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A CONSTITUINTE NO ESTADO-MEMBRO

Regis Fernandes de Oliveira*

A Constituinte do Estado. 1. Poder constituinte originário e de-


rivado. 2. Poder constituinte decorrente. 3. Limites. 4. Obediência
aos princípios. O que são. 5. Classificação.

A Constituinte do Estado

Começa, agora, a segunda fase da reinstitucionalização do Estado brasileiro.


Como a federação é composta da organização do Estado, através da Constituição
Federal, mas não dispensa a ordenação jurídica de ordens normativas menores,
com representação política perante a União, claro está que a federação se com-
pleta com a estrutura jurídica que for dada aos estados-membros.
1. O poder constituinte originário dispensa qualquer força anterior, legitiman-
do-se por situação de fato. Normalmente, provém de revolução, podendo, todavia,
originar-se de mera restauração de ordenamento jurídico defasado e em descom-
passo com a realidade vivida em determinado momento histórico.
Daí ser inicial, soberano e incondicionado. É inicial porque não se assenta em
outro. É soberano porque não está subordinado a outra ordem normativa. É incon-
dicionado porque pode mudar radicalmente toda estrutura de governo. Como
exemplos, a Revolução Russa, a Francesa, a Chinesa e, mais próximos de nós, a
Chilena, a Cubana e a Nicaragüense.
Ao lado do poder constituinte originário, há o derivado que se instaura com a
constituição do regramento positivo. A saber, uma vez promulgada a Constituição
Federal, surge a possibilidade de ser ela alterada pelo Congresso, que fica investi-
do na condição de constituinte derivado, isto é, tem limites e que são aqueles
constantes dos incisos I a IV, do § 4!?, do art. 60, da Constituição Federal.
Uma vez organizado o Estado brasileiro definido como federação (art. 1!?),
através de Constituição Federal, impõe-se o advento das constituições estaduais.
De acordo com o disposto no art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, "cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a
Constituição do estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Consti-
tuição Federal, obedecidos os princípios desta".
Compondo-se a federação da união dos estados-membros, através da descen-
tralização política prevista na Constituição Federal e da representação dos estados
na União, impõe-se que sejam elaboradas as constituições estaduais, obedecidos
os princípios estampados no texto da Lei Maior.
2. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, estudando o tema, esclarece: "Chama-se
de poder constituinte decorrente aquele que, decorrendo do originário, não se

* Presidente da Apamagis; juiz do I ~ T AC; professor na USP.

R. Dir. adm., Rio de Janeiro, 177: 150-57 ju1Jset.1989


destina a rever sua obra, mas a institucionalizar coletividades, com caráter de es-
tados que a Constituição preveja." I
Diversamente da soberania de que goza o poder constituinte originário, o de-
corrente é autônomo. Autonomia significa "uma zona de autodeterminação".2
Como ensina Carré de Marlberg, "a faculdade de auto-organização consiste, antes
de tudo, para uma coletividade, no poder de se dar uma Constituição, quer dizer,
de determinar, por sua própria vontade, seja os órgãos que exercerão seu poder,
seja a extensão e condições de exercício deste poder" . 1 Kelsen agudamente obser-
va que "o Estado federal caracteriza-se pela circunstância de que os estados-
membros possuem um certo grau de autonomia constitucional, isto é, pela cir-
cunstância de que o órgão legislativo de cada estado-membro é competente em
relação a matérias que concemem à carta política dessa comunidade, de tal manei-
ra que os mesmos estados-membros podem realizar, através de leis, mudanças em
suas próprias constituições".'
Afirma Anna Cândida da Cunha Ferraz que "embora o poder constituinte dos
estados-membros seja um poder de direito posto pela Constituição Federal, sua
função é de caráter nitidamente constituinte, partícipe que é da obra do poder
constituinte originário que, sem a sua cooperação, não cumpriria o desígnio de
instituir um estado do tipo Federal".s
Decorre do que se vem dizendo, que, diferentemente do poder constituinte ini-
ciai, soberano e ilimitado, o poder constituinte decorrente é derivado, subordinado
e condicionado. Deri,;,ado porque provém do inicial. Subordinado porque limitado
e condicionado porque vinculado às formas impostas pela Constituição Federal.
3. Diante do que se vem dizendo, legítima será a indagação dos limites do po-
der constituinte decorrente. Deve apenas copiar o texto da Constituição Federal,
ou tem liberdade para agir, dentro dos condicionamentos normais? Como afirma
Michel Temer, a subordinação é aos princípios. "Não de obediência à literalidade
das normas. A Constituição estadual não é mera cópia dos dispositivos da Cons-
tituição Federal. Princípio, como antes ressaltamos, amparados em Celso Antônio
Bandeira de Mello, é mais do que norma; é alicerce do sistema; é sua viga mes-
tra".6 Continua o autor afirmando que "a competência atribuída aos estados-mem-
bros para se auto-organizarem não é de molde a obrigar mera reprodução do texto
federal". 7
Ao falar-se em Constituição, em direito público, imediatamente vem à mente a
estruturação dos órgãos de poder e a forma de seu exercício, aliadas às limitações
constitucionais consubstanciadas nos direitos e garantias individuais, coletivas e
sociais. Estruturar o poder do Estado é dispor sobre sua composição, competência
e forma de exercício. Uma vez atentando-se para o respeito aos princípios estabe-

I Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. p. 27.

2 Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p. 129.

1 Marlberg, Carré de. Teoria general dei Estado. p. 159.

• Kelsen. Teoria general dei derecho y dei Estado. México, p. 334.


S Cunha Ferraz, Anna Cândida da. Poder constituinte do estado-membro. Rev. dos Tribunais. p. 61

6 Temer, Michel. Elementos de direito constitucional. p. 83

7 Id. ibid. p. 84

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lecidos na Constituição Federal, remanesce aos estados-membros o estabeleci-
mento de regras e normas e também outros princípios decorrentes daqueles primei-
ros, mas referentes aos próprios estados. Esta competência é denominada por
Paulo Sarasate de "poderes residuais ou remanescentes".·
Observe-se que o § I!? do art. 25 da Constituição Federal estabelece que "são
reservadas aos estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta
Constituição" .
Dentro de tais idéias, o poder constituinte decorrente e limitado, uma vez que
se trata de poder jurídico, portanto, condicionado, é livre para dispor como queira
naquela esfera de competência que lhe foi reservada pelá própria Constituição Fe-
deral. Limitado aos contornos jurídicos traçados na Lei Maior, é ilimitado no âm-
bito de sua competência.
O legislador constituinte estadual tem o figurino nacional e as vedações expres-
sas. De outro lado, tem liberdade para disciplinar o relacionamento entre os ór-
gãos de exercício de poder, a estrutura deles e o modo de seu exercício.
Em relação ao Poder Judiciário, os arts. 125 e 126 traçaram os vetores que de-
vem ser seguidos pelos estados. O art. 93 dispõe sobre o Estatuto da Magistratura,
que será objeto de lei complementar. Como estatuto significa a disciplina jurídica
do servidor, no tocante a direitos, deveres, prerrogativas funcionais, percepção de
vencimentos, eníun, tudo que diga respeito à vida funcional do magistrado, foge à
competência estadual tal disciplina. A competência dos tribunais, inclusive dos
estados, vem expressamente estabelecida no art. 96. Dispõe a letra a, inciso I do
mesmo artigo sobre a competência para eleição de seus órgãos diretivos, sem esta-
belecer a forma. Evidente que incumbe à Constituição do estado dispor sobre ela,
uma vez que cuida da estrutura do poder e a forma de seu exercício. O art. 98 dis-
põe sobre os juizados especiais e de paz. Evidente que a Constituição poderá dis-
por sobre sua competência. Da mesma forma, incumbirá à Constituição dos esta-
dos estabelecer mecanismos que garantam a eficácia da autonomia administrativa e
financeira do Poder Judiciário, nos termos do art. 99. Nesse campo, não há limi-
tes. Os princípios estão traçados. As regras são livres.
Afirma Anna Cândida que "ao poder constituinte decorrente cabe desdobrar,
nas constituições estaduais, os poderes que, na repartição efetuada pela Constitui-
ção Federal, lhes forem destinados - essa é a amplitude de sua ação".' Em outro
t6pico, afrnna a autora que "toda ~téria que corresponder aos poderes estaduais
e que lhes for expressa ou implicitamente vedada ou retirada, pode ser atuada,
pelo poder constituinte decorrente" .10
Como se vê da transcrição de alguns autores, à Assembléia Constituinte esta-
dual não restaram apenas alguns respingos de responsabilidade na reconstrução do
ordenamento jurídico brasileiro. Ao contrário, exatamente por constituir-se em fe-
deração é que aos estados-membros foi reservada ampla colaboração jurídica. Não
se pode relegar a segundo plano o constituinte estadual. Fixada a exaustiva com-
petência da União no art. 21 da Constituição Federal e a competência legislativa
no art. 22 e eliminada a competência municipal tal como consta do art. 30, rema-
nesce aos estados toda legislação no que diga respeito a seus interesses, inclusive
metropolitanos, além da legislação concorrente prevista no art. 24.

8 Sarasate, Paulo. A Constituição do Brasil ao alcance de todos. Freitas Bastos, 1%7. p. 261
, Cunha Ferraz, Anna Cândida da. Poder Constituinte do estado-membro. Rev. dos Tribunais. p. 131.
10 .Id. ibid. p. 132.

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Fundamental para o desenvolvimento da agilidade processual que os estados-
membros acelerem providências procedimentais, tal como lhes foi atribuído pelo
inciso XI do art. 24 da Constituição Federal.
Emergirá o constituinte paulista como um gigante. Tem tarefa imensa a pesar-
lhe sob os ombros. Sem dúvida dará conta dela. Todavia, impõe-se alertar que não
poderá ser timorato, nem preocupado com idéias novas, arejadas, que venham tra-
zer oxigênio às instituições existentes. A estrutura, o arcabouço delas atendeu a
um Brasil passado, onde as necessidades eram de um tipo. Hoje, tende-se à visão
do Brasil futuro, retirando-o dos antípodas do destino que lhe tem sido vaticinado.
É imprescindível que se deixem arquétipos ultrapassados ao oblívio. O consti-
tuinte estadual deve ser o estadista do ordenamento jurídico. Deve ter a visão do
grande, do rasgar horizontes, do desvendar novos caminhos, sem ter medo de per-
corrê-los.
É um chamado à responsabilidade. É um apelo da consciência cívica. É uma
cobrança dos eleitores. E um alertar da população, que clama por dias melhores.
Sem dúvida, o constituinte do estado não poderá baixar a inflação, nem ali-
mentar a população. Mas, indiscutivelmente, pode dar-lhe segurança jurídica, se-
riedade no trato com a coisa pública, criando mecanismos de controle, fixando
normas de efetiva construção do novo estado.
Não é mais hora de copiar a Constituição Federal. Em bom momento foi retira-
do do texto constitucional que os estados fariam mera adaptação, como estava es-
crito no texto da comissão de sistematização. Dispõe o art. 11 do Ato das Disposi-
ções Constitucionais Transit6rias que a Assembléia Legislativa tem "poderes
constituintes". É o mais pleno reconhecimento de que pode ela constituir (no sen-
tido de alterar) a ordem jurídica ulterior.
A efetiva tendência é a onicracia, como ideal-limite a que alude Bobbio. 1I
O grande problema que se coloca, sub-repticiamente, na elaboração das cons-
tituições estaduais e esteve presente na brasileira é a criação de mecanismos de
controle de forma tal que impossibilite que num estado democrático surja uma s0-
ciedade não-democrática. Essencial não é o desaparecimento das elites, mas a
criação de diversas que possam, livremente, disputar o poder. Mais fundamental,
ainda, para a existência de um estado livre é que "todas as ações relativas do di-
reito de outros homens cuja máxima não é suscetível de se tomar pública são in-
justas" . 12
O fato de a Assembléia estadual constituir-se no poder constituinte significa
que está fundado sobre o consenso expresso ou tácito daqueles aos quais é desti-
nado seu exercício. 13
Se assim é, se a Assembléia Estadual Constituinte haure seu poder do povo,
mandante último dos poderes, deve-se constituir uma sociedade democrática, jun-
tamente com o Estado democrático, e que deva ter o consenso da comunidade civil
a que se destinará a ordem jurídica em elaboração. Importa firmar, a conclusão
mágica (no sentido de origem dos mitos a que alude Max Weber) é da liberdade,
da ilimitação do constituinte estadual no regramento do resíduo constitucional,

11 Bobbio. o futuro da democracia. 2. ed. paz e Terra. p. 19.


12 Kant.Pazperpétua, 19I3.Apêndice,p. 163.
13 Bobbio.Estado, governo, sociedade. paz e Terra. p. 79.

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pois não lhe cabe apenas adaptar a Constituição Federal dentro da ordem jurídica
menor (Kelsen), mas dar conteúdo, preencher o vazio constitucional remanescen-
te.
É fundamental o trabalho do constituinte estadual.
Como esclarece Anna Cândida, "a limitação do Poder Constituinte Decorrente
é da essência do próprio federalismo. Impossível conceber um Estado federal em
que as unidades federativas gozem da plenitude do poder, ou detenham soberania.
As unidades de uma federação, os estados-membros, já se disse, têm apenas auto-
nomia constitucional limitada; ou, em outras palavras, dispõem de capacidade de
auto-organização e têm competência normativa própria". 14
Dentro do máximo de autorizações implícitas e do mÚlimo de liberdade, tem o
Estado plena liberdade para instituir sua ordem menor. Como diz Bernard Sch-
wartz, "a Constituição, em todos os seus dispositivos, visa a uma União indestru-
tível, composta de estados indestrutíveis" .IS
No quadro genérico das limitações, existem as vedações expressas (por exem-
plo, não podem os estados-membros constituírem-se em monarquias, nem em esta-
dos unitários, porque tal lhes é vedado pela Constituição Federal, em sentido con-
trário ao que dispõe o texto federal). São os princípios a que alude o art. 25, de-
nominados "extensíveis", por José Afonso da Silva. Há aqueles que motivam I.
a intervenção federal, nomeados de "sensíveis" pelo mesmo autor, e há os deno-
minados "estabelecidos", isto é, as vedações arrolada:; ao longo dos dispnsitivos
constitucionais.
Ensina o mesmo autor que, à exceção dos princípios expressos (extensivos,
sensíveis e estabelecidos, na terminologia adotada), "os demais princípios enume-
rados ou estabelecidos na Constituição Federal, que impliquem limitação à auto-
nomia estadual - cerne e essência do princípio federativo -, hão que ser compre-
endidos e interpretados restritivamente e segundo seus expressos termos". t1
Mais não se precisaria dizer para que se tenha o constituinte estadual como li-
vre na criação das instituições e órgãos de exercício do poder constituído, disci-
plinando sua criação, forma de exercício, competência etc. Não há óbices a que
assim seja. O constituinte há de ser livre para traçar o grande contorno do orde-
namento jurídico do estado-membro. Os limites são aqueles destinados a realizar
obra jurídica duradoura, no engrandecimento da consciência jurídica brasileira.
Queira Deus que o constituinte estadual esteja inspirado e acessível a novas
idéias que possam fazer um estado melhor e democrático.
4. Segundo dispõe o art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-
rias, as assembléias legislativas dos estados elaborarão as respectivas constitui-
ções, "obedecidos os princípios desta".
Surgem, daí, as seguintes indagações: o que são princípios e quais são eles e
quais os limites de atuação por parte da!) assembléias estaduais.
No mesmo sentido dispõe o art. 25 da parte permanente da Constituição Fede-
ral, ou seja, estabelece que "Os estados organizam-se e regem-se pelas Constitui-
ções e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição" .

14 Cunha Ferraz, Anna Cândida da. op. cito p. 135.

IS Schwartz, Bernard. Direito constitucional americano. Rio de Janeiro, Forense, 1966. p. 50.
16 Silva, José Afonso da. op. cito p. 130.

17 Id. ibid. p. 134.

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Daí ser importante que saiba o legislador constituinte dos estados quais os
princípios a que deve obediência.
Impõe-se, para análise do problema, em primeiro lugar, sabermos o que é prin-
cípio. Em notável estudo sobre os princípios jurídicos e o positivismo jurídico,
Genaro R. Carri6, jusfil6sofo argentino, esclarece que há nada menos que sete fo-
cos de significação do que seja um princípio" .•8 Uma coisa é certa: nunca se deve
buscar princípios fora de pautas que não integram o direito. Encontram-se eles in-
seridos no corpo do direito positivo, seja expressa, seja implicitamente. Esclarece
Celso Antônio que "princípio é, por def"mição, mandamento nuclear de um siste-
ma, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferen-
tes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreen-
são e inteligência delas, exatamente porque define a 16gica e a racionalidade do
sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico" .•9
Ensina Agustin Gordillo que a Tiôrma dá o limite da ação de alguém, enquanto
que o princfpio dá o limite e o conteúdo. 20
Como já conceituei, "princípio é a norma que orienta a elaboração de outras
normas, de primeiro grau, extraída, por dedução, do sistema normativo, operando
limitação das próprias normas e auto-integração do sistema". 2.
O que vale a pena notar na lição dos autores é que o princípio é mais que mera
regra. Posso destruir a regra, revogá-Ia, sem atingir o sistema como todo. Não
posso destruir o princípio que atinge a estrutura.
Assim, apenas a título de exemplo, a regra constante do inciso vn do art. 93
que determina que "o juiz titular residirá na respectiva comarca" pode ser revoga-
da sem maiores problemas para o sistema constitucional instituído. É mera regra,
que não compõe o conteúdo do sistema normativo. É apenas limite à atuação de
alguém (o juiz, no caso).
A norma do art. 40, inciso n, da Constituição também pode ser alterada sem
constrangimento para o sistema, isto é, pode haver disposição de que a aposenta-
doria será aos 65 ou aos 73 anos de idade, que o ordenamento constitucional con-
tinua íntegro.
São regras-limite à atuação do Legislativo, isto é, não pode ele alterá-las por
legislação infraconstitucional, mas pode revogar a regra, sem alterar ou agredir a
higidez harmônica do sistema.
5. Para identificação e classificação dos princípios a que os estados devem
obediência, o critério eleito é o da gravidade da lesão à ordem normativa consti-
tucional.
O art. I!? da Constituição Federal combinado com o preceituado no § 4!? do art.
60 que estabelece: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir: I - a forma federativa de Estado; n - o voto direto, secreto, universal e
periódico; m - a separação dos Poderes; e IV - os direitos e garantias indivi-
duais." Institui princípios que são os maiores, por estarem mais protegidos de
qualquer alteração. A saber, o princípio federativo, o republicano (periodicidade
de escolha dos representantes, pelo voto e com responsabilidade), a tripartição dos

•• Carri6, Genaro R. Princfpios jurúJicos y positivismo jurúJico. Abeledo-perrot, 1970. p. 34-6 .


•9 Celso Antônio. Ato administrativo e direitos dos administrados. Revista dos Tribunais. p. 87.

20 Gordillo, Agustin./ntroducción ai derecho administrativo. 2. ed. Abeledo-perrot, 1966. p. 176/7.


2. Oliveira, Regis Fernandes de. Licitação. Revista dos Tribunais, 1981. p. 27, nota.

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poderes e os direitos arrolados são princípios cardeais do sistema. Ninguém pode
alterá-los, ainda que por emenda constitucional, uma vez que não serão eles se-
quer objeto de deliberação.
Poderemos denominá-los como princ(pios .fundamentais de todo o sistema
constitucional.
Estes são princípios que não podem ser destruídos pelos estados-membros, por-
que a eles não compete legislar sobre o assunto. São, todavia, limites às normas
que ao Estado incumbe editar. Mas, não s6 isso, além de limite, são reservas de
conteúdo, ou seja, não pode haver a disposição que agrida o conteúdo de tais
princípios, além de que nada se pode editar do conteúdo contrário aos princípios.
Em segundo plano, em espécie de escalonamento, mas da mesma ordem de im-
portância, existem princ(pios de asseguramento da ordem constitucional. A deso-
bediência poderá significar ou dar margem à eclosão de intervençãp federal nos
estados. São os seguintes os princípios de asseguramento da ordem jurídico-cons-
titucional: "a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b)
direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da ad-
ministração pública, direta e indireta" (inciso vn, do art. 34, da Constituição Fe-
deral).
São princípios a que devem obediência os estados, não s6 como limite de sua
atuação, mas também como restrição de conteúdo. Dentre eles, dois que dizem
respeito diretamente aos estados, ou seja, os constantes das letras c e d, isto é, in-
tervenção nos Municípios e também a exigência de prestação de contas da admi-
nistração pública, direta e indireta. O primeiro destes cinge o comportamento dos
estados e o segundo assegura o princípio republicano de que a administração deve
ser responsável.
Existem princ(pios de subsistência dos estados-membros, que igualmente. de-
vem ser atendidos na organização e elaboração de suas constituições. São os dis-
postos no art. 34 da Constituição Federal, ou seja, a intervenção necessária nos
estados e no Distrito Federal, por parte da União, para assegurar a integridade na-
cional, a repulsa de invasão estrangeira, ou de uma unidade federativa em outra,
para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública, para garantir o livre
exercício de qualquer dos poderes nas unidades da Federação, para reorganização
das finanças da unidade federativa, e para prover a execução de lei federal, ordem
ou decisão judicial. É o que consta dos incisos I a VI do art. 34.
Há os princ(pios especfjicos que não são estruturais, mas que o sistema consti-
tucional determina sua aplicação obrigat6l'Ía a estados, Distrito Federal e municí-
pios. Dizem respeito a alguma classe ou assunto especial. São de tal espécie
aqueles relativos à administração pública (art. 37); aos servidores (arts. 37 e 39);
os de proporcionalidade eletiva dos representantes populares (art. 45); os relativos
à magistratura (art. 93); os que dizem respeito à tributação (art. 145); da atividade
econômica (art. 170).
Os princ(pios imp[{citos decorrem dos demais vistos e que a ninguém caberia
sustentar que sem eles poderiam os estados dispor de forma diversa. São os que
aguardam compatibilidade com os demais princípios da Constituição (§ 2~ do art.
52).
É fundamental ressaltar que um dos princípios cardeais, fundamentais no novo
ordenamento constitucional é o princípio federativo. isto é, a República Federati-
va do Brasil (art. 12) é formada pela união indissolúvel dos estados e municípios.
Nos arts. 12 a 4 2 estão descritos os princípios fundamentais da ordem jurídica
brasileira.

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Federação significa a repartição de competências políticas a nível constitucio-
nal e a representação dos estados nas decisões do Estado federal.
Vê-se, pois, que, respeitados os princípios mencionados anteriormente, os esta-
dos-membros são absolutamente livres, não s6 para criar os princípios da federa-
ção, uma vez que a autonomia lhes é assegurada, mas também para instituir regras
sobre todo e qualquer assunto que entendem pertinente e cabível. Não há limites.
A coexistência, na federação, de duas ordens jurídicas (em nossa Federação
temos três, incluída a dos municípios) superpostas exige compatibilidade e con-
formidade dos princípios e regras. Como diz antigo ac6rdão do Supremo Tribunal
Federal, "se a Constituição Federal é sempre uma 'repartição de competências',
com quinhões maiores ou menores para as autoridades centrais, segundo as unida-
des federativas se originaram dela ou a ela preexistiram", 22 "não há autoridade
que negue às mesmas unidades a plenitude de auto-organização no domínio que
lhe ficou traçado". 23 Daí o ensinamento de M. Monskhell, segundo o qual "é in-
discutível que todos os estados-membros possuam Constituição pr6pria, livre-
mente promulgada por eles". 24 As Constituições dos estados-membros são imper-
feitas, na terminologia kelseniana, 'porque a Constituição Federal contém normas
obrigatórias para as ordens jurídicas menores (Constituições estaduais). Mas, as-
segura o Ministro Ari Franco, "dentro de sua esfera privativa, o poder constituinte
locaI é ilimitado"!'
Como ensina Amaro Cavalcanti, "o Estado federado deve ter a maior autono-
mia possível quanto à sua pr6pria organização e funéÍonamento - queremos dizer
- a constituição polftica do Estado federado deve ser a obra exclusiva da vontade
do próprio povo que o habita, e, vindo desta fonte, a sua autoridade é suprema
dentro da sua esfera" . 26
Os estados-membros são, pois, instituídos e constituídos pela Constituição Fe-
deral e são organizados e regidos pelas Constituições estaduais que adotarem.
Em suma e finalizando: respeitados os princípios constitucionais mencionados,
são os estados livres para disporem, em seu texto institucional, da forma como
bem quiserem.

22 Durand, C. Les États fédúaux. p. 120.


23 Relatório do Min. Ari Franco. In: Revista de direito administrativo, 73/252 •

.. Monskhell, M. Teoriajurúlica deI Estado federal. p. 272 e segs.

25 Relat6rio do Min. Ari Franco. op. cito p. 252.


26 Cavalcanti, Amaro. Regime federativo e a República brasileira. p. 172.

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