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Desafios para os contratos eletrônicos envolvendo direitos autorais em

2020

Uma das tendências mercadológicas comentadas para 2020, é o acirramento da


balcanização dos serviços de streaming. O termo “balcanização” faz referência ao
processo violento de fragmentação de um grande Estado em vários menores, como
ocorreu na divisão dos Balcãs. É o que está ocorrendo com as plataformas de
streaming. O mercado que vinha sendo dominado pela Netflix, vê surgir cada vez
mais plataformas, produzindo seus conteúdos exclusivos e disputando a preferência
dos usuários com estratégias de marketing cada vez mais agressivas.

O resultado desta guerra entre os serviços é que a pirataria, que diminuiu


significativamente na última década, voltou a crescer a partir de 2018. 1 O usuário, que
antes se via plenamente atendido por um serviço cômodo a preços acessíveis, passou a
ser bombardeado por conteúdos distribuídos por diferentes plataformas. Assim,
incapaz de arcar com todas as assinaturas, retornou para os meios informais de
obtenção de arquivos, como o download via torrent.

Este retorno da pirataria fez ressurgir também as discussões sobre a necessidade de


recrudescimento das leis de propriedade intelectual a nível internacional.
Recentemente, a Disney+ e outras plataformas de streaming, estão reunindo esforços
para coibir práticas que consideram ilegais, como o compartilhamento de senhas.
Entendimento este amparado por uma corte de apelação nos Estados-Unidos, que
considerou a prática uma violação ao Computer Fraud and Abuse Act.2

Não é novidade que as novas tecnologias, ao facilitarem os processos de cópia e


distribuição dos bens imateriais, provocam o descontentamento das indústrias
produtoras de conhecimento e entretenimento, que passam então a pressionar os
governos por uma regulamentação mais rígida.

A partir do final da década de 1990 e início dos anos 2000, a preocupação era em
impedir o desenvolvimento e difusão de tecnologias que poderiam ser utilizadas para
contornar mecanismos de proteção de direitos autorais, os chamados TPM’s.3
Também se pretendia criar métodos de controle efetivos, mas que não travassem a
inovação tecnológica ou a evolução da rede. Ambos os anseios foram atendidos pelo
Digital Millennium Copyright Act (DMCA), com a criação do regime de safe harbour
para os provedores de aplicações de internet nos Estados Unidos.

1
Dados de estudo da Sandvine. Disponível em:
https://www.sandvine.com/hubfs/downloads/phenomena/2018-phenomena-report.pdf
2
MOTHERBOARD. Password Sharing Is a Federal Crime, Appeals Court Rules. Disponível em:
https://www.vice.com/en_us/article/wnxg94/password-sharing-is-a-federal-crime
3
TPMs (technological protection measures), “medidas tecnológicas de proteção” são chaves
criptográficas que impedem que o usário grave, copie ou reproduza em outro aparelho os bens
adquiridos de forma legítima. PARANAGUÁ, Pedro. Direitos autorais — Rio de Janeiro; Editora
FGV, 2009, p. 85.
Por este regime, os provedores não são responsabilizados civilmente pelo conteúdo
que hospedam, desde que removam imediatamente os conteúdos ilegais assim que
notificados para tanto.

Ocorre que o DMCA, que serviu de parâmetro para a legislação da União Européia e
de outros países, é alvo de discussões cada vez mais acaloradas. O motivo é que a lei
não contemplou os serviços de UGC (User-Generated-Content), como o Youtube e o
Soundcloud, que hospedam conteúdos de terceiros dos quais auferem renda por meio
de publicidade. Estes serviços se beneficiam do regime de safe harbour e, desde que
atendam às notificações e removam os conteúdos ilegais, não são responsabilizados
civilmente por infrações a direitos autorais em suas plataformas.

Mesmo com a garantia da lei, o risco de constantes demandas processuais fez com
que o Youtube desenvolvesse o sistema de Content ID. Este sistema identifica
prontamente os conteúdos postados e, notifica os proprietários dos direitos autorais
para que optem por solicitar a remoção do conteúdo ou obter uma parcela do valor
convertido em publicidade sobre ele.

Este contrato entre o Youtube e os detentores de direitos autorais ficou conhecido


com DMCA-plus, e conferiu enorme poder de mercado à plataforma. Primeiramente,
porque outros serviços semelhantes não possuem condições financeiras ou técnicas
para desenvolver um sistema de filtro semelhante. Cabe destacar que o Content ID foi
desenvolvido após a aquisição pelo Google, e custou aproximadamente 60 milhões de
dólares.4 Segundamente, porque apenas o Youtube possui receita com publicidade
suficiente para poder negociar com os proprietários de direitos autorais.

Esta vantagem faz com que o Youtube remunere muito menos pelos direitos autorais
do que qualquer outra plataforma de streaming. Por exemplo, enquanto o Spotify paga
em média 20 dólares ao ano por usuário às gravadoras, o YouTube paga menos de 1
dólar, e detém cerca de 46% do mercado de streaming on-demand.5

Além desta deformidade de mercado, o regime de safe harbour do DMCA também


gera enorme insatisfação para as indústrias do entretenimento, porque não exige que
os conteúdos removidos sejam permanentemente banidos do provedor.

Estas discussões culminaram na aprovação da Diretiva sobre Direitos Autorais no


Mercado Único Digital da União Européia 6, que prevê a obrigatoriedade do uso de
tecnologia de filtros, como o Content ID, para as plataformas de serviços UGC.

4
SCHOPPERT, John. The Need to Regulate DMCA-Plus Agreements: An Expansion of Sag's Internet
Safe Harbors and the Transformation of Copyright Law. Disponível em: https://siliconflatirons.org/wp-
content/uploads/2018/10/The-Need-to-Regulate-DMCA-Plus-Agreements-An-Expansion-of-Sags-
Intern....pdf

5
IFPI. Global Industry Music Report 2018: Annual State of Art of the Industry. 2018. Disponível em:
www.ifpi.org/downloads/GMR2018.pdf Acesso em: 12 12.2019.

6
Resolução legislativa do Parlamento Europeu, de 26 de março de 2019, sobre a proposta de diretiva
do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos de autor no mercado único digital
(COM(2016)0593 – C8-0383/2016 – 2016/0280(COD))   
Dentre várias outras medidas polêmicas, como a  determinação de que agregadores de
notícias, como o Google News, devem pagar aos editores pela divulgação de partes de
seus artigos.

Um dos maiores problemas da tecnologia de filtro, é que o sistema é incapaz de


considerar o “fair use” por parte o usuário. O termo é uma construção da
jurisprudência e doutrina norte-americana, que entende que utilizar materiais
protegidos por direitos autorais para críticas, comentários, jornalismo, ensino, estudo
ou pesquisa, pode ser considerado justo e é inclusive um direito dos usuários. Trata-se
de uma análise que deve ser feita caso a caso, o que a tecnologia de filtros
automatizados é incapaz de fazer.

Enquanto as plataformas de streaming estavam em ascensão, com o Spotify e o


Netflix dominando o mercado e a pirataria perdia espaço, a insatisfação da indústria
de entretenimento se voltou para os serviços de UGC. No entanto, com a balcanização
dos serviços de streaming, a tendência é que aumente a pressão pelo recrudescimento
da legislação e mitigação dos direitos do usuário.

O avanço do conhecimento depende tanto da remuneração pela produção intelectual e


científica como do acesso facilitado ao próprio conhecimento. O equilíbrio entre os
dois aspectos é resultado de uma equação que envolve inúmeros fatores que atuam em
simbiose.

As novas tecnologias, os modelos de negócios, os interesses das indústrias produtoras


de conteúdo, a pirataria e os direitos de propriedade intelectual, são todos autores
interdependentes que modificam constantemente a distribuição de conhecimento e
entretenimento.

Como consequência, uma legislação mais rígida, que pode inicialmente parecer a
medida eficaz para satisfazer os interesses dos proprietários de direitos autorais, pode
futuramente gerar uma deformidade de mercado, limitar a fluidez de conhecimento,
estimular o surgimento de novas formas de pirataria, ou até inviabilizar um modelo de
negócio.

O mesmo ocorre com as relações contratuais entre as plataformas, os usuários e os


detentores de direitos. A estrutura contratual desenvolvida pelo Youtube com o
Content ID, estabeleceu um novo parâmetro de proteção da propriedade intelectual
que foi absorvido pela Diretiva sobre Direitos Autorais no Mercado Único Digital da
União Européia. O impacto que esta regulação terá ainda é incerto.

Diante do cenário de ressurgimento da pirataria, com a crescente balcanização dos


serviços de streaming, a tendência é que os contratos eletrônicos envolvendo estes
serviços reforçarão a proteção à propriedade intelectual, em detrimento dos direitos
dos usuários. Seja por adoção de cláusulas limitadoras do uso por parte das próprias
plataformas, seja por maiores esforços legislativos globais.

Assim, surge a necessidade de um esforço coletivo em sentido contrário, para a


proteção dos direitos do usuário e fomentação dos modelos de negócios que atuem na
produção e difusão de conteúdos.

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