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Resumo
Palavras-chave
*
Trabalho vinculado ao projeto de pes-
quisa Iluminismo e Pedagogia, perten- Razão – Consciência – Vontade – Educação natural.
cente à linha de pesquisa Fundamen-
tos da Educação do PPG em Educação
e ao Núcleo de Pesquisa em Filosofia e
Educação (Nupefe) da Universidade de
Passo Fundo (UPF/RS). Agradeço ao
Serviço Alemão de Intercâmbio Aca-
dêmico (DAAD-Alemanha), à Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio Grande do Sul (FAPERGS/Brasil),
à Universidade de Kassel (Unikassel-
Alemanha) e à Universidade de Passo
Fundo (RS/Brasil) pelo apoio financei-
ro de viagens e estadias na Alemanha
e pelo financiamento de horas de pes-
quisa sem os quais este trabalho cer-
tamente não teria sido possível.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 135-150, jan./abr. 2007 135
Rational determination of human will and natural
education in Rousseau*
Abstract
136 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 135-150, jan./abr. 2007
Taylor (1996) dedica um capítulo de seu pelo nascente homem moderno de ser coeren-
extenso livro, Fontes do si mesmo: o nascimento te consigo mesmo. Esse esforço rousseauniano
da identidade moderna, para tratar de Rousseau de tematizar a ligação do homem com a natu-
e Kant, atribuindo-lhe o sugestivo título ‘Natu- reza e de destacar a dimensão natural tanto do
reza como fonte’. Considera Rousseau como um homem como da sociedade poderia ser interpre-
dos autores modernos que mais influenciou os tado também como uma crítica à autodetermi-
contemporâneos e esboça uma interpretação nação calculista e alienada da racionalidade
relevante de seu pensamento ao conectar entre moderna, e tal crítica deveria ser levada adiante
si os conceitos de natureza e consciência, deri- pela tematização da relação entre natureza e
vando deles o recurso à ‘voz interna’ como consciência (Taylor, 1996).
busca incessante do eu para identificar-se con- Para os propósitos de Taylor, de inves-
sigo mesmo. A analogia constante entre nature- tigar as fontes conceituais da formação do Self,
za e voz interna deve-se ao fato, primeiramente, é central a analogia rousseauniana entre voz
de que Rousseau, além de ter sido escritor, tam- interna da natureza e voz interna da consciên-
bém fora músico. Com esse recurso, ele poderia cia. No entanto, apesar de muito sugestiva, essa
ser considerado, em certo sentido, como um sua interpretação passa por alto algumas das
continuador de Agostinho, com a grande dife- principais dificuldades que emergem dessa
rença, porém, de que Rousseau busca a fonte da analogia. Taylor não trata sistematicamente, por
unidade e da totalidade no próprio eu e, por exemplo, do significado dos conceitos de razão
isso, pode ser considerado um autor eminente- e consciência e de sua relação, no contexto
mente moderno. argumentativo de Rousseau, com o conceito de
O primeiro sentimento que provém da natureza. Ora, a questão é se se pode discutir
natureza é correto e trata-se do sentimento do adequadamente o pensamento de Rousseau,
amor de si mesmo (amour de soi-même), que analisando sua contribuição para o surgimento
está em nós e é responsável para que sejamos da identidade moderna a partir da conexão
nós mesmos. A voz interna da natureza deter- entre os conceitos de natureza e consciência,
mina em última instância o que é bom. A cons- sem tratar sistematicamente dos problemas re-
ciência, por sua vez, que é nossa condutora lacionados ao conceito de razão e de sua rela-
interna, fala para nós na linguagem da natureza. ção com o conceito de consciência. Qualquer
Ela é a voz da natureza como aparece num ser tentativa, ao meu ver, que ignora esse ponto,
que já vive em sociedade, que é capaz de lin- como a de Taylor, só pode oferecer uma imagem
guagem e razão. Esse é um dos motivos que muito generalizante e parcial das ‘fontes do si
levaria Rousseau atribuir grande peso ao papel mesmo e do surgimento da identidade moderna’.
da consciência, pois ouvir sua voz interna sig- Que o pensamento de Rousseau tem
nificaria nada mais do que ouvir a própria voz contribuído, no entanto, para oferecer uma
da natureza. Nessa identificação, entre natureza ‘autocertificação da modernidade’ é o que pre-
e consciência, repousaria o núcleo constitutivo tendo mostrar na seqüência com base na hipó-
do sujeito agente, a partir do qual ele constrói tese de que a capacidade de ‘sair fora de si
suas referências normativas de autenticidade e de mesmo’, latente, mas não desenvolvida, da ação
personalidade própria, alcançando então a con- humana movida pelo sentimento do amour-
dição de ser ele mesmo (isto é, de ter um Self propre só é capaz de ser levada adiante com
autônomo). Nesse contexto, segundo Taylor, o maior consistência por meio de uma teoria da
que Rousseau considerou como sendo o viver determinação racional da vontade, a qual
de acordo com a natureza seria viver de acor- Rousseau esboça, sem desenvolvê-la adequada-
do com a voz interna da consciência e isso mente, no livro IV do Émile . Ele não pode
representaria a busca constante empreendida justificá-la adequadamente porque vacila no
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esclarecimento dos conceitos de razão e de mento da racionalidade moral humana, não fica-
consciência e não é firme o suficiente para mos sabendo ao certo o quanto ela contém de
mostrar que sem o confronto com a razão, a humano e o quanto mantém de divino; justa-
voz interna da consciência não pode adquirir mente esse hibridismo é uma das razões que
conteúdo moral. Por não poder justificar ade- ajuda explicar a incompletude de sua teoria da
quadamente sua teoria da determinação racio- determinação racional da vontade. Por último,
nal da vontade, também não pode tirar todas as mesmo considerando essas e outras dificuldades,
conseqüências do recurso ao si mesmo (Self) procuro extrair breves conclusões sobre o signi-
como uma nova instância de legitimação da ficado que o esboço de uma teoria da determi-
moralidade das ações sociais do homem moder- nação racional da vontade assume em relação
no. Apesar dessas dificuldades, procuro adotar ao projeto educacional do Emílio.
uma posição que possa colocar as idéias de
Rousseau sobre a relação entre razão e consci- Modernidade e teodicéia:
ência, ainda que confusas e obscuras, a favor desresponsabilização de Deus e
de um projeto de educação natural. culpabilização da sociedade
Para que o conceito de natureza de
Rousseau possa se tornar, no entanto, um con- Como um autor do século XVIII, Rousseau
ceito eminentemente moderno, ele precisa se tem diante de si a tarefa de pensar o homem como
defrontar ao menos com um dos problemas de um ser livre para conduzir sua ação, tomar suas
teodicéia, a saber: com o problema da origem decisões e ser responsabilizado por elas. Do pon-
da maldade na história da vida humana e po- to de vista filosófico, isso significa poder justificar
der, mostrar que a sua culpa não reside em a tese de que a vontade humana é capaz de se
Deus nem exclusivamente no homem, mas sim determinar racional e livremente, independente de
na sociedade. Ele precisa mostrar, em primeiro forças externas e estranhas a ela. Visto sob essa
lugar, que o sentido normativo do conceito de perspectiva, o iluminismo de Rousseau coloca-se
natureza não depende mais diretamente de diante de um duplo desafio: poder basear-se, por
Deus, para poder conectar, em seguida, a sua voz um lado, num nível de argumentação racional que
com a voz interna da consciência. Amparando- possa evitar, simultaneamente, tanto o excesso
me em Cassirer (1980), vou reconstruir em lar- como o déficit de racionalidade. Isto é, ele pre-
gos traços o argumento com o qual Rousseau cisa sustentar um conceito de razão que não
enfrenta esse problema de teodicéia e delinear a seja excessivamente otimista nem pessimista.
solução por ele apresentada. Na seqüência, Por outro lado, deve mostrar que a capacidade ra-
amparando-me em passagens da ‘Profissão de fé cional humana, evitando tanto seu excesso como
do vigário saboiano’, vou reconstruir os argu- sua falta, é capaz de justificar, por si mesma, a
mentos relacionados ao problema da determina- ação humana em sua coletividade, tratando refle-
ção racional da vontade, procurando mostrar xivamente (conceitualmente) de seus dilemas
que Rousseau justifica-o por meio da tentativa morais e de sua destinação. Rousseau vê-se na
de conectar o seu conceito normativo de natu- eminência de ter que explicar a origem dos juízos
reza com a voz interna da consciência. Esse de valor, das noções de bem e de mal na ação
passo em seu argumento não ocorre sem maio- histórico-social do homem, sem poder fazer con-
res dificuldades: primeiro, a expressão ‘voz inter- cessão à interferência direta do poder divino na
na da consciência’ parece carregar um claro determinação do conteúdo dessas noções. Isto é,
hibridismo, pois, no fim da exposição do vigá- seu problema consiste em tratar das condições
rio saboiano, considerando o caráter obscuro da de possibilidade de ações boas e más, portan-
voz da consciência, assumindo simultaneamen- to, do problema da moralidade, sem poder
te a condição de ser ‘instinto divino’ e desdobra- contar mais com a interferência de Deus. Para
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so, mais no conceito natural e, portanto, ain- suas ações a moralidade (moralité) que antes
da não definitivamente moral e jurídico de li- lhe faltava. É só então que, tomando a voz do
berdade. Já no Contrato social, predomina o dever ( la voix du devoir) o lugar do impulso
conceito de liberdade ‘bem regrada’ (la liberté físico (l’impulsion physique), e o direito o lu-
bien réglée) que é o ponto de partida da indis- gar do desejo, o homem, até aí levando em
pensável consciência que cada cidadão deve consideração apenas sua pessoa, vê-se força-
ter de seus limites, isto é, da consciência sobre do a agir baseando-se em outros princípios e
até onde vão seus direitos e onde estão seus a consultar a razão antes de ouvir suas inclina-
deveres, consciência essa que é indispensável ções. (OC iii 364) (1978, p. 36; 2003, S. 22)3
para viabilizar uma boa sociabilidade. No Se-
gundo discurso, não se coloca com toda a cla- O pessimismo presente na primeira obra
reza ainda a tese da base social da moralidade referente à análise do processo de socialização
que sustenta a teoria social subjacente tanto ao humana é substituído, no Contrato social, pela
Contrato social como ao Émile (Dalbosco, ênfase nas conquistas que o ingresso humano
2005). É tal tese e, com ela, o conceito de li- na sociedade adquire: na medida em que o
berdade ‘bem regrada’ que permite Rousseau impulso físico é submetido ao dever, o direito
analisar o processo de sociabilidade humana passa a regular os desejos e a razão humana
como origem de sua maldade e, ao mesmo domina suas inclinações. Assim, o Contrato
tempo, como possibilidade de sua correção. social representa a perspectiva de que quanto
Ora, é no contexto de tal conceito que ele pode mais o ser humano se socializa, tornando sua
chegar ao problema da relação entre liberdade ação cada vez mais racional e livre, embora não
e lei, colocando-se como defensor da lei e de necessariamente moral, tanto mais sua dimensão
sua validade universal incondicional. Quando impulsiva e desejante é colocada sob o contro-
visto sob essa perspectiva, então, o pensamen- le da racionalidade moral e jurídica e o aumen-
to de Kant seria imensamente tributário do to progressivo de sua socialização corresponde,
pensamento rousseauniano, tendo sido ele um portanto, à intensificação da dimensão moral e
dos poucos filósofos que se tornou discípulo e jurídica de sua ação.
admirador de Rousseau (Cassirer, 1980). Voltemos ao nosso ponto. Do problema
Do Segundo discurso ao Contrato social, de Deus, passamos para o problema da origem
também ocorre uma inversão de significado em do mal no mundo, localizando-a na própria
relação aos conceitos de estado de natureza e sociedade. No entanto, o percurso do pensa-
estado social: enquanto no Segundo discurso o mento de Rousseau não se esgota aí. Se o mal
estado de natureza é visto como fonte da bon- reside na sociedade, precisamos um critério
dade natural humana e o estado social como justo e adequado para julgá-lo e ele aponta a
fonte de sua perversão, no Contrato social o es- subjetividade e a interioridade humanas como
tado social é associado, direta e positivamente, à núcleo desse julgamento. Entretanto, trata-se
possibilidade de superação do nível instintivo e, de uma subjetividade que deve agora buscar a
portanto, desregrado da vida humana em seu
estado natural. Esse ponto de vista é justificado 3. Todas as citações das obras de Rousseau, salvo indicação contrária,
claramente numa passagem do Contrato social: serão feitas como a que seguiu, indicando-se no corpo do próprio texto, de
acordo com a edição Gallimard da Bibliothèque de la Plêiade, a abreviatura
OC referente às Oeuvres Complètes , seguida da indicação do volume em
Esta passagem do estado de natureza (l’état de romano minúsculo com a respectiva paginação em arábico. A citação no
corpo do texto será seguida, imediatamente, por uma indicação entre pa-
nature) para o estado social (l’état civil) provo- rênteses, primeiro, da tradução portuguesa e, depois, da tradução alemão,
ca no homem uma mudança muito notável, indicando-se tão somente o ano e a paginação correspondentes à tradução
usada para o cotejo com o texto original. Usei amplamente as traduções
substituindo, na sua conduta, o instinto
portuguesas dos textos de Rousseau, fazendo livremente as modificações
(l’instint) pela justiça (justice) e atribuindo às quando julguei necessárias.
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Determinação racional da sa que determina o seu julgamento (jugement)?
vontade humana: da voz da É sua faculdade inteligente (faculté intelligente),
natureza à voz interna da seu poder de julgar; a causa determinante está
consciência em si mesmo. Além disto não entendo mais
nada” (OC iv 586) (1992, p. 324; 2004, S. 573).
Para que uma teoria da obrigação moral Ao colocar o problema nesses termos, Rousseau
possa ser a base de figurações jurídico-políti- está evidenciando com toda a clareza uma
cas e sustentar o processo pedagógico da edu- ‘consciência de época’ dos ‘tempos modernos’ e
cação natural, ela deve estar embasada por uma isso não significa outra coisa senão apresentar
teoria da determinação racional da vontade, da uma teoria de autocertificação da modernidade
qual, como afirmei, Rousseau oferece um esbo- sustentada por uma teoria da determinação ra-
ço no livro IV de Émile. Seu ponto de partida cional da vontade: sua causa reside não mais em
consiste em desvincular a vontade da sensibili- um Deus nem mais num conceito de Ser, mas
dade, tornando-a independente em relação aos na ‘capacidade própria de conhecimento’, isto
sentidos e colocá-la sob o domínio da razão. é, na capacidade da própria razão humana. Ao
Interpretado sob essa perspectiva, Rousseau dizer que a causa determinante da vontade está
antecipa a temática kantiana da fundamentação no ‘si mesmo’, Rousseau bloqueia qualquer
da moralidade na Grundlegund4 , na qual, a ra- acesso externo, concebendo o recurso ao ‘si
zão deve determinar a vontade por motivos a mesmo’ como princípio fundante – como cau-
priori. No entanto, Rousseau não está plena- sa – da determinação da vontade. Se esse é o
mente convencido, no livro IV do Émile , como resultado a que chega o seu argumento, ainda
Kant o está na GMS , sobre a necessidade da que possa ser um resultado provisório, cabe
determinação racional da vontade como ponto perguntar o que significa a vontade ser deter-
de partida indispensável para uma fundamen- minada pelo ‘si mesma’ e, mais especificamen-
tação adequada da moralidade das ações hu- te, o que significa esse ‘si mesmo’? Para ser
manas. Seu argumento vacila, tornando-se con- coerente com a exigência posta pelo seu argu-
fuso em relação ao significado do conceito de mento até aqui, o próprio ‘si mesmo’ deveria
razão e consciência e o papel que desempe- ser constituído racionalmente ou, pelo menos,
nham na justificação da moralidade. o argumento de Rousseau deveria oferecer um
Por um lado, parece haver uma direção ‘acesso racional’ ao ‘si mesmo’, para que ele
clara no sentido de atribuir à razão a capacida- pudesse ser a causa determinante da vontade.
de de determinar a vontade. Diz Rousseau: Antes de tratarmos dessa dificuldade, é preci-
“Quando me perguntam qual é a causa que so seguir mais de perto sua argumentação em
determina minha vontade, eu me pergunto qual relação ao problema da liberdade da vontade.
a causa que determina meu julgamento: por- Consciente de que não pode existir ‘uma
que é claro que estas duas coisas não são se- verdadeira vontade sem liberdade’, Rousseau
não uma” (OC iv 586) (1992, p. 324; 2004, S. conecta esse esboço da determinação racional
573). Ao identificar a causa da determinação da da vontade com o problema da liberdade: se a
vontade com a causa da determinação do jul- minha vontade deve ser determinada racional-
gamento, seu argumento está autorizando a mente, para que tal determinação possa ser
conclusão de que a vontade é determinada ou, eficiente, precisa ser uma determinação livre,
pelo menos, pode ser determinada pela razão. isto é, ocorrer mediante a idéia da liberdade.
Na seqüência, ainda no mesmo parágrafo, ele Por isso, a determinação racional da vontade
formula literalmente a tese da determinação
racional da vontade: “Qual a causa então que 4. Forma abreviada da obra kantiana Grundlegung zur Metaphisyk der
determina sua vontade (volonté)? E qual a cau- Sitten, também conhecida pela sigla GMS .
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manas. Se o argumento de Rousseau tivesse lação satisfatória entre as dimensões sensíveis e
concluído enfaticamente nessa direção, ele te- racionais do ser humano, uma vez que a própria
ria também antecipando literalmente outra tese capacidade de julgamento pertence à razão. Ou
central da GMS, a saber, de que somente seres seja, em tese, seria ela que permitiria, em termos
racionais e livres podem agir de acordo com a de moralidade, o acesso mais promissor à voz
representação de leis. No entanto, mesmo que interna da consciência.
ele não tenha chegado claramente a essa conclu- Embora Rousseau possa ser interpretado
são, ela se coloca como condição indispensável como um precursor de Kant, não é necessário
para que indivíduos possam lavrar livremente exagerarmos numa ‘kantianização’ de seu pen-
contratos entre si e se sintam obrigados, racional samento. Portanto, prossigamos: antes de che-
e livremente, a viver mediante ordenamentos de gar ao argumento da consciência, como vimos,
uma vontade geral. Rousseau precisou mostrar que os males e pro-
Se Rousseau tivesse enfatizado satisfato- blemas vividos pelo homem são de responsabi-
riamente a racionalidade e a liberdade da von- lidade da sociedade e, em parte, do próprio
tade humana, com isso ele ainda não teria mos- homem. Isto é, ele precisou, primeiramente,
trado a moralidade dessa mesma vontade, uma desresponsabilizar a Providência. Seu argumen-
vez que uma vontade racionalmente livre não to joga-nos inteiramente na condição de ter
pode ser identificada com uma vontade moral. que responder pelos nossos próprios atos, sem
Como Kant mostrará duas décadas depois, a poder querer mais justificar que o mal que nos
moralidade não pode ser deduzida analiticamen- acomete, que a condição miserável na qual nos
te da liberdade da vontade humana. No caso de encontramos seja obra do destino ou da vontade
Rousseau, não se trata ainda, portanto, de uma de Deus, mas que depende do próprio ‘abuso
vontade moral, pois mesmo quando impulsiona- de nossas faculdades’. Ao desresponsabilizar a
da pela razão a agir livremente, não está garan- Providência de nossos males, Rousseau parece,
tido ainda que a vontade vai agir moralmente. ao mesmo tempo, não querer deixar-nos órfão
Entretanto, o que falta então para que uma dela: “Ela [a Providência, CAD.] não quer o mal
vontade racionalmente livre também seja moral? que o homem faz, abusando da liberdade que
Ao se colocar a pergunta nesses termos, Kant ela lhe dá; [...]. Ela o quis livre, a fim de que
responderá dizendo que a moralidade da ação de fizesse, não o mal, mas o bem de vontade pró-
um ser, que é racional e ao mesmo tempo sen- pria” (OC iv 587) (1992, p. 325; 2004, S. 574).
sível, portanto, de um ser que não pode deter- Ao desresponsabilizar a Providência e ao voltar-
minar racionalmente de uma forma absoluta sua se especificamente para o homem e para a soci-
vontade, só é possível na medida em que a lei edade, ele prepara o terreno para um outro tra-
moral valha para ele na forma de um dever, isto tamento do problema da imputabilidade moral:
é, na linguagem técnica da GMS, somente na porque possuímos uma vontade livre que é capaz
medida em que a lei moral tenha validade para de se deixar influenciar pelas paixões, mas que
esse ser na forma de um imperativo categórico também pode se determinar racionalmente, pode-
e, para assegurar isso, é preciso uma dedução. mos escolher entre fazer o bem ou o mal e, fun-
No entanto, Rousseau não só não formula ex- damentalmente, sermos responsabilizados pela
pressamente a lei moral, como, muito menos, nossa escolha. Diz ele: “Homem, não procurais
terá condições de pensar numa dedução. Suas mais o autor do mal; és tu mesmo esse autor.
dificuldades aumentam ainda mais quando ele Não existe outro mal senão o que fazes e so-
vê no recurso à voz interna da consciência o cri- fres, e um e outro te vêm de ti”. Em outra
tério de julgamento da moralidade das ações hu- passagem, na mesma página, ele afirma: “O mal
manas, pois, ao fazer isso, ele assume o ônus da moral é incontestavelmente nossa obra” (OC iv
prova de ter que ao menos apresentar uma re- 587) (1992, p. 325; 2004, S. 575).
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recebe seu impulso, além de sua relação con- apelo ao coração humano como uma referencia
sigo mesma, também da relação com seus se- indispensável a um tratamento realista da
melhantes. Portanto, há uma predisposição moralidade humana. É a partir disso que se
natural que é impulsionada socialmente e isso pode compreender também sua grande ênfase,
parece então não contradizer a tese da socia- no método pedagógico, ao apelo do coração:
bilidade da moral.
A segunda dificuldade, além de mais Não te aproximes jamais da juventude com
importante, é mais grave. Se a consciência passa argumentações racionais secas. Daí um cor-
a ser o critério de julgamento de nossas ações, po à razão se quiserdes lha torná-la sensí-
como ela se relaciona com nossa vontade e, vel. Fazei passar pelo coração a linguagem
mais precisamente, com aquela necessidade, do espírito, a fim de que se faça entender.
identificada por Rousseau, de uma determina- (OC iv 648) (1992, p. 382; 2004, S. 657)
ção racional da vontade, põem-se aqui de ime-
diato algumas perguntas: em que sentido o No entanto, seu apelo excessivo à voz da
recurso à voz interna da consciência constitui consciência e aos sentimentos do coração difi-
critério adequado para uma vontade que bus- culta, por vezes, a própria compreensão de seu
ca agir moralmente? Se, como vimos, Rousseau conceito de razão. Segundo Schäffer (2002),
considera importante que a vontade seja determi- Rousseau concebe-a como um poder (faculda-
nada racionalmente, qual é o grau de reflexividade de) ambivalente: a razão é, por um lado, a pro-
que a voz interna da consciência permite alcan- dutora de erros, por estar subordinada às paixões
çar? Enfim como ela se relaciona com a razão? e ao amor-próprio. No entanto, ela é também,
Parece-me que o ponto de partida para por outro lado, aquela força voltada para o
um tratamento adequado dessa segunda difi- controle das paixões e que está na condição de
culdade e as perguntas dela derivadas consis- conhecer o bem. O mais fundamental em seu
te, primeiro, em não perder de vista a distinção conceito de razão residiria, segundo esse autor,
feita por Rousseau entre consciência e razão: se na idéia de que a razão indicaria para o seu
é com a primeira que nós podemos sentir, será corretivo imediato, ou seja, para a consciência
somente com a segunda que alcançamos nos- e somente quando relacionada a ela é que a
sa capacidade de julgamento. Segundo aspec- razão poderia livrar-se de suas incorreções. Por
to, como decorrência do primeiro, se a consci- fim, Rousseau tem como pano de fundo da
ência não possui a capacidade de julgamento, educação do jovem Emílio essa necessária re-
ela precisa ser esclarecida pela razão. É eviden- lação entre consciência e razão.
te que essa interpretação coloca-se, em certo Rousseau apresenta, ao meu ver, um
sentido, na contramão de muitas afirmações de conceito menos problemático de razão, que é
Rousseau e, sobretudo, à sua insistência quanto mais compatível com o projeto educacional de
à não subordinação excessiva da consciência à Emílio, quando trata, no livro II do Émile, jus-
razão. Entretanto, é preciso ter em mente tam- tamente da importância de se desenvolver a
bém o fato de que essa sua posição deve-se em sensibilidade na formação da criança. Aí afirma
grande parte à sua crítica aos sistemas filosó- ele o seguinte: “De todas as capacidades do
ficos abstratos e ao próprio conceito de razão homem, a razão, que não é, por assim dizer,
deles decorrente. Por ser contra todo o tipo de senão um composto de todas as outras, é a que
intelectualismo moral, Rousseau atribui grande se desenvolve mais dificilmente e mais tarde”
peso ao recurso à consciência e à sensibilida- (OC iv 317) (1992, p. 74; 2004, s. 205). Con-
de para o tratamento dos problemas morais. siderando que a capacidade de julgamento deve
Em síntese, suas convicções intelectuais cami- ser provocada, em sua inteireza na formação de
nham firmemente na direção de reconhecer o Emílio, somente mais tarde e considerando as
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tando-se com o sentimento do amour-propre, deve ser ensinado a não suportá-lo com a
seu princípio inato de justiça e de virtude ad- mesma intensidade em que é preparado a su-
quiriria um conteúdo moral propriamente dito. portar as intempéries naturais. Do ponto de
A moralidade resultaria então da tensão entre o vista antropológico, o sentimento egoísta do
princípio de justiça e virtude que reside na amo-próprio deve ser, portanto, confrontado
consciência e seu inevitável confronto com reflexivamente com a piedade e com o senti-
capacidade humana reflexiva oriunda do pro- mento de humanidade emergentes do amor de
cesso de socialização humana. Se tal interpre- si mesmo. A origem do mal social deve-se,
tação procede, como ela fica evidente que o nesse caso, ao esforço concentrado do senti-
simples apelo à voz interna da consciência ou mento egoísta do amor-próprio em preservar
somente o recurso de conhecimento que bro- seus interesses privados à custa dos outros,
ta da razão não são suficientes, isoladamente, sufocando a perspectiva universalizante de
para a formação moral do Emílio, também não poder incluir a humanidade e, portanto, o ou-
sendo suficientes, portanto, para constituírem a tro em sua ação. Isso aponta para uma tese
moralidade das ações humanas. Por isso, nes- central da teoria educacional exposta no Émile:
se contexto, ouvir a voz da consciência nada a educação do Emílio só faz sentido quando
mais significa do que a exigência de confrontá- pensada dentro e não fora da sociedade e a
la com a capacidade racional de julgamento e, questão decisiva que se coloca para seu projeto
visto pelo lado da razão, as ações humanas tam- é o de que Emílio deve formar-se socialmente,
bém precisam ser constantemente confrontadas apreendendo a viver bem consigo mesmo e
à voz do coração. Se o contexto argumentativo com os demais, para poder construir relações
rousseauniano não esclarece a ‘obscuridade do moralmente autônomas no interior da socieda-
ato da consciência’, parece deixar claro, ao de da qual faz parte. Esse é um dos motivos
menos, sua dupla dimensão, a sensível e a raci- que torna a educação moral uma referência
onal, fazendo de ambas a sede da moralidade indispensável à formação da identidade do ser
das ações humanas. humano a tal ponto que este seja capaz de
viver bem consigo mesmo e com os outros.
Algumas implicações De outra parte, estando em estreita
pedagógicas sintonia com as teorias social e antropológica,
o esboço da teoria da determinação racional da
A crítica à sociedade feita por Rousseau vontade também deve oferecer argumentos
significa, ao mesmo tempo, uma crítica à ori- para o confronto, por meio de um trabalho
gem social da maldade e, num sentido mais educativo da tendência egoísta do amor-pró-
amplo, da própria moralidade humana. Tal crí- prio, com o processo de estranhamento oriun-
tica está também na base de seu projeto edu- do da sociabilidade humana, visando à recupe-
cacional: Emílio, seu educando imaginário, ração do sentimento do amor de si mesmo no
deve ser ensinado a suportar todo tipo de ‘mal convívio social. Dentro desse contexto, o pro-
físico’. Rousseau considera a capacidade de jeto educacional de Emílio não consiste em
suportar privações e necessidades como um negar o estado social, como se fosse possível
princípio pedagógico genuíno para servir como educá-lo fora da sociedade, mas dito em termos
ponto de partida, mas não como ponto de antropológicos, tornar visível, dentro de tal
chegada da educação, da vontade contra seu estado, a tensão entre os dois tipos de senti-
próprio livre arbítrio, isto é, contra uma ‘liber- mentos constitutivos da personalidade humana,
dade desregrada’ de uma vontade que pensa o amor de si mesmo e o amor-próprio.
que o simples querer já é poder tudo. No en- Expressado em termos jurídicos e políti-
tanto, quando se trata do ‘mal social’, Emílio cos, Rousseau imagina, contrafaticamente, na
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Recebido em 26.01.06
Aprovado em 07.08.06
Cláudio Almir Dalbosco é doutor pela Universität Kassel (Alemanha) e professor do curso de Filosofia e do Programa de
Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo.