguintes:
mte~cionalidade material da própria jurisdição como jurisdição e 0 a) A recuperação da autonomia normativo-intencional do direito
sentido que ela assume e realiza. Dizem-nos do poder, da responsabi- perante a legalidade (a mera legalidade), através de uma renovada Jís-
lidade, do modo do fazer jurisdicional, não nos dizem o que é esse fazer tinção entre ius e lex, referida a dois pólos principais.
ou o que nele se fàz. Pelo que, na verdade, só o problema intencional Um primeiro pólo é o actual reconhecimento da separação dos
e do sentido é o problema •interno•. •direitos• (direitos fundamentais, especificamente) em relação à lei e da
E se quisermos considerar a relação entre estes dois tipos ou gru- preferência jurídica daqueles perante esta. Se o contratualísmo moderno-
pos de .!'roblemas, ter-se-á de concluir que os primeiros são condições,
cond1çoes de possibilidade da jurisdição que se pretenda, mas no
segundo estão os próprios momentos constitutivos. Por isso reitero o que
disse antes: só este último é o decisivo, toca a essência não a furma.
1 -iluminista não deixava de proclamar .direitos naturais• como pre$SU-
posto e ponto de partida fundamentante do mesmo contratualismo, e a
revolucionária •Déclaration des droits de l'lwmme et du dtcyen» de 1789
expressamente os enunciava, o certo é que, além do seu relevo no. ~e­
Assim como se haverá também de reconhecer que, se a realização dessa gurar a participação na representação política (que o voto cenS1tano
essência está condicionada pela correcta ou adequada solução d'1das não deixaria todavia, uma vez ou outra, também de limitar), es5es direi-
aos primeiros problemas, essa solução correcta ou adequada será um tos se pensavam assegurados através da lei (do direito-legalidade) con-
correlato funcional do que seja ou se pretenda que seja a jurisdição tratualisticamente constituída. Numa sua assimilação pela lei que
enquanto tal. convertia o •subjectivismo• jurídico em «objectivism0» jurídíco e assim
Compreende-se assim urna opção pelo problema interno, dei- de modo a, por um lado, o direito se identificar pura e simplesmente
xando em suspenso os outros, os externos. Justificado fica, pois, que só com a lei e, por outro lado, o subjectivísmo originário se transformar
daquele se vá ocupar a minha exposição a seguir. Não poderia tratar de em •direitos subjectivoS> que a própria lei, e apenas ela, reconheceria
todos e este é afinal o mais importante, aquele de que tudo, também os e garantiria. Ora, o que hoje se verifica é a reafirmarão de direitos
outros, dependerão. fundamentais, como projecção de proclamados «direitos do homem•
(na Declaração Universal dos Direitos do Remem, de 1948, e em todas as
'' 2. Ora, pensar o sentido da jurisdição é pensar a sua relação ao Declarações e Convenções, quer gerais, quer regionais que se lhe
direito (juris-diáío): um diferente sentido do direito implicará correla- seguiram), antes e acima da lei, em todas as constituições contem-
llvamente um diferente sentido da jurisdição chamada a realizá-lo. Pelo porâneas e no pensamento jurídico ~m. geral. Não. é já a_lei a dar vali-
que é fu~damental ter presente a impossibilidade de compreendermos dade jurídica a direitos, enquanto direitos subjecnvos, sao os direitos,
hoje o direito pela perspectiva exclusiva de um estrito legalismo. Não os reconhecidos como fundamentais, a imporem-se à lei e a condicio-
que o legalismo esteja de todo abandonado e não se mantenha como narem a sua validade jurídica (di., desde logo, o art. 18.º da Constitui-
uma referência comum e um modo da jurídicidade ainda concorrente ção da República Portuguesa). Com o que não fica certamente escla-
ou alternativo, como veremos, mas são também já muitos os fenóme- recido o sentido, autêntico e ..último, desses direitos e que se procura
nos jurídicos da sua superação e com directa repercussão nas tarefas hoje atingir de duas perspectivas contrárias: a perspectiva originária do
da função jurisdicional. Se dermos uma projecção global a esses fenó- individualismo liberal (do «liberalismo• radical) que ainda persiste, que
n:enos !1" revisão crítica do sentido actualmente pensável do direito, se pode mesmo dizer em actual restauração, e a perspectiva de urna
~a~ sera exa~rada ~ta conclusão, que tantos fazem sua: m positivismo compreensão comunitária, ou mediante uma dialéctica em que uma
Jund1co esta definmvamente morto devemos dar substância a uma das dimensões é a integrarão comunitária e segundo a qual os •direitos•
razão jurídica alargada• (LENOBLE). têm •devereS> como correlatos de sentido e, isto, se não necessaria-
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6 DOUTRINA ENTRE O •LEGISLADOR~, A oSOCIFDAD& E O 7

mente nos termos da actualmente tão invocada antitese •comuni- não impregnarem constitutivamente a praxis e não obtiverem assim
tarismo• vs. •liberalismo», a exigir todavia a superação do •indivíduo>, a sua decisiva determinação normativa, como referências axiológico-
como titular dos mesmos direitos, já por um «Sujeit0> que só poderá -normativas para a prática e fundamentos normativos para o juízo que
assumi-los no quadro de uma cidadania vinculante, já pela •pessoa• essencialmente são. A índole e a estrutura lógico-formal das normas
com a sua constitutiva e indefectível responsabilidade comunitária, enquanto tais - uma hipótese categorial-representativa implica certos
como veremos melhor se deverá sustentar. tipos de efeitos, ou uma previsão hipotética implica uma definível
Um outro pólo temo-lo no actual reconhecimento de princípios estatuíção, na condicionalidade normativa •se, então• - a admitirem in-
normativos a transcenderem também a lei, a legalidade, convocados clusive uma enunciação apofàntíca e com esta um operar simplesmente
como fundamentos normativos da juridicidade e que a própria lei terá lógico, possibilitam-lhes uma autonomia que a si mesma se basta, e por
de respeitar e cumprir. Princípios estes que se distinguem decisiva- isso a permitir que elas se tomem objecto de um conhecimento, já her-
mente dos •princípios gerais de direito• que o positivismo normati- menêutico (a •interpretação da lei»), já dogmático (que se manifesta no
vistico-sistemátíco via como axiomas jurídico-racionais do seu sistema consttutivismo jurídico), já sistemático (o que obteve uma expressão
jurídico, pois são agora princípios normativamente materiais funda- acabada no sisternaticismo da •teoria pura do direito•). Enquanto que
mentantes da própria juridicidade (•princípios de justiça»), expressões a ausência de hipótese-previsão nos principios ou a sua indeterminação
normativas de •o direito• em que o sistema jurídico positivo cobra referencial, já que essencial para eles é só o seu regulativo compromisso
o seu sentido e não apenas a sua racionalidade. É assim que esses prin- axiológico e prático, não impõe apenas que a sua normatividade se de-
cípios se impõem como um tema generalizado e insistente, e a suscitar termine realizando-se, solicita ainda uma compreensão prática (não
uma vasta problemática, no pensamento jurídico contemporâneo. simplesmente dogmática ou lógica) dessa sua normatividade só possível
E se é certo que um problema de solução não linear se terá de pôr de atingir-se assumindo a dialéctica entre o seu regulativo, que convoca
aqui, o do sentido último da relação jurídica entre os direitos funda- à realização, e a prática (de acção e judicativa) em que encarne e a ma-
mentais e os princípios, é esse um problema que agora deixaremos de nifeste realizada. Se as normas são auto-suficientes no critério abstracto
lado, para chamar a atenção para um outro ponto em que a jurisdição que hipoteticamente prescrevem, os princípios são fundamentos •para
é directamente convocada. E que este outro sentido da juridicidade tomar posição perante situações a priori indeterminadas, que venham
ttanslegal implica urna intencionalidade concreta a sua normatividade a determinar-se concretamente• (G. ZAGREBEL5KY). Em síntese: as nor-
terá de assumir-se de modo concretamente realizando na praxis histó- mas legais esperam a sua aplicação e em último termo visam-na, mas
rico-social, pois o seu sentido autêntico só se atinge realizando-se e na podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsis-
sua realização. A legalidade, com o normativismo que assimilou e por tência absttacta; não assim os princípios, já que o seu verdadeiro sen-
que douttinalmente acabou por ser pensada, afirma urna juridicidade tido não é determinável em abstracto, e só em concreto, porque só em
que subsiste no próprio sistema dogmático-normativo da sua definição concret.o logram a sua determinação e se lhes pode atingir o seu autên-
- vê-lo-emos melhor adiante. O que justamente não pode ser admi- tico relevo. E decerto que a essa sua determinação em concreto será
tido pelo sentido axiológico-normativo e material da juridicidade que chamada, numa responsabilidade iniludível, a jurisdição nos seus juízos
se exprima nos direitos e nos princípios: a titularidade daqueles e os decisórios em solução das controvérsias práticas suscitadas pela invo-
regulativos compromissos axiológico-normativos destes postulam, res- cação daqueles mesmos direitos e destes princípios.
pectivamente, já urna titularidade efectíva, uma titularidade real no B) De consequência análoga, para o que sobretudo nos importa,
contexto social, já uma projecção determinante na prática histórica. Os são os limites normativo-jurídicos da lei, a abrirem um espaço que só a
direitos serão meros votos pios, se não se afirmarem como efectívas jurisdição na sua realização concreta do direito, em necessátia intenção
condições da realização pessoal; os princípios serão aspirações vãs, se normativamente constituenda, pode preencher. Desde logo, limites

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normativos objeaivos, de que damos conta quando reconhecemos que a concreta e material realização do direito fâz com que as normas legais
o direito legalmente positivado fica sempre aquém do domínio se vejam duplamente transcendidas, relativamente às possibilidades nor-
histórico-socialmente problemático (na extensão e na índole concreta mativas que objectívarn, pela simultânea e constitutiva relêrência aos
dos problemas) a que se terá de responder jurídico-normativamente princípios fundamentantes do direito enquanto tal (do normativamente
- i. é, quando reconhecemos, e a própria dinâmica social o toma evi- integral sistema do direito) e ao roncretum problemático dessa realização,
dente, que o sistema jurídico só pode· ser normativo-funcionalmente e que, por outro lado, o direito que legalmente se realiza é ele pr:óprio
adequado a essa sua problemática social afumando-se corno um sistema um continuum constituendo em função de uma dialéctica normativa que
aberto, que nenhuma legalidade pode fechar (posto fosse essa a preten- articula os princípios normativo-juridicos com o mérito juridico do
são do legalismo sistematicamente axiomático), e concluímos assim problema concreto através da mediação das normas legais. Acresce que
pela necessidade, para além mesmo da integração das lacunas no seu a autonomização, perante as normas legais, tanto dos princípios nor-
sentido tradicional, do autónomo desenvolvimento do direito através mativo-juridicos, corno da realidade jurídica normativamente inten-
da sua própria realização (através da sua jurisprudencial realização), cionada (Normbereich, na expressão e conceito de F. MúU.ER), tem
Uma segunda categoria de limites normativos, agora intencionais, impu- corno corolário outros limites normativos para a normatividade legal,
seram-se logo que a realização do direito assumiu um sentido norma- os linútes temporais. Também estes limites foram ignorados pelo tra-
tivamente material (que não apenas lógico-dedutivo e furmal). É que dicional legalismo normativísta - o qual, ao operar unicamente no
a realização do direito com esse sentido, utilize embora como seu cri- plano de urna racionalidade lógico-abstracta, revestia o normativo legal
tério a norma legal, terá de mostrar-se concretamente-adequada de urna subsistência atemporal a que unicamente um acto exterior
ao mérito problemático dos casos decidendos e não menos normati- (o acto da revogação formal) poderia pôr fim. Só que, sendo a norma
vamente justificada em referência aos fundamentos axiológico-norma- legal apenas um critério que se insere, e como limitado mediador nor-
tivos (aos valores e princípios) que dão sentido normativo material ao mativo, num sistema de juridicidade em que concorrem, com a sua
próprio direito. Porquanto, não podendo deixar de ser essa normativo- relativa autonomia constitutiva, aqueles princípios e aquela realidade,
-problemática realização pelo menos uma •concretização», com o espe- a historicidade que é própria de uns e de outra e assim a sua possível
cífico actus constituinte que esta exige, a insuficiência que já por isso alteração, evolução ou mutação, pode fâzer com que a norma legal se
sempre se verificará nos disponíveis critérios juridico-formais que se veja ou perante uma realidade jurídica que já não corresponde ao seu
utilizem obriga a ir normativamente para além deles, convocando os objectivo intencional - o caso extremo desta hipótese será o da
fundamentos normativos que dêem sentido à juridicidade e possam norma obsoleta - ou ultrapassada pelos fundamentos normativos que
assim orientar constitutivamente essa problemática concretização, a devem sustentar - o caso extremo desta hipótese será, por sua vez,
E com maior evidência quando as próprias normas jurídicas in- o de caducidade normativa da norma legal por alteração decisiva nos
cluam <cláusulas gerais>, .normas em branco», conceitos indeternú- princípios fundamentais do sistema. No primeiro caso, a norma vê
nados e de valor, etc. É deste modo e tendo tudo isto em conta que o seu objecto modificado, pelo que deverá corrigir-se em conformi-
a própria interpretação em função concretizadora é sempre - digamo- dade, ou deixa sequer de ter objecto ou deixará mesmo de ter sentido
-lo com ESSER - •uma conexão de lex scripta e ius non scriptum•, a sua aplicação; no segundo caso, é o próprio sentido de juridicidade
e toda a realização do direito uma monodinânúca constitutivo-inte- da norma que se altera ou que lhe fica subtraido, pelo que haverá ela
gradora que não pode prescindir de elementos normativos translegaís igualmente de corrigir-se ou de considerar-se de todo sem funda-
e transpositivos - o que, contra o formal legalismo e o seu unidimen- mento - hipóteses que sempre justificarão um decidir rontra legem,
sional e pré-determinado normativismo, se pode considerar adquirido invocando uma critica intenção secundum ius (dr. JôRG NEUNER, Die
pelo actual pensamento jurídico. Que tanto é dizer que, por um lado, Rechtiftndung wntra legem, 1992). É este o resultado afinal da dimensão
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10 DOUTRINA ENTilE O «LEGISLADOR>, A <SOCIEDADE"' E 0 11

histórica do direito e do seu sistema normativo relativamente a ele- y) E a convocação, neste sentido protagonista, da jurisdição, da
mentos que neles têm uma subsistência formal - como é o caso das função judicial, impõe-se ainda de outros modos. Chamaremos a aten-
normas formalmente prescritas e, portanto, da lei. ção para mais dois.
E daqui somos remetidos ainda a um outro ponto. Com efeito, Desde logo, o que se oferece no particular relevo da jurisdição
à medida que o sistema normativo histórico, ou a ordem jurídica, constitucional e não menos no alargamento e aprofundamento do c-0n-
se vai manifestando com os seus elementos normativos translegais e trole judicial da actividade administrativa, em que a referência à consti-
transpositivos, manifesta-se também o seu fundamental sentido axio- tuição está igualmente presente. Pode dizer-se que nestes termos se
lógico-normativo e vemos desse modo a adquirir um determinado afirma com importância e específicidade crescentes o contt<Jle jurídico
conteúdo intencional a •consciência jurídica geral», nos seus valores, dos poderes político e executivo e que a palavra decisiva desse ccnlTále
princípios e critérios normativos decisivos - já que essa consciência, é a do poder judicial, da função jurisdicional. É uma das dimensões
se é uma pressuposição, é simultaneamente um resultado constituído capitais, nada menos do que a dimensão realizanda, do que já se afirma
pela prática da sua histórico-social realização. Simultaneidade esta entre a passagem do •Estado-de-legislação1> (Gesetzgebungsstaat) para um
pressuposição e resultado intencionais que bem compreendemos Estado-de-Constituição» ( Veifassungsstaat). Com duas referências:
se tivermos presente a invocável analogia do •círculo hermenêutico•. se cabe ao juiz, como acaba de dizer-se, decidir quanto à validade ou
E então, nesta intencionalidade jurídica fundamental, em que o sistema invalidade jurídico-constitucional das leis, também a intencionalidade
jurídico e o direito cobram o seu verdadeiro sentido, encontra também jurídica que assim se exige deixa de ser a intencionalidade de uma juri-
a lei um último limite normativo, um normativo limite de validade. Pois dicidade formal (aquela que corresponde fundamentalmente à juridi-
essa intencionalidade com ser fundamental é igualmente fundamen- cidade legal) para ser a da juridicidade material do prituipio de justifa
tante, e em referência a ela é não só poss!vel, mas lícito ajuizar e con- que a constituição assume, nos direitos fundamentais e nos princípios
trolar, em nome do direito ou de uma essencial intenção ao diTeito, normativos expressos ou implícitos.
o conteúdo normativo-jurídico das normas prescritas legislativamente. O que suscita um problema último, um dos mais importantes e
Ora, se tivermos presentes todos estes limites normativos das normas capitais, que hoje se põem ao pensamento jurídico, mas que aqui ficará
legais e se reconhecermos que nesses limites v.ú implicado uma intenção inconsiderado: referimo-nos à questão de saber se esse •princípio de
de direito que as tl'.1lnSCende, também compreendemos que só pela supe- justiça> ou a normatividade jurídica material em que ele se traduz tem
ração constitutiva desses limites, na concreta realização jurídica, a própria o seu fundamento normativo na constituição política - e nesse caso a
legislação e as suas normas concorrem afinal para a constituição do direito juridicidade identificar-se-ia com a constitucionalidade - ou se
enquanto tal. Constituição que se revela na dinámica normativa da sua a constituição é dele simplesmente declarativa, a implicar então que
própria realização judicativa e impõe como necessárias duas conclusões: o fundamento será transconstitucional, numa intenção de autonomia
por um lado, que a lei continuará a ter decerto uma •prerrogativa, mas constitutivo-fundamentante ao direito como direito. Só acrescentarei
não já o monopólio• (M. KRIELE) da criação do direito, e ainda que essa que tenho tentado justificar a opção por esta segunda hipótese.
prerrogativa se haja de entender também como •primado»; por outro
lado, que para essa criação concorre a manifestação e a objectívação ine- ô) O outro dos dois modos a que aludimos tem a ver com o facto
gáveis de um Ridúmecht. À jurisdição, afinal, não cumpre apenas e tão- de à função judicial, ao juiz, se ter vindo progressivamente a imputar
-só uma estrita aplicação da lei, deverá antes considerar-se, para o dizer- a responsabilidade da última palavra num espectro alargado de questões
mos com R. W ASSER.MANN (Dk richteiliche Gewalt, cit., !) , que uma sua de validade quanto a comportamentos e interesses sociais. Este é justa-
actívidade jurídicamente criadora é uma situação evolutiva que nas mente um dos pontos em que se reconhece que a •criatividade da
sociedades modernas terá de ver-se como irreversível. jurisprudência (da jurisdição) se tomou mais necessária e mais acen-

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12 OOUTRlNA .ENTRE O d.EG!SLADOR•, A .SOCIEDADE• E O •JUtZ• 13

tuada na sociedade contemporânea• (CAPPELLETI). Se um dos factores desses problemas e ainda a consideração daquele que impõem o reco-
desse fenómeno foi a Rewlt Agaínst Formalism (MORTON G. WHITE), nhecimento e a definição de uma «ordem jurúlica translegal». Ordem essa
de que vimos manifestações relevantes nos pontos anteriores, o que que o referido poder normativo-juridicamente criador da jurisdição
agora queremos sobretudo convocar tem a ver com a transformação concorre a constituir e a manifestar, posto que também só desse modo
do próprio sentido do direito no que se designa por direito social não fique ela totalmente dilucidada em todas as suas dimensões e na
(E EwALD) - aquele que tem na sociedade, no desenvolvimento social sua índole decisiva, e que acaba por nos remeter ao próprio sentido
em todos os aspectos, o seu sujeito reivindicativo e o seu part;;naire de actual do Estado-de-Direito, longe já de poder pensar-se nos termos só
intervenção - , direito esse que está ligado ao l*!fãre State, sem toda- normativísticos e garantísticos tradicionais.
via se esgotar nele, e que solicita a indispensável participação da função Em segundo lugar, e neste momento o mais relevante, implica
jurisdicional por formas diversas. o problema do sentido actual da função judicial, da jurisdição e do
Consideremos só algumas. Acrescentando esse direito social aos juiz. É o problema do sentido que começámos por privilegiar e que
objectivos jurldicos tradicionais de garantia e de repressão um objectivo agora melhor compreendemos ter-se-nos tornado inevitável.
promocional, o qual pela sua reíerência programática ao futuro pouco
pode ir além da prescrição de fins e princípios (como que num Zweck- 3. E quanto a ele, hoje uma alternativa inelutável se nos põe, que
programrn), já por isso mesmo exigirá uma controlada determinação podemos enunciar mediante duas interrogações fundamentais, em que
concretizadora de que se desempenhará a função judicial numa irre- a perspectiva de uma evolução possível se abre a uma impositiva opção.
cusável discricíonariedade decisória exigida por uma necessária flexi- Acrescentemos, com efeito, à situação que ficou descrita duas circuns-
bilização concreta do próprio direito - no donúnio do direito econó- tâncias particularmente caracterizadoras da nossa praxis actual, a saber:
mico, na concretizarão das cláusulas gerais dos contratos, na defesa dos a transformação irreversível do sentido das leis e a assunção delibera-
direitos de personalidade, na integrarão do direito do trabalho, etc. damente programática de uma estratégia político-social no todo da
A ela competirá também de modo especial o juízo da responsa- realidade social. Se a lei iluminista (e revolucionária) se podia identi-
bilidade no domínio das extemalitíes, assim como a tutela dos interesses ficar com o direito porque nas suas racionalidade e universalidade os
colectivos, difusos, etc. E é a própria sociedade que reivindica essa inter- valores da liberdade e da igualdade se assimilariam e garantiriam,
venção judicial nas •acções populares», nas «actions collectives», nas e desse modo definia um status normativo formal que enquadrava o
«public interest litigations•, nas «Verbandsklagen• (sobre todos estes pon- comportamento social mas dele se descomprometia, hoje as leís não
tos, v. CAPPELLEITI, Giudíci legislaton?; R. WASSERMANN, ob. cit., 7, s.). são mais do que prescrições de certas forças políticas, mesmo par-
tidárias, que no quadro do sistema político-estadual ou constitucional
b) As implicações a sublinhar, neste diagnóstico sumário da actual adquirem legítimidade para tanto e pelas quais se impõe um programa
situação jurldico-jurisdicional, são várias e cada uma delas não menos de acção político-social, em que urna política se afirma e concreta-
importante do que as outras. Sublinharei, em primeiro lugar e apenas mente se compromete com fins particulares - numa palavra, se as leis,
numa alusão, a necessária revisão dos problemas das fontes do direito de estrito estatuto juridico, passaram a •instrumento político• {•go-
e da separação dos poderes. Aquela, pela impossibilidade de continuar verna-se com as leis•) - ; também, por outro lado e numa evidente
a identificar o direito com a legislação; esta, pela superação definitiva .coerência com o ponto anterior, a pmxis social radicalmente se poli-
do poder judicial entendido como «de quelque façon nulle•, e a actuar tizou, tomando-se objecto, o campo e o objectivo do que se diz o «Big
como «ia bouche de la /oi• e os juízes •2tres inanimés» enquanto apenas Government» globalmente interventor e transformador. Pelo que tudo
servidores da lei e «qui n'en peuvent modérer ní la force ni la rígueur» converge neste problema: o problema da autonomia do direito e da
(MONTESQUIEU), numa estrita tarefa exegético-aplicadora. A revisão possibilidade institucional da sua afirmação.

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14 DOUTRINA ENTRE O •LEGIS~. A ~SOCIEDADE• E 0 15

Ou não se renuncia à universalidade de certos valores e princípios E se é esta a alternativa, há, na verdade, que perguntar: em que
normativos em que todos se reconheçam, contra a selectividade estra- aras queimaremos incenso, onde estão os nossos deuses?
tégica de certos fins e relativamente à qual necessariamente a partida- O que vai seguir..se está longe de se propor uma resposta acabada,
rização se manifesta em apoio ou em oposição, e um poder eficaz se terá tentará oferecer apenas os modelos de juridicidade, com os correlativos
de mobilizar - e sem que com isto se pretendam esclarecidos em toda modelos de jurisdição, hoje possíveis e entre os quais, assim penso,
a sua complexidade quer o sentido autêntico, quer o conceito do estará o caminho para a resposta.
político - , e então, para se garantir aquela universalidade axiológico-
-normativa em que se traduz a autonomia do direito, terá de reconhe- 4. A diferenciação entre esses modelos que iremos oferecer não se
cer-se neste a •medida do poder>, i. é, a sua validade critica perante limitará a ser descritiva, quer ser compreensiva. Pelo que não se poderá
o político, e de imputar-se institucionalmente a sua possibilidade a uma prescindir da perspectiva e do horizonte regulativo de cada um deles.
instância chamada exclusivamente a isso mesmo, como contraponto Será, pois, esse o primeiro ponto a considerar.
à tendente unidimensionalidade, se não totilitarisrno, do político. E essa
instância não poderá ser hoje, pelo que já se disse, o poder legislativo a) Os modelos em causa são três - julgo não errar muito nesta
com a sua legislação, dado o seu dírecto compromisso político conclusão. São eles o n01mativismo legalista, o funcionalismo jundÍ(.() e o
- impõe-se hoje uma distinção, pelo menos uma tensão, entre a lei e o jurisprudencialismo. Dir-se-á, é certo, que quanto ao primeiro deles te-
direito, já porque a lei não é só em si o direito, já porque pode mani- mos falado na sua actual superação e expusemos alguns elementos que
festar-se em contradição com ele. Terá de ser essa instância o poder ju- o comprovam. Mas nem por isso deixa de ser urna referência indis-
dicial, a jurisdição: a índole política (comprometídamente política) pensável, como imediato antecedente histórico que é, nem se poderão
da função legislativa há-de ter o seu contrapólo na índole jurídica (auto- ignorar as linhas de uma sua tentada recuperação, já pela atrás aludida
nomamente jurídica) da função jurisdicional. Neste sentido, mas apenas restauração do liberalismo radical, já pelo pensamento jurídico aruilitico
neste sentido, se poderá fà1ar da evolução "Mim Gesetzesstaat zum Richter- e em alguns pontos pelo próprio funcionalismo sistémico. Por isso não
staat» (R. MAR!c). O que, desde que assim entendido, está para além da o deixaremos de lado, começando mesmo por ele.
questão da legitimação (democrática) da função jurisdicional, quanto às 1) Trata-se de um modelo de juridicidade-jurisdição pen;pectí-
suas maniléstações juridicamente criadoras, pois não se trata da disputa vado pelo individualismo moderno-liberal e iluminista. Anotemo-lo
entre poderes, ínclu:síve de atribuir •Alle Macht den Richtem• e assim da em duas palavras, já que este é um terreno de todos bem conhecido. No
eventual emergência do •governo dos juízes», mas de afumar o direito fundo de tudo esteve uma determinante antropológica, já que a com-
ao poder, da possibilidade em último termo de reconhecer o direito preensão que· ao tempo o homem de si mesmo teve levava impllcito
como dimensão constitutivamente indefectível do Estado e assim tudo o resto. E essa compreensão, que se constituiu do séc. XVI ao séc.
o Estado verdadeiramente como Estado-de-Direito. XVIII, radicava na autonomia humana, em ruptura com a ordem {ou a
Ou se sobrevaloriza a estratégia poiltico-social, se assume o polí- pressuposição da ordem) teológico-metafisico-cultural transcendente,
tico como o único protagonista - e é o outro termo da alternativa - , e para aceitar como fundamentos únicos do seu saber e da sua acção,
e certamente que nesse caso a função judicial não lhe poderá ser estra- respectivamente, a razão (a razão em diálogo com a experiência empí-
nha, numa qualquer autonomia intencional, e converter-se-á no ope- rica) e a liberdade. Em concomitância, se não como consequência,
rador táctico no terreno, com os meios institucionais e normativo- afirma-se a secularização (posto que ainda não como secularismo) e a
-decisórios que lhe caibam, da estratégia global praticamente definida. emancipação do económico, ou a sua libertação dos quadros ético-
Hipótese em que a jurisdição se funcionalizará a essa estratégia como -religiosos {qualquer que tivesse sido a influência religiosa para a for-
seu instrumento ou longa manus. mação do capitalismo) e que não tardou a significar decisivamente

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16 ENTRE O .r.EGISLADOR>, A •S<X.:IEDADE:. E O

a emancipação dos interesses, nos quais se via aliás a condição efectiva uma índole particular que nem COMTE, nem DURKHEIM, nem
da realização da liberdade reivindicada - o domínio da praxis social mesmo MAX WEBER haviam ainda pensado e se começou a pens:n
era o domínio dos interesses. Disse-o HELVETIUS nestes termos: •si com PARSONS e LUHMANN. Trata-se de um sistema fimcional ou pen-
l'univers physique est soumis à !oi du mouvement, l'univers morai ne sado funcionalmente que funcionaliza todos os seus elementos e as suas
l'est moins à celle de I'intérêt•. Posto que a esses interesses, expressão dimensões. E nestas o próprio direito - também ele funcionalizado
prática da liberdade, se dissessem •direitos naturaiS». E se esses fàctores à estruturação, à regularão e à organização operatória gj.obal da socie-
convergentes tiveram como consequência o individuslismo (o indivi- dade, numa consequente perda de autonomia intencional e material,
dualismo moderno-iluminista), um outro factor se afirmou ainda com pois que se converte num instrumento, de particulares características
relevo não menos fundamental. Aludimos ao radonalismo, a expressão prescritivas e institucionais, ao serviço das exigências provindas das ins-
da ratio moderna que deixa de ser ontológico-metafísico-hermenêutica tâncias e das forças políticas ou simplesmente sociais, culturais, eco-
como a razão clássica e se volve na razão autofundamentante nos seus nómicas, etc.
axiomas (as suas evidências racionais) e sistematicamente dedutiva nos Trata-se da político-socialização do direito que teve as suas mais
seus desenvolvimentos a razão cartesiana. A razão como sistema próximas determinações em duas linhas diferentes, mas também con-
tal é a razão moderna. Todos estes factores, que uns aos outros se con~ vergentes. Uma delas política, e refere certamente o aparecimento do
dicionavarn e potenciavam, postulavam uma particular consequência l#lfare State, do Estado-providência, a outra directaruente social e tem
política - exigiam a institucionalização de um novo poder que a ver com a emergência do social enquanto o campo e o critério de
estivesse na sua coerência. Sabe-se qual foi o sentido fundante desse todos os problemas humanos - e justamente pela conversão desses
novo poder que homens livres e racionais, e nessa sua liberdade tam- problemas em específicos problemas sociais. Postula-se que todos os
bém iguais, unicamente admitiriam - o que um contrato {contrato problemas humanos, do nascimento à sobrevivência, da educação
social) constituísse. E se desse modo se resolveria o problema posto por ao ensino, da saúde à habitação, do emprego ao nível de vida, etc.,
HOBBES - a preservação da liberdade e a afirmação dos interesses são problemas que a sociedade deverá assumir, de que será respon-
individuais numa forma vinculante da vida em comum - , as regras sável e a que é chamada a resolver. É assim, inclusive por corolário final,
dessa vinculação, ou o direito a admitir, só poderia ter um de dois fim- que o Estado se volve em «Estado de direitos sociais•, que o desen-
damentos, ou a volonté générale que o próprio contrato constituiria volvimento económico-social há-de garantir e a que tudo se fun-
{solução de ROUSSEAU) ou a universalização racional das liberdades cionali.za.
(solução de KANT). Sendo certo que a consequência para ambas as Um dos meios jurídicos mobilizados continua a ser decerto a legis-
soluções seria a mesma, a constituição de uma legalidade - o direito lação, só que também com uma outra índole. Deixou ela de se esgotar
seria a lei, unicamente a lei. Da liberdade, a igualdade e os interesses, nas funções normativas já de garantia dos direitos e da segurança
que se postulavam racionais e elevados a •direitos naturais>, chegava- jurídica, já de quadro e limíte dos poderes - funções do tradicional
-se pela mediação do contrato social à legalidade, que convertia, nos princípio da legalidade - e tornou-se instrumento da própria acção
termos já antes aludidos, esses direitos naturais em direitos subjectivos. política. Já o dissemos: passou a governar-se com leis. E assim fun-
2) Já a perspectiva do funcionalismo jurídico é outra. O seu refe- cionalizada político-socialruente, não tardou que a lei assumisse outros
rente não é o índi>iduo, mas a sociedade como fenómeno específico, tipos prescritivos, bem diferentes do tipo estrito de •norma jurídica>
•fenómeno social global• na fbrmula de GURVITCH, ou a pensar não (í. é, norma racionalmente geral e abstracta), tais como o da •lei-
simplesmente como uma associação atomística de indivíduos, mas com -plana>, o da <lei-providência• (Massnahmegesetz), etc. Quer dizer,
uma estrutura, componentes e uma dinâmica próprios. Heteronomia a legislação ficou instrumentalmente disponível para todos os tipos
macroscópica que se viria a teorizar como sistema socidl - sistema de prescritívos que aquela funcionalidade exigisse.
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18 DOUTRINA ENTRE O ~LEGISLADOR•, A «SOCIEDADE• E O 'JUIZ• 19

3) O que dá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspec- 1) E recomeçando pelo normativismo legalista, há a dizer que,
tiva bem diferente. Designamo-la por perspeaiva do homem (do homem- se teve ele, como se viu, o seu horizonte perspectivante no individua-
-pessoa), i. é, aquela perspectiva em que o direito, com uma sua norma- lismo contratualista que implicou a legalidade, não deixou também de
tividade axiologicamente fundada, é assumida por, e está directamente ao assimilar, para vir a ser o que foí, o normativísmo moderno, enquanto
serviço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concreta, a expressão este do jusracionalismo que caracterizou a modernidade
prática dinamizada pelas controvérsias também prático-concretas, mas jurídica.
cuja intencionalidade capital é a realização nessa prática e através dela, a) Foi esse jusracionalismo o directo resultado da projecção da ra-
como básica condição mediadora, do homem-pessoa convivente e assim zão axiomático-sistemática moderna no pensamento jurídico, levando
do homem no •seu direito• e no <SeU dever ou na sua responsabilidade•. a construir, com fundamento já em axiomas ético-racionais ou em cer-
Não já a perspectiva macroscópica ou da globalização socialmente con- tos postulados antropológico-racionais (não ignorando o precursor
textual em que a pressão do todo tende a índiferenciar a especificidade SUAR.EZ, foi assim em GRÓCJO, PUFENDORF, THOMASIUS e acabada-
de tudo, numa confusão das dimensões - caso em que o todo não é só mente em WOLFF), já nos valores, aspirações e interesses que o homem
o integrante holístico, é antes o dissolvente das <essências• - , e por isso moderno titulava, sistemas conclusos de normas e que nessa sua auto-
o direito perde nele a sua autonomia, já que, funcionalizado aí à estru- construtivísta racionalidade se sustentavam.
turação, organização e regulação global da sociedade, vê-se ele inten- B) Ideia de sistema que havia de consumar-se sob a influência de
cionado também funcionalmente ab extra por uma estratégia que não LEIBNIZ, mas o que agora importa acentuar é que, uma vez assimilado,
é sua, que de todo lhe é heterónoma. Não já essa perspectiva macros- em termos que não vêm ao caso, esse normativismo à legalidade pela
cópica, mas uma perspectiva que se poderá dizer de imanência micros- codificação, o direito deixou de entender-se apenas como o estrito
cópica, porquanto o direito é, diferentemente, convocado, e nessa dado prescritivo das leis tal como revolucionariamente foi preten-
convocação problematizado, pelo homem concreto que vive e comuni- dido, o dado literal das leis sem interpretação (é conhecida a apóstrote
tariamente convive os acontecimentos práticos (volvidos em casos ou de ROBESPIERRE, •ce mot de jurisprudence des tribunaux (... ) doit
problemas práticos) da inter-acção histórico-social. O que se denuncia être effacé de notre langue; dans un État qui a une constitution, une
desde logo na diferenciação que atinge o normativo nuclear: naquela législation, la jurisprudence n' est autre chose que la !oi•) nem integra-
primeira perspectiva, o judicativamente sobretudo relevante é a lex, seja ção (só possível ao réferé legislaliJ) - para passar a pensar-se como um
como •norma>, seja como •imperativo>, seja como •regra• - pelas pos- sistema de normas kgais, ou seja como uma legalidade a que uma auto-
sibilidades, à parte decerto os implicados compromissos políticos, de racionalidade dava condudênóa e consistência. A ideia da legalidade
racionalização e de programada assimilação que permitirá aos objectivos e a ideia de sistema conjugavam-se para dar lugar ao normativismo
e às exigências contextuais - ; nesta outra perspectiva, o importante é, legalista. Pela legalidade imputava-se a constituinte titularidade do
pelo contrário, a axiológica normatividade de uma validade como ius que direito exclusivamente ao legislador, pelo sistema postulava-se nele
intenciona uma sua realização histórico-concreta mediante o juízo uma racionalidade intencional que permitia um tratamento dogmático.
prático sobre a inter-acção pessoalmente titulada e comunitariamente Foi nestes termos que o direito se veio a compreender como um sis-
responsável - e quaisquer que sejam os elementos normativo-jurídicos tema de normas legais, subsistente numa racional normatividade abs-
(fundamentos, critérios) a que se vincule e em que se haja de apoiar esse tracto-dogmaticamente determinável - durante muito tempo só
juízo, traduz-se sempre ele numa mediação normativo-judicativamente mediante uma estrita exegese complementada por uma lógico-formal
constitutiva que esses elementos não reduzem. conceítuali:zação; depois, por uma interpretação mais compreensiva e o
b) Estas as perspectivas intencionais dos três modelos que importa reconhecimento mesmo de lacunas, posto que ainda só, na persistente
considerar. ideia de um sistema virtualmente auto-suficiente, integráveis por urna
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20 DOlITRINA ENTRE O •LEGISLADOR.o, A •SOCIEDADE• E O <JUIZ• 21

auto-integração, nas analogias legis e iuris. Podia, pois, continuar a geral-abstracto das normas, impõe-se então - e é a segunda nota - que
dizer-se - e dizia-se na teoria das fontes do direito - que •o direito aquela «aplicação» opere segundo um esquema que garanta a relação
é a lei», como o exigia a perspectiva instituinte e o princípio da sepa- entre este geral e aquele particular sem implicações constitutivas, ou de
ração dos poderes impunha, mas o normativismo assimilado permitia modo que subsista uma identidade entre o pressuposto aplicando e
um específico conhecimento ou determinação dogmática, que se dizia o resultado da aplicação. O que só a lógica dedutiva (a relação lógico-
a •ciência do direito». A ciência do direito, o pensamento jurídico ou -dedutiva do geral para o particular) pode lograr. Foi o que sempre
a «doutrina» conheciam nestes termos apenas um direito-lei. se pretendeu através da convocação do silogismo e da subsunção en-
y) Temos até aqui duas dimensões do modelo unitariamente pen- quanto esquemas da aplicação das normas jurídicas. A terceira nota
sadas - o direito como um sistema, mas um sistema de normas legais é esta: a realidade histórico-social da aplicação do direito vai concebida
- e os dois sujeitos da sua determinação - o legislador e o jurista como uma realidade analisável em termos de simples factos, como
(dogmático). Falta a terceira dimensão que sobretudo procuramos, mas a totalidade dos factos correlativos à racional abstracção das normas ou
que só podia ser encontrada e entendida conhecendo antes aquelas como a correlativa factualidade (empírica) da idealidade lógica \con-
duas. Trata-se decerto da dimensão de realização concreta do direito ceituai) das normas (da sua lógico-conceituai representatividade e pre-
que o modelo admitirá - i. é, o seu entendimento da jurisdição com visibilidade normativo-regulativa). E se a realidade histórico-social não
o seu sujeito respectivo, que será o juiz. E o que há a dizer é que se nos oferece, na verdade e fenomenologicamente, desse modo, como
a jurisdição é pensada segundo o paradigma da aplú:Qfào. Segundo um um acervo disperso de «factos>, mas em unidades de acontecimentos
esquema intencionalmente metódico da lógico-dedutiva aplicação das histórico-socialmente estruturados, em especificados casos prático-
normas legais, e o juiz como operador impessoal, anónimo e fungível -sociais, se portanto essa forma de ver a realidade traduz uma analítica
dessa aplicação. Ao prius da subsistência do direito nas normas do sis- decomposição dessas unidades e desses casos em elementos empíricos
tema legal e nelas unicamente conhecido, segue-se o posterius da sua discretos, é isto assim porque era igualmente própria dos racionalismos
aplicação, e isto se dirá o dualismo normativista: ser do direito nas normas moderno e epistemológico-positivista, em que o normativismo encon-
e conhecimento dele nestas, primeiro; e a sua aplicação, depois - dua- trou a possibilidade da sua explícita expressão, a dicotomia razão {lógira)-
lismo de entidades, de momentos, de actos. O que, todavia, é necessário {actos - dicotomia que o pensamento jurídico normativista se limitou
entender-se nos seus precisos termos acentuaremos três notas. a converter na sua dicotomia paralela norma{actos.
Se o direito se constitui e se manifesta num sistema de normas Tal o modelo de jurisdição do norrnativismo legalista, que foi do-
- se ele é esse sistema de normas e nele exclusivamente se objec- minante por bem mais de um século - seria ele a aplicação lógica das
tiva - , então decerto que não se poderá pensar que a projecção do normas do sistema jurídico aos factos, numa estrita dedução em que as
direito na realidade histórico-social implique qualquer possibili- normas e os factos seriam autónomos entre si e se determinariam sem
dade juridicamente constitutiva, será antes necessário - e é a primeira nenhuma correlativa interferência. Em que afinal a jurisdição em sen-
nota - que o direito pressuposto no sistema e nas suas normas, e tal tido próprio e autêntico se anularia também nesse seu sentido pró-
como aí se objectiva e manifesta, apenas se repita na solução concreta. prio, e o juíro, que lhe é essencial, se reduziria a urna formal dedução
Que o mesmo é dizer que essa solução concreta deverá obter-se por - assim como o juiz certamente a um impessoal e fungível operador
mera aplicação, ou sem nenhuma mediação normativo-juridicamente de um esquema que afinal o suprimiria. E era o que na verdade se pre-
constitutiva - pois de contrário o direito realizando não existiria total- tendia em obediência às exigências tanto de urna razão prática que se
mente ou não estaria afinal todo já existente e objectivado nas normas queria razão teórica - não era outro o sentido da racionalidade do
do sistema («o direito que é•). E se o concreto objecto <la aplicação se normativismo - , como do projecto político que o Estado pós-revo-
oferece, como tal, numa particularidade concreta que o diferencia do lucionário devia servir, numa estruturada separação de poderes que

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22 DOUTllINA ENTRE o •LEGISLAOO!V, A ~socJEDADb E o -JUIZ• 23

garantisse que, como o dissera já LOCKE, <Ilhe legislatíve is supreme !ores só valores formais e que uma sociedade que não quisesse limitar-
p<n11er». Nem outro sentido tinha nem outro objectivo se propunha -se ao livre jogo liberal teria de considerar insuficientes ou mesmo
a estruturação do processo judiciário segundo a distinção •matéria de recusaria. Além de que os pressupostos culturais seriam agora outros.
direito•-•matéria de facto», separadas uma da outra e a considerar em
momentos diferentes e por órgãos decisórios e de controle também 2) Assim se abriu espaço e como que se fez natural o apareci-
diversos. mento do funcionalismo jurídico.
ô) A crítica deste modelo, no seu fundamentalismo normativís- a) Vimos já qual é a sua perspectiva determinante. São, poicém,
tico-legalista, está feita. E se não pode dizer-se, como já observámos, indispensáveis agora algumas palavras sobre os seus imediatos pres-
que ele esteja de todo superado, não teremos de nos admirar disso supostos. Aludirei só a três, que julgo serem os principais: a funcionali-
- na história cultural as sobrevivências são um fenômeno conhecido dade, a razão instrumental, o compromisso ideológico.
e há mortos que morrem devagar. Quanto ao seu paradigma lógico- Para compreendermos a funcionalidade temos de recuar a urna
-subsuntivo de aplicação, e de jurisdição, o normativismo conheceu particular mudança da cultura europeia que se iniciou também na
mesmo no seu próprio seio uma muito significativa illssidência - nada modernidade, em ruptura com o pensamento clássico, e que se radi-
mais nada menos do que provinda do seu teórico mais radical, aquele calizou no nosso século.
que queria pensar esse normativismo numa absoluta pureza em que O pensamento clássico, com base platónico-aristotélica e numa
o seu dever-ser se preservasse de quaisquer contaminações com o ser. atitude teorética (contemplativa) perante o Ser ou a •Ordem natural»,
Falamos evidentemente de KElsEN. Mas, não obstante a importância concebia o todo pensável naquele modus ontológico em que a eídos ou
da voz, ficou ela isolada neste ponto. Pelo que a crítica com êxito fui a necessidade determinante se afirmavam em termos já mais substan-
outra. Critica de facto nas múltiplas análises que na passagem do século cialistas, já mais essencialistas. Pensar, não se ignora, era conhecer, era
se fizeram à sentença judicial, todas a concluir pelo não cumprimento referir algo como ser-objecto, ou no modo de entidade que seria em
efectivo desse paradigma na realidade da decisão judicial. Critica de si, e determiná-lo categorial-conceitualmente numa estrutura racional
iure, negando a validade desse mesmo paradigma, no movimento que culminava num juízo proposicional de verdade. Enquanto que
metodológico reformador que se iniciou nos fins do século passado o homem moderno começou por ter uma outra compreensão do Ser
e se prolongou pelas primeiras décadas deste nosso, com particular - não já aquele parménico ser em si, numa subsistência absoluta e a
relevo para a chamada «escola histórico-evolutiva» e sobretudo para solicitar apenas uma contemplação de inteligibilidade determinativa,
o •movimento do direito livre•, a •jurisprudência dos interesses-, mas uma energeia, um ser dinâmico e evolutivo, capaz de novidade,
a •jurisprudência sociológica•, etc. Critica ainda vinda do contexto já com irreversibilidade e de historicidade, em que o homem participaria
político-social, já mesmo cultural. Com efeito, o normativismo lega- também com a sua força criadora, e se revelava assim de uma aberta
lista permitia afirmar uma autonomia (sistemático-dogmática) ao di- indeterminação susceptível de admitir a intervenção transformadora.
reito. Só que uma tal autonomia sustentava-se numa normatividade Depois, se a compreensão pré-moderna referia a acção prática a uma
que dogmaticamente acabava por se fechar sobre si própria; e nesse seu pressuposta ordem de sentido ,onto-teleológico em que ens e bonum se
isolamento alienava-se de uma realidade social que evoluía e furtava-se identificam (ens et bonum amvertuntuf), pois este tinha no te/os essencial-
também assim aos compromissos,político-socíais, económicas, etc., que mente constitutivo daquele a sua expressão - base, como se sabe, tam-
essa nova realidade lhe exigia. E certo que a prática social tinha na- bém do jusnaturalismo clássico - , e ordem em que a acção se devia
quele sistema normativo autónomo um estatuto que lhe oferecia a uni- inserir e simultaneamente devia manifestar, o homem moderno foi
versalidade racional e com ela a neutralidade estrutural, a igualdade posto perante um mundo de factícídade empírica e de causalidade,
(decerto abstracta e formal), a liberdade-segurança. Mas eram estes va- e por isso axiologicamente neutro (o •desencantamento do mundo•, na
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expressão de M. WEBER), a que se opunha o contrapólo da sua subjec- pessoa de razão ( Vemunftperson = sujeito e pessoa de razão espiritual ou
tividade - tomada, aliás, a última instância no sentido da acção e da cultural) que compreende o mundo do global ponto de vista da rectidão
fundamentação: recordem-se DESCARTES e LEIBNIZ. Opondo-se assim e moralidade: eu quero porque tenho isto por recto, por bem•.
uma perspectiva •mecânica• à perspectiva •teleológica• ou separando- Com a consequência, que importa sublinhar, de que com ela a pró-
-se o •esquema causal> e a «ordem de valor» (LUHMANN), os fins pria prática se converte em técnica {J. HAllERMAS, Technick und Wtssen-
deixaram de ser a expressão teleológica de uma ordem onto-axiológica senschaft ais Ideologie, 1968). Que tanto é dizer que a fundamentafiúi cede
para passarem a ser simples manifestações de pretensões subjectivas à ínstrumentalízOjiio ou a razão objectivo-material à formal •razão ins-
(a •subjectivação dos fins•), enquanto a acção se entende relativamente trumental> e a ordem (de validade ou institucional) à planificafiio (progra-
a esses fins como «possibilidade causal», i. é, funcional ou técnica, e se mático-regulamentar), a validade à eficácia ou à efici~ncía. Ou, de outro
avalia pela sua eficiência quanto aos objectivos e a sua eficácia nos modo, aos valores substituem-se os fins (subjectivos), aos fundamentos os
efeitos. As categorias da acção e do comportamento em geral (pessoal efeiWs (empíricos) - numa só palavra, trata-se de um finalismo que se
ou institucional) deixaram de ser as do bem, do justo, da validade afere por um consequendalísmo. Sem deixar de observar desde já que
(axiológica material). para serem as do útil, da funcionalidade, da efi- a complexidade deste modo resultante pode levar a pretender o con-
ciência, da performance. traponto de um simplesmente sistémico equilíbrio funcional de fungi-
Em segundo lugar, a racionalidade assumida pelo funcionalismo bilidade ou de equifinalidades.
é a que corresponde à •razão instrumental• (no sentido de HORKHE!M) Corolários disso, e em que o compromisso ideológico se mani-
ou, se quisermos, à Zweckrationalitiit. Referimo-nos a um dos termos festa: a libertação da política, o pragmatismo filosófico, o utilitarismo
da dicotomia enunciada por Max Weber e que desde então se tomou social (este consequência também da libertação do económico). De-
como que um lugar comum, a distinguir a «racionalidade axiológica» pois, já no nosso tempo, as formas radicais do secularismo activo, da
( Wertrationalitat) da «racíonalidade finaUstica» (Zweckratwnalitat). Nas incondicional libertação ética e bem assim a dialéctica holística da
próprias palavras de M. Weber, a acção é zweckratíonal •através de •razão crítica» e de todas as •teorias criticas• nelas fundadas a favor de
expectativas postas no comportamento dos objectos do mundo exte- uma total emancipação, tal como no plano social o materialismo utili-
rior e dos outros homens e mediante a utilização dessas expectativas tarista do bem estar, etc. Daí, como natural consequência, que a subs-
como 'condições' ou como 'meio' para os próprios fins aspirados ou tância tivesse de enfrentar e de ceder à função no pensamento em
considerados racionalmente como resultado». A acção é wertrational, geral e também no pen.~amento jurídico (v. Substanzbegr!ff und Funk-
se determinada •através da crença consciente no próprio valor incon- tionsbegr!ff, de CASS!RER, 1910, e Substanz und Funktionsbegrijf in der
dicionado, em sentido ético, religioso ou outro de um determinado Rechtsphilosophie, de S!EGRIED MAcK, 1925), tal como analogamente
comportamento puramente como tal e independentemente do resul- a estrutura viria a ser considerada vs. função (v. N. BOBB!O, Dalla slru-
tado». Sentidos e conceitos que encontraram em W. MA!HOFFER tura ai/a funzione, 1977).
(Rechtsstaat utul menschliche Würde, 99, ss.) esta formulação precisa: inte-
gra-se no primeiro tipo de racionalidade o comportamento humano B) É este o quadro geral de inteligibilidade o pressuposto cul-
que •tem o seu fundamento no beneficio ou no prejuízo, fundamento tural, a intenção, a racionalidade - do funcionalismo jurídico, e o que
segundo o qual o homem se deixa determinar como um sujeito inteli- especificamente o caracteriza, a sua particular atitude perante o direito
gente ( Verstandessubjeckt = sujeito de razão abstracta ou de inteligência é a que resulta da pergunta básica que lhe dirige, e que é esta: o direito
e utilidade): eu quero, porque isto é-me útil»; integra-se no segundo para que serve? Não o preocupa saber o que é o direito e determiná-lo
tipo o comportamento que •tem o seu fundamento em prindpios ou pelo seu conceito ou pelo seu principio - duvida mesmo que tenha vali-
normas, fundamento segundo o qual o homem se determina como uma dade o pressuposto exigido por essa atitude, a subsistência objectiva do

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26 DOUTRINA ENTRE O ..UGISLl\0019, A «SOCIEOAD& E O ".IVlZ• 27

direito corno algo que é autonomamente em si, independentemente da da •emancipação•, É assim na «teoria crítica do direito• ao assimilar ela
sua 6.nalístico-funcional operacionalidade, já que é ele agora concebido o projecto filosófico-social da Escola de Frankfurt e a sua prospectiva
corno instrumento ou simples meio, e assim com toda a relatividade dialéctica holística. É assim no Criticai Legal Studies Movement, ao pos-
e contigência constitutiva e intencional implicadas na possível disponi- tular-se ffO progressíve school ef legal theory» em que «lhe law and politics
bilidade e variação dos fins, dos sociais objectivos a realizar. Quer could not be separated», numa associação entre •the skeptical critique», de
dizer, estamo_s perante uma assimetria em que a autonomia constitutiva um analítico desconstrutivismo, e •lhe purely instrumental use of legal
do input é sacrificado à optimização do output - ou, para o dizermos doctrine to advance leftist aíms» (R. M. UNGER), É assim ainda no •uso
em paráfrase a LUHMANN, é a periferia do sistema jurídico a dominar alternativo do direito», em que o fundamental das coordenadas ante-
o próprio sistema, numa submissão às suas •irritações• externas. riores igualmente se convocam, posto que numa directa intenção da
Só que o funcionalismo jurídico é ele próprio complexo ofe- realização metodológico-judicial do direito em que se haveria de
rece-se em modalidades diferentes, que devemos ter presentes. Assim, <tomar partido•. Numa palavra, em que a atitude redutora implícita
ternos o funcionalismo político, o funcionalismo social já tecnológico, já em todos estes movimentos claramente se afirma: a prática humano-
económico e o funcionalismo sistémico. Não é este o momento para uma -socíal seria exclusivamente prática política.
análise e um juízo detidos de cada um deles. Bastem-nos apenas algu- Diferente é o funcíonalismo social, nas suas duas submodalidades,
mas notas diferenciadoras. tecnológico estrito e económico, Ao compromisso e militância ideoló-
O funcionalismo político ocupa neste contexto um lugar à parte. gicos substitui a neutralidade tecnológica e ao finalismo programático
Não apenas por compreender o direito como um instrumento político, o consequencíalismo social - os seus modelos são menos de transfor-
mas por se orientar por uma intenção expressa de politicização da juri- mação estrutural (se não revolucionária) do que estratégicos, sob crité-
dicidade. O direito não teria só uma geral função política, nem se lhe rios de funcional performance e secundo uma estrita Zweckratíonalitiit.
reconhecem apenas efeitos políticos, pretende-se que assuma um di- O funcionalismo social de cariz teleológico perspectiva o direito e o
recto e determinante objectivo polltico, e assim segundo fundamentos pensamento jurídico como uma «social engineerittg» (expressão e inten-
e critérios imediatamente políticos. Não estaria excluída de todo uma ção cunhadas, como se sabe, por R. POUND e que POPPER faz também
explicação sociológica. A actual sociedade política organizada num suas) - estratégico-crítico-racional no plano prescritivo (na legislação,
Estado social de direito •encontra-se numa fase da passagem da socie- antes de mais), convocando a analítica •teoria da decisãa- na realização
dade individualistico-liberal à sociedade pluralístico-social> - diz-nos concreta e transformando correlativamente a função judicial, na sua
neste sentido WIETHÕLTER (Rechtswissencluift, 1970) - ; e teríamos, en- básica intencionalidade, nos termos a que nos iremos referir.
tão, rum sistema de direito emergente e elaborado em função da 'garan- No que se refere ao funcionalismo social económico, tal como
tia' de uma sociedade civil substancialmente apolítica, mas onde se vêem o vemos a exprimir-se, p. ex., na «análise econ6mica do direito» - com
progressivamente desmentidos todas as tradicionais separações política o seu entendimento da sociedade e de toda a prática social, mesmo
e economia, Estado e sociedade cívil - sobre as quais aquele sistema se política (recorde-se a teoria da public choice), segundo a estrutura do
fundara•; pelo que •o jurista polltico seria a condição necessária• para mercado, com o seu utilitarismo (ainda que numa pretensa superação
a existência desta nova sociedade política de contínua mutação social e critica de BENTHAM), com o seu postulado do •homem racional• (em
politicamente constituenda e isto implicaria a exigência de •urna teoria que a racionalidade é apenas a inteligência dos interesses), com a sua
política do direito• - ou seja a •politicização• do direito e dos juristas. tese behaviorísta do comportamento humano-social - o direito só
Mas o decisivo vem de outro lado: de um assumido compromisso ideo- teria sentido na perspectiva da eficiência económica (da •maximização
lógico que orienta uma critica radical à realidade social numa linha da riqueza», segundo PosNER) e para a realizar, acabando mesmo por
neomarxista com fundamento na utopia, justamente crítico-ideológica, reduzir-se a um papel residual na coerência do •teorema de CoASE»

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28 DOU1RINA ENTRE O 'LEGISLADOR., A ~EDADb E O 29

(competindo-lhe apenas diminuir os «custos de tnmsacção• e oferecer as ou do objectivo - que tanto é dizer que a decisão-solução é um mo-
condições para a resolução convencional das •externalidades>) - embora mento (o seu momento táctico ou de realização concreta) de um Zweck-
com possíveis e complementares intenções também distributivas, se- programm, não o aplicador determinado de um Kondítionalprogramm, com
gundo alguns (pense-se em CALABRESI). o sentido que estas expressões têm em LUHMANN. E assim mesmo
E uma palavra também quanto ao funcionalismo sistémico, que quando o programa· se especifique em normas ou regras que determina-
renunciando a uma regulação material da sociedade (seja finalística, seja tivamente e por tipificação de hipóteses o imponham, pois que imposi-
consequencial), dada a sua complexidade e a pluralidade dos seus pólos tivos serão só os fins particulares prescritos por essas normas ou regras
auto-oraganizatórios e auto-poiéticos, vê no direito só um subsistema não o modo e índole concretos da decisão, posto que em vista delas
social, selectivo e estabilizador de expectativas, numa organização estru- (v., por todos, THOMAS W. WiiJ.DE]uristische Folgenorientierung, 1979, W.
turalmente invariante e de intencionalidade auto-referente, segundo um Kn.IAN Juristísche Entscheidung und elektronísche Datetwerarbeuung, 1974).
código binário licito/ilícito, legal/ilegal, que reduziria aquela comple- Considerar-se-á, por outro lado, que, ao propor-se o funcionalismo
xidade em termos de um mero sistematizador da contingência con- jurídico ouvir as exigências e as pretensões provindas do contexto
tinuamente reconstruido numa circularidade recursiva. político-social, da realidade social, e propondo-se actuar estratégico-
y) A consequência para a função judicial de tudo isto não podia -decisoriamente sobre ela em todos os casos que suscitem as decisões
ser outra senão esta: o seu paradib'IJla passa a ser, não já decerto a apli- concretas mediante os efeitos que estas produzam, não poderá certa-
cação que vimos própria do normativismo legalista, mas a dedsão, em mente ver essa realidade segundo uma neutra analítica que a dec om-
sentido estrito e específico. Afirma-se nela írredutivelmente uma volun- ponha em meros •factos» para a lógica aplicação de uma abstracto-
tas titulada, não uma anónima necessidade lógica, embora possa pre- -racionalistica normatividade conceitualizada - como vimos acontecer
tender-se controtada racionalmente. Numa particular racionalidade no normativismo. Terá antes de considerá-la na sua fenomenológica
que se traduz na opção entre soluções alternativas com vista a um pres- especificidade, corno realidade de uma estrutura, de uma intencionali-
suposto fim ou objectivo em função dos efeitos verificáveis na' circuns- dade, de um dinamismo próprios a manifestar-se simultaneamente
tâncias da decisão. Noutros termos, trata-se de uma racionalidade romo objectivo, como objecto e corno condicionante dessa actuação,
estratégica, não discursiva, orientada por um princípio de optimízação e que, por isso mesmo, se não pode ignorar nessa sua autónoma espe-
na realização de um certo objectivo, em que a escolha da solução ou cificidade. Verdadeiramente, pois, como realidade sodal enquanto tal,
da acção entre as soluções ou acções possíveis se determina pelos que a sociologia esclarecerá, e não apenas como um conjunto de fuctos
efeitos, lográveis nas circunstâncias, que melhor realizem esse objec- discretos que possam ser correlatos reais de categorias lógicas. Daí que
tivo. Pelo que, no quadro da selectiva e programática transítividade dos uma das mais insistentes censuras ao pensamento jurídico dominante
fins, dos objectivos, das preferências, o critério imediato da decisão e à normatividade por ele referida seja justamente, numa formulação
acabam por ser os efeitos - racionalidade, pois, estratégico-conse- de Th. W!SCHELMSSON, •its isolation fiom social reality>.
quencial. Daí também que a solução não possa pretender-se uma solu- O que, aliás, nos permite compreender o apertado diálogo do
ção única, deduzida por uma qualquer necessidade, mas sempre múlti- funcionalismo jurídico com a ciência política, com a sociologia e ou-
pla e variável segundo as circunstâncias e os efeitos delas, não obstante tras ciências sociais, se é que não são estas uma sua necessária dimen-
a porventura constância dos fins ou do objectivo. Será correcta ou boa são; e igualmente a pretensão do funcionalismo de uma interdisciplina-
a decisão-solução que, repita-se, no caso e nestes termos permita obter ridade ou de uma transdisciplinaridade no pensamento jurídico, em
os efeitos que melhor realizem esses fins ou objectivo. O que implica que ele acabasse por assimilar as ciências sociais e lhe conferisse tam-
decerto a atribuição de uma ampla autonomia ao decidente, ainda que bém o estatuto de •ciência social» - seria o direito, afinal, a ciência do
no respeito da programática transitividade estratégico-selectiva dos fins •ccntrôle soda!».

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30 OOUTIUNA EITTRE O ~LEGlSlADOR•, A .SOC:IEDAD.& f, O 31

Tudo o que nos permite compreender que o juiz que corres- Desde logo, e porque submetido a uma radical instrumentalidade,
ponde à judicatura deste modo pensada, e atentos os objectivos que o que vemos é que o direito é afinal puramente política no funcio-
assume o funcionalismo nas suas diversas modalidades, se diga «juiz nalismo político, simplesmente tecnologia ou adnúnistração no funcio-
politico» (no funcionalismo político), «sodal engineer» (no funcionalismo nalismo social e económico. Será porventura diferente no que toca ao
estritamente social-tecnológico) ou, numa síntese paradigmática, um funcionalismo sistémico, já que a teoria dos sistemas sustenta justa-
«juge entraíneur», nos termos seguintes, apoiando-nos no tipo que lhe mente a relativa autonomia dos subsistemas, entre os quais se contaria
define FRANÇOIS ÜST ljuge-pacificateur, juge arbitre, juge entraíneur o direito, no sistema global da sociedade. Há, no entanto, que distinguir.
- Troís modeles de Justice, 1983). A sua decisória actuação seria •essen- Ou a perspectiva sistémica é teoricamente metanormativa, segundo
cialmente funcional, teleológica, instrumental, evolutiva e pragmática>, um ponto de vista epistemologicamente externo e de cariz fundamental-
e em que seria «tida como justa a solução mais adequada ao objectivo mente sociológico, e então a autonomia do sistema jurídico é algo que
proposto pelo planificador social, sendo neste caso secundária a con- se pressupõe - e pressupõe-se no sentido normativístico tradicional -
sideração de valores materiais ou de regras formais>. Seria este um para ser simplesmente descrito e analisado. Ou pretende ser urna teoria
•modelo post-liberal>, que consagraria •o declínio da rule of law», ou jurídica (não sociológica) do direito e nesse caso a autonomia do sistema
onde «the rule interpretatíve model» modelo de decisão de casos con- jurídico é pensada segundo um funcionalismo puro, em termos só for-
cretos pela aplicação de valores ou regras pré-estabelecidas se supe- malmente processualístícos e com abstracção (ou equivalência funcional)
raria por «the judicial-power model» (PH. SELZINIK), aquele em que de quaisquer dimensões materiais (fussem elas as dos valores, dos fins, dos
o juiz seria constitutivamente interventor, criador autónomo das solu- interesses), que acaba por traduzir uma radicalização do norrnatívismo
ções exigidas pelos fins e interesses sociais. «]uge entraíneur» que se positivista e da sua contingência decisória: as normas são agora genera-
substituirá ao •juiz-árbitro• do sistema legalista-liberal, competindo- lizadas expectativas contrafactuais reflexivo-processualmente seleccio-
-lhe •participar na realização de políticas determinadas e assegurar, nados, a dogmática determina categorias estrutural-funcionalmente con-
desse modo, a melhor regulação dos interesses em causa>. A sua «nova ceituais da auto-referéncia juridica e assim das suas variação e tolerância
missão» imporia ao juiz que actuasse •para além do campo fechado dos possíveis, a aplicação do direito obedece a um Konditwnalprogramm, os
direitos subjectivos determinados pela lei - ele é responsável pela sujeitos de direito afivelam a máscara de •papéiS> funciona:is, etc.
conservação e a promoção de interesses finalizados por objectivos Depois, há que ser consciente de que no fundo de tudo se impõe
sócio-económicos e regulados por sistemas de normas técnicas corres- uma capital opção antropológico-cultural de que dependerá o sentido
pondentes», tomando-se •instrumento dinâmico• e de oportunidade do direito e inclusive a sua própria subsistência autenticamente como
que o afasta do •aplicador passivo de regras e princípios pré-estabele- direito. Com efeito, o homem dos nossos dias terá de perguntar-se que
cidos• e o faz •colaborar na realização de finalidades sociais e políticas: sentido se propõe conferir à sua prática e, através desse sentido, que
o seu papel consiste em comparar sistematicamente o~ectívos alterna- compreensão assimilará de si próprio na sua existência histórico-comu-
tivos com vista aos seus resultados respectivos e aos valores que lhe nitária. Uma prática referida a uma validade, seja porventura pro-
estão subjacenteS>. blemática mas não prescindindo nunca de interrogar por ela, a implicar
ô) A distância a que nos vemos assim situados relativamente ao um fundamento axiologicamente critico e o homem transcendendo-se
normativismo legalista e ao seu juiz apenas aplicador da lei é abissal. assim a um sentido materialmente vinculante em que assuma o pro-
Não seria a resistência de um modelo dominante, que foi também jecto responsabilizante da sua própria humanidade, ou uma prática
novidade no seu tempo instituidor, que nos impediria de aceitar este determinada tão-só por um juízo de oportunidade, a não exigir mais
outro modelo que se lhe opõe tão frontalmente estamos na história do que programações finalísticas actuadas por esquemas de uma ope-
e fazemo-la com a mudança. Há, porém, razões mais sérias de crítica. ratória eficiente, e o homem reduzindo-se à imanente titularidade de
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32 IXJU1RlNA
ENTRE O •LEGtSLADOJU. A ·SOCIEDADE~ E O 33

estratégias de interesses que lhe permitir.lo uma exístência formalmente a) Tum esse último modelo, também ele, os seus. pressupostos.
calculada, e nada mais. Uma opção entre o sentido e a <:firJda, entre a vali- Em primeiro lugar, uma recompreensão do próprio homem, <:om
dade e a utilidade. E falamos de opção, porque caduca a pretensão das evi- uma mais profunda reflexão quanto ao sentido com que nos devere-
dências metafisicas de que se alimentou também o jusnaturalismo, o mos compreender e às exigências do nosso compromisso coexistente,
homem terá de decidir-se a si próprio. O que não será diferente de dizer e sobretudo convivente, em projectada coerência com esse sentido,
que radical no homem é a sua liberdade para se salvar ou para se perder e que podemos ver a exprimir-se numa antropologia axiológica. Tanto ao
numa responsabilidade de si para consigo. Com o paradoxo de o critério homo faber e também simplesmente laborans da sociedade técnica, como
da opção última neste mundo só poder ser o que de humanidade ou de ao homo ludens da sociedade do bem-estar à outrance que esvaziou espi-
imunanidade, de enriquecimento ou empobrecimento do homem que daí ritualmente o homem, pretende-se opor a afirmação do homem-pessoa,
resultar - ou stja, ainda que no horizonte da Transcendência interrogada, e com todas as implicações axiológicas e éticas do sentido de pessoa.
pois unicamente ela pode conferir sentido à própria interrogação última, Se 0-0 sentido de pessoa se postula a sua dignidade absoluta ao mesmo
a liberdade e as suas opções aferem-se pelas suas próprias experiências tempo que se nega a sua identificação ao •indivíduo• e se recusa o in-
históricas, acabam por ter, e nisso está o paradoxo, o critério nos resulta- dividualismo deste, uma vez compreendido o pressuponente compro-
dos históricos. Será despropositado recordar-nos do pari de PASCAL? misso e recíproco reconhecimento comunitários que aquela dignidade
Deverá, pois, perguntar-se se não estamos na verdade, não apenas implica, significará também isso não apenas a responsabilidade ética
perante uma outra concepção do direito, mas perante uma alternativa ao perante a pessoa em todo o universo humano (saja imediatamente prá-
direito qua tale pura e simplesmente. Será, por outro lado, aceitável um tico e de convivência ou não) como igualmente a responsabilidade
juiz que vacila entre -0 militante político e o administrador discricio- ética da pessoa relativamente a esse mesmo universo. Thnto é dizer que
nário? E ainda, se são renunciáveis os valores e princípios, o sentido e as a pessoa não é só sujeito de direitos, sejam eles fundamentais ou outros,
garantias que se vinculam ao Estado-de-Direito, a pretexto do empenho mas simultaneamente sujeito de deveres não sendo os direitos simples
numa nova e melhor sociedade, de mais desenvolvimento, de uma maior reivindicações políticamente sustentadas e os deveres exterioridades
atenção aos resultados, de uma científico-tecnológica eficiência, etc. Os limitativas só pelo cogente cálculo dos interesses e sempre repudia-
beneficies porventura desse modo obtidos compensarão as perdas capitais velmente sofridos, como acontece com a polarização prática no indi-
que serão o seu preço? - e este argumento, notar-se-á, não pode ser vídU-O, mas manifestações mesmas da axiologia responsável e respon-
indiferente a uma perspectiva que tanto invoca a eficiência. sabilizante da pessoa.
3) Só que, não ficaram ainda consideradas todas as alternativas Em segundo lugar, desse reconhedmento comunitário da pessoa
possíveis. Uma outra, que recusa os extremos dos dois modelos ante- e da sua dignidade ética seguem-se irrecusáveis impliCdj'iies normativas
ríores, oferece-se com um todo outro sentido e temo-la designado por e tê-lo bem presente é para nós fundamental. Desde logo uma exig~ncia
jurisprudencialísmo. Nela nem se trata da autonomia formal e alienada de fandamento para todas as pretensões que na intersubjectividade e na
do primeiro modelo, nem do instrumentalismo extraponenciado e dis- coexistência eu dirija aos outros e os outros me dirijam a mim. Um
solvente do segundo modelo, mas da autonomia de uma validade nor- fundamento é a expressâ-0 de uma ratio em que se afirma uma validade,
mativa material que numa prática problemática e judicanda se realiza, é argumentum de validade. E a validade é a manifestação de um sentido
e se orienta por uma perspectiva polarizada no homem-pessoa, que é o normativo (de um valor ou de um princípio) transindividual: o sentido
sujeito dessa prática. Jurisprudencialismo que significará a reafirmação fundamentante que transcende os pontos de vista individuais de uma
ou mesmo a recuperação do sentido da prática jurídica como iuris-prn- qualquer relação intersubjectiva (pontos de vista individuais como são,
dentía: axiológico-normativa nos fundamentos, prático-normativa na inten- p. ex., os dos interesses, e pelos quais o que um exige de outro é só
cionalidade, judicativa no modus metodológico.

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o que lhe convém, independentemente de qualquer reciprocidade lismo, na sua perspectivação macroscópica da realidade social em que
ou superadora inter-acção com esse outro, e que este já por isso não tem o direito é visto só como um elemento de organização e de admi-
de actuar ou seguir, podendo inclusivamente opor uma sua conveniên- nistração-direcção gerais da sociedade considerando a própria deci-
cia oposta) e os transcende pela referência e assunção de uma unidade são concret:i inserida no quadro estratégico dessas organização e direc-
ou de um comum integrante (<um critério condivisível por todos os ção - , traz ao primeiro plano de preocupação os concretos problemas
membros do mesmo universo de discurso•) em que, por um lado, os práticos, os conflitos e as controvérsias prático-problematicamente
membros da relação se reconhecem iguais e em que, por outro lado, concretos, que naquela perspectivação macro-social iam pura e sim-
obtêm uma determinação correlativa que não é o result:ido da mera plesmente omitidos. Os práticos casos concretos, não titulados por
vontade, poder ou prepotência de qualquer desses membros, mas jus- meras variáveis subjectívas de papéis sociais em situações socialmente
tificável pelas suas posições relativas nessa unidade ou comum inte- tipificadas, mas titulados antes por sujeitos pessoalmente particulares de
grante. Um sentido normativo, numa palavra, que se imponha como nome próprio e referidos a situações também histórico-socialmente
uma justificação superior e independente das posições simplesmente concretas - e não numa intenção de instrumental estratégia e de fun-
individuais de cada um e que, como tal, vincule simultânea e igual- cional eficiência, mas de juízo prático-normativo e de axiológico-nor-
mente os membros da relação. mativa validade (de prática justeza). À pura racionalidade opõe-se
E uma tal exigência de fundamento - que terá o seu contrário, já a axiologia e à eficiência a validade. E o direito, nem é tão-só objecto
no sic volo sic jubeo, já no pro ratione voluntas é decerto o que sem normativo para uma determinação estritamente racional, nem mero
mais vai implicado no postulado do sujeito ético, com a sua liberdade instrumento ou meio de um heterónomo finalismo funcionalmente
reconhecida enquanto pessoa e assim com a sua igualdade entre iguais. eficiente, mas um axiológico-normativo fim em si ele próprio um
Pois esse postulado só pode admitir uma qualquer posição ou pretensão valor na validade que exprime.
com validade: com um fundamento que não pretira e antes satisfaça B) Essa validade convoca normativamente os valores e princípios
a dignidade e a igualdade, que perante estas validamente justifique a jurídicos em que se manifesta o que temos designado, e tentado carac-
posição ou a pretensão. Só assim, com efeito, relativamente a essas terizar, pelo nível da consdbu:ia axiológíco-normativa da consciência jurí-
posições ou pretensões o atingido por elas se reconhecerá como sujeito dica geral da comunidade histórico-cultural (v. A revolução e e direitc,
e não como simples objecto de uma qualquer prepotência. in Digesta, 1, 208-222, e JuslÍf" e Direito, ibidem, 274-284). E em termos
Com o que podemos concluir que o direito só o temos verda- - ponto este para nós muito importante - de a alternativa jusna-
deiramente, ou autenticamente como tal, com a instituição de uma vali- turalismo/positivismo jurídico não ter de considerar-se hoje uma alter-
dade e não como mero instrumento social de racionalização e satisfação nativa absolut:i. Se contra o jusnaturalismo e a sua procura dos funda-
de interesses ou de objectivos político-sociais. mentos constitutivos do direito numa manifestação ou modalidade do
Com o que estamos também em presença de um outro sentido ser (<natureza»), seja numa metafisica ontológica (numa geral ordem
e de uma diferente importância para o direito. Perante o normativismo, constituída dos seres ordo rernm, ou numa qualquer pontualiz.ada natura
fundamentalmente orientado por uma intenção objectivo-analítica rerum), seja numa ontologia antropológica (na •natureza do homem»),
que permitisse assimilar no jurídico as características formais e universais se compreende, irreversivelmente, que o direito compete à autonomia
da razão teórica e a implicar o direito tão-só como um sistema racional cultural do homem, que, tanto no seu sentido como no conteúdo da
de critérios normativos abstractos, convoca uma axiologia, postula sua normatividade, é uma resposta culturalmente humana (resposta,
a intenção de um social compromisso prático em que a racionalidade por isso, só possível, não necessária e histórico-culturalmente condi-
não é dada por um teórico universal sistemático, mas por uma prática cionada) ao problema também humano da convivência no mesmo
fundamentação normativa material. Enquanto que perante o funciona- mundo e num certo espaço histórico-social, e assim sem a necessidade

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36 DOUI'R.INA ENTRE O ~tEGlSLADOR•, A •SOCtEDADE• E O ~UlZ.. 37

ou a indisponibilidade ontológica, mas antes com a historicidade e a e dos contributos jurisprudenciais. Isto, por um lado; por outto lado,
condicionalidade de toda a cultura - não é •descoberto• em termos essa validade dogmaticamente deternúnada enfrenta uma concreta pro-
de objectividade essencial pela «razão teórica• e no domínio da filosofia blematização praxística nos casos decidendos, a exigir, por sua vez,
especulativa ou teorética, é constituído por exigências humano-sociais urna mediação judicativa que realize a validade nessa prática. As duas
particulares explicitadas pela •razão prática» e imputado à responsabili- primeiras dimensões manifestam-se num sistema normativo, as outras
dade poiética da filosofia prática. Se contra o jusnaturalismo se pode duas são convocados por um problema prático - e a dialéctica entre
dizer isto, também contra o positivismo jurídico se terá de negar que sistema e problema num objectivo judicativo de realização normativa
o direito seja tão-só o resultado normativo de uma voluntas simples- é a racionalidade jurídica a considerar. E com duas intenções que nessa
mente orientada por um finalismo de oportunidade ou a mera expres- dialéctica se implicam, tanto a intenção da justeza material referida ao
são da contingência e dos compromissos político-sociais; pois a prática problema concreto como a intenção de concordânçja normativa
histórico-cultural, e particularmente a prática jurídica, com a sua tão referida ao sistema da validade.
específica intencionalidade à validade e estruturalmente constituída Compreenderemos exactamente o que vai dito, se tivermos pre-
pela distinção entre o válido e inválido, refere sempre no seu sentido sente o sentido dessa dialéctica, o seu modus operandi e a índole da
e convoca costitutivamente na sua normatividade certos valores e cer- mediação que implica.
tos princípios normativos fundamentantes que pertencem ao ethcs re- Quanto ao sentido da dialéctica há que considerar o seguinte. Se
ferencial ou ao epistéme prático de urna certa cultura numa certa época. pode aceitar-se que o sistema jurídico começa sempre por delimitar
E que desse modo, sem se lhes poder ignorar a historicidade e sem e pré-determinar o campo e o tipo dos problemas no começo de utna
deixarem de ser da responsabilidade da autononúa cultural humana, experiência problemática - posto que, obedecendo a problemática,
esses valores e princípios se impõem justamente em pressuposição fim- pelo menos neste domínio, ao esquema de pergunta-resposta, os pro-
damentante e constitutiva perante as contingentes positividades nor- blemas possíveis começam, de um lado, por ser aqueles que a intencio-
mativas que se exprimem nessa cultura e nessa époça - são valores nalidade pressuposta no sistema (com as possibilidades interrogativas
e princípios metapositivos dessa mesma positividade, como que numa dos seus princípios) admita, e os modos de os pôr serão, de outro l;;do,
autotranscendência ou transcendentalidade prático-cultural, em que ela aqueles que sejam correlativos das soluções (respostas) que o sistema
reconhece os seu fundamentos de validade e os seus regulativo-nor- também ofereça - , já não é lícita a unilateral sobrevalorização do sis-
mativos de constituição. Pelo que a exclusão da necessidade ontológka tema que se traduza no axioma de que os problemas a emergir dessa
não nos condena à mera continência político-social, no donúnio do experiência serão unicamente os que o sistema suscite e no modo ape-
prático-jurídico a posição exacta é a de um tertium genus referido a urna nas por que ele os aceite. Isto porque a experiência problemática,
autopressuposição axiológico-normativa fundamentante e regulativa- enquanto também experiência histórica, vem sempre a alargar-se e a
mente constitutiva. Autopressuposição essa que compreenderemos de aprofundar-se, em termos de exigir novas perguntas (problemas)
uma como que universalidade intencional no problema do sentido do e outro sentido para as respostas (implicados em novas intenções que
direito - ou na resposta à pergunta sobre o seu •porquê» - e já numa entretanto, e através dos novos problemas, se vão as.wnúndo). E pe-
maior condicionalidade história no problema da sua função normativa rante ela, a normatividade sistematicamente prévia traduz apenas a assi-
também histórica - ou na resposta à pergunta sobre o seu •para--quê•. milação intencional (em termos de respostas constituídas) de urna certa
Só que a indeternúnação normativa que é própria a essa funda- experiência feita e é correlativamente linútada por essa experiência.
mentante validade, corno o é sempre em quaisquer últimos fundamen- O que ocorre então é que o sistema não observe a nova problemática
tos, exige uma determinação de índole dogmática a que são chamadas - se tem ele os linútes das suas pressupostas intenções, e por estas
as normas legais, com a complementaridade da reelaboração doutrinal necessariamente se demarca tanto a sua •capacidade do sistema» como

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DOUTRINA ENTRE O d..EGISJ..ADOR-. A éOClEDADE• E O •JUIZ.. 39

a sua possibilidade hermenêutica, o problema manifesta por isso a sua fundamentos terão de procurar-se na própria normatividade fun-
verdadeira autonomia, impondo à experiência da realização normativa damentante constitutiva do sistema jurídico - e da sua jurídiciclade.
uma outra dimensão. O problema deixa então de ser a expressão inter- A teleologia imperativa terá de admitir a coerência dos fundamentos
rogante da resposta-solução já disponível, ou a pergunta que antecipa normativos da vilidade do sistema jurídico (nos seus valores e princí-
e nos remete a essa resposta-solução, para ser uma pergunta que ainda pios constitutivos) numa transcensão da teologia por esses funda-
não encontrou resposta, uma experiência problemática que não foi mentos. A significar isto, numa palavra, que a ratio legis se dialectiza e
ainda absorvida por uma intencionalidade dogmática acabadamente se· vê superada pela ratío iuris - •a vinculação à lei, di-lo também
fundamentante. LUHMANN, não significa vinculação à legislação• {Die Stellung der
E daqui se tira uma primeira conclusão: se nesta dialéctica tem o Gerichte im Rechtssystem, in Rechtstheorie, 21 (1990), 470).
direito realizando a sua dinâmica de emergência, pela solução dos Isto quanto ao direito positivo em geral e a dizer-nos em que ter-
problemas jurídicos concretos que se vão desse modo suscitando, então mos se deverá orientar o seu interpretando sentido normativo-jurídico.
o direito nunca será um dado, ou sequer um objecto, e sim verda- Mas este é só um momento a ter em conta. O outro momento tem a
deiramente um problema - será ele, como já atrás tínhamos aludido, ver directamente com o COl1lfetum decidendo, com o problema jurídico
um contínuo problematicamente constituendo. concreto. E o que se verifica aí é também um diálogo problemático
Quanto ao seu modus operatuli há que começar por considerar que entre a norma (enquanto normativa solução abstracta de um pres-
a historicidade desta problemática, ao assumir-se em intenção nor- suposto problema jurídico tipificado) e as exigências normativas espe-
mativa, obriga o pensamento jurídico a dar-se conta de limites objec- cíficas do caso decidendo compreendido autonomamente (mediante
tivos, intencionais, temporais e mesmo de validade das positivas nor- um juízo problemático autónomo) como um problema análogo àquele
mas jurídicas (da própria lei) para cumprir a intenção do direito que que a nortna pressupõe e tipifica. Pois, seja embora possível uma pré-
o sistema jurídico e a ordem jurídica autonomamente implicam. Pelo via determinação do sentido normativo da norma (sobretudo em
que compreende ele a juridicidade (a intencional normatividade do função do problema jurídico que lhe vai pressuposto) e compreen-
sistema e do seu direito) a ultrapassar, tanto extensiva e intensivamente dendo normativamente a solução que lhe é prescrita, imediatamente
como em normativas exigências constitutivas, aquele jurídico positivo. com fundamento teleológico na sua particular ratio legis, mas mediata
O que obriga à continua referência àqueles mesmos valores e princí- e decisivamente com fundamento axiológico-sistemático na ratio íuris,
pios normativos que, sendo os fundamentos regulativos do próprio o cerw é que esse sentido tem apenas um valor hipotético e irá ser
sistema ou da ordem jurídica, hão-de ser também os últimos e critérios submetido como que a uma experimentação problemático-decisória
da realização do direito. Mais do que isso: a irredutível abertura do sis- em referência à relevância jurídica material do caso concreto. E para se
tema impõe ainda que a realização do direito interrogue continua- concluir ou por uma possível assimilação dessa relevância por aquele
mente e se faça intérprete, no seu juízo normativo concreto, do con- sentido hipotético (assimilação por concretizarão, assimilação por adap-
sensus jurídico-comunitário das intenções axiológico-normativas da tação, assimilação por correcção), ou por urna possível analogia teleo-
•consciência jurídica geral•, com as suas expectativas jurídico-sociais de lógico-normativa entre a solução oferecida por esse sentido e a solução
validade e justiça. Pois se as normas legais, enquanto manírestações de exigida pelo problema concreto, ou afinal por uma inadequação nor-
uma auctoritas imperativa, terão a sua imediata justificação no motivo- mativo-jurídica entre ambas o que, recusando então a norma como
-fim que as determinou - na sua teleológica ratio legis - , não deixam critério jurídico para a decisão concreta, exigirá uma autónoma consti-
de ser elas elementos de determinação da validade juridica e portanto tuição da solução jurídica (v., sobre tudo isto, a nossa Metodologia
a inserir no sistema normativo que a objectiva, no seu sentido e nos jurldica, 155, ss.).
seus fundamentos últimos e juridicamente decisivos. Ou seja, os seus Conjuguem-se os dois momentos na unidade da sua dialéctica
40 DOUTRINA ENTRE O •LEGISLADOR•, A •SOCIEDADE• E O •JUIZ• 41

e uma secunda conclusão se impõe: a de que é indispensável uma par- Sabe-se que um argumento não é uma premissa (proposição pressuposta
ticular mediacão judicativa a que o operador em concreto será cha- de uma inferência necessária) - com ele constitui-se antes uma
mado e de que será o responsável. Esse operador concreto-judicativo racional conexão e passagem de certas proposições ou posições a outras
não é outro, evidentemente, do que o juiz. proposições ou posições num sentido intencional e materialmente jus-
Assim como basta já uma palavra quanto à realidade referida por tificativo ou fundamentante, em referência ao contexto de pres-
esta perspectiva jurisprudencial, e que se poderá dizer o seu referente suposição significante de numa situação comunicativa e em termos de
normativamente problemático. Não se trata nem da realidade redutível essa conexão racional se oferecer nessa situação comunicativa como
a «factos» discretos e apenas empiricamente determináveis, nem da concludentemenle inovadora (cfr. S. E. TOULMIN, The use of argument,
•realidade social» em termos especificamente sociológicos, mas da rea- 1974, J. HABERMAS, Theorie des kommunikativen Handelns, i, 44, ss.;
lidade correlativa à própria normatividade axiológico-materialmente J. LADRJERE, Logique et argumentation, in MICHEL MEYER (ed.), 23, ss.).
jurídica - a realidade do encontro na inter-acção ou da convivência E, tendo isto em conta, o que caracteriza aquele juízo é a resolução
prática, que se vive em acontedmentos prático·sociais e de que emergem de uma controvérsia prática - em princípio a exprimir-se na con-
controvérsias e mesmo conflitos a imporem-se juridicamente como vocação de posições divergentes sobre o mesmo caso ou questão
casos de histórico-concreta problematicidade prática e a exigirem uma prática (sobre a «controvérsia» no pensamento jurídico, v. M. A.
solução de validade normativa. Ou, como vemos muito recentemente GIULIANI, La controvérsia, in Studi Giuridiche e Sociali (Un. de Pavia),
a dizer, no mesmo sentido, ANDREAS FESER (Das Recht im juristischen XXXIX, 77, ss.; e Lo logique juridique comme théorie de la controverse,
Denken, 20), os dados-objectos sociais a regular pelo direito •não são in An:hives d. Phil. du Droit, xi (1966), 87, ss), mediante uma ponderação
simplesmente quaisquer factos de vida a explicar empiricamente, mas argumentativa racionalmente orientada que conduz, por isso mesmo, a uma
acontecimentos humanos, inter-acções comunicativas». solução comunicativamente fundada.
y) Estamos, pois, em condições de compreender que o paradigma Por outro lado, o seu critério são fundamentos, em sentido próprio,
da jurisdição próprio do jurisprudencialismo tê-lo-emos no juízo (não e nesse sentido hão-de sustentar com intencional concludência nor-
numa lógica aplicação, nem numa estrita decisão). mativa a solução mediatizada do caso decidendo - critério como
E o juízo não se identifica com um qualquer raciocínio, nem tem fundamento, não como premissa, nem como efeitos. Aqueles fun-
uma índole puramente lógica. Há que distinguir do juízo puramente damentos em que a normatividade do sistema da validade se manifeste
lógico, e em todos os seus tipos lógicos - o juízo enquanto inferência e determine. O juízo que tem por critério um fundamento de validade
- , o juízo enquanto julgamento - o juízo que realiza o sentido prático submete-se a um «absoluto» - a validade não o seria sem a pres-
de julgar ou o juízo da ponderação prática. Tenha-se também presente suposição da sua incondicionalidade - , ao contrário do juízo em que
o sentido, decerto não puramente lógico, com que KANT pensou o critério são os efeitos, o qual já se orientará por um «relativo» e
o •juízo» na terceira Crítica (Kritik der Urteilskriifi), pois trata-se tam- segundo uma contingência de oportunidade (de cálculo e conve-
bém aí de um juízo que •julga», enquanto à «faculdade de juízo• niência). E no ponto que nos importa tenhamos presente que os
competiria •conceber o particular como contido no universal», já em efeitos são ponderados em função da utilidade social que neles se
termos •determinantes» (do universal para o particular), já em termos alcança, visando a intervenção na realidade social e a sua conformação
«reflexivos» (do particular para o universal). E esse juízo, e sobretudo organizada ou pontualizada - pelo que a sua perspectiva programática
na sua modalidade reflexiva, que aqui queremos especificamente con- é heterónoma e o seu tempo o futuro. Enquanto que os fundamen-
siderar, reconhecendo que ele, se encontra num discurso o seu modus tos se referem a sentidos de validade que postulam valores, os valores
operandi e em raciocínios a sua estrutura lógica, o que tem noeticamente constitutivos do sistema, e com eles a uma intencionalidade regulativo-
de específico reside na sua particular índole prático-argumentativa. -normativa com que se hão-de justificar, não acções logradas ou

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fracassadas, mas juízos de válido ou de inválido. Juízos axiológko- O juiz convocado ao juízo nestes termos é o juiz do jurispruden-
-normativamente críticos sobre o objecto problemático de resolução cialismo - e a sua jurisdição a de uma validade problemático-con-
e cuja principal função social (ou comunitária) está justamente em afir- cretamente realizanda neste modo judicativo.
marem nesses termos os valores de uma imanente intenção pressuposta
e a respectiva intencionalidade normativa de validade, para ponderar
e garantir sancionatoriamente o seu concreto cumprimento - pelo que 5. Conclusão.
a sua perspectiva normativa é imanente e o seu tempo o presente. Pois
podem esses fundamentos normativos estar já constituídos e objectivados Estamos num tempo em que se joga o destino humano-cultural
em critérios normativo-juridicamente positivos, ou oferecerem-se ape- do Ocidente. Aí onde se forjou a mais alta civilização d.a história, com
nas enunciados na assunção de princípios normativo-jurídicos ou serem muitas tragédias e muitas misérias, com muitas e execráveis inu-
mesmo assumidos-constituídos no próprio momento em que se consi- manidades, como a inquisição e a escravatura ontem, como Auschwítz
dera um concreto problema decidendo e como seu critério, que sempre e Goulag hoje, mas nenhuma outra foi maior nas possibilidades huma-
a sua índole e função é a de fundamentos de juízos de normativa vali- nas, num aprofundamento científico-cultural que tocou o rrústério
dade e enquanto estes juízos se não confundem com juízos de política e numa transcensão agónica que dialoga com o divino. Em que o con-
ou tecnológica eficácia social. Qualidade essa de fundamentos que traponto d.aquele negativo de sombra revelou (a que preço embora!)
implica, assim, uma especifica pressuposição intencional - a pressupo- a luz de um alto sentido e da sua responsabilidade - posto não
sição intencional da validade regulativamente normativa - , mas não, saibamos, neste momento em que vivemos •uma hora magnífica
todavia, uma pressuposição de objectiva constituição e cronológica: um e dramática da história• QoÃO PAULO II, Christi Fídeles Laici, n. 0 3)
fundamento normativo é intencionalmente pressuposto, como funda- qual a sua evolução e o seu fim, se o sublime, se a barbárie: não fOram
mento justamente, sem que por isso tenha de ser objectivo-formalrnente ainda abertos todos os selos. Foi nessa civilização que o direito, tam-
antecedente, de ir já dado e constituído, pois é de todo compatível com bém como em nenhuma outra, se fez dimensão constitutiva da
uma criação ou assunção constituinte (em termos de que aqui não cura- humanização do homem. E em termos de se poder hoje dizer, como
mos) no próprio juízo em que é fundamento e critério. Nestes termos, que numa consumação que teve também os seus graves desvios, que
o seu •presente• denota um tempo lógico (o prius de pressuposto) e não •o direito ao direito• se deve proclamar, como o fez eloquentemente
um tempo cronológico (o ante de antecedente). HANAH ARENDT, o verdadeiro, o último e decisivo direito do homem.
Distinção entre fundamento e efeitos, desde logo, que se não pode Mas, para isso, necessário é que o direito se compreenda no seu sentido
considerar apenas relativa ou metodologicamente reversível, já que não autêntico, não mero imperativo do poder, não simples meio técnico de
só é verdadeiramente categorial, como nos remete, por cada um dos quaisquer estratégias, mas validade em que a axiologia e a responsabili-
seus termos, a intenções, pi.anos e racionalidades diferentes. Tenham-se dade do homem se manifestem.
presentes as distinções análogas, na perspectiva axiológica, entre valor Para se assumir e realizar esse direito, vimos como é indispensável
e fim; na perspectiva epistemológica, quer entre sentido-fundamento o juiz. Por isso mesmo é eminente a sua tarefa e nobre o papel que
e causa-efeito, quer entre significação e técnica; na perspectiva socio- dele se espera. E a sua uma responsabilidade ética de projecção comu-
lógica entre a relação-a-valor e a relação meio-fim. Trata-se de distin- nitária. Negar-se-á nesse seu sentido se for mero funcionário, fun-
ções, todas elas, que diferenciam a intenção axiológica da intenção cionalmente enquadrado e nisso comprazido, servidor passivo de qual-
tecnológica, o plano da compreensão dos sentidos do plano dos esque- quer legislador, simples burocrata legitimante da coacção. Só o será
mas ou modelos operatórios, a racionalidade hermenêutico-dialéctica verdadeiramente assumindo uma dimensão espiritual, e responsabili-
da racionalidade empírico-analitica. zando-se por ela, aquela mesma dimensão espiritual que radicalmente
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t
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constitui o direito como a expressão da humana coexistência, da


humana convivência comunitária. E nesse caso, afirmando-se o repre-
sentante e intérprete •da soberania originária, da soberania ainda não
delegada do povo•, segundo a bela fórmula de MARCIC, e assim a voz
em que a palavra decisiva da democracia, no seu sentido originário
e também autêntico, se faz ouvir, tem profunda significação, posto que
muitos o não entendam, que a Constituição portuguesa, no seu artigo
202.º, diga que •os tribunais são os órgãos de soberania com compe-
tência para administrar a justiça em nome do povo•. Utópico tudo
isto? Então são utópicos a Constituição e o pensamento vocativo
- e devem sê-lo.

A. CASTANHEIRA NEVES

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